CE #37: Os trabalhadores, a Aliança Nacional Libertadora e os Levantes de Novembro de 1935 – Inghrid Masullo




Entre os dias 23 e 27 de novembro de 1935, levantes militares eclodiram em quartéis nas cidades de Natal, Recife e Rio de Janeiro, sendo rapidamente suprimidos pelo governo no Distrito Federal e na capital pernambucana. Em Natal, a insurreição durou alguns dias antes de ser debelada. Os movimentos, liderados por oficiais ligados a Aliança Nacional Libertadora (ANL) visavam derrubar o governo de Getulio Vargas e dar início a uma revolução “nacional-popular” contra as oligarquias e o imperialismo. Ficariam conhecidos pelo pejorativo nome de “Intentona Comunista”. 

Relembrar aqueles acontecimentos costuma significar retornar aos quartéis, aos oficiais insubordinados, à figura de Luís Carlos Prestes e à narrativa, amplamente difundida ao longo das décadas, de uma tentativa militar de insurreição comunista. Entretanto, o foco na rebelião militar tem invisibilizado um ciclo intenso e anterior de mobilização social. Entre 1930 e 1935, trabalhadores de diferentes regiões do país protagonizaram ondas grevistas, processos de reorganização sindical, disputas internas, campanhas contra prisões arbitrárias, protestos contra empresas estrangeiras, participação em frentes antifascistas, dentre outras manifestações de luta social e engajamento político.

Tratar dos trabalhadores apenas como beneficiários passivos da legislação trabalhista promulgada em 1930, como comumente é feito,  obscurece o fato de que eles próprios foram importantes atores políticos e sociais daquele momento. Eles recorreram às leis para reivindicar direitos, fizeram greves para garantir sua aplicação, disputaram a direção dos sindicatos e se engajaram ativamente nas frentes antifascistas e até mesmo, em alguns poucos casos, em células integralistas. Nada disso cabe na imagem de uma classe trabalhadora sem agência e interesses próprios, completamente tutelada pelo Estado, como frequentemente são retratados.

No Norte e Nordeste, especialmente em Belém, São Luís, Natal e Recife, estivadores, carregadores, marítimos e ferroviários protagonizaram conflitos contra companhias portuárias e empresas estrangeiras, que insistiam em descumprir decisões das Juntas de Conciliação. No Recife, greves de têxteis e trabalhadores dos armazéns se articularam a denúncias de violência policial e à disputa das sociedades de resistência. Em Natal, como mostram documentos do Departamento Nacional do Trabalho, ferroviários se organizavam para reivindicar reintegrações e denunciar perseguições políticas já antes dos levantes de novembro. No Rio de Janeiro, trabalhadores têxteis e marítimos alternavam paralisações, piquetes e campanhas salariais com lutas pela autonomia sindical. Em Porto Alegre, sapateiros, gráficos e trabalhadores da alimentação se mobilizaram contra a interferência patronal e disputavam a condução dos sindicatos. Em São Paulo, metalúrgicos resistiram à tentativa estatal de submeter os sindicatos à nova legislação, recurso que, paradoxalmente, usavam como instrumento de reivindicação. Essas mobilizações, entre várias outras, expressavam, como argumenta Boris Koval, a continuidade das tradições de luta do movimento operário desde meados do século XIX, agora reconfiguradas em novos marcos legais.

Nesse contexto, a leitura de que o operariado teria aceitado e aderido passivamente à tutela estatal não resiste ao exame das fontes. Trabalhadores acionaram ativamente as Juntas de Conciliação e Julgamento, pressionaram o Estado pelo cumprimento na nova legislação, criaram fundos de greve e se organizaram em associações de bairro, sociedades de auxílio mútuo e comissões de fábrica. A ascensão do fascismo internacional e o surgimento do Integralismo no Brasil, também impactaram fortemente a luta social da classe trabalhadora. O antifascismo, longe de ser um tema estritamente partidário, ganhou materialidade na vida cotidiana. Em bairros operários do Rio de Janeiro, por exemplo, foram registrados confrontos entre trabalhadores e grupos integralistas já em 1933. Em Recife, sociedades operárias organizaram debates e comícios contra o fascismo italiano. Em São Paulo, gráficos e sapateiros participaram ativamente da Frente Única Antifascista, que enfrentou militantes integralistas nas ruas em 1934.

Edição onde se expressa a relação entre a ANL e a classe trabalhadora. 

Esse ambiente de mobilizações antecedeu e dialoga diretamente com o surgimento da Aliança Nacional Libertadora. Criada em março de 1935,  em meio à ascensão do fascismo (cuja expressão no Brasil foi principalmente a Ação Integralista Brasileira) , à crise econômica e ao desgaste das promessas da Revolução de 1930, a ANL se tornou uma ampla frente antifascista, congregando diversos setores da sociedade brasileira, entre eles trabalhadores, militares,  intelectuais e parte das classes médias urbanas. O Partido Comunista do Brasil (PCB) teve grande influência na ANL, embora ela fosse politicamente mais ampla, em particular em sua fase legal.  Quando surgiu, A Aliança Nacional Libertadora encontrou um mundo do trabalho politizado, ativo e em disputa, no decorrer de uma intensa onda grevista que marcou profundamente os anos de 1934 e 1935. Durante este período, portuários paralisaram atividades em Recife, Rio de Janeiro e Santos, ferroviários da Central do Brasil, Great Western e Sorocabana entraram em greve. Gráficos e têxteis mobilizaram-se no Rio, Recife e São Paulo. Apesar das particularidades de cada categoria, essas mobilizações convergiam em reivindicações semelhantes, entre elas a redução das longas jornadas de trabalho, melhores salários, proteção contra demissões, autonomia sindical e o cumprimento das novas leis trabalhistas.

A criação de comitês aliancistas em sindicatos, sociedades de bairro e associações de auxílio mútuo mostra que o programa anti-imperialista, anti-latifundiário e antifascista da ANL dialogava com demandas do movimento operário. A defesa de direitos, a crítica à repressão e a luta contra o fascismo integravam um repertório que não dependia apenas de diretrizes partidárias. A criação da Confederação Sindical Unitária do Brasil, em 1° de maio de 1935, também evidencia esse processo. Embora frequentemente apresentada como iniciativa exclusiva do PCB, a CSUB foi resultado de uma articulação ampla em torno da unidade sindical e da defesa de direitos. Aderir a essas organizações significava, para muitos trabalhadores, afirmar um projeto político próprio, e não se submeter a diretrizes externas.

Esse conjunto de mobilizações, distribuídas nacionalmente, permite compreender, em parte, a expectativa, principalmente dos setores comunistas, de que o operariado poderia aderir massivamente à uma potencial insurreição.  Esta leitura, no entanto, não levou em consideração as rápidas e intensas mudanças ocorridas ao longo de 1935. Em julho, a ANL foi colocada na ilegalidade e fechada, desencadeando uma forte onda repressiva que atingiu em cheio os trabalhadores organizados e afetou profundamente sua capacidade de atuação. Foi nesse contexto que setores do PCB optaram pela via insurrecional, apostando numa adesão do movimento operário que vinha sendo enforcado pela repressão.

Gregório Bezerra, importante liderança no Recife, lamentou a falta de 300 estivadores esperados para o levante; Rolando Fratti, liderança operária paulista, argumentou que os trabalhadores foram “pegos de surpresa” por eles. As duas falas evidenciam o descompasso entre a estratégia vanguardista do PCB e a realidade concreta vivenciada pelo movimento operário após julho de 1935. De fato, os que não “apareceram” foram os que sofreram as consequências de forma mais intensa. O peso da repressão recaiu majoritariamente sobre os trabalhadores e suas organizações. Como mostram muitos dos inquéritos policiais do período, a maioria dos presos após os levantes não participou de qualquer ação militar. Eram dirigentes sindicais, grevistas, delegados de fábrica, membros de comitês aliancistas ou simples trabalhadores denunciados por vizinhos e chefes.  Como observou Paulo Sérgio Pinheiro, 1935 tornou-se um “pretexto” para o autoritarismo exercer-se contra a sociedade brasileira e, inevitavelmente (ou especialmente) contra a classe trabalhadora.

Revisitar o contexto no qual os levantes de novembro de 1935 estão inseridos pela ótica da história social do trabalho nos dá a possibilidade de atentar à densidade de uma década que, por vezes, teve sua complexidade encolhida num acontecimento.  Evidenciar este contexto mais amplo é, sobretudo, reafirmar o lugar dos trabalhadores enquanto sujeitos ativos na construção de projetos de democracia, justiça e transformação social ao longo de nossa história e que, ainda hoje, permanecem em disputa.

A manhã, periódico da Aliança Nacional Libertadora, comemora o 1° de maio. Fonte: A Manhã 02/12/1935. Acervo:Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional


Documentário: 1935, O Assalto ao Poder . Direção: Claudio Kahns e Eduardo Escorel. Produção: Tatu Filmes, Brasil 1500, Cine Filmes. Narração: Paulo Betti, 1990. Disponível em: Parte 1- Revolução de 1935 | Parte 1 | Guerras no Brasil  Parte 2 – Revolução de 1935 | Parte 2 | Guerras no Brasil

Roda de conversa sobre os LEVANTES ANTIFASCISTAS DE 1935. Evento virtual realizado pelo AMORJ/UFRJ. Transmitido ao vivo em 16 de out. de 2025. Disponível em: 90 anos dos levantes antifascistas de novembro de 1935 – YouTube

PANDOLFI, Dulce Chaves. A Aliança Nacional Libertadora e a Revolta Comunista de 1935. Os grandes marcos da história política, v. 2, 2004. Disponível em: A Aliança Nacional Libertadora e a Revolta Comunista de 1935

PRESTES, Anita L. . 90 anos dos levantes antifascistas de 1935. Blog da Boitempo, 18 mai. 2025. Disponível em: 90 anos dos levantes antifascistas de 1935 – Blog da Boitempo


Crédito da imagem de capa: O congresso Nacional de Unidade Sindical realizado em abril de 1935, noticiado na edição de 1° de maio daquele ano do periódico da ANL, A Manhã. Fonte: A Manhã 01/05/1935 – Acervo: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional

Vale Mais #34: À frente dos negócios: a atuação das viúvas na direção de comércios de secos e molhados na cidade do Rio de Janeiro, por Jéssica Santanna



Está no ar o sexto episódio da nova temporada do Vale Mais, o podcast do LEHMT-UFRJ.

Nessa temporada, convidamos pesquisadores para discutir livros e teses recentes que aprofundam debates interdisciplinares sobre os mundos do trabalho.

No sexto episódio, conversamos com Jessica Santana, doutora em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Jessica contou um pouco sobre sua tese “À frente dos negócios: a atuação das viúvas na direção de comércios de secos e molhados na cidade do Rio de Janeiro (1850-1889)”, que recebeu Menção Honrosa no Prêmio de Teses Capes 2025.

Não deixe também de compartilhar e acompanhar os próximos episódios!

Entrevistadores: Ana Clara Tavares, Isabelle Pires, Josemberg Araújo, Larissa Farias e Thompson Clímaco
Roteiro: Ana Clara Tavares, Isabelle Pires, Larissa Farias e Thompson Clímaco
Produção: Ana Clara Tavares e Larissa Farias
Edição: Josemberg Araújo e Thompson Clímaco
Diretor da série: Thompson Clímaco
Coordenadora geral do Vale Mais: Larissa Farias

Vale Mais #34: À frente dos negócios: a atuação das viúvas na direção de comércios de secos e molhados na cidade do Rio de Janeiro, por Jéssica Santanna Vale Mais

Está no ar o sexto episódio da nova temporada do Vale Mais, o podcast do LEHMT-UFRJ. Nessa temporada, convidamos pesquisadores para discutir livros e teses recentes que aprofundam debates interdisciplinares sobre os mundos do trabalho. No sexto episódio, conversamos com Jessica Santana, doutora em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Jessica contou um pouco sobre sua tese “À frente dos negócios: a atuação das viúvas na direção de comércios de secos e molhados na cidade do Rio de Janeiro (1850-1889)”, que recebeu Menção Honrosa no Prêmio de Teses Capes 2025. Não deixe também de compartilhar e acompanhar os próximos episódios! Entrevistadores: Ana Clara Tavares, Isabelle Pires, Josemberg Araújo, Larissa Farias e Thompson Clímaco Roteiro: Ana Clara Tavares, Isabelle Pires, Larissa Farias e Thompson Clímaco Produção: Ana Clara Tavares e Larissa Farias Edição: Josemberg Araújo e Thompson Clímaco Diretor da série: Thompson Clímaco Coordenadora geral do Vale Mais: Larissa Farias
  1. Vale Mais #34: À frente dos negócios: a atuação das viúvas na direção de comércios de secos e molhados na cidade do Rio de Janeiro, por Jéssica Santanna
  2. Vale Mais #33: Jogo, logo existo: Futebol, conflito social e sociabilidade na formação da classe trabalhadora em Rio Grande, por Felipe Bresolin
  3. Vale Mais #32: Breve dicionário analítico sobre a obra de Edward Palmer Thompson, por César Queirós e Marcos Braga
  4. Vale Mais #31: Saraiva, Dantas e Cotegipe: baianismo, escravidão e os planos para o pós-abolição no Brasil, por Itan Cruz
  5. Vale Mais #30: A cultura de luta antirracista e o movimento negro do século 21, por Thayara Lima

CE #36: Cem anos de Clóvis Moura – Gabriel dos Santos Rocha




Clóvis Steiger de Assis Moura, nasceu em Amarante (Piauí) no dia 10 de junho de 1925; faleceu na cidade de São Paulo no dia 23 de dezembro de 2003. Foi um intelectual marxista autodidata, historiador, sociólogo, jornalista, crítico literário, poeta, militante comunista e do movimento negro. Sua formação, atividade intelectual e atuação política não se dissociavam. Foi um intelectual orgânico no sentido gramsciano do termo. Teve uma trajetória vinculada às lutas por emancipação da classe trabalhadora, nas quais pautou a dupla opressão social que atinge a população negra: a opressão de classe e o racismo; tema sobre o qual refletiu amplamente em sua obra. Buscou respostas para tais problemas na investigação do processo histórico e na práxis política.

Em 1945 ingressou no Partido Comunista Brasileiro (PCB). Na década de 1960 integrou o Partido Comunista do Brasil (PcdoB), agremiação originada de uma dissidência do PCB em 1962. Ao longo da vida atuou como jornalista militante na imprensa de esquerda, e profissionalmente em veículos de maior abrangência. Moura teve contribuições importantes para o marxismo no campo teórico e na luta política e social: a relação entre escravidão, racismo e capitalismo, e a questão racial na luta classes são temas fundamentais em sua produção intelectual e militância.

 Suas principais contribuições teóricas no marxismo estão na historiografia e na sociologia, ainda que sua produção também dialogue com outras áreas do conhecimento como a economia política, a antropologia, a etnologia, a crítica literária e os estudos culturais. Ocupou-se fundamentalmente de problemas brasileiros, embora tenha dedicado algumas passagens de sua obra à América Latina e ao Caribe. O conjunto de sua produção pode ser visto como um programa de interpretação do processo histórico brasileiro desde o período colonial ao republicano no qual se destacam: 1) a escravidão e a colonização na formação social, política, econômica e cultural do Brasil; 2) as insurreições negras contra a escravidão na perspectiva da luta de classes; 3) o racismo como ideologia de dominação no capitalismo dependente brasileiro; 4) as organizações negras na luta contra o racismo no Brasil pós-abolição.

 Moura ganhou notoriedade por estudar as insurreições negras do período escravista, tratando-as sistematicamente, e não como meras erupções espontâneas sem qualquer impacto nas relações de produção e na sociedade. O autor considerou as várias formas de resistência dos escravizados como elementos dinamizadores e de negação do sistema escravista, a exemplo das fugas, insurreições, guerrilhas, quilombos, atentados contra senhores e feitores, suicídios, abortos etc. O autor denominou quilombagem, esse processo de resistência constante ao escravismo.

 Os quilombos, insurreições e guerrilhas foram objetos primordiais de suas análises, e deram o subtítulo de seu primeiro livro, Rebeliões da Senzala (1959), cuja primeira edição teve pouca repercussão, porém, posteriormente veio a se tornar um clássico sobre o tema, sobretudo, a partir da segunda edição de 1972. Neste livro, Moura lançou as bases interpretativas da escravidão que foram desenvolvidas ao longo de quase toda sua obra, em produções posteriores.

Rebeliões da Senzala, Edições Zumbi, 1959. Capa: Octávio Araújo

Para o autor, os escravizados que se rebelavam, sobretudo os quilombolas e insurretos eram agentes de negação do sistema escravista. Ainda que os escravizados – devido a própria natureza da escravidão colonial – não tivessem condições objetivas de projetarem um sistema econômico, político e social alternativo, suas rebeliões, guerrilhas e quilombos, atentavam contra a propriedade escravista. Deste modo, Moura não apenas conferiu sentido político ao protesto negro daquele período, como também, considerou que a dinâmica, o desenvolvimento e a superação do escravismo deveriam ser compreendidos a luz do antagonismo entre escravizado e escravocrata, as classes fundamentais daquele sistema econômico e social.

 Ao abordar a escravidão Moura se contrapôs à ideia de “antagonismos em equilíbrio” amplamente defendida por Gilberto Freyre, a qual contribuiu para a formulação do chamado “mito da democracia racial” (apesar da expressão não ter sido cunhada por Freyre, suas teses foram fundamentais na formulação desse “mito”). Sem desprezar as diferentes técnicas de dominação senhorial, Moura enfatizou a violência como elemento central da sociedade escravista. No entanto, ao contrário de muitos autores que tratavam mais da violência senhorial, Moura se importou com a violência do escravizado. Assim se contrapôs, não apenas à Freyre, mas também às concepções que embasariam a teoria do escravo-coisa. Se por um lado, o escravismo buscava reduzir africanos e seus descendentes à condição social de bem semovente, por outro, os escravizados negavam tal condição quando se rebelavam. Como observou Jacob Gorender, o status de coisa encontrava seus limites na própria ordem escravista quando um escravizado era julgado por atentar contra a propriedade ou contra a vida de seu algoz. Se a violência senhorial era um fator de desumanização do africano e seus descendentes, a violência do escravizado era um fator de negação da desumanização imposta pela ordem senhorial. Assim, a violência era uma expressão de humanidade do escravizado.

Além dos quilombos e rebeliões de cativos, Moura também estudou a participação dos negros em insurreições populares dos séculos XVIII e XIX. Os afro-brasileiros também participaram ativamente de movimentos transformadores na História, a exemplo da Independência (1822) e da Abolição (1888), porém, via de regra, foram excluídos das esferas de poder de decisão e dos projetos dos vencedores.

Se a escravidão foi tema ao qual Moura se dedicou até o fim da vida, também é verdade que o autor produziu significativamente sobre o pós-abolição, como vemos em O negro: de bom escravo a mau cidadão? (1977), Brasil: as raízes do protesto negro (1982), Sociologia do Negro Brasileiro (1988) e Dialética Radical do Brasil Negro (1994). Moura caracterizou o Brasil pós-abolição como uma sociedade de capitalismo dependente na qual o racismo se manteve como uma ideologia de dominação de classes, associada às formas de controle social e exploração do “trabalho livre”.

A dependência em relação aos centros (Europa Ocidental e EUA) foi historicamente condicionada pelo processo no qual o Brasil se inseriu na “ordem concorrencial internacional” desde a abertura dos portos em 1808. Àquela altura os quase 300 anos de escravidão e pacto colonial inviabilizaram a acumulação primitiva de capitais na colônia. A manutenção da estrutura escravista e agroexportadora com a independência em 1822, somada à implementação de uma infraestrutura modernizante (ferrovias, portos, telégrafos, casas comerciais etc.) sob o capital estrangeiro durante a economia cafeeira, só reiterou e reforçou a condição de dependência ao longo do século XIX. Tal heteronomia, guardadas as peculiaridades de cada época, se estenderia por um processo de longa duração até os dias de hoje.

O racismo no pós-abolição seguiu como um dispositivo organizador das desigualdades sociais. Na passagem da economia escravista para o capitalismo, o negro foi alijado dos setores produtivos mais dinâmicos, e lançado majoritariamente aos setores mais precarizados e ao exército industrial de reserva. Tal fato se verifica entre o final do século XIX e os anos 1930, quando o Estado brasileiro investiu em políticas de imigração subvencionada, voltada principalmente para a vinda de europeus que foram empregados nas industriais, mas também em fazendas de café em São Paulo (que se tornara importante polo do capitalismo nacional).

Houve autores que tentaram explicar tal fato a partir de uma presumida “anomia social do negro” (herdada da escravidão) contraposta a uma “aptidão cultural do europeu para o trabalho livre”, a exemplo de Florestan Fernandes. No entanto, Moura refutou esta tese, e defendeu que opção pelo imigrante europeu atendia a duas demandas das classes dominantes: 1) o almejado branqueamento da população (ventilado por ideais eugenistas); 2) a garantia de uma superpopulação relativa que pressionaria para baixo o valor da força de trabalho, conferindo maior poder de barganha patronal. Assim, a marginalização social do negro não resultou de uma presumida “deformação de personalidade” herdada da escravidão contraposta a uma suposta “superioridade cultural do europeu”. Tal problema se deve a uma política de substituição étnica da força de trabalho que atendia aos interesses eugenistas e econômicos das classes dominantes acopladas ao Estado.

O problema do racismo associa-se à questão de classe na medida em que, historicamente, a exploração da força de trabalho segue racializada em uma sociedade formada majoritariamente por pretos e pardos (atingidos duplamente pela opressão racial e socioeconômica). O escravizado do passado é o ancestral da classe trabalhadora brasileira. Diante disso, Moura também estudou e colaborou com a luta das organizações negras contra o racismo, entendendo que se trata de um problema fundamental a ser enfrentado na luta pela superação do capitalismo.

Manifestação do Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial, 1978. Foto: Jesus Carlos / Memorial da Democracia


PARA SABER MAIS:

FARIAS, Márcio. Clóvis Moura e o Brasil. São Paulo: Editora Dandara, 2019

MALATIAN, Teresa. Clóvis Moura: uma biografia. Teresina: EDUESPI, 2022

MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala: quilombos, insurreições e guerrilhas. 5ª ed. São Paulo: Anita Garibald/Fundação Maurício Grabois, 2014a

OLIVEIRA, Fábio Nogueira. Clóvis Moura e a sociologia da práxis negra.Dissertação de mestrado, Niterói: UFF, 2009

ROCHA, Gabriel dos Santos. Clóvis Moura e a América Latina. In: Blog da Boitempo. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2025/07/10/clovis-moura-e-a-america-latina/



Crédito da imagem de capa: Clóvis Moura. Fundo Clóvis Moura, CEDEM-UNESP

LMT #141: Complexo Florestal e Madeireiro Panguipulli (COFOMAP), Los Ríos, Chile – Robinson Silva Hidalgo




O Complexo Florestal e Madeireiro de Panguipulli (COFOMAP) foi uma grande empresa florestal, propriedade do Estado do Chile e administrada por seus trabalhadores. Mais de 3.000 pessoas e suas famílias viveram e trabalharam em seus 400.000 hectares. Esse território nas cordilheiras, localizado entre os municípios de Panguipulli e Futrono, na atual região de Los Ríos, no sul do Chile, foi progressivamente povoado por famílias oriundas das regiões próximas de Valdivia e Araucanía. Em especial, camponeses e trabalhadores chilenos sem-terra, que se empregaram nas explorações florestais que se desenvolveram desde a década de trinta de maneira massiva.

O COFOMAP foi criado graças ao processo de ocupação de terras por trabalhadores organizados no verão de 1970-1971, isso no contexto dos abusos patronais em relação a questões como salários justos, falta de serviços sociais, proibição de formar sindicatos, entre outros maus-tratos trabalhistas. Como parte das negociações com o recém-instalado governo de Salvador Allende, decidiu-se criar uma empresa pública gerida em conjunto por trabalhadores (seis delegados no Conselho Diretivo) e representantes do governo (dois delegados no Conselho), além de um diretor-executivo nomeado por Allende.

Nesse território fundaram povoados, escolas, centros esportivos e de saúde, constituindo uma estrutura social que foi destruída de forma dramática a partir de 11 de setembro de 1973, quando ocorreu o Golpe de Estado pelo qual as Forças Armadas derrubaram o Governo de Salvador Allende.
A partir desse momento, um brutal processo de contrainsurgência se desenvolveu, que começou com a ocupação militar de todas as terras e localidades do COFOMAP, resultando em toque de recolher,  detenção e  encarceramento, torturas, assim como o desaparecimento e a execução sumária e ilegal de dezenas de trabalhadores e militantes de esquerda. Essa repressão localizada na região se deveu ao processo de politização dos trabalhadores e ao exemplo que representava a cogestão de suas organizações sindicais com o Estado para levar adiante uma administração socialista da empresa. Convém recordar que a ocupação de terras entre 1970 e 1971 teve um grande impacto na imprensa e na opinião pública da época, chegando a ser um tema de debate no Congresso Nacional.

Nesse sentido, essa área contou com uma forte presença de militantes de esquerda: socialistas, comunistas e, particularmente, jovens do Movimiento de Izquierda Revolucionária (MIR), um partido recém-formado na época, de caráter guevarista, que impulsionou o processo de mobilização para ocupar as terras por parte dos trabalhadores. Todos esses grupos ajudaram na criação de sindicatos e desenvolveram atividades políticas, tanto formativas quanto mobilizadoras no local.

Esse processo gerou um clima de terror agudo, seguido pela intervenção e posterior liquidação da empresa, privatização das terras e, finalmente, com a gradual, porém constante, expulsão dos habitantes do Complexo. Constituiu-se, assim, uma prática de deslocamento forçado de milhares de pessoas, inserida em uma estratégia repressiva do Estado, somando outro crime contra a humanidade na região.

Nos dias 3 e 4 de outubro de 1973, em Neltume, cidade de Panguipulli, na região de Los Ríos,doze pessoas foram fuziladas após serem acusadas de atacar o Posto de Carabineros da localidade. Em 9 de outubro, foram detidos, executados e desaparecidos dezessete habitantes de setores da área Sul do Complexo. Um dia depois, no dia 10 de outubro, outros quinze dirigentes sindicais e trabalhadores da COFOMAP foram detidos em Liquiñe, também na região, e depois transferidos até a Ponte Toltén, em Villarrica, onde foram fuzilados e desaparecidos. Essas ações repressivas foram investigadas pela justiça chilena nos autos do caso: Caravana da Morte, episódio Valdivia.

No mesmo período e como parte dessa estratégia, a administração delegada da ditadura militar no COFOMAP implementou uma série de medidas restritivas as liberdades de seus habitantes, todas voltadas para manter o controle da área e criar as condições para a retirada deles do território. Do ponto de vista administrativo, as terras do Complexo foram inicialmente transferidas para a Corporación Nacional Forestal (CONAF) e, posteriormente, para a Corporación de Fomento (CORFO). A partir dessa entidade, as terras foram privatizadas, desindustrializando a região e desmantelando todas as suas instalações produtivas, especialmente as serralherias, acelerando o assédio aos trabalhadores.

A situação se agravou a partir de 1981, depois que foi descoberta na região a presença de um destacamento guerrilheiro integrado por militantes do MIR, alguns deles trabalhadores florestais do COFOMAP. Entre setembro e dezembro de 1981, foram executados sumariamente sete militantes do MIR nos setores de Releco e Choshuenco, em meio a um deslocamento de centenas de militares e agentes da Central Nacional de Informações, que se espalharam por todas as propriedades do Complexo.

Seguindo uma prática do manual de contrainsurgência, os operativos militares se combinaram com operativos civis e militares, sob a coordenação do Comandante da Divisão do Exército e Governador Provincial de Valdivia, General Rolando Figueroa Quezada. Nesse processo, participaram funcionários públicos e membros de organizações civis ligadas à ditadura, como a Secretaria Nacional da Juventude ou Cema Chile. Esses operativos tinham como objetivo não apenas detectar apoio à insurgência, mas também disciplinar a população do Complexo através do medo e da cooptação.

É nesse contexto de repressão e ocupação militar que se desenvolveu o já mencionado processo de desintegração e liquidação do Complexo, processo concluído com a privatização a preço vil das diversas propriedades que o integravam, incluindo a expulsão gradual de todos seus habitantes, processo que não foi mediado por nenhuma resolução judicial.


Foi a partir dos anos 2000 que antigos militantes do MIR e suas famílias revisitaram a zona para explorar os locais em que ocorreu a repressão no início da ditadura e as atividades guerrilheiras de resistência no início dos anos 80.


Na busca por recuperar essas histórias de luta surge o contato com os habitantes de Neltume. Ao mesmo tempo procurava-se romper com o medo ainda existente, apesar do fim da ditadura, e impulsionar ações pontuais como encontros e conversas sobre o passado recente.

O seguinte passo foi criar um espaço para revitalizar a intensa história deste território. Foi assim que a comunidade de moradores e ex-militantes criaram o Centro Cultural Museu e Memória de Neltume. O Centro é uma instituição autogerida que luta pela memória e desde 2004 começou a recuperar a história do território de forma formal. Isso foi feito através de encontros, visitas a locais de repressão e de luta, assim como ativação comunitária em relação à memória histórica do território, criando uma exposição permanente e gerando ações educativas.

Atualmente, esse espaço continua muito ativo, apesar das dificuldades impostas pelo negacionismo, representado em ataques e roubos ao Museu e incêndios a ex-serralheria e à delegacia de Carabineros (ambos locais de memória). Todos episódios pouco investigados pelos organismos do Estado. Apesar disso, o Centro continua apoiando reivindicações ambientais, sociais e indígenas da região, dando continuidade histórica à ação de trabalhadores, militantes e ativistas que, durante o século XX, construíram a paisagem social e econômica dessas terras do sul.

Casa do Centro Cultural e Museu e Memória de Neltume. Fonte: museoneltume.cl


Bize, Cristóbal. (2017). El otoño de los raulíes. Poder popular en el Complejo Forestal y Maderero Panguipulli (Neltume, 1967-1973). Santiago: Tiempo robado.

Centro Cultural Museo y Memoria de Neltume. https://www.museoneltume.cl

Silva, R. La transformación de lo local. La empresa estatal Cofomap bajo la dictadura civil-militar-empresarial, Los Ríos, Chile (1977-1988). Boletín Americanista. N° 89, 2024 pp. 277-298.

Silva, R. La memoria de Neltume, Chile: el patrimonio que vence al negacionismo. Tempo & Argumento vol 16 N° 42,2024, p. e0104.


Crédito da imagem de capa: Ocupação da propriedade Neltume. Fonte: museoneltume.cl


Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

Vale Mais #33: Jogo, logo existo: Futebol, conflito social e sociabilidade na formação da classe trabalhadora em Rio Grande, por Felipe Bresolin



Está no ar o quinto episódio da nova temporada do podcast Vale Mais, do LEHMT-UFRJ!

Nesta temporada, convidamos pesquisadoras e pesquisadores para discutir projetos, livros e teses recentes que aprofundam debates interdisciplinares sobre os mundos do trabalho.

No sexto episódio, conversamos com Felipe Treviso Bresolin, doutorando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Felipe conversou com os entrevistadores do Vale Mais sobre o livro “Jogo, logo existo: Futebol, conflito social e sociabilidade na formação da classe trabalhadora em Rio Grande/RS (1901-1930)”, fruto de sua dissertação de mestrado, defendida em 2023.

Não deixe também de compartilhar e acompanhar os próximos episódios!

Entrevistadores: Ana Clara Tavares, Isabelle Pires, Josemberg Araújo, Larissa Farias e Thompson Clímaco
Roteiro: Ana Clara Tavares, Isabelle Pires, Larissa Farias e Thompson Clímaco
Produção: Ana Clara Tavares e Larissa Farias
Edição: Josemberg Araújo e Thompson Clímaco
Diretor da série: Thompson Clímaco
Coordenadora geral do Vale Mais: Larissa Farias

Vale Mais #34: À frente dos negócios: a atuação das viúvas na direção de comércios de secos e molhados na cidade do Rio de Janeiro, por Jéssica Santanna Vale Mais

Está no ar o sexto episódio da nova temporada do Vale Mais, o podcast do LEHMT-UFRJ. Nessa temporada, convidamos pesquisadores para discutir livros e teses recentes que aprofundam debates interdisciplinares sobre os mundos do trabalho. No sexto episódio, conversamos com Jessica Santana, doutora em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Jessica contou um pouco sobre sua tese “À frente dos negócios: a atuação das viúvas na direção de comércios de secos e molhados na cidade do Rio de Janeiro (1850-1889)”, que recebeu Menção Honrosa no Prêmio de Teses Capes 2025. Não deixe também de compartilhar e acompanhar os próximos episódios! Entrevistadores: Ana Clara Tavares, Isabelle Pires, Josemberg Araújo, Larissa Farias e Thompson Clímaco Roteiro: Ana Clara Tavares, Isabelle Pires, Larissa Farias e Thompson Clímaco Produção: Ana Clara Tavares e Larissa Farias Edição: Josemberg Araújo e Thompson Clímaco Diretor da série: Thompson Clímaco Coordenadora geral do Vale Mais: Larissa Farias
  1. Vale Mais #34: À frente dos negócios: a atuação das viúvas na direção de comércios de secos e molhados na cidade do Rio de Janeiro, por Jéssica Santanna
  2. Vale Mais #33: Jogo, logo existo: Futebol, conflito social e sociabilidade na formação da classe trabalhadora em Rio Grande, por Felipe Bresolin
  3. Vale Mais #32: Breve dicionário analítico sobre a obra de Edward Palmer Thompson, por César Queirós e Marcos Braga
  4. Vale Mais #31: Saraiva, Dantas e Cotegipe: baianismo, escravidão e os planos para o pós-abolição no Brasil, por Itan Cruz
  5. Vale Mais #30: A cultura de luta antirracista e o movimento negro do século 21, por Thayara Lima

Livros de Classe #55: Senhores e caçadores, por Clarice Speranza

Neste episódio, a professora Clarice Speranza (UFRGS) apresenta o clássico “Senhores e Caçadores”, de E. P. Thompson, uma obra marcante da História Social que investiga as transformações nas relações de classe e as tensões entre autoridade, lei e resistência popular na Inglaterra do século XVIII.

Livros de Classe

Os estudantes de graduação são desafiados constantemente a elaborar uma percepção analítica sobre os diversos campos da história. Nossa série Livros de Classe procura refletir justamente sobre esse processo de formação, trazendo obras que são emblemáticas para professores/as, pesquisadores/as e atores sociais ligados à história do trabalho. Em cada episódio, um/a especialista apresenta um livro de impacto em sua trajetória, assim como a importância da obra para a história social do trabalho. Em um formato dinâmico, com vídeos de curtíssima duração, procuramos conectar estudantes a pessoas que hoje são referências nos mais diversos temas, períodos e locais nos mundos do trabalho, construindo, junto com os convidados, um mosaico de clássicos do campo.

A seção Livros de Classe é coordenada por Ana Clara Tavares.

LMT #140: Allan Gardens, Toronto, Canadá – Bryan Palmer




Por séculos, várias Primeiras Nações habitaram os territórios nas margens setentrionais do Lago Ontário, um dos Grandes Lagos que formam parte da fronteira entre o Canadá e os Estados Unidos. A principal província industrial do Canadá, Ontário, e sua maior cidade, Toronto, surgiram em meio aos processos de colonização que consolidaram a dominação britânica no extremo norte das Américas, após a Guerra de Independência dos Estados Unidos. Essa colonização, enraizada em uma longa e contínua desapropriação dos Povos Indígenas, levou à criação do Alto Canadá (o antigo Ontário) pelo Ato Constitucional de 1791. A consolidação territorial do Estado-nação prosseguiu na década de 1860, com o Ato da América do Norte Britânica de 1867 e a criação do Domínio do Canadá.

Em um reconhecimento paternalista das alianças militares e comerciais dos Povos Indígenas com o seu “pai”, o monarca, houve um limitado reconhecimento do “território indígena” e dos direitos das Primeiras Nações ao seu uso. Uma série de tratados e transações vagas, conhecidas como “cessões” e “compras”, transferiu vastas extensões de terra para a Coroa Britânica, com os grupos indígenas deslocados para pequenas e isoladas reservas. Locais mais cobiçados, como a atual Toronto, assim como extensas áreas florestais, futuros sítios de riqueza mineral e terras potencialmente férteis para a agricultura, foram designados como “terras da Coroa”. Um chefe Mississauga queixou-se a um oficial inglês na década de 1820: “Vocês vieram como o vento que sopra através do Grande Lago. […] Nós os protegemos até se tornarem uma árvore poderosa que se espalhou por nossa Terra de Caça. Com seus galhos, agora vocês nos açoitam.”

Em 1830, William Allan, banqueiro mercantil e pilar da oligarquia aristocrática que governava o Alto Canadá, conhecida como Family Compact, comprou uma vasta extensão de terras da Coroa que se estendia do Lago Ontário até o que hoje é a região central de Toronto. Décadas mais tarde, seu filho George, então prefeito de Toronto e presidente da Sociedade de Horticultura da cidade, cedeu uma pequena parte desse lucrativo terreno ao município para uso público, o que incluiu a criação de jardins públicos, hoje abrigados em meia dúzia de estufas. Durante uma visita a Toronto em 1860, o Príncipe de Gales inaugurou oficialmente o Allan Garden, um parque urbano que ocupa dois grandes quarteirões da cidade.


Por mais de um século e meio, Allan Gardens não apenas cultivou uma vegetação exuberante. Ele também foi um lugar de protestos ligados a uma variedade de movimentos por justiça social, como, entre outros, as sufragistas do século XIX; as mobilizações de trabalhadores desempregados na década de 1930; as campanhas pela liberdade de expressão nos anos 1960; as marchas do orgulho gay nos anos 1970; e os protestos contra a pobreza durante a era do neoliberalismo, dos anos 1990 até o presente. Poucos espaços públicos no Canadá foram cenário de tantas, e tão diversas, manifestações de resistência e contestação.


Os Povos Indígenas, como não é de se surpreender, há muito utilizam o Allan Gardens como ponto de encontro; até hoje, cerimônias semanais de percussão e cura são realizadas no parque. Em 1995, o Conselho Histórico de Toronto ergueu uma placa em homenagem ao Dr. Oronhyatekha (Burning Cloud/Peter Martin), a segunda pessoa indígena no Canadá a obter um diploma de medicina e uma das primeiras e mais proeminentes vozes a se opor aos aspectos restritivos do Indian Act de 1876. Burning Cloud formou-se na Escola de Medicina de Toronto em 1886. Ele morava do outro lado da rua do Allan Gardens, onde praticava medicina ocidental convencional e prescrevia curas “indígenas”. Um Centro de Recursos para Mulheres Indígenas de Toronto funciona agora na mesma vizinhança. O parque tem sido recentemente palco de vigílias e protestos contra a epidemia de assassinatos e desaparecimentos de mulheres e meninas indígenas.

A associação do feminismo com o Allan Gardens remonta a 1892. O Conselho Nacional das Mulheres do Canadá, que defendia o direito ao voto, surgiu a partir de uma reunião no parque. Em 1896, a União Cristã Feminina pela Temperança conduziu um Parlamento Simulado no pavilhão do parque, construído em estilo oriental, semelhante aos pagodes asiáticos (torres ornamentais com vários telhados sobrepostos). Dra. Emily Stowe, a primeira médica a exercer a profissão no Canadá, presidiu o evento, que também contou com a participação de Lady Ishbel Aberdeen, esposa do Governador-Geral do Canadá. “Participantes abastadas”, observa a historiadora do sufrágio canadense Joan Sangster, só puderam assistir à encenação de teatro político satírico ao garantirem “bilhetes com antecedência”.

Mais barulhentas, e decididamente mais ousadas, foram as dyke marches [passeatas das sapatões] associadas à Semana do Orgulho de Toronto, sendo que a primeira marcha do Orgulho Gay da cidade partiu do Allan Gardens em 1974. O primeiro desfile lésbico ocorreu em 1996. Desde 2014, a dyke march passou a se encerrar no Allan Gardens, onde performances teatrais queer teriam feito as feministas do século XIX corarem. Lady Aberdeen talvez ficasse perplexa — senão indignada — com as Slutwalks [passeatas das “vagabundas’] que tiveram início no Allan Gardens entre 2013 e 2017, defendendo a descriminalização do trabalho sexual e a criação de um ambiente livre de estigmas para aqueles envolvidos em empregos eróticos.

À medida que o capitalismo se consolidava no início do século XX, os sindicatos cresceram em tamanho e influência. Organizações de esquerda, como o Partido Comunista e a Federação das Cooperativas do Commonwealth, surgiram. Elas exigiam uma alternativa ao ethos de “cada um por si” do sistema de lucro. Crises periódicas deixavam massas de trabalhadores desempregados. No Allan Gardens, manifestantes e policiais entraram em confronto repetidas vezes durante a Grande Depressão da década de 1930.

A Liga dos Trabalhadores Veteranos de Guerra (WESL), liderada pelos comunistas, ergueu sua faixa — “Heróis de 1914 – Mendigos em 1933” — no Allan Gardens, em protesto contra o desemprego, a brutalidade policial e a repressão à liberdade de expressão. Policiais a cavalo e de motocicleta avançaram contra a multidão de desempregados, que incluía mulheres da classe trabalhadora que deixaram seus carrinhos de bebê sob as árvores e enfrentaram a polícia em fúria.

Sob pressão de organizações como a WESL, a Liga Canadense de Defesa do Trabalho e o Conselho de Desempregados de Toronto, o Comitê de Parques Municipais designou oito parques locais — incluindo a legislatura provincial, o Queen’s Park — como abertos a discursos públicos e manifestações. No entanto, a legislação local continuava a proibir discursos no Allan Gardens, já então conhecido como ponto de encontro de trabalhadores insatisfeitos.

Em 1962, poetas radicais se rebelaram contra as restrições legais que limitavam os discursos públicos no Allan Gardens. O poeta laureado da esquerda canadense, Milton Acorn, liderou a resistência ao embargo da liberdade de expressão. Ele venceu, tanto no tribunal da opinião pública quanto no sistema de justiça. As leis de Toronto mudaram: poetas, oradores de rua e defensores da liberdade de expressão de todos os tipos puderam, a partir de então, usar o Allan Gardens como seu palco.

Com os pobres e marginalizados da sociedade atraídos para Allan Gardens, a polícia aproveitou a oportunidade para atacar os bodes expiatórios e suspeitos de sempre. As áreas residenciais ao redor do centro da cidade de Allan Gardens foram gentrificadas. As antigas pensões que atendiam moradores pobres, muitas vezes racializados, em especial torontonianos de origem caribenha, deram lugar a elegantes residências unifamiliares. Essa transformação urbana, no entanto, levou tempo. Para os negros que ainda viviam perto do parque nos anos 1990, alguns deles em situação de rua e dependentes de abrigos que continuavam a existir no bairro, o Allan Gardens tornou-se um espaço de encontro, convivência e de prática do futebol.

Uma operação policial no Allan Gardens, no verão de 1994, resultou em tratamento humilhante de 65 homens negros, que receberam o aviso de que, caso voltassem ao parque, seriam presos. Proprietários brancos abastados — defensores da emergente ideologia “Not In My Backyard” (“Não no meu quintal”) e articuladores de ativas associações de moradores locais — aplaudiram os policiais enquanto estes distribuíam 3.000 dólares em multas por vadiagem. Mas o Allan Gardens não poderia ser facilmente transformado em um espaço de repressão racista. Reforçados por aliados do movimento gay, ativistas do Black Lives Matter se reuniram no Allan Gardens em 2016. Sua mensagem — “I Am Not A Threat” (“Eu não sou uma ameaça”) — rememorava o vergonhoso perfilamento racial de jogadores de futebol imigrantes em 1994.

Na década de 1990, as crises do capitalismo precipitaram uma reação. O ataque bem-sucedido do neoliberalismo às organizações fundamentais de defesa da classe trabalhadora deixou os sindicatos enfraquecidos. Com o deslocamento do espectro político para a direita, organizações de esquerda há muito associadas ao anticapitalismo — e conhecidas por incentivar levantes militantes da classe trabalhadora — foram ficando em segundo plano. O protesto passou a se associar menos à classe trabalhadora organizada e aos movimentos e partidos tradicionais da esquerda radical.

Uma alternativa surgiu. A Coalizão de Ontário contra a Pobreza (OCAP) ganhou destaque sob o slogan “Lutar para vencer!” A OCAP apoiava os acampamentos vulneráveis no parque. O Allan Gardens foi defendido como um lugar seguro para o número crescente de pessoas pobres e em situação de rua em Toronto. Passeatas contra os governos provinciais frequentemente começavam no parque e percorriam o centro da cidade até a sede do governo em Queen’s Park.

Uma dessas manifestações explosivas culminou em um conflito com a polícia em 15 de junho de 2000. O inquérito registou ferimentos superficiais em cavalos da polícia, 42 policiais alegaram fraturas nas canelas e contusões no corpo, e um número semelhante de manifestantes foi preso, incluindo três dos principais organizadores da OCAP. As audiências judiciais envolvendo mais de 250 acusações criminais se prolongaram até 2002-03, restringindo severamente a capacidade da OCAP de defender os pobres, promover a necessidade de moradias acessíveis e prestar serviços e aconselhamento aos desfavorecidos que dependem de sua experiência e ajuda.

As faixas da OCAP muitas vezes pareciam saídas diretamente dos protestos da década de 1930: “Unidos comemos. Divididos passamos fome.” Quando o G-20 se reuniu em Ontário em 2010, ativistas antiglobalização se concentraram no Allan Gardens. John Clarke, da OCAP, denunciou a agenda de austeridade dos líderes do capitalismo global, proclamando: “Eles nos deram guerra, nós estamos devolvendo guerra a eles.”

Hoje a OCAP está em grande parte extinta, mas seu espírito, e o de seus antecessores militantes, permanece. Acampamentos de barracas de pessoas em situação de rua continuaram no Allan Gardens muito depois do fim da organização antipobreza. Muitos dos sem-teto eram indígenas.

As autoridades municipais de Toronto acabaram encontrando acomodação para muitas das pessoas que viviam no parque. Por enquanto, barracas de sem-teto não estão mais montadas no Allan Gardens. Mas uma mulher indígena ainda vive lá em um icônico teepee (tenda indígena), onde mantém uma fogueira sagrada. Forças de segurança privada patrulham o Allan Gardens, garantindo que não surjam acampamentos de pessoas em situação de rua em um parque que recentemente passou por extensas reformas em um pavilhão que as autoridades claramente querem transformar em atração para turistas e visitantes “respeitáveis”. Em toda Toronto, no entanto, a falta de moradia continua sendo uma questão central e preocupante, com muitas pessoas forçadas a viver em barrancos e outros espaços públicos, ou a depender de abrigos inadequados.

Em setembro de 2022, um festival de quatro dias de música, poesia, dança e cerimônia marcou a instalação artística de uma escultura de 27 painéis, com 7 metros de comprimento. A celebração e a composição criativa faziam parte de um projeto de longo prazo liderado pela programadora cultural e cineasta Rina Fraticelli e pelo fotógrafo e curador Schuster Gindin. Narrativas, representações artísticas, documentos e outros materiais culturais comemoraram os 130 anos de história do Allan Gardens. Fraticelli e Gindin buscaram reconhecer e fortalecer ainda mais o senso de comunidade local. Eles publicaram um volume ricamente ilustrado, Allan Gardens: People, Power & the Park. A obra ilumina como o Allan Gardens tem sido, há muito tempo, um espaço público onde as liberdades de associação e expressão são defendidas e preservadas, estabelecendo a continuidade da luta da classe trabalhadora, dos movimentos por justiça social e dos protestos indígenas sob o capitalismo e o colonialismo.

No Allan Gardens, um parque hortícola originado de um ato de expropriação colonial transformou-se em propriedade privatizada. Esse espaço público tornou-se um terreno contestado. Gerações de dissidentes reivindicaram direitos: de se reunir; de ser ouvidos; de pressionar por mudanças; de se libertar do Calcanhar de Ferro das autoridades e de seus gendarmes. Ao fazê-lo, militantes e todo tipo de pessoas insatisfeitas expressaram críticas a uma sociedade que justificava a desigualdade e racionalizava a opressão, a exploração e a repressão. As lutas de povos indígenas e racializados, de mulheres e minorias sexuais, e de trabalhadores — assalariados e não assalariados — marcaram a tranquilidade do parque. Criado como uma expressão das sensibilidades da elite, o Allan Gardens se transformou em algo diferente: um lembrete visível de que a supressão dos despossuídos nunca é fácil nem total. Em sua ressignificação, o parque passou a simbolizar as possibilidades de uma transformação socioeconômica mais ampla.

“Empregos, Justiça e Ação Climática, Protesto de 5 de julho de 2015, Allan Gardens”, do livro de Fraticelli e Gindin, p. 37.


Bryan D. Palmer and Gaétan Héroux, with a foreward by Francis Fox Piven, Toronto’s Poor: A Rebellious History (Toronto: Between the Lines, 2016).

Donald B. Smith, “The Dispossession of the Missisauga Indians: A Missing Chapter in the Early History of Upper Canada,” Ontario History, 73 (June 1981), 67-87.

Joan Sangster, One Hundred Years of Struggle: The History of Women and the Vote in Canada (Vancouver: UBC Press, 2018).

Rina Fraticelli and Schuster Gindin, Allan Gardens: People, Power & the Park (Toronto: King’s Road Press, 2024).


Crédito da imagem de capa: “Manifestação da Liga dos Trabalhadores Veteranos de Guerra (WESL), liderada pelos comunistas, em 15 de agosto de 1933 no Allan Gardens, em protesto contra o desemprego”. Fonte: Livro Allan Gardens: People, Power & the Park.


Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

Vale Mais #32: Breve dicionário analítico sobre a obra de Edward Palmer Thompson, por César Queirós e Marcos Braga





Está no ar o quinto episódio da nova temporada do podcast Vale Mais, do LEHMT-UFRJ!

Nesta temporada, convidamos pesquisadoras e pesquisadores para discutir projetos, livros e teses recentes que aprofundam debates interdisciplinares sobre os mundos do trabalho.

Neste quinto episódio, conversamos com César Queiroz, professor da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), e Marcos Braga, professor da rede pública estadual de educação do Amazonas e doutorando do programa de pós-graduação em História da UFAM. Os convidados são organizadores do livro Breve dicionário analítico sobre a obra de Edward Palmer Thompson. A obra é produto da disciplina “Trabalho e movimentos sociais na Amazônia”, oferecida no PPGH/UFAM, em 2024, em homenagem ao centenário de Edward Thompson, sendo o foco do curso debater as contribuições thompsonianas e as polêmicas que o envolveram ao longo de sua vida. Os/as alunos/as da disciplina elaboraram verbetes que fazem parte da composição desta breve dicionário.

Não deixe também de compartilhar e acompanhar os próximos episódios!

Entrevistadores: Ana Clara Tavares, Isabelle Pires, Josemberg Araújo, Larissa Farias e Thompson Clímaco
Roteiro: Ana Clara Tavares, Isabelle Pires, Larissa Farias e Thompson Clímaco
Produção: Ana Clara Tavares e Larissa Farias
Edição: Josemberg Araújo e Thompson Clímaco
Diretor da série: Thompson Clímaco
Coordenadora geral do Vale Mais: Larissa Farias

Vale Mais #34: À frente dos negócios: a atuação das viúvas na direção de comércios de secos e molhados na cidade do Rio de Janeiro, por Jéssica Santanna Vale Mais

Está no ar o sexto episódio da nova temporada do Vale Mais, o podcast do LEHMT-UFRJ. Nessa temporada, convidamos pesquisadores para discutir livros e teses recentes que aprofundam debates interdisciplinares sobre os mundos do trabalho. No sexto episódio, conversamos com Jessica Santana, doutora em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Jessica contou um pouco sobre sua tese “À frente dos negócios: a atuação das viúvas na direção de comércios de secos e molhados na cidade do Rio de Janeiro (1850-1889)”, que recebeu Menção Honrosa no Prêmio de Teses Capes 2025. Não deixe também de compartilhar e acompanhar os próximos episódios! Entrevistadores: Ana Clara Tavares, Isabelle Pires, Josemberg Araújo, Larissa Farias e Thompson Clímaco Roteiro: Ana Clara Tavares, Isabelle Pires, Larissa Farias e Thompson Clímaco Produção: Ana Clara Tavares e Larissa Farias Edição: Josemberg Araújo e Thompson Clímaco Diretor da série: Thompson Clímaco Coordenadora geral do Vale Mais: Larissa Farias
  1. Vale Mais #34: À frente dos negócios: a atuação das viúvas na direção de comércios de secos e molhados na cidade do Rio de Janeiro, por Jéssica Santanna
  2. Vale Mais #33: Jogo, logo existo: Futebol, conflito social e sociabilidade na formação da classe trabalhadora em Rio Grande, por Felipe Bresolin
  3. Vale Mais #32: Breve dicionário analítico sobre a obra de Edward Palmer Thompson, por César Queirós e Marcos Braga
  4. Vale Mais #31: Saraiva, Dantas e Cotegipe: baianismo, escravidão e os planos para o pós-abolição no Brasil, por Itan Cruz
  5. Vale Mais #30: A cultura de luta antirracista e o movimento negro do século 21, por Thayara Lima

CE #35: Quando os bancários pararam o Brasil: 40 anos da greve de 1985 – Luiz Azevedo




Quarenta anos se passaram. Já estou com 70. Falar desta greve mexe comigo e com os bancários da minha geração. Graças a ela firmei minhas convicções em defesa do planejamento estratégico situacional e da necessidade de um sindicalismo democrático e de massas. A alegria dos grevistas revelou seu caráter libertador.  A classe trabalhadora sentiu que se livraria da ditadura com as mobilizações das Diretas Já e estava ansiosa para se livrar, nem que fosse por pouco tempo, do sufoco que sofria diante da opressão nos locais de trabalho.

Olhar 40 anos depois para aquela greve nos permite capturar com maior profundidade o seu significado para o movimento sindical brasileiro e para as relações entre capital financeiro e bancários, em uma época em que a automação ainda estava longe do que presenciamos atualmente. Apenas em São Paulo havia cerca de 140 mil bancários. Em todo o país eram cerca de 700 mil, dos quais 500 mil trabalhadores(as) aderiram à greve nas principais capitais e cidades do Brasil. Havia muitos jovens, pois a jornada de seis horas permitia combinar estudo e trabalho. Grande parte encarava o trabalho bancário como provisório. Também era uma categoria com forte presença feminina. E muitas jovens bancárias sofriam com o assédio sexual de contadores e chefias e iam ao Sindicato. Eu atendi inúmeras. Era o tempo do contador “cantador”.

A maior greve nacional bancária da história foi deflagrada dia 10 de setembro de 1985. Milhares de bancários compareceram à praça da Sé, em São Paulo, e às assembleias realizadas país afora, dispostos a deflagrar a greve, que vinha sendo preparada há três meses. Estavam convictos de que era justa e necessária, tanto que a aprovaram por unanimidade. À zero hora do dia 11 de setembro a greve começou e o Brasil começou a parar.  Sua dimensão e as características que adquiriu encurtaram sua duração. A Justiça do Trabalho apressou seu julgamento e, no dia seguinte, o Banco do Brasil cedeu.

A dimensão da greve não tem relação apenas com o número de dias parados. Afinal, em 1951, os bancários haviam paralisado os bancos por 69 dias. Está relacionada com a abrangência nacional de uma greve de massa, unitária, com ampla adesão e apoio da opinião pública. Entraram em greve contínuos, escriturários, caixas, contadores e gerentes, jovens e trabalhadores de todas as idades. Todos, unidos e animados, compareceram e deram vida às assembleias, passeatas e atos públicos. As atividades eram uma verdadeira festa. A juventude brilhava, criava, inventava e revelava quão grande era a vontade de se expressar.

Em sua dimensão cabe considerar as conquistas econômicas, mas também a vitória política e os impactos que promoveu no movimento sindical. A greve mobilizou uma legião de ativistas sindicais, que tomaram em suas mãos a formação de oposições  nos sindicatos dirigidos por dirigentes acomodados à estrutura sindical atrelada ao Estado. Quebrou o processo de negociação coletiva regionalizado, em datas-base distintas, impulsionando a unificação e sua nacionalização, o que se consolidou seis anos depois, com o Comando Nacional de Negociação e a assinatura da primeira Convenção Coletiva Nacional dos bancários, em 1991.

A estratégia adotada na campanha e na greve considerou as experiências assimiladas nas greves bancárias anteriores, decretadas a partir de 1978, quando teve início o chamado novo sindicalismo. Em 1978, os bancários paulistas aprenderam que não era possível reproduzir nos bancos o estilo de greve “braços cruzados, máquinas paradas”, usado pelos metalúrgicos naquele ano. Em 1979, que a paralisação deveria ser nacional e obter a adesão também dos bancários que exerciam cargos de chefia; que os piquetes deveriam ser organizados de forma a evitar intervenções policiais agressivas, que naquele ano resultou em um quebra-quebra de grandes dimensões na região central de São Paulo. Que greve bancária precisaria ter apoio da população, principal afetada com a paralisação dos bancos, pois à época ainda era necessário ir a agências para sacar, pagar, transferir e depositar, pois a automação ainda não assegurava as comodidades atuais.

A situação política vinha evoluindo de forma contraditória. A vitória do PMDB nas eleições de 1982 arranhou a legitimidade da ditadura. Em 1983, milhares de delegados sindicais, do campo e das cidades, se reuniram e fundaram a Central Única dos Trabalhadores – CUT, oportunidade em que avançamos na articulação com os movimentos sociais. Estes avanços ocorriam apesar da repressão da ditadura, que havia decretado intervenção em vários sindicatos um mês antes da fundação da CUT, devido à greve geral de 21 de julho de 1983. Dentre eles, no Sindicato dos Bancários de São Paulo, que teve parte da direção presa e toda ela cassada.

Folha Bancária cobriu toda a greve. Nesse número, destaque para a passeata pelas Avenidas São João, Ipiranga, São Luiz, termianando na Praça Patriarca em São Paulo dia 28 de agosto. Crédito: Esdras Martins/MochilaPress

Para assegurar que o jornal diário do sindicato, a Folha Bancária, chegasse às mãos dos trabalhadores na base foi estruturado um sistema de distribuição em todos os bairros de São Paulo. Em cada aglomeração de agências, a Folha era posta em um local combinado e os ativistas bancários a pegavam e distribuíam nas agências próximas. Nestas microrregiões, o jornal foi um excelente instrumento de organização. Aproximou e ampliou o número de ativistas, que foram fundamentais na mobilização para as “Comissões de Esclarecimento” e na constituição dos mais de 60 Comandos de Microrregião, que escolhiam, juntamente com os grupos de banco, representantes para o Comando Geral de Greve. Um processo envolvente, uma organização que descentralizava, mas mantinha um comando central democrático e participativo, que chegou a contar com mais de 200 bancários na reta final da campanha.

Um ano antes da greve o Brasil foi palco da maior mobilização de massas de sua história, a campanha das Diretas Já, quando milhares de pessoas ocuparam as praças e avenidas Brasil afora. Ali as pessoas já começaram a tomar gosto pelas grandes mobilizações. As diretas não foram aprovadas e o fim do regime militar ocorreu com a eleição de Tancredo Neves para Presidente e Sarney para vice, em um Colégio Eleitoral. Tancredo faleceu e tomou posse José Sarney, mesmo assim eram grandes as expectativas em relação ao novo governo. Neste novo contexto, marcado pelo crescimento dos índices de inflação, a jovem democracia se viu diante da continuidade das greves pela reposição das perdas salariais.

A intervenção militar no Sindicato de São Paulo foi suspensa nos últimos dias da ditadura, em dezembro de 1984. A diretoria cassada organizou uma chapa unitária e reconquistou o Sindicato, que passou a ser presidido por Luis Gushiken, a partir de março de 1985. Simultaneamente, a oposição cutista venceu as eleições no Sindicato dos Bancários do Rio de Janeiro, aumentando a força dos cutistas e sindicalistas autênticos, que já contavam, entre outros, com Olívio Dutra em Porto Alegre; e núcleos de oposição espalhados pelo Brasil.

Os bancários aderiram à campanha pelo reajuste trimestral dos salários e inovaram na comunicação e na agitação. Em resposta, os banqueiros concederam uma antecipação salarial de 25%, a ser compensada nas negociações de setembro. Neste contexto, os dirigentes sindicais cutistas e autênticos, a partir do Sindicato de São Paulo, iniciaram intenso processo de articulação política para viabilizar um calendário de organização e de lutas unificadas, buscando a unidade pela base, indo muito além das articulações nas cúpulas sindicais.

Estas articulações resultaram em um encontro nacional, realizado no Rio de Janeiro, no Hotel Glória, entre 6 e 8 de junho de 1985, quando a estratégia e o calendário de campanha foram aprovados. A estratégia sindical definida era de que as circunstâncias exigiam uma campanha salarial nacional e unitária, sustentada em uma intensa agenda de assembleias, atos, eventos organizativos e passeatas, a exemplo do movimento das diretas. Este calendário já deveria contemplar uma data indicativa de paralisação para depois da data-base (1o de setembro) e a definição de assembleias simultâneas em todo o Brasil no dia 10 de setembro, com possibilidade de greve a partir de 11.

A ampla divulgação deste calendário possibilitou que os bancários pudessem pressionar as direções sindicais acomodadas em todo o país para colocar em prática o plano de mobilização. Em sua concepção estava clara a pretensão de forçar a unidade, vencer eventuais resistências, conquistar a opinião pública e seguimentos da categoria pouco afeitos a paralisações.  Os clientes foram avisados com antecedência para que pudessem sacar e realizar suas atividades bancárias previamente. A reivindicação de incorporação dos 25% antecipados era de fácil assimilação pela categoria e pela população.

Em agosto de 1985 a inflação do mês alcançou 14% e os lucros dos bancos foram extraordinários, revelando o quanto os banqueiros estavam enriquecendo às custas de seus clientes e do trabalho dos bancários. As assembleias, atos e assembleias foram crescendo e se espalhando pelo país. Nos sindicatos dirigidos por dirigentes acomodados, os bancários de bancos públicos pressionavam e faziam os eventos acontecer. A greve como último recurso foi assimilada por todos os segmentos da categoria, demonstrando que a intransigência era dos banqueiros.

Comissão de Esclarecimento no primeiro dia de greve na Avenida Paulista em São Paulo. Crédito: Esdras Martins/MochilaPress

A crescente participação nas atividades ia aumentando a confiança da categoria no movimento e atraindo de contínuo a gerente. Passeatas imensas, como as realizadas em São Paulo, com mais de 50 mil pessoas, se espalharam pelo país. As de 28 de agosto, que contaram com a participação de milhares de pessoas anunciaram o caráter de massas que teria a greve. Em São Paulo, a juventude organizou uma bateria de abertura com motos, que ocuparam e iam organizando o trânsito nas avenidas São João, Ipiranga e São Luiz. Os banqueiros mantinham sua intransigência e foi ficando evidente que a greve era justa e inevitável.

Ao invés de piquetes, foram organizadas “Comissões de Esclarecimentos”, como forma de explicitar o caráter pacífico do movimento. Postes e muros foram inundados de cartazes que diziam “Se não sacou, é bom sacar, os bancários vão parar”. Esta mensagem foi essencial, pois na época nem os caixas nem as formas de pagamento eletrônicos estavam disseminadas. O impacto foi extraordinário e os saques antes da greve serviram como instrumento de pressão e conquistaram a opinião pública. A ampla e prévia divulgação da data da greve para dez dias após a data-base, depois do pagamento dos salários dos bancários e de todos os trabalhadores, foi acertada.


A dimensão, a unidade, a ampla adesão e o apoio da população naquela conjuntura de redemocratização e lutas por direitos explicam porque a greve nacional dos bancários de 1985 foi um sucesso e alcançou seus objetivos em apenas dois dias de paralisação. A categoria bancária assimilou esta extraordinária experiência e as reproduziu em diferentes escalas nos anos seguintes.


Nos anos seguintes, os ativistas que se revelaram na greve disputaram e passaram a ocupar as direções sindicais em diferentes lugares do país. A greve teve um impacto positivo na sociedade em geral e reforçou a ideia dos bancários como parte fundamental da classe trabalhadora, colocando-os na vanguarda do movimento sindical ao lado dos metalúrgicos. Os sindicatos dos bancários em São Paulo e em várias cidades do país consolidaram-se como centros políticos e culturais fundamentais na vida urbana.  A greve de 1985 ainda projetou lideranças na sociedade civil e na política, como Gushiken (SP), Olívio Dutra (RS) e Augusto Carvalho (DF), eleitos para a Assembleia Nacional Constituinte no ano seguinte. Diversos bancários foram eleitos para as Assembleias Constituintes nos estados.

O Departamento Nacional dos Bancários da CUT foi transformado em Confederação Nacional dos Bancários, posteriormente consolidada como Confederação Nacional dos Trabalhadores no Sistema Financeiro (CONTRAF). A primeira Convenção Coletiva Nacional foi assinada seis anos depois, em 1991, e a CONTRAF foi se tornando hegemônica no movimento sindical bancário.

Apesar das profundas mudanças no setor financeiro e na categoria bancária, a tradição de luta sindical que a greve de 1985 representou ainda inspira as novas gerações, destacadamente o planejamento, a organização e a identificação das vulnerabilidades da classe patronal.  1985 não vai se repetir daquela forma, mas numa fase de ainda maior financeirização do capitalismo, a organização dos trabalhadores bancários e suas lutas tem se mostrado cada vez mais importantes para a defesa da democracia e de um projeto de desenvolvimento ambientalmente sustentável e com distribuição de renda.

Já se passaram quarenta anos e tanto os que viveram como a geração atual de trabalhadores do sistema financeiro tem muito a comemorar, pois foi a maior greve nacional do país, tanto pela sua dimensão e resultados extraordinários que produziu, quanto pelo sindicalismo de massa e democrático que gerou, o que deve servir de exemplo para as gerações atuais e futuras.

As comissões de esclarecimento adquiriam várias formas, como esta manifestação dos bancários sentados, centro de São Paulo. Crédito: Esdras Martins/MochilaPress


PARA SABER MAIS:

Sindicato dos Bancários-SP/GEP-URPLAN. Paramos São Paulo, sacou? A participação dos bancários paulistas na greve que parou o Brasil em 1985.

Sader, Eder. Quando novos personagens entram em cena: experiências, falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo, 1970-80. São Paulo: Paz e Terra, 1991

Oliveira, Carlindo Rodrigues de. Greve e negociação coletiva no Brasil (1978-2018): Grandes ciclos, configurações diversas. Livro 2. São Paulo: Dialética, 2022.

Jinkings, Nise. Trabalho e resistência na “fonte misteriosa”: os bancários no mundo da eletrônica e do dinheiro. Campinas, SP: Editora Unicamp; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002.

Blass, Leila Maria da Silva. Estamos em Greve! Imagens, gestos e palavras do movimento bancário, 1985. São Paulo: Editora Hucitec e Sindicato dos Bancários de São Paulo, 1992


Crédito da imagem de capa: Assembleia Geral na praça da Sé aprova a deflagração da greve. Crédito: Esdras Martins/MochilaPress

LdC #54: Círculos operários: a Igreja Católica e o mundo do trabalho no Brasil, por Deivison Amaral

No 54° episódio de Livros de Classe, Deivison Amaral professor da PUC-Rio, apresenta o livro Círculos operários: a igreja católica e o mundo do trabalho no Brasil, de Jessie Jane Vieira. A obra aborda a relação entre Igreja Católica e Estado no Brasil entre 1930 e 1964, destacando seu papel nos mundos do trabalho por meio dos círculos operários.

Livros de Classe

Os estudantes de graduação são desafiados constantemente a elaborar uma percepção analítica sobre os diversos campos da história. Nossa série Livros de Classe procura refletir justamente sobre esse processo de formação, trazendo obras que são emblemáticas para professores/as, pesquisadores/as e atores sociais ligados à história do trabalho. Em cada episódio, um/a especialista apresenta um livro de impacto em sua trajetória, assim como a importância da obra para a história social do trabalho. Em um formato dinâmico, com vídeos de curtíssima duração, procuramos conectar estudantes a pessoas que hoje são referências nos mais diversos temas, períodos e locais nos mundos do trabalho, construindo, junto com os convidados, um mosaico de clássicos do campo.

A seção Livros de Classe é coordenada por Ana Clara Tavares.