LMT #72: Manganês Esporte Clube, Serra do Navio (AP) – Adalberto Paz



Adalberto Paz
Professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amapá



No interior da floresta, a cerca de 200 quilômetros da foz do rio Amazonas, um campeonato de futebol era anualmente organizado, entre as décadas de 1960 e 90, por operários do primeiro empreendimento de mineração industrial da região Norte do país, em atividade desde os anos 1950. Chamado “o Serrano”, o torneio reunia equipes formadas por trabalhadores da Indústria e Comércio de Minérios S.A (ICOMI), empresa privada responsável pela exploração das jazidas de manganês no Amapá. O nome do campeonato fazia alusão à região denominada Serra do Navio, local que havia se tornado internacionalmente famoso pelo anúncio da existência de minério de manganês de alto teor, num momento em que a URSS havia suspendido o fornecimento desse material aos Estados Unidos em pleno contexto da Guerra Fria.

Criada em 1942, a ICOMI possuía sede em Minas Gerais e tinha como proprietário Augusto Trajano de Azevedo Antunes. Em 1947, a mineradora venceu a concorrência pública pelos depósitos manganíferos amapaenses. Em contrapartida, a ICOMI pagaria royalties a serem investidos no Amapá, além de se comprometer a repassar ao Estado toda a infraestrutura construída para o empreendimento, após o esgotamento das jazidas. Para viabilizar a extração do manganês, a ICOMI associou-se à Bethlehem Steel, maior empresa siderúrgica do mundo, e obteve um empréstimo do EXIMBANK. Em troca, a ICOMI assumiu o compromisso de vender no mínimo 5,5 milhões de toneladas de manganês aos Estados Unidos.

A infraestrutura montada pela ICOMI no Amapá foi inédita em termos de planejamento e magnitude. Incluía um porto, uma ferrovia, duas company towns (cidades construídas e mantidas pela empresa), além de sofisticada logística de abastecimento, contratação de trabalhadores, programas de saúde, educação e lazer. A maior parte dos trabalhadores denominados “braçais”, isto é, sem especialização profissional, tinha origem nas populações extrativistas moradoras nas margens dos rios, igarapés e matas, comumente designadas como “caboclas”. Os solteiros eram hospedados em alojamentos específicos nas company towns, enquanto os casados e suas famílias recebiam casas planejadas exclusivamente para as diferentes categorias de operários.

Desde que a extração do minério teve início, em 1957, toda a atividade produtiva foi caracterizada pela utilização de alta tecnologia e rígidos procedimentos de gestão administrativa. Isso era um diferencial em relação a atividades frequentemente mais insalubres como a extração de carvão mineral. Nesse sentido, muitos dos frequentes acidentes de trabalho estavam relacionados com o uso de maquinário pesado ou o manuseio de produtos químicos no processo industrial.

O Manganês Esporte Clube (MEC) era sediado na company town de Serra do Navio, próximo à escola e ao centro comercial, espaço situado entre as residências de operários casados e solteiros. Essa “agremiação”, conforme definição da própria ICOMI, tinha à sua disposição quadra poliesportiva, campo de futebol e piscina para prática de esportes, competições e entretenimento. Embora se tratasse de um clube vinculado à empresa, os operários de Serra do Navio souberam se apropriar do MEC, criando para si um espaço próprio de sociabilidade. A mensalidade arrecadada entre os sócios gerava um montante que permitia certa autonomia econômica, o que, do ponto de vista dos trabalhadores instituía uma clara noção de direitos e autogestão em relação à mineradora.


Não por acaso, o Campeonato Serrano de Futebol era um dos principais momentos de interatividade e lazer operário organizado pelo MEC. A maioria das equipes envolvidas na competição era formada por membros de um mesmo setor ou ofício, como o time da Divisão da Mina (Senta a pua), Setor de Transporte (Desvio e Ferroviário), Divisão de Saúde (Esparadrapo), Divisão de obras (Sarrafo), entre outros.


A diversão e sociabilidade motivados pelo futebol reforçavam os laços de amizade e companheirismo da comunidade operária de Serra do Navio. Quando, nas décadas de 1970 e 80 emergiram protestos e greves na cidade, o espaço físico e as redes sociais articuladas em torno do MEC foram, provavelmente, de vital importância para a organização do movimento.

Além do futebol, havia outros momentos de entretenimento promovidos pelo clube. Os bailes temáticos e comemorativos, em especial, obedeciam a um calendário de datas representativas para a comunidade e para a companhia. No mês de maio ocorria o Baile das Flores, uma espécie de confraternização geral da mineradora, ocasião em que era escolhida a “Rainha das Flores”. No mesmo mês, no dia 8, acontecia o baile comemorativo de fundação da ICOMI, evento carregado de valor e gestos simbólicos, como a outorga de honras e benefícios aos funcionários em Serra do Navio.

Após quase meio século de ininterrupta exploração das reservas de manganês do Amapá, a ICOMI encerrou suas atividades em Serra do Navio em 1997. Em 2011, a company town foi tombada pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional (IPHAN). O reconhecimento oficial, contudo, não evitou a deterioração e destruição do Manganês Esporte Clube. Em 10 de março de 2016, depois de anos de abandono e ausência de reparos em sua estrutura, parte do teto do clube desabou, expondo suas ruínas interiores cobertas de mato, entulhos e alagamento. Dessa forma, o renomado clube operário simboliza não apenas um acelerado processo de desindustrialização amazônico, mas também tornou-se um monumento do desprezo pelos lugares de memória e sociabilidade dos trabalhadores.

Time do Manganês Esporte Clube. Junho de 1965.
Revista ICOMI Notícias, Rio de Janeiro, n.18, junho de 1965.


Para saber mais:

  • BRITO, Daniel Chaves de. Extração mineral na Amazônia: a experiência da exploração de manganês em Serra do Navio no Amapá. Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Pará. Belém, 1994.
  • DRUMMOND, José Augusto; PEREIRA, Mariângela de Araújo Povoas. O Amapá nos tempos do Manganês: um estudo sobre o desenvolvimento de um estado amazônico 1943-2000. Rio de Janeiro: Garamond, 2007.
  • MONTEIRO. Maurílio de Abreu. A ICOMI no Amapá: meio século de exploração mineral. Novos Cadernos NAEA, n. 2, v. 6, 2003.
  • PAZ, Adalberto. Os mineiros da floresta: modernização, sociabilidade e a formação do caboclo-operário no início da mineração industrial amazônica. Belém: Paka-Tatu, 2014.
  • RIBEIRO, Benjamin Adiron. Vila Serra do Navio: comunidade urbana na serra amazônica: um projeto do arq. Oswaldo Bratke. São Paulo: Pini, 1992.

Crédito da imagem de capa: Vista aérea de Serra do Navio. Revista ICOMI Notícias, Rio de Janeiro, n.9, setembro de 1964.



Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

Paulo Fontes

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