André Cicalo
Doutor em Antropologia pela Universidade de Manchester
No dia 20 de Abril de 1931, na rua Santo Cristo dos Milagres 309, região portuária do Rio de Janeiro, aconteceu uma importante reunião de trabalhadores avulsos em café, que buscavam organizar um sindicato próprio. De fato, a lei de sindicalização n. 19.779, instituída no mês anterior, oferecia novas oportunidades aos trabalhadores, até então pouco protegidos. Nascia assim o Sindicato dos Carregadores e Ensacadores de Café do Rio de Janeiro (SCECRJ), popularmente conhecido como Sindicato do Café.
Ao organizar os trabalhadores especializados no armazenamento e transporte de café no cais do porto do Rio, o Sindicato do Café visava a profissionalização da categoria e procurava tirar vantagens das leis trabalhistas prometidas pelo novo governo de Getulio Vargas. Apenas entre abril de 1931 e janeiro de 1936 foram cadastrados 1.832 sócios (todos homens), sendo aproximadamente 83% deles brasileiros, 15% portugueses e 2% de outras nacionalidades.
A maioria desses trabalhadores, como era tradicional no transporte de café no Rio de Janeiro, era composta por negros que provinham de áreas rurais do estado mas também de outros lugares do país, como Minas Gerais, Espírito Santo e Pernambuco. Essa presença negra pode ser notada de forma imediata nas fotografias tiradas em vários momentos da história do sindicato. Além disso, é possível perceber uma identidade e conexões étnicas que muitos desses trabalhadores desenvolveram a partir da memória relativamente recente da escravidão e de suas relações com o mundo do carnaval carioca.
Em 1940, o Sindicato aprovou seu primeiro estatuto. Ele previa a prestação de assistência jurídica e financeira para os trabalhadores, a criação e manutenção de cursos de alfabetização, escolas, hospitais e ajuda para funerais, entre outros serviços. Também estabelecia regras rigorosas em relação à ética do trabalho, especialmente contra a conduta não-profissional, a falta de cumprimento das diretivas sindicais e as ausências injustificadas ao trabalho. Em 1947, a organização pôde finalmente adquirir uma sede própria no bairro de Gamboa, na Rua Silvino Montenegro 104. Composto de quatro andares o local foi solenemente inaugurado no dia Primeiro de Maio de 1950 pelo Presidente da República Eurico Gaspar Dutra.
Entre os anos 1950 e 1960, o Sindicato do Café incrementou seu poder político e econômico na região portuária, assim como no âmbito estadual e federal. A sede sindical era palco de grandes comemorações para celebrar os aniversários do Sindicato e as posses das novas diretorias. Nessas ocasiões era frequente a presença de personalidades do calibre do Governador da Guanabara, Carlos Lacerda, de representantes do Ministério do Trabalho e de políticos próximos ao Sindicato, como os deputados José Gomes Talarico e Tenório Cavalcanti. Os eventos eram geralmente acompanhados de missas celebradas nas Igrejas de Santo Antônio dos Pobres, de São Jorge (patrono do Sindicato) e da Candelária.
Em 1960, além da sede própria, o Sindicato dos Carregadores e Ensacadores de Café possuía um considerável patrimônio. Nessa época, eram notáveis as ligações do Sindicato com o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), especialmente com Luthero Vargas e José Gomes Talarico. Um testemunho da simpatia pela tradição varguista, pode ser visto na Revista do Sindicato que, em 1961, lembrava que Getúlio Vargas “possibilitou que o Trabalhador [do Café] ocupasse, positivamente lugares de destaque nos cenários econômico, jurídico e político [do país]”.
No início dos anos 1960, em um momento de efervescência política, crise do setor cafeeiro e aumento vertiginoso do custo de vida no Brasil, o Sindicato se tornou um centro importante de organização de greves e paralisações. É possível supor que as redes formais e informais de resistência negra cumpriram um importante papel na organização e manutenção das mobilizações dos ensacadores e carregadores de café do Rio de Janeiro naquele período.
Com o golpe militar de 1964, as manifestações operárias foram reprimidas violentamente, enquanto a vida cotidiana do proletariado portuário era intensamente vigiada pela policia política. Com a ditadura militar e a perda progressiva da importância do café na economia nacional, o Sindicato entrou numa lenta e irreversível crise, da qual nunca mais se recuperaria.
Em meados dos anos 1980, a associação tentou ampliar sua base de representação, convertendo-se no Sindicato de Movimentadores de Carga do Rio de Janeiro (SINTRAMAERJ). Essa nova organização chegou a incorporar em sua esfera o extinto Sindicato do Sal e a categoria dos ajudantes de caminhão. Apesar dessas mudanças, sua decadência foi inexorável. Hoje, longe das glórias do passado, encontra-se à beira da extinção. No entanto, a sede do antigo Sindicato dos Ensacadores e Carregadores de Café e suas memórias continuam resistindo, tanto ao esquecimento histórico, quanto à especulação imobiliária e expropriações alimentadas pelo processo de reconversão urbanística no porto do Rio de Janeiro.
Para saber mais:
- CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. São Paulo: Brasiliense, 1986.
- CICALO, André. “Campos do pós-abolição: identidades laborais e experiência “negra” entre os trabalhadores do café no Rio de Janeiro (1931-1964)”. Revista Brasileira de História, vol. 35, n. 69, 2015.
- CRUZ, Maria Cecília Velasco. “Da tutela ao contrato: “homens de cor” brasileiros e o movimento operário carioca no pós-abolição”. Topoi, v.11, 2010.
- GOMES, Angela de Castro. A invenção do Trabalhismo. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2005.
- GOMES, Flávio dos Santos. “Quilombos do Rio de Janeiro no século XIX.” In REIS, João José e GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras 1996.
Crédito da imagem de capa: Comemoração religiosa da posse de diretoria do sindicato em 1961 na Igreja de Santo Antonio dos Pobres no centro do Rio de Janeiro. Acervo fotográfico histórico SCECRJ.
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Lugares de Memória dos Trabalhadores
As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.
A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.
Meu avô materno Joaquim Fernandes foi um dos pioneiros da criação do sindicato, a publicação me trouxe à memoria atendimento médico que tive no Sindicato quando era menina. Quero resgatar a historia do meu avô. Muito obrigada