LMT #125: Fábrica Brasital, São Roque, SP – Yasmin Darviche

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Yasmin Darviche
Mestre pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo


“A Brasital é Nossa!” foi o slogan utilizado em 1987 quando as instalações da mais importante tecelagem de São Roque, no interior de São Paulo, passaram à propriedade da prefeitura após quase duas décadas de abandono. A desapropriação, restauração e instalação de um centro cultural na antiga fábrica demonstram sua importância enquanto referência para a memória dos trabalhadores da cidade.

A Brasital foi instalada em 1890 por iniciativa de Enrico Dell’Acqua, um industrial italiano considerado pioneiro na exportação da indústria de tecidos de algodão da Itália. Inicialmente denominada “Tecelagem Enrico Dell’Acqua”, teve seu nome modificado para “Brasital S.A.” em 1919, um nome formado pela junção das palavras “Brasil” e “Itália”.

O primeiro grupo de trabalhadores era de origem italiana. Por já possuírem conhecimento na operação de máquinas, recebiam cargos de mestres e contra-mestres e ensinavam a operação das máquinas aos demais. No início do século XX a fábrica empregava 510 trabalhadores e em 1957 já eram cerca de 3000 operários. Sua instalação impulsionou o desenvolvimento urbano de São Roque. Durante o auge da tecelagem na década de 1950, em torno de 70% da população da cidade era funcionária da Brasital.

Entre 1920 e 1950 foram construídas duas vilas operárias. Uma delas, localizada próxima ao acesso principal da fábrica, foi reservada aos funcionários dos mais altos cargos, como os diretores. A outra, implantada em terrenos baixos, alagáveis, e próximo à entrada de serviços, foi destinada aos chefes de setores e encarregados de confiança. A iniciativa de construir as residências operárias fez parte de um ideal sobre os modos de morar, de controle da vida e do tempo livre dos operários, buscando garantir a lealdade dos funcionários.

Em 1904 formou-se a Sociedade Operária de Mútuo Socorro com objetivo de auxiliar os operários em pensões, casos de doenças e alimentação. Dentro da fábrica existia ainda a Cooperativa de Consumo de Empregados da Brasital, fundada em 1925, oferecendo alimentos a baixo custo. E ao longo dos anos foram fundadas algumas organizações, como um grupo musical denominado “Conti di Torino”, posteriormente chamado Corporação Musical Carlos Gomes, formado por imigrantes italianos trabalhadores da Brasital. E também um time de futebol, o Ítalo Futebol Clube.


No início do século estruturou-se um forte e organizado movimento operário na Brasital, sendo famosas as greves de 1904 e 1909 quando a empresa foi paralisada.


Entre 1904 e 1905 os trabalhadores posicionaram-se contrariamente às multas empreendidas pelos examinadores de peças, somadas à preocupação decorrente da possibilidade de transferência da produção de tecidos para o município de Salto, o que acarretaria na redução da produção em São Roque. Em 1909 a mobilização teve importante protagonismo feminino. Os problemas enfrentados eram as longas jornadas de trabalho, baixos salários (inferiores aos pagos aos homens), e a baixa qualidade dos fios, que dificultava e reduzia a qualidade do serviço. A desconsideração e mau tratamento recebido pelas operárias em suas reivindicações foi o estopim para esta greve, cujas reuniões ocorriam na sede da Sociedade Operária de Mútuo Socorro. Nesta ocasião, os diretores da fábrica se mostraram irredutíveis, demitindo muitos funcionários e lideranças operárias.

Através das memórias de antigas tecelãs também podemos conhecer aspectos da existência da fábrica e de sua atividade laboral. Para estas mulheres, a fábrica representou uma oportunidade de trabalho imprescindível, mas também de muito esforço e exploração. “A gente tocava quatro teares ao mesmo tempo”, lembra uma delas. Por outro lado, muitas enfatizam que “nunca faltava nada a quem trabalhava na Brasital”. Além disso, o espaço da fábrica foi onde encontraram seus maridos e criaram vínculos de amizade. Foi nas casas da vila operária que constituíram suas famílias e viram os filhos crescerem. Para estas pessoas a Brasital foi “a mãe da cidade”.

Nos anos 1960 o aumento da procura por tecidos sintéticos como náilon e rayon impactou a venda de tecidos de algodão, e em 1970 a Brasital encerrou as atividades em São Roque, transferindo a produção para a vizinha cidade de Salto. As instalações fabris permaneceram sob propriedade da empresa, porém foram abandonadas, e as residências operárias foram vendidas aos trabalhadores. Para moradores antigos da cidade “o fechamento da fábrica acabou com todos os serviços que nós tínhamos. Praticamente a cidade vivia com os filhos, maridos, todos trabalhando na Brasital”.

Em 1987 a prefeitura, em parceria com o estado, desapropriou o imóvel, declarando-o de utilidade pública e transformando-o em centro cultural. Esta ação é, até os dias de hoje, bastante celebrada pelos moradores de São Roque. Desde a desapropriação, a fábrica foi valorizada como patrimônio histórico da cidade e rememorada enquanto lugar de identidade e memória dos trabalhadores. Os antigos edifícios fabris foram transformados em espaços para exposições, recebendo cursos profissionalizantes e atividades culturais diversas. A estrutura metálica da cobertura, a caixilharia, os hidrantes, a antiga tubulação de água, turbinas e rodas que moviam os teares foram preservados como forma de representação da antiga função do espaço. O tombamento das edificações da fábrica, em conjunto com as antigas residências operárias, foi aprovado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat) de São Paulo em 2020.

Centro Educacional e Cultural Brasital atualmente, áreas externas. Foto de Yasmin Darviche, 2019.

Para saber mais:

  • CORREIA, Telma de Barros. Ornato e despojamento no mundo fabril. Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material, São Paulo, v. 19, n.1, Jun 2011.
  • DARVICHE, Yasmin. O trabalho em memória: ausências e resistências nas políticas do patrimônio cultural em São Paulo. Dissertação de mestrado. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, 2022.
  • NEVES, Deborah Regina Leal. Parecer Técnico UPPH nºGEI-138-2011. Condephaat. São Paulo, 2014.
  • ROSSI, Anicleide Zequini. O quintal da fábrica. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1991.
  • SANTOS, Joaquim Silveira.São Roque de outrora. São Roque: Merlot Comunicação, 2010.

Crédito da imagem de capa: Tecelagem Enrico Dell’Acqua, posteriormente denominada Brasital.
Fonte: Arquivo Histórico Digital de São Roque.


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

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