Laboratório de Estudos de História dos Mundos do Trabalho

Lugares de Memória dos Trabalhadores #66: Vila Operária de Luiz Tarquínio, Salvador (BA) – Marilécia Oliveira Santos



Marilécia Oliveira Santos
Professora da Universidade do Estado da Bahia – UNEB



No dia 14 de março de 1891 foi inaugurada a Companhia Empório Industrial do Norte – CEIN, no então subúrbio da Boa Viagem na cidade de Salvador. Seus principais acionistas foram o Banco Mercantil e os idealizadores do projeto Luiz Tarquínio, Leopoldo José Silva e Miguel Francisco Rodrigues de Moraes. Foi um empreendimento que ousou no investimento do maquinário e na produção de zephyrs de quadros, brins e cassinetas, tecidos até então não fabricados no Brasil empregando fios de algodão importados. Teve grande sucesso no final do século XIX e primeiras décadas do XX, chegando a ser a maior indústria têxtil do Norte-Nordeste e uma das dez maiores do país.

Cinco anos após sua inauguração a empresa empregava 697 operários (171 homens e 526 mulheres) sendo apenas 28 estrangeiros. Os trabalhadores eram recrutados principalmente em outros estados do Nordeste e no interior da Bahia e a proporção maior de mulheres se manteve por longos anos. Em 1938, por exemplo, do total de 1.121 trabalhadores da CEIN, 402 eram homens e 719 eram mulheres. A empresa também empregava aprendizes e o seu contingente era diversificado.

No ano seguinte a implantação da fábrica, a CEIN inaugurou a primeira etapa da vila operária vinculada à empresa, composta por 258 casas residenciais de dois pavimentos. Logo em seus primeiros anos a vila já contava com água canalizada, esgoto, luz elétrica e gasogênio. Gradativamente também foram implantados serviços como escola, gabinete médico, farmácia, loja, creche, campo de futebol, armazém, entre outros. A infraestrutura da vila operária e as condições de moradia eram, assim, bastante superiores às dos demais trabalhadores pobres da cidade.

Para atrair trabalhadores os administradores da empresa buscaram divulgar os benefícios de trabalhar na CEIN e principalmente de morar na vila. Apesar disso, nem todos os operários da fábrica ali viviam. Para morar na vila era preciso atender as exigências de ordem moral estabelecidas nos regimentos internos e com fiscalização sistemática ao seu cumprimento, afinal nela também residiam alguns chefes. Os aluguéis das casas eram subsidiados e, após dez anos, os trabalhadores e suas famílias ficavam isentos do pagamento.

Além das publicações de matérias jornalísticas que divulgavam positivamente a vila destacando um cotidiano marcado por festas dominicais e atividades de lazer, os empreendedores investiram na produção de cartões-postais como forma de divulgação e aliciamento dos trabalhadores. Os cartões eram amplamente divulgados e os operários eram incentivados a encaminhá-los para parentes e amigos.


A reiterada divulgação contribuiu também para consolidar uma imagem idílica da vila operária e de seu principal idealizador, Luiz Tarquínio. Expressões como “ilha de ordem”, “Cidade do Bem”, “Cidade Operária”, “Cidade do Trabalho”, buscavam perenizar a memória daquele espaço como um lugar tranquilo, ordeiro e, sobretudo, sem conflito entre trabalho e capital.


Para além dessa memória idealizada, sobreviveram outras que revelam as tensões e conflitos de natureza social e racial. Tanto na vila quanto na fábrica havia prêmios e punições aos trabalhadores que atendiam ou infringiam as regras de condutas previstas nos regimentos internos. A vila era gradeada com rígido controle da entrada e saída dos moradores e seus parentes que vinham visitá-los. Muitos são os registros que relatam os meios empregados para burlar essa vigilância incluindo narrativas de crianças enganando inspetores para poder jogar bola em áreas proibidas e de jovens driblando o controle para namorar nos jardins internos da vila. Cabe também destacar a participação dos operários da empresa em greves, como a de 1907 quando a vila operária foi palco de mobilizações e negociações sobre os rumos do movimento.

Ao longo da sua existência, a CEIN enfrentou dificuldades que impactaram na conformação do espaço físico da vila e na vida dos seus moradores. Em 1929 a empresa deixou de receber isenções de impostos que foram repassados aos aluguéis das casas da vila. Os problemas com a importação de algodão e de peças para reposição do maquinário nos anos de 1930 obrigaram a empresa a vender quarteirões inteiros de casas para outras companhias como a Souza Cruz (1935) e Coca–Cola (1941) promovendo mudanças significativas nos espaços internos da vila operária.

A CEIN funcionou até 1977, quando foi decretada sua falência. Entretanto, a vila operária permaneceu como espaço de moradia de 1.500 pessoas, que passaram a enfrentar diversos problemas para se manterem em suas residências. A prefeitura de Salvador não dava manutenção nas áreas coletivas por não reconhecer a localidade como espaço público e os ex-trabalhadores da fábrica, por sua vez, não tiveram suas propriedades reconhecidas oficialmente. Uma longa batalha pela posse das casas foi travada pelos antigos operários e seus descendentes, que conquistaram seus direitos efetivamente em 1982, por força de um decreto estadual. Um incêndio, em 1987, destruiu parte das instalações da fábrica modificando ainda mais as características da vila. Em 2009, por iniciativa de moradores, houve uma tentativa de tombamento da área que, no entanto, não avançou.

Muitas e diversificadas foram as experiências vivenciadas pelos que habitaram e ainda habitam aquele local, marcado pela presença da fábrica e da vila. Seus registros materiais e simbólicos são fundamentais para a história da cidade e para a identidade do bairro. A vila operária de Luiz Tarquínio, a CEIN e outras fábricas no seu entorno ajudaram a conformar a região da Boa Viagem, na cidade baixa de Salvador, como um importante lugar de memória dos trabalhadores baianos.

Fotografia de uma das ruas internas da vila operária. Autor desconhecido, s/d.
Fonte: CEDOC / Bahia.


Para saber mais:


Crédito da imagem de capa: Cartão-postal da vila operária colorido manualmente datado de 1908. Fonte: fotografia do acervo pessoal da pesquisadora.



Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

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