David Lacerda
Doutor em História Social pela Unicamp
Quem circula pela região entre a Praça Mauá e a Igreja da Candelária, ou caminha até a Praça Quinze para tomar a barca e atravessar a baía de Guanabara, já deve ter avistado a Ilha das Cobras e sua paisagem rodeada por guindastes, navios armados, submarinos, porta-aviões, edifícios e galpões. Ali funciona um grande complexo industrial denominado Arsenal de Marinha, cuja história remonta à fundação do Arsenal Real de Marinha em 1763, ano em que a sede da governança colonial foi transferida de Salvador para o Rio de Janeiro.
Erguido nos arredores do mosteiro de São Bento, o Arsenal serviria para a fabricação e o reparo das embarcações da esquadra lusitana, reforçando o poder militar e econômico que o porto do Rio vinha adquirindo desde o século XVII, quando passou a integrar as rotas atlânticas do tráfico negreiro e do contrabando de metais preciosos envolvendo Lisboa, Luanda e o Rio da Prata.
No início do século XIX, a capacidade produtiva do estabelecimento foi beneficiada pela oferta de madeiras e fibras vegetais nos arredores da cidade. A pesca de baleia, a navegação de cabotagem, as guerras de Independência (1821-1824), a Guerra Cisplatina (1825-1828) e a continuidade do tráfico (ilegal de 1831 a 1850) também estimularam o desenvolvimento de suas atividades, bem como a abertura de oficinas, armazéns e repartições administrativas.
Nas décadas seguintes, o Arsenal tornou-se o principal centro de construção e reparo naval da Armada brasileira e um dos principais complexos militares localizados à margem sul-americana do Atlântico. Sua área foi se expandindo pela zona portuária em direção à Prainha (atual Praça Mauá, região de fronteira com os bairros da Saúde e da Gamboa) e ao Cais dos Mineiros e à Ilha das Cobras, para onde suas instalações foram transferidas no final dos anos 1940.
O Arsenal engloba os mais diversos serviços e afazeres relacionados ao mundo do trabalho marítimo. De 1810 a 1820 funcionavam cerca de doze oficinas, como as de ferreiros, calafates, cordoaria, carpinteiros de machado, pedreiros e canteiros. A partir de meados do século, a difusão mundial de tecnologias navais impactou a organização do espaço e das relações de trabalho. Em 1875 havia ali 2.367 trabalhadores distribuídos por vinte e duas oficinas. Ofícios tradicionais como calafates e carpinteiros navais, antes majoritários, passaram a dividir mais espaço com ocupações especializadas em fundição, tornearia, caldearia, forja de metais, manejo e conservação de armamentos e máquinas a vapor.
As oficinas reuniam expressivo contingente de trabalhadores e eram atravessadas por diferenças e desigualdades de classe e étnico-raciais, assim como outros espaços do Arsenal. Neles circulavam marinheiros, indígenas, colonos chineses, trabalhadores sentenciados, artífices militares, operários nacionais e estrangeiros, escravizados e livres, adultos e crianças – uma multidão diversa que compartilhava vivências e situações de exploração distintas.
Não à toa a rotina de trabalho no Arsenal era marcada por conflitos e tensões sociais. Contra a ameaça dos castigos físicos, do recrutamento forçado, das péssimas condições de trabalho e da violência dos costumes senhoriais e militares ergueram-se tentativas de fuga, deserção, levante e rebelião – cuja expressão mais eloquente no contexto mais amplo da Marinha de Guerra foi a revolta dos marinheiros negros de 1910 e que teve o Arsenal como um de seus principais palcos. Incontáveis queixas, clamores e petições também foram dirigidas às autoridades navais, contestando a ordem estabelecida. Algumas chegaram às páginas dos jornais da cidade. Em 1862, o Jornal dos Artistas veiculou pedido da “classe artística” do Arsenal por aumento e pagamento de seus vencimentos, enquanto a Gazeta dos Operários denunciou em 1875 o atraso do pagamento dos trabalhadores.
Além disso, quando adoeciam ou sofriam acidentes no trabalho, muitos empregados e operários de oficina reclamavam auxílios pecuniários para si e suas famílias. Outros tantos organizaram mutuais, caixas econômicas e montepios. Algumas associações fundadas no período da escravidão prosseguiram após a abolição. A Sociedade Beneficente dos Artistas do Arsenal de Marinha funcionou de 1856 a 1909 e a Associação Beneficente dos Fundidores do Arsenal de Marinha permaneceu ativa entre 1884 e 1908. Os trabalhadores do Arsenal também participaram junto a portuários, marítimos e operários de estaleiros privados da Federação Marítima Brasileira, criada em 1912, do Círculo dos Operários da União e do movimento grevista deflagrado pelos marítimos em 1920.
Durante o século XX, o Arsenal alternou momentos de expansão e declínio na construção naval militar. De toda forma, seus trabalhadores mantiveram uma longa tradição de organização e lutas por direitos. Nos anos 1930 e 1940, o Partido Comunista do Brasil (PCB) chegou a ter uma célula no Arsenal e a organizar, apesar da proibição oficial da Marinha, uma Sociedade de Defesa dos Trabalhadores daquele local de trabalho. Em 1945, o presidente dessa Sociedade, Joaquim Batista Neto, seria eleito deputado federal constituinte. No mais recente contexto da redemocratização, os trabalhadores ousaram desafiar a Marinha novamente em uma importante greve realizada em 1985 que, além de melhores salários, exigia o reconhecimento da categoria como metalúrgicos e o direito de organizarem um sindicato próprio.
A história do trabalho no Arsenal de Marinha confunde-se com a própria trajetória de lutas dos trabalhadores do Rio de Janeiro. Ele é um lugar de memória fundamental da história da cidade e do país.
Para saber mais:
- BRAGA, Sérgio Soares; COSTA, Henri Randel. Dos movimentos de base à Assembleia Constituinte de 1946: entrevista com Joaquim Batista Neto. Revista de Sociologia e Política, nº 6/7, 1996. https://revistas.ufpr.br/rsp/article/view/39343/24159.
- LACERDA, David P. Trabalho, política e solidariedade operária: uma história social do Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro (c.1860-c.1890). Tese (Doutorado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas/SP, 2016.
- NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. Cidadania, cor e disciplina na revolta dos marinheiros de 1910. Rio de Janeiro: Mauad X; FAPERJ, 2008.
- RIBEIRO, Silene Orlando. “Exímios remadores do Arsenal da Marinha”: recrutamento e trabalho indígena no Rio de Janeiro (1763-1820). Tese (Doutorado em História) – Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica/RJ, 2019.
- Greve no Arsenal de Marinha (1985): https://www.youtube.com/watch?v=COClA_5TXHY
Crédito da imagem de capa: Diploma de sócio da Sociedade Beneficente dos Artistas do Arsenal de Marinha da Corte. Fonte: Biblioteca Nacional, Divisão de Iconografia, Diplomas de sociedades, acervo não catalogado.
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Lugares de Memória dos Trabalhadores
As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.
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