LMT#78: Companhia Hidrelétrica do São Francisco, Paulo Afonso (BA) – Jamile Silveira



Jamile Silveira
Doutoranda em História Contemporânea pela Universidade de Coimbra



“Morreu muita gente. Tudo bruto, caía no rio quem era que achava. Tinha uns cabos de aço balançando, o cabra escapolia, e sem entender de nada ia embora.” Relata João Felinto, operário por 20 anos da primeira grande empresa pública brasileira de geração e distribuição de energia elétrica: a Companhia Hidrelétrica do São Francisco (CHESF). A memória da formação de Paulo Afonso, na Bahia, se confunde com a história da Companhia.

Getúlio Vargas aprovou o projeto CHESF em 1945. Três anos depois, o cenário da comunidade de Forquilha, às margens da cachoeira de Paulo Afonso, local se modificaria para sempre com a chegada de toneladas de materiais importados, para a construção da Usina Paulo Afonso I. O início das obras foi marcado pelo discurso de progresso e modernização, possíveis frutos da inovadora produção de energia que proporcionaria o desenvolvimento do Nordeste.

A Companhia era a consolidação de um projeto elaborado aos moldes da Tennessee Valley Authority (TVA), uma das iniciativas mais simbólicas das políticas do New Deal promovidas pelo presidente Roosevelt nos Estados Unidos nos anos de 1930. O Ministro da Agricultura do governo Vargas, Apolônio Sales, visitou algumas vezes a TVA, e as missões estadunidenses no Brasil, em especial a Missão Cooke, indicavam a possibilidade da intervenção federal direta na região do São Francisco.

Simultaneamente à instalação da Companhia foi criada uma company town em Paulo Afonso. Os trabalhadores mais graduados, como os engenheiros, residiam no equipado bairro General Dutra, na Vila Residencial. Na Vila Operária, a distribuição urbana das moradias era definida de acordo com a função exercida por cada trabalhador na empresa. Assim como em outras company towns o controle disciplinar sobre os trabalhadores e suas famílias era rígido e interferia sobre vários aspectos da vida cotidiana dos moradores. A empresa difundia um discurso paternalista que enfatizava o caráter nacionalista da obra e os supostos benefícios de fazer parte da “família chesfiana”.


A grande maioria dos milhares de operários da obra da Usina foi arregimentada entre trabalhadores rurais, comerciantes e artesãos, do sertão, do agreste e de algumas capitais do Nordeste. Em geral, os homens se instalavam, começavam a trabalhar e posteriormente buscavam suas mulheres e famílias.


Entre eles, estavam os cassacos, que faziam parte da linha de frente da obra, abrindo caminho quebrando pedras e barrando a força das águas do Rio São Francisco, em condições de trabalho bastante precárias e perigosas. Apenas décadas depois, em 1978, seria criada uma Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (CIPA) que implantaria as primeiras normas de segurança para os trabalhadores.

Com a concentração de pessoas cada vez maior na região, o acesso a company town, conhecida como “Acampamento CHESF”, ficou cada vez mais restrito. Muitos que chegaram na esperança de trabalhar na CHESF, contratados ou não, começaram a morar fora do acampamento. Sem recursos para a construção de casas, utilizavam o que encontravam, inclusive os sacos de papel do cimento Poty, descartados durante as construções das barragens. Esse novo bairro, ficou conhecido como Vila Poty.

Em 1958, 3.000 trabalhadores residiam no “Acampamento CHESF”, enquanto na Vila Poty amontoavam-se 13.000 pessoas em condições extremamente precárias. Mas, ali os trabalhadores criaram formas alternativas de sociabilidades, como cabarés, bares e terreiros de Candomblé também frequentados por muitos operários moradores do acampamento.

Em 1958, o município de Paulo Afonso foi emancipado. A maioria dos cassacos, moradores da Vila Poty, não permaneceram na empresa após a conclusão das obras. O domínio empresarial da CHESF e os conflitos urbanos desta cidade dividida, marcariam o cenário de Paulo Afonso nos anos seguintes. Em 1968, no contexto da ditadura militar, o município foi declarado Área de Segurança Nacional. O Complexo Hidrelétrico de Paulo Afonso se expandiu na década de 1970, com obras em vários Estados do Nordeste. Em 1982, a CHESF era responsável por 15% da produção nacional de energia elétrica, com 3.300 operários localizados em Paulo Afonso. Nesse período, o muro que isolava a company town foi derrubado e as guaritas desativadas, apesar da CHESF continuar administrando toda a área até 2002, quando a prefeitura assumiu a responsabilidade pelo antigo acampamento.

Durante a redemocratização do país, conflitos trabalhistas e um forte movimento sindical emergiram em Paulo Afonso. Liderados pelo Sindicato dos Eletricitários (SINERGIA), os trabalhadores da CHESF realizaram duas grandes greves, em 1979 e 1982, com enorme impacto político e simbólico na região. Os setores progressistas da Igreja Católica tiveram papel destacado naquelas mobilizações e na formação de entidades que se opuseram aos projetos de desenvolvimento regional da CHESF.

A história oficial da Companhia em Paulo Afonso, presente no Memorial da empresa, omite conflitos, discursos e protagonistas anônimos, que participaram ativamente deste processo. Atualmente, outras iniciativas, em particular nas universidades da região, procuram problematizar essas lacunas. A CHESF impactou a vida de milhares de famílias, inclusive de povos e comunidades tradicionais do Vale do São Francisco. Apesar de todo investimento, as promessas de modernidade, progresso e melhorias sociais não se concretizaram, gerando resistências e conflitos que marcaram a vida social local e tornaram Paulo Afonso um importante lugar de memória dos trabalhadores em nosso país.

Operários da CHESF (1950).
Acervo do Memorial CHESF

Para saber mais:

  • AZEVEDO, Sérgio Luís Malta de; MUCCINI, Sandra. “Período Pioneiro da Hidrelétrica de Paulo Afonso-Ba: Uma contribuição a historiografia de base local e regional.” Revista Rios, Revista Científica da FASETE, ano 1, n. 1, agosto 2007..
  • JUCÁ, Joselice. CHESF: 35 Anos de História. Recife: Comunicarte, 1982.
  • LIMA, João de Sousa. Paulo Afonso e a Vila Poty: A história não contada. Paulo Afonso: Fonte Viva, 2017.
  • OLIVEIRA, Antônio Marcos Lima de. A Cidade de Paulo Afonso, 1948-1985: As espacializações do trabalho, do controle e das lutas. Salvador: Dissertação de Mestrado em Arquitetura e Urbanismo da UFBA, 2016.
  • SILVEIRA, Jamile Silva. “Trabalhadores, conflitos e sociabilidades: a Companhia Hidroelétrica do São Francisco, em Paulo Afonso (Bahia, Brasil, 1945-1983)”. In: VARELA, Raquel; CABREIRA, Pamela Peres. História do Movimento Operário e Conflitos Sociais em Portugal. Lisboa: Instituto de História Contemporânea, 2020. Disponível em: https://ihc.fcsh.unl.pt/historia-movimento-operario-2020/

Crédito da imagem de capa:  Acesso à área da CHESF em 1952. Acervo do Memorial da CHESF.


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

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