Murilo Leal
Professor da Universidade Federal de São Paulo (campus Osasco)
Chegando ao topo das escadarias da Catedral da Sé, na capital paulista, o cidadão ou cidadã pode tirar sua câmera da mochila ou o celular do bolso e enquadrar o cenário no visor antes de disparar. Procurará o melhor ângulo, pegando o Marco Zero lá em baixo e os que, à sua volta, observam e fotografam a Catedral, incluindo o(a) fotógrafo(a) no cenário. Com os sentidos aguçados e uma certa tensão, antes de calcar o dedo e fixar a realidade daquele dia, captará, por trás do véu da tarde, cenas que os desatentos deixam passar. Surpreso, encontrará poças de sangue no piso de outra praça, ainda não remodelada pelas obras do metrô, derramado em um 7 de outubro de 1934, durante a Batalha da Sé, marco histórico da luta antifascista no Brasil.
Naquele dia, socialistas, comunistas, anarquistas, trotskistas e sindicalistas, em frente única, organizaram uma “contramanifestação” de protesto e enfrentamento à manifestação comemorativa dos dois anos do lançamento do Manifesto Integralista, promovida pela Ação Integralista Brasileira (AIB). Os gritos de Anauê, a saudação dos integralistas, e a cantoria do hino oficial da AIB foram abafados por palavras-de-ordem antifascistas e logo ouviram-se disparos de várias direções. Policiais da Guarda Civil, do Corpo de Bombeiros, do Exército, cavalarianos, fascistas e antifascistas se enfrentaram e, no final, sete pessoas jaziam sem vida, trinta estavam feridas e a data dos dois anos do documento dos camisas-verdes não pôde ser comemorada.
As disputas pela presença naquele espaço haviam, de fato, começando bem antes e talvez sejam constitutivas de sua própria construção material e simbólica. O erguimento de uma Igreja Matriz no Largo da Sé, na Vila de São Paulo, no século XVI; o início das obras da Catedral, em 1913; a inauguração do Marco Zero pela Prefeitura, em 1934, geravam uma centralidade religiosa e política que atraía também a imaginação dos trabalhadores. Já na greve de 1917, cordões policiais foram rompidos para a realização, naquele local, de um enorme comício após o enterro do jovem anarquista espanhol assassinado em frente à fábrica de tecidos Mariângela, no bairro do Brás.
A instalação de terminais de ônibus na Sé e posteriormente na vizinha Praça Clovis Bevilácqua e a localização de sedes de sindicatos em prédios da própria praça, como o célebre Palacete Santa Helena, que também abrigava ateliês de artistas como Alfredo Volpi e Francisco Rebolo, certamente intensificaram a circulação, os usos e os significados da praça como ponto de encontro para a luta, dos(as) trabalhadores(as) mas também para o lazer nos bares, restaurantes, botequins e salões de sinuca.
Quando as comemorações de 1º de Maio começaram a ganhar as ruas, nas décadas iniciais do século XX, o primeiro local ocupado foi o Largo da Concórdia, no Brás. Logo em 1933, a Federação Operária convocou uma manifestação para a Praça da Sé, impedida pela polícia. Na década de 1950, os sindicatos combativos privilegiavam outros espaços para o Dia do Trabalhador, como o Hipódromo da Mooca (1953/54), o Parque D. Pedro (1955) e o Ibirapuera (1956), embora passeatas importantes, como na Greve dos 300 Mil, que durou 27 dias, de março a abril de 1953, tenham trazido à Sé o semblante desafiador de metalúrgicos, têxteis, vidreiros e gráficos.
Os sindicatos conservadores ou ligados ao catolicismo comemoraram o 1º de Maio na Sé em 1962 e 1963, com a presença do Governador Adhemar de Barros e em 1964 o ritual repetiu-se, com vinda do ditador Castelo Branco em pessoa. O controle oficial do território para comemorações daquela data foi rompido em 1968, quando o governador Abreu Sodré, foi expulso do palanque oficial. Assim, trabalhadores e estudantes reconquistavam, por um momento, o seu dia e a sua praça, tomavam a palavra e as ruas, dirigindo-se em passeata à Praça da República, clamando contra o arrocho salarial e a ditadura militar.
Com a redemocratização, os trabalhadores estabeleceram hegemonia sobre o terreno e diversas manifestações e comemorações foram ali realizadas. Em 27 de agosto de 1978, por exemplo, o Movimento do Custo de Vida, reuniu cerca de 20 mil pessoas no ato de encerramento de uma campanha que colhera cerca de 1.200.000 assinaturas contra a carestia de vida. Foi na Sé que trabalhadores e seus sindicatos participaram ativamente do icônico comício da Campanha das Diretas Já em 25 de janeiro de 1984. No ano seguinte, a praça seria o palco de manifestações e assembleias da maior greve bancária da história.
Finalmente, o cidadão ou cidadã comprimirá o botão do obturador e observará o resultado. Surgirão moradores de rua, pregadores religiosos, bancas de jornal e barraquinhas de comida. Parecerá ter captado a imagem da praça de uma cidade do interior, só que maior e mais vistosa. A transformação de São Paulo em uma megalópole polifônica fez com surgissem outros pontos de encontro para protestos e performances, como o vão do Museu de Arte de São Paulo (MASP), na avenida Paulista, o Vale do Anhangabaú e o Largo da Batata, em Pinheiros, mas a Sé continua sendo um lugar de memória dos trabalhadores e ponto de encontro para suas manifestações.
Para saber mais:
- ABRAMO, Fúlvio . A revoada dos galinhas verdes. Uma história do antifascismo no Brasil. São Paulo: Veneta, 2014.
- BLASS, Leila Maria da Silva. Estamos em Greve!: imagens, gestos e palavras do movimento dos bancários. São Paulo: Ed. Hucitec: 1992.
- LEAL, Murilo. A reinvenção da classe trabalhadora (1953-1964). Campinas: Editora da Unicamp, 2011.
- MONTEIRO, Thiago Nunes. Como pode um povo vivo viver nesta carestia: o Movimento do Custo de Vida em São Paulo (1973-1982). São Paulo: Humanitas-Fapesp, 2017.
- RUIZ, Vicente Garcia. De alma aberta: crônicas libertárias sobre a vida e o chão de fábrica. São Paulo: Edição do Autor, 2015.
Crédito da imagem de capa: Protesto de trabalhadores e estudantes durante as celebrações do Primeiro de Maio de 1968 na Praça da Sé. Acervo: Folhapress.
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Lugares de Memória dos Trabalhadores
As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.
A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.