LdC #50: Rio de Janeiro Operário, por Isabelle Pires

No 50° episódio de Livros de Classe, Isabelle Pires, pós-doutoranda na Universidade Federal do Rio de Janeiro, apresenta o livro “Rio de Janeiro operário: natureza do estado, conjuntura econômica, condições de vida e consciência de classe”, coordendo por Eulália Lobo. A coletânea foi publicada em 1992 e tece uma análise sobre as relações entre o movimento operário e o Estado entre as décadas de 1930 e 1970 no Rio de Janeiro.

Livros de Classe

Os estudantes de graduação são desafiados constantemente a elaborar uma percepção analítica sobre os diversos campos da história. Nossa série Livros de Classe procura refletir justamente sobre esse processo de formação, trazendo obras que são emblemáticas para professores/as, pesquisadores/as e atores sociais ligados à história do trabalho. Em cada episódio, um/a especialista apresenta um livro de impacto em sua trajetória, assim como a importância da obra para a história social do trabalho. Em um formato dinâmico, com vídeos de curtíssima duração, procuramos conectar estudantes a pessoas que hoje são referências nos mais diversos temas, períodos e locais nos mundos do trabalho, construindo, junto com os convidados, um mosaico de clássicos do campo.

A seção Livros de Classe é coordenada por Ana Clara Tavares.

Vale Mais #28: O poder e a escravidão, por Bruna Portella e Felipe Azevedo



Está no ar o primeiro episódio da nova temporada do podcast Vale Mais, do LEHMT-UFRJ!

Nesta temporada, convidamos pesquisadoras e pesquisadores para discutir projetos de história pública, livros e teses recentes que aprofundam debates interdisciplinares sobre os mundos do trabalho.

No episódio de estreia, conversamos com Bruna Portella e Felipe Azevedo, professores da PUC-Rio e coordenadores do projeto O Poder e a Escravidão. A iniciativa investiga o papel do Poder Legislativo na sustentação da escravidão no Brasil, propondo uma reflexão crítica sobre a memória oficial e as estruturas de poder que perpetuaram esse sistema — com base na criação de um banco de dados inédito e uma plataforma de divulgação científica.

Ouça, compartilhe e acompanhe os próximos episódios!

Entrevistadores: Ana Clara Tavares, Isabelle Pires, Josemberg Araújo, Larissa Farias e Thompson Clímaco
Roteiro: Ana Clara Tavares, Isabelle Pires, Larissa Farias e Thompson Clímaco
Produção: Ana Clara Tavares e Larissa Farias
Edição: Josemberg Araújo e Thompson Clímaco
Diretor da série: Thompson Clímaco
Coordenadora geral do Vale Mais: Larissa Farias

Vale Mais #28: O poder e a escravidão, por Bruna Portella e Felipe Azevedo Vale Mais

Está no ar o primeiro episódio da nova temporada do podcast Vale Mais, do LEHMT-UFRJ! Nesta temporada, convidamos pesquisadoras e pesquisadores para discutir projetos de história pública, livros e teses recentes que aprofundam debates interdisciplinares sobre os mundos do trabalho. No episódio de estreia, conversamos com Bruna Portella e Felipe Azevedo, professores da PUC-Rio e coordenadores do projeto "O Poder e a Escravidão". A iniciativa investiga o papel do Poder Legislativo na sustentação da escravidão no Brasil, propondo uma reflexão crítica sobre a memória oficial e as estruturas de poder que perpetuaram esse sistema — com base na criação de um banco de dados inédito e uma plataforma de divulgação científica. Ouça, compartilhe e acompanhe os próximos episódios! Entrevistadores: Ana Clara Tavares, Isabelle Pires, Josemberg Araújo, Larissa Farias e Thompson Clímaco Roteiro: Ana Clara Tavares, Isabelle Pires, Larissa Farias e Thompson Clímaco Produção: Ana Clara Tavares e Larissa Farias Edição: Josemberg Araújo e Thompson Clímaco Diretor da série: Thompson Clímaco Coordenadora geral do Vale Mais: Larissa Farias O Poder e a Escravidão: https://www.opodereaescravidao.com/
  1. Vale Mais #28: O poder e a escravidão, por Bruna Portella e Felipe Azevedo
  2. Vale a Dica #14: Orgulho e Esperança, de Matthew Warchus
  3. Vale a Dica #13: 2 de Julho: a Retomada, de Spency Pimentel e Joana Moncau
  4. Vale a Dica #12: SAL, idealizado e dirigido por Adassa Martins
  5. Vale a Dica #11: O futuro das profissões, de curadoria de André Couto, Maria Carla Corrochano e Paulo Fontes

Contribuição Especial #34: As greves que abalaram o Estado Novo: São Paulo, maio de 1945




No dia seguinte à rendição alemã, em 8 de maio de 1945, um grupo de operários da fábrica Termocerâmica, localizada no bairro da Penha, em São Paulo, exigiu dos diretores três dias de folga remunerada como recompensa e celebração pela vitória dos Aliados. O episódio, que pode soar completamente inusitado e anedótico, contudo, insere-se em um contexto de crescente agitação trabalhista, que, alguns dias depois, se transformaria no maior movimento grevista já registrado até então na cidade de São Paulo e seus subúrbios. Entre os dias 14 e 28 de maio de 1945, foram deflagradas greves em 341 empresas, com a participação de cerca de 230 mil grevistas. Essas mobilizações, cujos desdobramentos levaram a uma nova explosão de paralisações entre dezembro de 1945 e fevereiro de 1946, são fundamentais para compreendermos como os trabalhadores de São Paulo contribuíram para ampliar o sentido da “democratização – processo que, até então, encontrava-se sequestrado por diversos grupos das classes dominantes que estavam na oposição ou mesmo na base de apoio ao Estado Novo (1937-1945).

As greves de 1945 não são completas desconhecidas, mas seu redimensionamento pela pesquisa histórica tem uma trajetória interessante. A princípio, alguns estudos, balizados pela perspectiva do “populismo”, contrastaram as poucas greves registradas naquele ano com as ocorridas em 1946 para defender a tese de que a aliança entre o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e Getúlio Vargas teria servido para conter as mobilizações operárias no tumultuado ano de 1945. Com a queda do ditador, em outubro daquele ano, nas palavras de Francisco Weffort, teria se aberto o dique que continha as reivindicações acumuladas pelos trabalhadores e levado às mobilizações de 1946. No fim dos anos 1970, alguns trabalhos, como os de Edgard Carone e Ricardo Maranhão, questionaram a existência desse mecanismo de contenção, indicando algum tipo de agitação no período, ainda que as greves de 1946 tivessem maior importância nesse contexto. Nos anos 1980 e 1990, mesmo Silvio Alem Frank e Hélio da Costa – autores que voltaram a se debruçar sobre aquela conjuntura e deram maior relevância às greves de maio de 1945 (Alem chega a falar de um “clima de greve geral”)- ainda apontavam como crucial na conjuntura da democratização o pico de mobilizações em fevereiro de 1946. Contudo, a pesquisa nos arquivos da polícia política de São Paulo (DEOPS-SP) sobre o período nos permitiu redimensionar a importância do movimento de maio de 1945 e repensar o sentido das greves de 1946.

Mesmo escrutinando as mais distintas fontes, como a imprensa comercial e de esquerda, relatórios diplomáticos, boletins de organizações patronais, além de depoimento de militantes e sindicalistas, os autores que se debruçaram sobre o período sempre destacaram as dificuldades em se trabalhar com estas greves, principalmente em decorrência das características desses movimentos e do contexto político específico em que ocorreram. Organizadas a partir dos locais de trabalho, à revelia dos sindicatos e da direção do PCB1 – principal organização política que buscava organizar e representar os interesses dos trabalhadores urbanos e que naquele momento defendia a contenção das mobilizações em nome da política de “União Nacional” -, as greves de maio de 1945 ocorreram em um momento em que, apesar do processo de abertura política ter atingido um ponto de não retorno, alguns dos aspectos mais repressivos da ditadura ainda existiam. Em relação à grande imprensa comercial, hegemonizada pelos grupos empresariais e liberais-conservadores, à natural antipatia ao movimento devia-se somar a ação do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Se a censura não conseguia mais conter os próceres do liberalismo conservador, como José Américo, Prado Kelly e Eduardo Gomes, ela era efetiva em relação ao movimento dos trabalhadores. Em uma nota publicada no The New York Times, em 12 de abril de 1945, afirmava-se que “(…) as greves têm sido usadas como justificativa para a censura parcial a qual a imprensa de São Paulo está submetida”.2 Ainda assim, movimentos como o dos ferroviários de Campinas e dos trabalhadores da Companhia Docas de Santos, iniciados em março e abril daquele ano, chegaram a ser noticiados.

Ao incipiente e reduzido espaço de expressão que a abertura política concedeu ao protesto operário correspondeu a abundante produção de material pelo DEOPS-SP sobre o tema. Foi a partir de uma extensa pesquisa realizada nos arquivos da polícia política de São Paulo que pudemos encontrar informações mais completas sobre essas mobilizações, cuja verdadeira dimensão e alcance tinham apenas se insinuado para a historiografia.

Talão de registro da prisão de Geraldo Cardoso dos Santos, no dia 21/05/1945 (Prontuário 57.155). Segundo o DEOPS, o operário foi preso por “Incitação de greve e obstar o ingresso de operários não grevistas” na Nadir Figueiredo, fábrica de vidros localizada no bairro do Belenzinho. A greve na Nadir Figueiredo ocorreu entre os dias 14 e 15 de maio, envolvendo 2.200 operários, segundo informações do DEOPS. Geraldo Cardoso foi um dos 508 presos por ocasião das greves de 1945 e 1946 que conseguimos identificar em levantamento feito nos prontuários do DEOPS.

Quando começou a onda de greves que varreu a São Paulo e seus subúrbios em maio de 1945? A resposta não é tão simples. Desde 1944, a polícia política passou a registrar no meio operário a difusão de uma mescla de sentimentos, uma combinação de mal humor com ansiedade. Foram registradas reclamações sobre salários e as péssimas condições de trabalho, mas também uma crescente expectativa em relação ao restabelecimento dos dispositivos da legislação trabalhista suspensos sob a justificativa do Estado de Guerra. A polícia também anotou algumas ações que extrapolaram a reclamação verbal, como pelo menos 12 ações de sabotagem e 8 greves.  Contudo, foi a partir de janeiro de 1945 que os relatórios policiais passaram a registrar a ocorrência cada vez mais frequente de paralisações na cidade de São Paulo e no interior do estado. Antes mesmo da explosão de maio, entre janeiro e abril, foram registradas pelo DEOPS 49 greves, envolvendo 39 mil grevistas (a título de comparação, Francisco Weffort, em seu Sindicatos e política, de 1972, havia registrado apenas 8 greves entre abril e outubro de 1945). Não é à toa que, em 10 de abril, em meio ao silêncio sobre as greves, uma “misteriosa” nota da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo apareceu na grande imprensa comercial, com o intuito de lembrar “(…) ao operário paulista que a greve é considerada nos termos da Constituição Federal e das Leis Trabalhistas como recurso anti-social”3.

Como dito acima, o primeiro movimento a ganhar maior relevância, chegando a furar as restrições impostas pela censura, ocorreu em março de 1945, na cidade de Campinas, envolvendo os trabalhadores das oficinas e estações das companhias ferroviárias Mogiana e Paulista. No entanto, foi em abril de 1945, na cidade de Santos, que teve início o movimento que iria arrebentar a onda de mobilizações.

A relação entre a greve dos doqueiros de Santos e a explosão das greves na capital pode ser inferida por três motivos. Em primeiro lugar, por uma questão cronológica. A paralisação na Companhia Docas se encerrou no dia 13 de maio, com a vitória dos trabalhadores. A partir do dia 14 de maio até o dia 18, na capital e em seus subúrbios, conforme o registro da polícia e do Departamento Nacional do Trabalho (DNT), 91 mil trabalhadores cruzaram os braços, paralisando 145 empresas. Entre os dias 19 e 22, enquanto parte das empresas voltavam ao trabalho, outras 196 fábricas e mais 138 mil entraram em greve, com os conflitos na capital e seus subúrbios refluindo apenas nos últimos dias daquele mês.

Na verdade, ainda em junho, o movimento continuaria reverberando, mas no interior. Nos dias 12 e 13 daquele mês, os trabalhadores de Ribeirão Preto desencadearam uma greve geral, marcada por episódios de saques e depredações, o que levou à ocupação da cidade por soldados do Exército. Em segundo lugar, o sucesso dos grevistas em Santos inspirou os trabalhadores à ação. Nas palavras do delegado do DEOPS, Theophilo Dias de Andrada Mesquita, em relatório apresentado no mês de junho de 1945, “São Paulo e seus subúrbios “(…) tiveram, imediatamente de arcar com a consequência da solução dada aos doqueiros”. Ainda segundo o delegado, os trabalhadores alegavam que “(…) entre o dissídio coletivo demorado e incerto, e a greve eficiente e rápida, o operariado deve pleitear suas reivindicações pelos mesmos meios que os doqueiros”. Por fim, o movimento no porto também forneceu a palavra de ordem que iria unificar as mobilizações. Como relata o delegado, os trabalhadores de São Paulo “Pedem 40% de aumento, como os doqueiros”.

Diário da Noite, 22/05/1945. Em destaque, o anúncio do aumento de 40% nos salários dos trabalhadores da indústria têxtil. Mesmo assim, as mobilizações continuaram até o dia 28, como pode-se ver na notícia sobre os conflitos ocorridos na porta da IRFM no bairro da Água Branca. 

As greves afetaram das grandes empresas até as pequenas fábricas e oficinas. Apesar de 80% dos grevistas pertencerem a grandes e médios estabelecimentos, com mais de 500 operários, 55% das paralisações ocorreram em empresas com menos de 500 operários. Entre as grandes fábricas e empresas paralisadas figuram estabelecimentos vinculados a grandes corporações nacionais, como as Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo (IRFM), a  Sociedade Anônima Moinho Santista (SAMSA)  e o grupo Jafet; antigas e tradicionais fábricas, como a Companhia Antarctica Paulista, o Cotonifício Rodolfo Crespi e a Cerâmica São Caetano; multinacionais, como os frigoríficos Swift e Wilson, a General Motors, a Gessy Lever, a Anderson, Clayton and Company, a Rhodia, a Johnson & Johnson e as de pneumáticos Goodyear e Pirelli; além de alguns daqueles frutos mais recentes da industrialização por substituição de importações, como a gigante Companhia Nitro-Química Brasileira.

Quando lidas à contrapelo – limpando o terreno dos preconceitos de classe e do anticomunismo fanático que marcavam o olhar das autoridades -, as fontes policiais também nos fornecem detalhes preciosos sobre a dinâmica das mobilizações e o repertório de táticas mobilizadas pelos trabalhadores. Por exemplo, na Fiação, Tecelagem e Estamparia Ipiranga Jafet, localizada na Rua Silva Bueno, no bairro do Ipiranga, o agente do DEOPS descreveu a negociação travada entre trabalhadores em greve e a direção da empresa. Segundo o relato, a certa altura da reunião entre os diretores e a comissão, um operário levantou-se e pediu a palavra. Em seguida, tirou do bolso o balancete da empresa publicado no Diário Oficial e leu a cifra relativa ao lucro líquido obtido pelo grupo Jafet no último período. “Era só o que tinha a dizer”, teria dito o operário, cuja declaração, segundo o agente, teria “explodido como uma bomba” na reunião.4 Outro agente do DEOPS, enviado à fábrica da Johnson & Johnson, na Avenida do Estado, no bairro da Mooca, relatou — com certa perplexidade — suspeitar que os trabalhadores do turno da noite, que haviam entrado em greve na madrugada anterior, paralisando as atividades da fábrica, estivessem, talvez, organizados com os operários do turno seguinte.5

As greves de maio de 1945 foram relativamente vitoriosas. Surgidas a partir dos locais de trabalho, à revelia dos sindicatos e sem o respaldo das direções políticas de esquerda, as mobilizações lograram se transformar em vitórias para muitas categorias de trabalhadores, ao arrancar das patronais negociações coletivas. Foram contemplados nesses acordos – assinados entre os sindicatos e as patronais, e mediados pelo Interventor Fernando de Sousa Costa – trabalhadores têxteis e metalúrgicos (as duas categorias foram responsáveis por 47% das greves e por 34% dos grevistas), gráficos, bancários, ferroviários, comerciários, químicos, dos frigoríficos e do papel e papelão. Por fim, deve-se destacar que os aumentos obtidos foram responsáveis por ampliar substancialmente a efetiva aplicação do salário-mínimo industrial em São Paulo: enquanto, em 1944, 37% dos trabalhadores nas indústrias de São Paulo e Santo André recebiam até um salário-mínimo, em 1946 esse percentual caiu para 11%.

No entanto, as greves de maio não podem ser entendidas apenas como um fenômeno exclusivamente paulista, nem como um conflito de ordem econômica ou distributiva – como alguns preferem chamar. Em primeiro lugar, como já havia registrado Edgard Carone, ocorreram importantes mobilizações de trabalhadores em outras regiões do país, como no Rio Grande do Sul, em abril, e no Rio de Janeiro, em agosto e setembro. Em segundo lugar, deve-se destacar que os grevistas tiveram um papel decisivo no processo de abertura política ao derrubar, na prática, a legislação antigreve imposta pelo Estado Novo. O movimento foi tão expressivo que, diante de uma nova onda de greves com potencial de se espalhar e se articular por todo o país – como efetivamente ocorreu na greve na Light e na dos bancários-, o presidente recém-eleito, Eurico Gaspar Dutra, decidiu editar o Decreto-Lei nº 9.070, em março de 1946. A nova legislação, conhecida como “Lei Antigreve”, só não foi mais discricionária do que a própria Constituição de 1937. A onda repressiva completou-se em 1947, quando o Ministério do Trabalho interveio em mais de 400 sindicatos, a recém-criada Confederação Geral dos Trabalhadores foi colocada na ilegalidade, e o Tribunal Superior Eleitoral cassou o PCB.

Assim, no contexto do fim da Segunda Guerra Mundial e da desagregação da ditadura do Estado Novo, as greves de maio e o renascimento do movimento sindical articularam-se a uma série de outras manifestações – como o crescimento do PCB e a criação dos Comitês Democráticos, o surgimento do movimento Queremista e a convergência desses movimentos na luta em defesa da Constituinte –, compondo o que o historiador David Ricardo de Sousa Ribeiro identificou como “uma terceira via para a democracia” e que “não era necessariamente pelo alto”. Um caminho cujo horizonte apontava para “(…) concepções de democracia diferentes daquelas propostas pelas elites”, em que os trabalhadores vislumbraram a possibilidade de ingressar como sujeitos autônomos na cena política, além de garantir e ampliar seus direitos políticos e sociais. A altivez com que os trabalhadores da Termocerâmica ou da Jafet interpelaram seus patrões, na verdade, expressava muito mais do que a simples euforia pelo fim da guerra ou o mal-estar causado pela intensificação da exploração do trabalho.

Ao fim, mesmo que esse caminho tenha sido frustrado – principalmente a partir da onda repressiva desencadeada pelo governo Dutra, prolongada, em maior ou menor grau, pelos governos seguintes até a inflexão representada pelo golpe de 1964 -, é preciso salientar duas consequências dessas mobilizações. Em primeiro lugar, a irrupção definitiva da classe trabalhadora no cenário político nacional, como sujeito de primeira importância. Em segundo lugar, como desdobramento inseparável da primeira, se algo houve de democrático na República de 1946, isso se deveu, em grande parte, ao fato de ela ter sido temperada na sua gestação e ao longo de sua história, pelas ações das trabalhadoras e trabalhadores brasileiros.

Greves e grevistas em São Paulo e seus subúrbios, 1945-1946. Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de Dados de Greves (BDG). APESP. “Planta da Cidade de São Paulo e Municípios Circunvizinhos”, sem autor. São Paulo, 1943.



PARA SABER MAIS:

FERREIRA, Fernando Sarti. A onda de greves em São Paulo, 1945-1946: uma abordagem quantitativa. Revista de História, São Paulo, n. 183, p. 1–31, 2024

ALEM, Sílvio Frank, Os trabalhadores e a redemocratização. Campinas: Unicamp, 1981. Dissertação de Mestrado

COSTA, Hélio da. Em busca da memória – comissão de fábrica, partido e sindicato no pós-guerra, São Paulo: Editora Página Aberta, 1995

NEGRO, Antonio L. e FONTES, Paulo, “Trabalhadores em São Paulo: ainda um caso de polícia. O acervo do DEOPS paulista e o movimento sindical”. In: Maria Aparecida de Aquino et al. (orgs.), No coração das trevas: o DEOPS/SP visto por dentro, São Paulo: Arquivo do Estado/Imprensa Oficial, 2001, pp. 157-179

RIBEIRO, David Ricardo Sousa, A transição para a democracia no Brasil (1943-1956) – O PCB e a construção de um caminho alternativo. São Paulo: Alameda, 2023


Crédito da imagem de capa: A Gazeta, 19/05/1945. Em meio à explosão das greves, autoridades e a FIESP anunciam a decisão de promover o aumento generalizado de salários. Os grevistas venceram.

LMT #136: Haymarket Square, Chicago (US) – Leon Fink




A Praça Haymarket, em Chicago, bombardeada em 4 de maio de 1886, e os desdobramentos posteriores a esse evento, destaca-se como um dos conflitos fundamentais da Era Dourada dos Estados Unidos. A Era Dourada geralmente se refere aos anos entre o fim da Reconstrução, durante a década de 1870, até o final do século XIX, anos que testemunharam um grande desenvolvimento econômico, urbanização e crescimento da imigração. O período também viu um aumento da polarização social, expressa pelo crescimento da pobreza e das enormes riquezas, e também pela amargas e, frequentemente violentas, greves do período. Haymarket, como o evento é conhecido, não apenas refletiu o acúmulo de tensões sociais, mas também teve repercussões que minaram o poder dos trabalhadores organizados na sociedade americana naquele período.

O “evento” em si se refere ao lançamento de uma bomba contra um destacamento policial em Chicago, que tentava separar um protesto liderado por anarquistas alemães, como parte de uma já sangrenta greve que reivindicava oito-horas de trabalho, e uniu o diversificado movimento operário em toda a cidade. Haymarket era um centro comercial pulsante, próximo a bairros de imigrantes (alemães, tchecos, irlandeses), e não muito longe do corredor industrial de siderurgia e ferrovia que impulsionou o crescimento explosivo da cidade durante a Era Dourada. Por anos, os bem-organizados trabalhadores operários de Chicago fizeram pressão por menores jornadas de trabalho e pelo reconhecimento de seus sindicatos pelos grandes empregadores da cidade. As demandas – originalmente enunciadas em uma lei estadual não aplicada de 1867 – foram acolhidas tanto pelo movimento social de amplo foco Knights of Labor (Cavaleiros do Trabalho), quanto pelas fileiras mais coesas da recém-formada American Federation of Labor – AFL (Federação Americana do Trabalho), que convocou greves massivas a partir do 1º de maio de 1886.

Em Chicago, assim como em outros lugares, conflitos e confrontos ocorreram imediatamente em frente aos portões das fábricas. Quando a polícia de Chicago agrediu grevistas desarmados, matando quatro trabalhadores em frente a empresa McCormick Reaper Works em 3 de maio, líderes anarquistas representando a International Working People’s Association (Associação Internacional de Trabalhadores) ou “Black International” (“Internacional Negra”) – efetivamente a ala radical do movimento operário local – convocaram um protesto para o dia seguinte na praça Haymarket. O líder anarquista August Spies, discursando no topo de uma carroça de feno, terminou com um apelo pelas vítimas da McCormick Works:

“O que eles fizeram? A polícia disse para vocês que eles eram uma multidão perigosa, armada até os dentes. O fato é que, como crianças ignorantes, eles se renderam ao esporte inofensivo de atirar pedras no matadouro McCormick. Eles pagaram o preço dessa loucura com o próprio sangue. A lição que tiro desse acontecimento é que homens trabalhadores devem se armar para autodefesa, para que assim estejam aptos a lidar com os mercenários do governo, que servem aos patrões”.

Enquanto Spies concluía suas observações, o Inspetor John Bonfield, acampado em um quartel da polícia a apenas um quarteirão de distância, ordenou a seus homens que dispersassem a multidão. Sem que muitos dos organizadores do protesto soubessem – incluindo Spies e seu companheiro anarquista Albert Parsons, que descansava em um bar de trabalhadores próximo – um ou mais participantes carregavam uma bomba de dinamite (preparada em antecipação a um futuro ataque policial). Enquanto os oficiais se movimentavam para reprimir o protesto, a bomba foi jogada, matando sete policiais. Rapidamente o que se seguiu foi uma lei marcial, incluindo uma onda de prisões, fechamento da imprensa operária e mandados de prisão de lideranças anarquistas por toda Chicago. Um julgamento apressado condenou sete, de oito acusados de homicídio, com a pena de morte. O oitavo, Oscar Neebe, foi sentenciado a quinze anos de prisão, embora ele não estivesse presente, nem soubesse do processo. Um dos acusados cometeu suicídio, quatro foram enforcados em 11 de novembro de 1887 e o governador republicano converteu a pena capital de dois em prisão perpétua. Em 1893, o recém-eleito governador democrata reformista John Peter perdoou e libertou os três acusados restantes, sob alegação de que o estado nunca apresentou evidenciais concretas da participação dos acusados no bombardeamento.

Politicamente o pânico gerado pela bomba teve um impacto devastador no movimento operário de Chicago, assim como em outros locais. Enquanto o líder dos Knights of Labor, Terence Powderly, condenava os anarquistas tão duramente quanto a imprensa patronal, esse distanciamento não poupou seus companheiros da desmoralização generalizada oriunda da reação antitrabalhista da burguesia de todo país. Dentro de um ano, tanto os Knights of Labor quanto o movimento pela jornada de oito horas entraram em um declínio irreversível, enquanto o anarquismo, por vezes ainda demonstrando alguma força (como no caso do assassinato do presidente dos Estados Unidos, William McKingley, pelo ativista anarquista Leon Czolgosz, em 1901), foi escanteado para as margens da cultura política estadunidense. Das facções pró-trabalhadores, apenas a AFL, com seus objetivos específicos de defender direitos para trabalhares qualificados, emergiu do período em uma posição mais forte do que começou. Enquanto isso, durante anos fervilhou a controvérsia sobre quem era o verdadeiro autor do bombardeamento.

 O que permaneceu foi uma batalha pela memória de Haymarket. Por mais de um século, simpatizantes dos trabalhadores e seus antagonistas discutiram sobre as lições de Haymarket. Foi uma resistência heróica dos mártires operários contra a violência policial e empresarial? Um necessário posicionamento pela lei e ordem? Ou um sinal dos “velhos dias ruins” das relações entre capital e trabalho que deram lugar a uma ordem social mais esperançosa? Internacionalmente, a ascensão socialista e mais tarde de movimentos trabalhistas liderados por comunistas transformou as tradicionais celebrações do Primeiro de Maio nas comemorações do Dia Internacional dos Trabalhadores ainda em 1890.


Ao redor do mundo, o “Primeiro de maio” serviu como um grito de guerra para a mobilização e militância dos trabalhadores. Na Espanha, França e Itália – e talvez na maior parte da América Latina – federações sindicais socialistas e revolucionárias literalmente carregaram a bandeira da memória de Haymarket. Por exemplo, no México, o 1º de maio é um feriado nacional e popularmente conhecido como “Dia dos Mártires de Chicago”. 


A própria cidade de Chicago lutou por muito tempo para chegar a um consenso sobre os eventos de Haymarket. O primeiro memorial público no local, em 1889, mencionava apenas as vítimas policiais. Em 1990 o memorial foi declarado um risco para o trânsito e, após ser movido diversas vezes, foi explodido por manifestantes contrários à Guerra do Vietnã em 1969, até finalmente ser realojado para o pátio da Academia de Polícia. Enquanto isso, o esforço incessante de Lucy Parsons, viúva de Albert e ela mesma uma militante anarquista declarada (e futura membro fundadora da organização operária Industrial Workers of the World) foi coroado pela inauguração do Monumento aos Mártires de Haymarket, feito com fundos privados, no cemitério de Forest Home, coincidindo com a abertura da Feira Mundial de Chicago, em 1893. No entanto, a busca por um símbolo em comum para a cultura cívica da cidade continuou. Finalmente, em 2004, o prefeito de Chicago Richard M. Daley, herdeiro de um dos mais famosos esquemas clientelistas urbanos na história norte-americana, presidiu as instalações do Memorial Haymarket no local original. Projetada pela artista Mary Brogger e dedicada explicitamente a liberdade de expressão, e não aos direitos dos trabalhadores – ela ganhou o apoio tanto da federação sindical da cidade, quanto da Ordem Fraternal da Polícia – a escultura de bronze evoca imagens mais abstratas da busca por justiça social. Como diz uma placa no local: “Chegará o dia em que nosso silêncio será mais poderoso do que as vozes que vocês sufocam hoje”. Ao contrário do restante do mundo industrializado, no entanto, trabalhadores norte-americanos e os seus representantes (assim como todas as instituições públicas) optaram há muito tempo por reservar a primeira segunda-feira de setembro – comemorada pelas federações sindicais locais desde 1880 – e não o 1º de maio, como o Dia Nacional do Trabalho nos EUA. É um ato revelador do excepcionalismo americano.

Atual monumento em  Haymarket Square, iChicago, inaugurado em 2004.


Para saber mais:

  • James Green, Death in the Haymarket (New York: Pantheon, 2006)
  • Laurajane Smith, Paul Shakel, and Gary Campbell,  Heritage, Labour, and the Working Classes (London: Routledge, 2012)
  • Paul Avrich, The Haymarket Tragedy (Princeton, NJ: Princeton University Press, 1984)

Crédito da imagem de capa: Ilustração sobre os acontecimentos de 4 de maio de 1886 na Haymarket Square  de autoria de T. de Thulstrup e publicada no  Harper’s Weekly, v. 30, e15 de maio de 1886.


Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Mensalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

Chão de Escola #48: Como fazer uma sequência didática para o Chão de Escola


Claudiane Torres da Silva (Professora de História da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro, Coordenadora da equipe de História do Pré-Vestibular Social Cecierj e Coordenadora do Chão de Escola LEHMT/UFRJ)


Apresentação da atividade

Segmento: Professor de História

Unidade temática: Ensino de História; História Pública.

Objetivos gerais:

– Desenvolver técnicas para produção de sequências didáticas para o Chão de Escola;
– Apresentar produção técnica e acadêmica de sequências didáticas no ensino de História relacionados aos mundos do trabalho.

Atividade

Caro/a professor/a, se você pesquisou temas dentro do campo de conhecimento da História Social do Trabalho ou recebeu um convite para participar das sequências didáticas do Chão de Escola, poderá colaborar com a seção dentro do site do Laboratório de Estudos e História dos Mundos do Trabalho, o LEHMT (https://lehmt.org/category/chao-de-escola/).

Para facilitar sua participação, estamos reunindo algumas orientações para publicação de sequências didáticas do Chão de Escola. E como parte do processo de submissão, os autores são obrigados a verificar a conformidade da submissão em relação a todos os itens listados a seguir. As submissões que não estiverem de acordo com as normas serão revisadas e enviadas aos autores para possíveis alterações.

A escolha do tema e do título da sequência didática: a contribuição deve abordar temas de História relacionados aos Mundos do Trabalho, através de atividades voltadas para a Educação Básica que dialoguem com a historiografia atualizada.

O encaminhamento da sequência didática: as sequências didáticas deverão ser encaminhadas por e-mail para um dos coordenadores do Chão da Escola (ver os e-mails no site).

O formato do texto da sequência didática: os arquivos para submissão deverão estar em formato Microsoft Word (.doc), dentro do modelo de template disponibilizado em anexo, utilizando fonte tipo Times New Romam 12, espaçamento 1,5 e apresentar conteúdo entre 5 a 15 páginas.

A redação do texto da sequência didática: deverá ser redigido em português direcionado aos docentes nas orientações e aos discentes nas atividades propostas, estabelecendo uma linguagem adequada ao público.

A publicação das sequências didáticas: estará sujeita à revisão e aprovação da coordenação do Chão de Escola. As sequências didáticas devem apresentar as fontes documentais utilizadas, com seus respectivos endereços eletrônicos (URLs), ou anexar, em formato PDF, o arquivo escaneado da fonte em imagem ou texto.

A divulgação das sequências didáticas: todas as sequências didáticas deverão vir com uma sugestão de imagem de apresentação que deverá ter alta resolução e fonte. Os autores das sequências didáticas deverão enviar, por e-mail, a identificação de autoria, com nome completo, vinculação profissional e acadêmica e uma pequena biografia do(s) autor(es).

Importante: o Chão de Escola não se responsabiliza por conceitos e opiniões emitidos pelos autores. O envio espontâneo de qualquer submissão implica, automaticamente, a cessão integral dos direitos autorais ao site do LEHMT. Os nomes e endereços informados no site do LEHMT serão usados exclusivamente para publicação no Chão de Escola, não sendo disponibilizados para outras finalidades ou a terceiros.

Professor/a, nessa etapa vamos entender como cada parte do template é utilizada na publicação das sequências didáticas. Para isso é importante que cada item seja preenchido corretamente. Também vamos demonstrar os itens com sequências didáticas já publicadas como exemplo.

Título: Professor/a, escolha um título que indique que a sequência didática esteja relacionada a história social do trabalho, que não seja longo e pertinente ao ensino de História. Veja a seguir o título da sequência didática.

Autora: A identificação do/a autor/a ou dos/as autores/as é muito importante para a divulgação da sequência didática. O/s nome/s deverá/ão estar completo/s. Observe a seguir que os nomes das autoras apresentam notas de rodapé para a especificação profissional de cada autora.

Segmento: Nesse item, professor/a, você deverá especificar para qual segmento sua sequência didática foi produzida. Isso indica aos docentes que utilizarão o trabalho, o público ao qual a sequência didática está destinada.

Unidade temática: Professor/a, nesse item, você irá indicar a qual tema do ensino de História está relacionada sua sequência didática. Veja a seguir.

Objetivos gerais: Ao concluir sua sequência didática, professor/a, apresente, no mínimo, três objetivos gerais que serão trabalhados nas atividades com os discentes. Veja a seguir um exemplo.

Habilidades a serem desenvolvidas (de acordo com a BNCC): Nesse item, professor/a, apresente a/s habilidade/s que será/ão desenvolvida/s na sequência didática, de acordo com a Base Nacional Curricular Comum atualizada para o segmento de ensino correspondente.

Duração da atividade: Na tabela abaixo, professor/a, você deve especificar quantas aulas serão necessárias para desenvolver toda a sequência didática com os discentes da turma. Indique o número de aulas para cada etapa do trabalho. Veja o exemplo a seguir.

AulasPlanejamento
  
  
  

Conhecimentos prévios: Indique os conhecimentos prévios necessários para a aplicação da atividade em sala com os discentes. Assim, o professor/a que utilizará a sequência didática poderá preparar a turma com antecedência. Veja o exemplo a seguir.

Recursos: Indique os recursos que serão necessários para aplicação das atividades em sala de aula, como data show e cópias de documentos, se necessário.

Atividade: Agora professor/a, você irá descrever cada etapa de trabalho da sequência didática utilizando linguagem direta aos docentes nas orientações e linguagem adequada aos discentes nas atividades propostas. Não esqueça de anexar os documentos, links de áudios e transcrever trechos de textos que são importantes para sua atividade.  Veja os exemplos a seguir.

Etapa 1:

Etapa 2:

Etapa 3:

Etapa 4:

Bibliografia e Material de apoio:

Nessa etapa, o professor(a) deve colocar toda a bibliografia utilizada na sequência didática, juntamente com os links correspondentes.



Chão de Escola

Nos últimos anos, novos estudos acadêmicos têm ampliado significativamente o escopo e interesses da História Social do Trabalho. De um lado, temas clássicos desse campo de estudos como sindicatos, greves e a relação dos trabalhadores com a política e o Estado ganharam novos olhares e perspectivas. De outro, os novos estudos alargaram as temáticas, a cronologia e a geografia da história do trabalho, incorporando questões de gênero, raça, trabalho não remunerado, trabalhadores e trabalhadoras de diferentes categorias e até mesmo desempregados no centro da análise e discussão sobre a trajetória dos mundos do trabalho no Brasil.
Esses avanços de pesquisa, no entanto, raramente têm sido incorporados aos livros didáticos e à rotina das professoras e professores em sala de aula. A proposta da seção Chão de Escola é justamente aproximar as pesquisas acadêmicas do campo da história social do trabalho com as práticas e discussões do ensino de História. A cada nova edição, publicaremos uma proposta de atividade didática tendo como eixo norteador algum tema relacionado às novas pesquisas da História Social do Trabalho para ser desenvolvida com estudantes da educação básica. Junto a cada atividade, indicaremos textos, vídeos, imagens e links que aprofundem o tema e auxiliem ao docente a programar a sua aula. Além disso, a seção trará divulgação de artigos, entrevistas, teses e outros materiais que dialoguem com o ensino de história e mundos do trabalho.

A seção Chão de Escola é coordenada por Claudiane Torres da Silva, Luciana Pucu Wollmann do Amaral e Samuel Oliveira.

LMT #135: Fábrica Flaskô, Sumaré (SP) – Abner Luiz da Costa Ribeiro




“Ocupar, resistir e produzir!” Esse foi o lema que mobilizou muitos trabalhadores nas últimas duas décadas na América Latina. Com greves e ocupações de fábricas em vários países do continente, os operários retomaram a produção em plantas industriais em crise ou processo de fechamento. Muitas dessas experiências reivindicaram um controle operário em seus locais de trabalho. No Brasil a maior expoente desse movimento foi a Fábrica Ocupada Flaskô, em Sumaré, na região de Campinas, São Paulo. Ali, durante quinze anos, os trabalhadores geriram autonomamente a produção da empresa.

A empresa Flaskô foi fundada em 2 de setembro de 1988. Em conjunto com as empresas Cipla e Interfibra em Joinville, Santa Catarina, pertencia ao Grupo Hansen Indústria S/A. Foi uma fábrica do ramo de plásticos que produzia bombonas e tambores para uso industrial. A partir da década de 1990, com a crise generalizada do ramo industrial, determinadas empresas do grupo começaram a não pagar suas dívidas e algumas delas entraram em situação falimentar ou com a penhora de máquinas e bens.

A situação se agravou em 2002, quando os trabalhadores da Cipla e Interfibra, submetidos a atrasos dos salários e sem direitos, decretaram greve e ocuparam a empresa passando a gerir a produção. Teve início então o Movimento das Fábricas Ocupadas (MFO) no Brasil, compreendendo, além das duas empresas citadas, a Flaskô, ocupada em 2003, permanecendo sob controle dos trabalhadores até 2018.

Ao longo das duas primeiras décadas do século XXI , mais de trinta empresas foram ocupadas e organizadas pelo MFO. As experiências foram curtas, como na Flakepet, que reciclava garrafas pet em Itapevi/SP, a empresa Ellen Metalúrgica, na cidade de Caieiras/SP, cuja fabricação de artefatos de material plástico foi relevante, e a Profiplast em Joinville/SC, também do setor plástico. Depois da intervenção federal na Cipla e Interfibra em 2007, a Flaskô se tornou a principal protagonista do movimento. No auge do processo, entre os anos de 2010 e 2012, os trabalhadores da fábrica tentaram auxiliar outros operários de empresas em situação semelhante que os procuraram para tentar construir a gestão operária. Com a paralisação da produção na Flaskô, no entanto, o movimento entrou em crise e encerrou suas atividades.


No ápice de seu funcionamento, a fábrica ocupada Flaskô era organizada em três turnos, com 70 trabalhadores no total e jornada de trabalho de 30 horas semanais, sem redução salarial. O trabalho na fábrica tinha um caráter singular, porque congregou várias lutas. Além da ocupação de fábrica, há uma ocupação de moradia no terreno (Vila Operária) que atualmente, depois de um histórico de disputas, encontra-se regularizada.


Diante do cenário complexo de manutenção da produção, muitas experiências optaram pela regularização via cooperativa, em que os operários se tornam donos da empresa, mas a Flaskô buscou outra saída. Os trabalhadores da fábrica ocupada em Sumaré tinham a noção de que, diante tanto das limitações contábeis e econômicas da empresa, quanto das restrições políticas e sociais da conjuntura, a luta principal se dava em torno da garantia dos seus empregos e direitos trabalhistas. Nesse sentido, a principal reivindicação do MFO era a estatização da empresa sob controle dos trabalhadores, de modo que a propriedade da fábrica seria regularizada e a gestão permaneceria operária.

A experiência da ocupação e do controle operário na Flaskô teve importantes impactos políticos e sociais na condução do MFO e nos movimentos sociais na região de Campinas. Diversas ocupações de moradia saíram do terreno da fábrica, como a Marielle Vive! em Valinhos e a Ocupação Zumbi dos Palmares na cidade de Sumaré.

Durante os anos de ocupação os operários produziram muitos documentos, como atas do Conselho de Fábrica, jornais, panfletos, revistas em quadrinhos, materiais de mobilização entre outros. Por meio do Centro de Memória Operária e Popular (CEMOP), criado por eles, esse acervo era armazenado e publicado em livros e revistas.

Desde o início, a experiência da ocupação sofreu com as pressões de outras empresas privadas, do Poder Judiciário, do Poder Executivo local e estadual, que buscava minar a gestão dos trabalhadores. Sem produzir por conta da falta de investimentos e capital de giro, dificuldades na compra de matéria-prima e um corte fatal de energia operado pela empresa CPFL, a produção entrou em colapso no mês de outubro de 2018.

A história da Flaskô foi permeada por incertezas, de fechamento, de reintegração de posse, de não pagamento dos salários, conflitos nas decisões das assembleias, dentre outros inúmeros aspectos. No entanto, o cotidiano foi profundamente marcado por uma intensa solidariedade entre os operários e também com a comunidade no entorno. As festas e os Festivais de Cultura também deixaram muitas marcas e boas lembranças para quem vivenciou de alguma forma essa experiência.

No ano de 2023, os trabalhadores da fábrica comemoraram vinte anos de controle sobre o espaço do parque fabril operário, mesmo sem a continuidade da produção e sob litígio judicial. Depois que as máquinas foram submetidas a leilão e o complexo industrial foi posto à venda, alguns poucos trabalhadores se intercalam na portaria para cuidar do patrimônio, evitando que este sofra vandalização.

Muitas foram as conquistas dos trabalhadores da Flaskô, a que mais se orgulham é de terem mantido os postos de trabalho com carteira assinada, fato que possibilitou a aposentadoria de muitos operários. A luta agora consiste na garantia que os trabalhadores recebam seus direitos que a gestão patronal não pagou, a necessidade de um uso social para as instalações da fábrica além da preservação da memória e da história da Flaskô.

Vista aérea do parque fabril da Flaskô, Sumaré (SP), 2010. Fotografia de Fernando Martins.


Para saber mais:

  • DELMONDES, Camila. Flaskô: fábrica ocupada. Campinas: PUC Campinas, 2009.
  • MUSTO, Rafaela. Fábrica em movimento. Sumaré: Edições CEMOP, 2012
  • RIBEIRO, Abner. “Ocupar, resistir e produzir” em comum: luta operária e memória da Fábrica Ocupada Flaskô (2003-2018). Dissertação (Mestrado em Ensino de História) – Instituto de Filosofia e Ciência Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2025.
  • VERAGO, Josiane. Fábricas ocupadas e controle operário: Brasil e Argentina (2002-2010). Sumaré: Edições CEMOP, 2011.
  • ORRÚ, Drielly et al. Flaskô: donos do próprio suor. Youtube, 3 de abril de 2018. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Lu9g8OjC4tU.

Crédito da imagem de capa: Deuzuito Miranda, membro do Conselho de Fábrica da Flaskô operando máquina, 2012. Fotografia de Fernando Martins.


MAPA INTERATIVO

Navegue pela geolocalização dos Lugares de Memória dos Trabalhadores e leia os outros artigos:


Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Mensalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

Chão de Escola #47: Colaboração de empresas com a ditadura e o caso da Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira em João Monlevade (MG)


Amanda Coelho (graduanda em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora UFJF -GV)1
Manoela Bicalho (ex-graduanda em História pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG)1
Otávio Lopes (doutorando e mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG)1


Apresentação da atividade

Segmento: Ensino Médio

Unidade temática: História do Brasil Contemporâneo

Objetos de conhecimento: Ditadura militar brasileira

Objetivos gerais:

– Analisar o envolvimento e a atuação de empresas durante o regime militar brasileiro;
– Elucidar as graves violações de direitos humanos cometidas pelas empresas contra os seus trabalhadores;
– Estimular o pensamento crítico a respeito do período ditatorial brasileiro;
– Debater possíveis alternativas de reparação a serem desenvolvidas pelas empresas que colaboraram com o regime militar e a violação de direitos humanos.

Habilidades a serem desenvolvidas (de acordo com a BNCC):

(EF09HI19) Identificar e compreender o processo que resultou na ditadura civil-militar no Brasil e discutir a emergência de questões relacionadas à memória e à justiça sobre os casos de violação dos direitos humanos.

Duração da atividade: 4 aulas de 50 minutos

Aulas Planejamento
1Etapa 1
2 e 3Etapa 2
4Etapa 3

Conhecimentos prévios:

– O Golpe empresarial-militar de 1964 e a ditadura militar;
– Participação de setores da sociedade civil na ditadura militar;
– Desenvolvimentismo

Atividade

Atividade e recursos: Exposição oral, datashow, caixas de som e utilização do quadro.

Aula 1

Professor/a, informe aos alunos que, atualmente, existem várias investigações sobre empresas que praticaram graves violações de direitos humanos entre 1964 e 1985, durante o regime militar.
Várias empresas e empresários colaboraram com os militares e com a repressão aos trabalhadores. Entre elas, cite exemplos como: Aracruz, Cobrasma, Cia Docas de Santos, Companhia Siderúrgica Nacional, Fiat, Folha de S. Paulo, Itaipu, Josapar, Paranapanema, Petrobrás, Belgo Mineira, Embraer e Mannesmann. Ressalte, ainda, que muitas dessas empresas se beneficiaram do regime instaurado em 1964 e colaboraram, direta ou indiretamente, com ele.
Os resultados das investigações realizadas por diversos pesquisadores da história do Brasil foram entregues ao Ministério Público Federal e ao Ministério Público do Trabalho. O objetivo é que essas empresas sejam responsabilizadas, seja de forma voluntária, por meio de um acordo, ou de maneira coercitiva, com a condenação em ação judicial, pelo o que fizeram durante o regime militar brasileiro contra os trabalhadores.
Uma das empresas que colaboraram com o regime militar foi a Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira. Nesse sentido, os estudantes devem realizar a atividade abaixo para aprofundar na análise do caso da Belgo-Mineira.

Leia o Texto I e assista ao Vídeo 1, e responda as questões abaixo.

Por Manoela Bicalho, Otávio Lopes e Amanda Coelho

A Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira (CSBM) foi fundada em 1917, inicialmente como Companhia Siderúrgica Mineira, com sua primeira fábrica localizada em Sabará/MG. A escolha do local foi estratégica, devido à abundância de minérios, florestas e à proximidade de uma linha ferroviária. A empresa foi criada para produzir aço e, por isso, precisava de minério de ferro e de carvão vegetal como matérias primas.
Após as dificuldades iniciais, incluindo os problemas técnicos e financeiros, a empresa foi reorganizada, em 1921, com a chegada de capital estrangeiro da ARBED, empresa belga-luxemburguesa. Em 1923, recebeu empréstimos e benefícios fiscais do governo brasileiro, permitindo que a empresa se expandisse.
A CSBM enfrentou crises e paralisações, como em 1926, quando a ARBED precisou enviar o engenheiro Louis Ensch para revitalizar a produção. Dois anos depois, em 1928, a fábrica em Sabará alcançou uma produção anual de 10 mil toneladas, posicionando-se como uma das maiores do Brasil.
Na década de 1930, no governo de Getúlio Vargas, a CSBM iniciou a construção de uma nova fábrica em João Monlevade/MG, então distrito de Rio Piracicaba, inaugurada em 1937. A localidade não contava com nenhuma infraestrutura para receber os funcionários, então a empresa construiu equipamentos urbanos como moradias, escolas e hospitais no entorno da fábrica.
A Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira, em 1940, tornou-se a maior siderúrgica da América Latina. Com o apoio da Marinha, durante a Segunda Guerra Mundial, a CSBM construiu trilhos ferroviários, contribuindo significativamente para o desenvolvimento do transporte brasileiro. Além disso, a empresa foi fundamental para o desenvolvimento urbanístico das cidades de Sabará e João Monlevade, investindo em infraestrutura e serviços para seus trabalhadores. Contudo, essa atuação também resultou em um forte controle sobre a vida dos operários.
Em 1958, foi inaugurada a planta de uma nova trefilaria (fábrica que transforma metais em fios, barras e tubos), a ser construída na Cidade Industrial de Contagem. Em 1963, a Trefilaria de João Monlevade foi totalmente desativada, transformando a de Contagem em uma das maiores do mundo.
A CSBM, principalmente entre as décadas de 1960 e 1980, enfrentou um cenário de muitas greves e tensões, em decorrência das políticas salariais e de controle social que vigoravam na época. Nesse mesmo período, colaborou com o regime militar e se beneficiou das políticas econômicas estabelecidas pelos governos militares.
A CSBM continuou a expandir e modernizar suas operações ao longo do tempo. Em 2005, fundiu-se com outras empresas, formando a Arcelor Brasil, que posteriormente passou a se chamar ArcelorMittal Brasil. Atualmente, é uma das maiores produtoras de aço do país, com capacidade de produção anual superior a 12,5 milhões de toneladas e usinas em seis estados brasileiros.

Fonte: Cia. Siderúrgica Belgo-Mineira articulou o golpe de 1964 com militares e empresários. Disponível em:  https://www.youtube.com/watch?v=u9464nAgdOo.  Acesso em 19 mar.2025.

QUESTÕES DE INTERPRETAÇÃO

1. Identifique os momentos em que a Cia Siderúrgica Belgo-Mineira recebeu apoio do governo brasileiro.
2. Por que diferentes governos brasileiros apoiaram a instalação e expansão da Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira? .
3. Conceitue desenvolvimentismo e relacione com o apoio dos governos brasileiros à siderúrgica.
4. Identifique as formas como a Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira colaborou com o golpe e com o regime militar.
5. Explique como a empresa se beneficiou do apoio ao regime militar.

Aula 2

Professor/a, dando continuidade à aula 1, explique aos estudantes que esta aula abordará como a Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira controlava a vida dos trabalhadores.
Os estudantes observarão isso por meio da análise da construção da cidade de João Monlevade pela Belgo-Mineira.

Leia o Texto II, assista ao Vídeo II e responda as questões abaixo.

Por Manoela Bicalho, Otávio Lopes e Amanda Coelho

A segunda usina da Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira foi instalada no terreno da antiga Fazenda Solar, propriedade de Jean Monlevade, onde também funcionava uma Forjaria do mesmo proprietário.
Para viabilizar o projeto, o então presidente Getúlio Vargas ordenou a construção do ramal ferroviário Santa Bárbara, que possibilitou o transporte até o local, antes isolado, e lançou, em agosto de 1935, a pedra fundamental da Usina de Barbanson.
O local não possuía infraestrutura urbana para abrigar os trabalhadores e, por isso, coube à empresa construir todo o conjunto do que viria a ser o distrito de João Monlevade – pertencente, até então, ao município de Rio Piracicaba. A empresa providenciou ruas, residências, escolas, um hospital, centros comerciais, clubes, cinema, entre outros. Até mesmo a energia elétrica era fornecida pela empresa, que recebeu de Vargas uma concessão para a construção de uma hidrelétrica no rio Piracicaba.
A Belgo-Mineira controlava os filmes que seriam passados no cinema, a forma do ensino nas escolas, os produtos que seriam vendidos e por qual valor. “Ou seja, a empresa realizava um controle absoluto do espaço, determinava as regras a serem cumpridas, não só no ambiente de trabalho, como também fora dele, exercendo influência em todas as esferas da vida dos empregados” (CAMISASCA, 2024, p. 21).
O desenvolvimento da região ficou diretamente vinculado às atividades siderúrgicas da Companhia, cuja usina entrou em operação em 1937. A gestão dos equipamentos urbanos construídos pela Belgo-Mineira permaneceu sob sua responsabilidade até 1964, quando João Monlevade deixou de ser um distrito e foi elevado à categoria de município, transferindo, então, esses serviços para a administração municipal.

Fonte: Vídeo “Alto-baixo”, produzido pela cineasta e historiadora Dominique Santana. Disponível em: https://colonia.lu/pt-br/alto-baixo-1. Acesso em 19 mar. 2025.

Créditos mapa da cidade: Dominique Santana

QUESTÕES DE INTERPRETAÇÃO

1. Identifique as formas de controle social estabelecidos pela Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira na cidade de João Monlevade.
2. Por que existiam essas formas de controle social?
3. Pesquise no Google o município de João Monlevade, em Minas Gerais, e cite outros exemplos de cidades que foram construídas em torno de um empreendimento fabril.
4. Explique por que a cineasta deu o título de “alto-baixo” para apresentação da construção da cidade de João Monlevade.

Aula 3

Professor/a, dando prosseguimento à aula 2 (sugerimos a realização de uma segunda aula com o tema relacionado a João Monlevade), discutiremos o envolvimento da Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira no golpe empresarial-militar de 1964, mostrando como o controle social da empresa aumentou no contexto autoritário. Recupere do aprendizado construído na aula 1, evidenciando a colaboração entre a  Siderúrgica Belgo-Mineira e o regime militar.

Leia os Textos III, assista ao Vídeo III e responda o questionário.

Por Manoela Bicalho, Otávio Lopes e Amanda Coelho

Alguns dias após o Golpe de 1964, o Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos de João Monlevade sofreu uma intervenção. O chefe de segurança da Belgo, que era um militar reformado, foi nomeado interventor. Um mês depois, foi nomeada uma Junta Governativa para gerir a entidade. Muitos operários sindicalizados foram perseguidos, presos e alguns foram torturados.
De acordo com a historiadora Marina Camisasca, após a intervenção no sindicato, foi ministrada uma palestra, por um major do Exército, para explicar o que estava ocorrendo na cidade: uma forte perseguição àqueles que eram considerados “subversivos”, inclusive com o deslocamento de tropas de Governador Valadares/MG para a cidade.
A empresa, por meio de um jornal, manifestou apoio às intervenções nos sindicatos. Esse apoio se deu de diversas formas, inclusive com o empréstimo de veículos da Companhia para prender lideranças sindicais. Em João Monlevade, muitos operários foram detidos pela polícia – tanto em suas residências quanto dentro da própria fábrica – e conduzidos à cadeia local. Alguns trabalhadores foram transferidos para o DOPS-MG, em Belo Horizonte, e sofreram tortura física e psicológica. Foi o caso, por exemplo, de Virgílio Salomão, ex-funcionário da Companhia, que foi preso e torturado e anos depois foi candidato a prefeito de Monlevade contra candidato apoiado pela Belgo. Virgílio morreu, subitamente, 5 dias antes das eleições. Sua esposa, Tereza Salomão, recorda-se que o interventor do sindicato, em 1964, gritava para que os operários demitidos botassem “a viola no saco, a família na frente” e desaparecessem da cidade.
Geraldo Oscar, presidente do sindicato na época da intervenção, conta que saiu “escorraçado” da cidade; que teve que “entregar” a sua casa de uma hora para a outra, mal tendo tempo de retirar seus pertences; e que passou 30 dias preso no DOPS- MG em Belo Horizonte. Muitos trabalhadores estáveis (a legislação da época previa que trabalhadores com mais de 10 anos na empresa não poderiam ser demitidos) foram obrigados a pedir demissão, sendo escoltados por policiais armados até o escritório do Chefe do Serviço Social da empresa para assinar o pedido e, em seguida, até o fórum de Rio Piracicaba para que o juiz trabalhista homologasse as dispensas.
Feito isso, os trabalhadores eram obrigados a abandonar as residências e ordenados a ir embora de João Monlevade. As próprias famílias de alguns deles foram vítimas da violência da polícia, com o consentimento da empresa.
Outros operários, que não foram forçados a pedir demissão, ficaram detidos por vários dias dentro da usina da CSBM, sob o cerco da Polícia Militar na portaria da fábrica. Há relatos de que esses trabalhadores sofreram torturas físicas e psicológicas.
A Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira apoiou verbal e materialmente o golpe empresarial-militar de 1964, bem como colaborou com a polícia durante todo o regime ditatorial. Com a anuência da empresa, muitos de seus funcionários foram vigiados, perseguidos, presos e torturados. A Companhia se aproveitava do seu poder e influência para coibir manifestações, greves, sindicalizações e qualquer outro tipo de organização dos trabalhadores.
No caso da cidade de João Monlevade, nota-se que o controle social já existia antes da ditadura, e que durante esse período ele encontrou condições favoráveis para se endurecer.

Fonte: Vídeo “Repressão”, produzido pela cineasta e historiadora Dominique Santana. Disponível em: https://colonia.lu/pt-br/repressao-9. Acesso em 19 mar. 2025.

QUESTÕES DE INTERPRETAÇÃO

1. Como a cidade de João Monlevade foi afetada pelo Golpe de 1964?
2. Após o Golpe de 1964, quais as ações da empresa para reprimir os trabalhadores?
3. A partir do vídeo feito pela cineasta e historiadora Dominique Santana, identifique duas memórias distintas sobre a repressão na cidade de João Monlevade.
4. Discuta por que existem diferentes memórias sobre a ditadura.
5. Com base no conteúdo discutido na Etapa 2, escreva um texto (3 parágrafos) discutindo a seguinte questão: A responsabilidade pelas violações de direitos humanos cometidas em João Monlevade deve recair sobre a empresa, sobre a polícia/Estado ou ser compartilhada por ambas?

Aula 4

Professor(a), retome o debate feito na aula 1, situando que a colaboração da Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira não foi um caso isolado, havia outras empresas que também colaboraram com o regime militar e que estão sendo investigadas.
Como atividade de finalização da sequência didática, peça que os alunos leiam a série de reportagens publicadas pela Agência Pública, intitulada “Empresas Cúmplices da Ditadura”, e formem grupos para apresentar os vários casos de colaboração entre industriais e governo militar.

ATIVIDADE EM GRUPO

Leia o dossiê “Empresas Cumplies da Ditadura”.
Forme grupos na turma (4 a 7 grupos). Cada grupo, deve escolher um tema abaixo para apresentar na sala:

– Volkswagen e a ditadura
– Embraer e a ditadura
– Mannesmann e a ditadura
– Cia Siderúrgica Nacional (CSN) e a ditadura
– Fiat e a ditadura
– Folha de São Paulo e a ditadura
– Cobrasma e a ditadura]
– Companhia Docas e a ditadura

A apresentação do grupo deve constar:

A) Um histórico da formação da empresa e como ela se relacionou com o regime militar;
B) Uma apresentação de imagens que ilustrem empresa/a colaboração com a ditadura e que formem um pequeno mural sobre o caso;
C) Uma breve discussão sobre o que é o conceito “ditadura empresarial-militar” e sua relação com o caso apresentado.

Bibliografia e Material de apoio:

Antiga estrada da Belgo-Mineira em Sabará. Canal da Imagem e do Som. Acervo PBH.  In: Bonfioli Filmes. Igino Bonfioli. Belo Horizonte, 1932. Película P&B, 82 minutos, sonoro.

Antiga Fábrica da Belgo-Mineira em Sabará. Canal da Imagem e do Som. Acervo PBH. In: Bonfioli Filmes. Igino Bonfioli. Belo Horizonte, 1932. Película P&B, 139 minutos, sonoro.

CAMISASCA, Marina. Belgo-Mineira. In: TELES, Edson; OSMO, Carla; CALAZANS, Marília Oliveira (orgs.). Informe público 2: A responsabilidade de empresas por violação de direitos durante a ditadura. São Paulo: CAAF/Unifesp, 2024. p. 15-39. Disponível em:https://www.unifesp.br/reitoria/caaf/images/CAAF/Empresas_e_Ditadura/InformePublico.pdf. Acesso em: 21 mar. 2025.

DOMENICI, Thiago (coord.). Empresas Cúmplices da Ditadura. Agência Pública, 2023/2024. Disponível em: https://apublica.org/especial/as-empresas-cumplices-da-ditadura-militar/. Acesso em: 23 set. 2024.

OSCAR, Geraldo. Depoimento à equipe do Centro de Referência e Memória do Trabalhador (CEREM), João Monlevade, 09 nov. 2006. Disponível em: <https://ceremjm.wordpress.com/presidentes-do-sindicato/geraldo-oscar/>. Acesso em: 20 dez. 2024.

SALOMÃO, Tereza. “Seu porco tá aí”. Vídeo disponível no site do Centro de Referência e Memória do Trabalhador (CEREM), João Monlevade, 02 nov. 2011. Disponível em: <https://ceremjm.wordpress.com/2011/11/02/seu-porco-tai/>. Acesso em: 20 dez. 2024.

SANTANA, Dominique. Alto-baixo. Vídeo disponível no site do documentário A Colônia Luxemburguesa, lançado em 2022. Disponível em: <https://colonia.lu/pt-br/alto-baixo-1>. Acesso em: 20 dez. 2024.

SANTANA, Dominique. Repressão. Vídeo disponível no site do documentário A Colônia Luxemburguesa, lançado em 2022. Disponível em: <https://colonia.lu/pt-br/repressao-9>. Acesso em: 20 dez. 2024.

TELES, Edson; OSMO, Carla; CALAZANS, Marília Oliveira (orgs.). Informe público 1: A responsabilidade de empresas por violação de direitos durante a ditadura. São Paulo: CAAF/Unifesp, 2023. Disponível em:https://www.unifesp.br/reitoria/caaf/images/CAAF/Empresas_e_Ditadura/InformePublico.pdf. Acesso em: 23 set. 2024.

TELES, Edson; OSMO, Carla; CALAZANS, Marília Oliveira (orgs.). Informe público 2: A responsabilidade de empresas por violação de direitos durante a ditadura. São Paulo: CAAF/Unifesp, 2024. Disponível em:https://www.unifesp.br/reitoria/caaf/images/novo_site/relat%C3%B3rios/Informe_Publico_2_EMPRESAS_E_DITADURA.pdf. Acesso em: 23 set. 2024.


Créditos da imagem de capa: Antônio Germano da Silva


Chão de Escola

Nos últimos anos, novos estudos acadêmicos têm ampliado significativamente o escopo e interesses da História Social do Trabalho. De um lado, temas clássicos desse campo de estudos como sindicatos, greves e a relação dos trabalhadores com a política e o Estado ganharam novos olhares e perspectivas. De outro, os novos estudos alargaram as temáticas, a cronologia e a geografia da história do trabalho, incorporando questões de gênero, raça, trabalho não remunerado, trabalhadores e trabalhadoras de diferentes categorias e até mesmo desempregados no centro da análise e discussão sobre a trajetória dos mundos do trabalho no Brasil.
Esses avanços de pesquisa, no entanto, raramente têm sido incorporados aos livros didáticos e à rotina das professoras e professores em sala de aula. A proposta da seção Chão de Escola é justamente aproximar as pesquisas acadêmicas do campo da história social do trabalho com as práticas e discussões do ensino de História. A cada nova edição, publicaremos uma proposta de atividade didática tendo como eixo norteador algum tema relacionado às novas pesquisas da História Social do Trabalho para ser desenvolvida com estudantes da educação básica. Junto a cada atividade, indicaremos textos, vídeos, imagens e links que aprofundem o tema e auxiliem ao docente a programar a sua aula. Além disso, a seção trará divulgação de artigos, entrevistas, teses e outros materiais que dialoguem com o ensino de história e mundos do trabalho.

A seção Chão de Escola é coordenada por Claudiane Torres da Silva, Luciana Pucu Wollmann do Amaral e Samuel Oliveira.

Minicurso Fontes, arquivos e história social do trabalho


O LEHMT/UFRJ oferece, em parceria com o Laboratório de Conexões Atlânticas da PUC-Rio e o NEPHS-UFRRJ, o minicurso de extensão Fontes, arquivos e história social do trabalho.

O minicurso oferece sete oficinas que abordam metodologias e fontes de pesquisa no campo da História Social do Trabalho, com foco em arquivos, história oral e sistematização de dados. O objetivo é proporcionar aos participantes uma compreensão aprofundada desses temas e suas aplicações tanto na universidade, quanto fora dela. Além de discussões teóricas e conceituais, serão oferecidos exemplos concretos e exercícios aos participantes.

Público-alvo: Estudantes de graduação e pós-graduação em História, Ciências Sociais, Geografia, Educação, Comunicação, Economia e áreas afins; professores do ensino fundamental, médio e universitário, e profissionais interessados em história social em geral e história do trabalho em particular.

Objetivo: Debater a importância da história pública nos dias atuais, refletindo sobre como historiadores podem atuar nas plataformas digitais e disputar narrativas. Particular atenção será dada para a relação entre história pública e os mundos do trabalho, com ênfase na experiência do LEHMT/UFRJ.

Vespertino: Dia 07 de maio, entre 15h e 18h – PUC-Rio: Rua Marquês de São Vicente, 225 – Gávea
Noturno: Dia 09 de maio, entre 18h e 20h – IH-UFRJ: Largo São Francisco de Paula, 1 – Centro

Objetivo: Apresentar alguns dos principais arquivos e tipologias de fontes utilizadas na pesquisa histórica no campo da história social do trabalho, destacando os desafios e as potencialidades do uso dessas fontes para a construção do conhecimento histórico nessa área. Particular atenção será dada às possibilidades de pesquisa no Arquivo Nacional,  no Museu da Justiça e no APERJ (Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro).

Vespertino: Dia 05 de junho, entre 14h e 17h – CPDA-UFRRJ: Avenida Presidente Vargas, 417 – Centro
Noturno: Dia 04 de junho, entre 18h e 20h – IH-UFRJ: Largo São Francisco de Paula, 1 – Centro

Objetivo: Explorar técnicas para a pesquisa em acervos internacionais, destacando a importância de integrar fontes globais à História Social do Trabalho no Brasil. A oficina abordará experiências em arquivos dos Estados Unidos, México, Europa e América Latina, ampliando o horizonte metodológico dos participantes.

Vespertino: Dia 26 de junho, entre 14h e 17h – PUC-Rio: Rua Marquês de São Vicente, 225 – Gávea

Noturno: Dia 25 de junho, entre 18h e 20h  – IH-UFRJ: Largo São Francisco de Paula, 1 – Centro

Objetivo: Capacitar os participantes no uso do GIS para a organização e análise de dados históricos, com foco na história social do trabalho. O curso abordará a aplicação de Sistemas de Informação Geográfica (SIG) na sistematização de fontes quantitativas e qualitativas, permitindo a identificação de padrões espaciais e a visualização de tendências históricas. Os participantes aprenderão a estruturar grandes volumes de dados e a utilizar ferramentas do QGIS para enriquecer suas pesquisas acadêmicas por meio da análise espacial.

Vespertino: Dia 07 de agosto, entre 14h e 17h – PUC-Rio: Rua Marquês de São Vicente, 225 – Gávea

Noturno: Dia 13 de agosto, entre 18h e 20h – IH-UFRJ: Largo São Francisco de Paula, 1 – Centro

Objetivo: Abordar os conceitos e as práticas de história oral como ferramenta de pesquisa histórica, enfocando as metodologias de coleta e análise de depoimentos. Analisar a trajetória dos usos de história oral na historiografia do trabalho tanto internacionalmente, quanto no Brasil. Discutir como a história oral pode ser utilizada como ferramenta importante na pesquisa de história do trabalho.

Vespertino: Dia 04 de setembro, entre 14h e 17h – CPDA-UFRRJ: : Avenida Presidente Vargas, 417 – Centro

Noturno: Dia 11 de setembro, entre 18h e 20h – IH-UFRJ: Largo São Francisco de Paula, 1 – Centro

Objetivo: Capacitar os participantes a utilizar ferramentas digitais, como o Heurist, para sistematizar, organizar e analisar pesquisas quantitativas relacionadas à história social do trabalho, aplicando essas ferramentas para enriquecer a análise histórica. Como utilizar ferramentas como o Heurist para organizar grandes volumes de dados históricos, facilitando a análise e a visualização de tendências e padrões.

Vespertino: Dia 09 de outubro, entre 14h e 17h – PUC-Rio: Rua Marquês de São Vicente, 225 – Gávea

Noturno: Dia 20 de outubro, entre 18h e 20h – IH-UFRJ: Largo São Francisco de Paula, 1 – Centro

Objetivo: Explorar o potencial do FamilySearch como ferramenta para pesquisa em história do trabalho, demonstrando como registros genealógicos podem revelar trajetórias profissionais, dinâmicas familiares e fluxos migratórios ao longo do tempo. Como integrar dados do FamilySearch com outros acervos e bases estatísticas para aprofundar análises sobre a história do trabalho.

Vespertino: Dia 6 de novembro, entre 14h e 17h – CPDA-UFRRJ: Avenida Presidente Vargas, 417 – Centro

Noturno: Dia 12 de novembro, entre 18h e 20h – IH-UFRJ: Largo São Francisco de Paula, 1 – Centro

Atividades extras:  Visitas guiadas ao Arquivo de Memória Operária do Rio de Janeiro (AMORJ) no IFCS/UFRJ; ao Núcleo de Memórias da PUC-Rio e ao Centro de Documentação e Imagem da UFRRJ (CEDIM).

Formato: Presencial, no Instituto de História da UFRJ, no CPDA da UFRRJ e na PUC-Rio, com aulas no turno vespertino e noturno.

LMT#134: Rampa da Imperatriz, Manaus (AM) – Caio Giulliano Paião


Quem chegasse de vapor na Manaus dos anos 1880 veria o navio fundear um tanto distante da orla. Um silvo estridente dava início a uma confusão a bordo. Os passageiros reuniam suas bagagens e a marinhagem preparava o desembarque. Esse serviço era feito no meio do rio. Encostar o barco arriscaria um encalhe. Sem demora, os botes chegavam para o traslado. Eram as catraias. Tinham em torno de oito metros, eram pintadas de branco e suas toldas protegiam os passageiros do sol inclemente. Esse calor amazônico parecia desafiado pelo remador – o catraieiro – que usava boné de lã, camisa quadriculada de manga comprida, calça de brim e tamancos. Remava de pé, com um par de remos compridos. Na popa, uma placa semicircular trazia o nome da catraia, geralmente uma distante cidade natal dos catraieiros; a maioria vinha de Portugal. Ela tomaria o rumo da única entrada da cidade naquele tempo: a rampa da Imperatriz. Em 1884, os catraieiros fariam ali a primeira greve que se teve notícia em Manaus. Uma greve em tons abolicionistas que mudou para sempre aquela vida portuária.

Os passageiros que desembarcavam na rampa eram envolvidos por uma explosão de sensações: o aroma de peixes frescos, frutas, legumes e ervas misturava-se ao vozerio das vendeiras, ambulantes, carroceiros, carregadores, estivadores, marítimos. Esse cenário de intenso movimento humano era relativamente recente. Décadas antes, não se via tamanha aglomeração, com tantas profissões, nacionalidades, cores de pele, origens étnicas e diferentes condições jurídicas. Mulheres e homens, livres e libertos, conviviam e ajustavam suas diferenças com a população negra escravizada, cuja presença seria ampliada se dependesse do tráfico interno. Na região, o número de escravizados crescia entre as décadas de 1870 e 1880, contrastando com a redução vista em outras partes do país. Manaus concentrou boa parte desse contingente em atividades urbanas e domésticas, enquanto outras levas eram enviadas para os seringais e propriedades rurais. O tráfico interprovincial beneficiava não apenas os senhores, mas gente que lucrava com os fundos de emancipação. Falando em economia, o Amazonas gozava da boa recepção da borracha amazônica e de outros produtos no mercado internacional. Havia um frenesi de vapores que não paravam de aportar na capital.


Tudo passava pela rampa da Imperatriz, dominada pelos catraieiros e seu sistema de desembarque. Esse controle já vinha incomodando as autoridades e logo se tornaria uma grande dor de cabeça para os senhores e traficantes de escravizados.


Em 1883, havia 113 catraias para 159 catraieiros, quase todos portugueses. Muitos deles eram originários de Póvoa de Varzim, onde aprenderam a construir e manejar embarcações. Eles chegaram a Manaus e Belém após uma crise no setor pesqueiro, provocada pela expansão de empresas britânicas que gerou uma onda de desemprego na pesca artesanal de Portugal. Muitos jovens solteiros acabaram seduzidos para imigrarem ao Brasil. Familiarizados com a lida marítima, eles se estabeleceram nos portos das “capitais da borracha” em vez do trabalho nos seringais. Foi assim que os catraieiros se depararam com o tráfico interprovincial realizado pelos vapores. 

Em julho de 1883, um grupo de abolicionistas de Belém publicou nos jornais o caso de um escravizado que resistiu para embarcar no vapor Pará, em direção à Manaus, para não ficar afastado de um familiar. Sua resistência conseguiu chamar a atenção de autoridades portuárias, que vetaram seu embarque. Essa publicação visava sensibilizar os catraieiros para que, seguindo exemplo dos jangadeiros do Ceará, se recusassem a transportar escravizados/as dos vapores.

A ação dos jangadeiros foi crucial para que o Ceará se tornasse a primeira província a abolir a escravidão, em 25 de março de 1884. Na Amazônia, o ativismo abolicionista via nos catraieiros um papel semelhante. Os de Belém foram os primeiros a aderirem, integrando a Sociedade Abolicionista 28 de Setembro. Já em Manaus, o fechamento do porto veio por uma ação conjunta com abolicionistas brancos.

Os catraieiros fizeram o seu cálculo: com a alta do fluxo de navios, esses escravizados poderiam vir a substituí-los, o que favoreceria negociantes do setor portuário e de exportação. Ocupar a rampa da Imperatriz paralisaria a cidade, destacaria a defesa de seus postos de trabalho e consolidaria uma aliança estratégica com abolicionistas brancos e políticos locais. Além disso, como responsáveis por esses desembarques desumanos, certamente razões humanitárias também motivaram a adesão ideológica ao abolicionismo.

No dia 7 de maio de 1884, os catraieiros enviaram um ofício ao presidente da província do Amazonas, anunciando a greve. É provável que o movimento tenha contado com o apoio de embarcadiços e demais trabalhadores negros. Embora os detalhes da parede sejam desconhecidos, sua eficácia foi incontestável: dois dias depois foi decretado o fechamento do porto de Manaus para o tráfico interprovincial. Os abolicionistas e os catraieiros declararam a rampa da Imperatriz como território livre. No dia 10 de julho de 1884, possivelmente eles estavam no largo 28 de Setembro (atual praça Heliodoro Balbi), comemorando a Abolição, agora concretizada no Amazonas. Sua mobilização tinha parcela nessa conquista, evidenciando a força organizativa de trabalhadores imigrantes imersos nas disputas políticas e no movimento abolicionista local, mas também preocupados em proteger seus próprios interesses.

Até que, em 1900, a Lei do Beneficiamento da Borracha exigiu uma infraestrutura adequada para o escoamento do produto, o que levou à adaptação do porto de Manaus à economia de exportação. O domínio dos catraieiros foi minado de uma vez por todas. Entre 1903 e 1907, foi construído o novo porto, e a rampa da Imperatriz deu lugar ao imponente prédio da Alfândega, hoje um marco arquitetônico da capital. Esse foi o soterramento literal do lugar de memória da greve de 1884, e de outras agências nas lutas contra a escravidão. 

George Huebner. Rampa da Imperatriz [fotografia], Manaus, c.1890-c.1902. Acervo: Coleção particular.  


Para saber mais:

  • ALVES-MELO, Patrícia. “Superfaturamento e verba pública: como elite lucrou com abolição ‘precoce’”. Disponível em: <Superfaturamento e verba pública: como elite lucrou com abolição “precoce” – 20/07/2022 – UOL Notícias>.
  • COSTA, Jéssyka Sâmya. Por todos os cantos da cidade: escravos negros no mundo do trabalho na Manaus oitocentista (1850-1884). Niterói, Universidade Federal Fluminense, 2016 (Dissertação de Mestrado).
  • LAURINDO JÚNIOR, Luiz Carlos. Rios de escravidão: tráfico interno e o mercado de escravos no Vale do Amazonas (1840-1888). São Paulo, Universidade de São Paulo, 2021 (Tese de Doutorado).
  • PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. “Migração, trabalho e etnicidade: portugueses e ingleses no porto de Manaus, 1880-1920”. Varia História, vol. 30, n. 54, 2014.
  • POZZA NETO, Provino. Aves Libertas: ações emancipatórias no Amazonas Imperial. Manaus, Universidade Federal do Amazonas, 2011 (Dissertação de Mestrado).

Crédito da imagem de capa: Huebner & Amaral [estúdio]. Manáos – Porto de desembarque [cartão postal], Manaus, c.1901. Acervo: Coleção particular.


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Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Mensalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

LMT #133: Santa Marina Atlético Clube (SMAC), Água Branca, São Paulo (SP) – Aira Bonfim


A história do clube esportivo Santa Marina Atlético Clube (SMAC) está intrinsecamente ligada ao processo de industrialização da cidade de São Paulo. A região que se estende dos bairros da Água Branca à Freguesia do Ó, situada nas áreas alagáveis ao redor do Rio Tietê, era conhecida por abrigar depósitos de areia com cor e qualidade ideais para a produção de vidro branco.

Em 1895, Antônio da Silva Prado e Elias Fausto Pacheco Jordão fundaram a empresa Prado & Jordão, na Água Branca, que inicialmente se dedicava à produção de vidros planos. A partir de 1896, a fábrica passou a se dedicar à produção de garrafas, em resposta ao desenvolvimento da indústria cervejeira brasileira. A Fábrica de Vidros Santa Marina, foi oficialmente estabelecida em 1901, após a aquisição, por Antônio Prado, da parte da sociedade pertencente aos herdeiros de Jordão. O nome da empresa foi escolhido em homenagem à filha falecida de Prado. Parcela importante dos trabalhadores da fábrica era composta de vidreiros especializados vindos da França, mas a presença de imigrantes italianos também era relevante.

Naquele mesmo período, a questão habitacional para os operários era objeto de discussão na cidade, dado o rápido crescimento populacional e a difusão de cortiços, o que levantava preocupações sanitárias. Em resposta a essas preocupações, em 1894, foi elaborado o Código Sanitário, que estipulava as diretrizes para a construção e a estruturação das vilas operárias. A responsabilidade pela construção das vilas foi transferida para a iniciativa privada, levando diversas empresas a erguerem esses empreendimentos para seus próprios funcionários.

Essa medida, além de garantir um maior controle sobre os trabalhadores,  visava tornar o negócio mais lucrativo, já que, devido às dificuldades de acesso às fábricas e às frequentes inundações do Rio Tietê (especialmente na região da Água Branca), os operários muitas vezes ficavam impedidos de chegar ao trabalho. Nesse contexto, no início da década de 1910, Antônio Prado inaugurou duas vilas operárias contíguas à fábrica Santa Marina: a Vila Velha, pioneira, e posteriormente a Vila Nova.

Francisco Ingegnere, conhecido como Chiquinho, ex-trabalhador da empresa, jogador amador e atual presidente do Santa Marina Atlético Clube (SMAC), relata que a prática do futebol entre os trabalhadores remonta exatamente a esse período. Oficialmente, o clube, inicialmente denominado Santa Marina Football Club, foi organizado em 1913 por um grupo de operários, a partir da iniciativa de José Bonelli, um dos trabalhadores da vidraçaria.

Antônio Prado Jr., filho do fundador da empresa, teria contribuído para a criação do time, o que é destacado pela presença de um busto em sua homenagem na área de convivência do clube. Ter o nome da fábrica estampado nas camisas dos jogadores (e trabalhadores) aumentava a visibilidade e o reconhecimento da marca da empresa, associando-a positivamente ao esporte e à comunidade local. Além disso, o patrocínio de times de futebol amadores era uma estratégia para fortalecer os laços com a comunidade operária.


Por outro lado, o futebol estreitava os laços horizontais e de solidariedade entre os trabalhadores forjando muitas vezes uma consciência crítica em relação aos patrões, frequentemente criando um senso de identidade comunitária e de classe. Em muitos momentos, essas identidades se expressaram em protestos e greves como a de 1909 que paralisou completamente a fábrica.


Assim, o clube tornou-se um espaço fundamental para o lazer e sociabilidade de toda comunidade de trabalhadores e seus familiares. Em meio ao seu rico acervo iconográfico preservado, é possível reconhecer vestígios de excursões pelas cidades do interior de São Paulo, confraternizações diversas e a iniciação esportiva através do boxe, halterofilismo, ciclismo e futebol.

Em meio às transformações que envolveram a profissionalização do esporte bretão no Brasil na década de 1930, o SMAC teve uma breve incursão no futebol profissional, participando do Campeonato da Liga Esportiva de Comércio e Indústria (LECI) de 1959 a 1960 e do Campeonato Paulista da 3ª Divisão em 1960. Com o passar dos anos, o clube passou a cumprir não apenas a função de recreação, mas também de assistência e segurança social para as comunidades de toda aquela região.

A empresa Santa Marina foi adquirida pela multinacional francesa Saint-Gobain na década de 1960. Mesmo sem manter as operações no antigo terreno da fábrica da Santa Marina nos dias atuais, parte da estrutura fabril permanece no mesmo local. As chaminés do forno da empresa foram oficialmente tombadas em 2009. No entanto, o tombamento inclui apenas a preservação integral das chaminés e de algumas outras estruturas arquitetônicas da fábrica.

Já o clube de várzea do Santa Marina não foi incluído no tombamento, apesar  de representar uma rara conformação cultural-esportiva-popular que resiste às transformações urbanas e especulação imobiliária. Nos últimos quinze anos, a associação tem enfrentado ameaças de despejo da Saint-Gobain. No entanto, o clube tem resistido e se mobilizado, inclusive com o uso de uma Ação Civil Pública, amparada em um novo instrumento chamado de Proteção de Área Cultural.

A despeito dos desafios recentes, a comunidade segue organizada e em luta, e espera colaborar para novas maneiras de pensar os patrimônios coletivos e de trabalhadores, que levem em conta o direto às atividades de lazer bem como assegurem a existência das iniciativas autônomas e populares de preservação da memória.

Finais do “Campeonato Popular de Box”  na década de 1950. Acervo SMAC | Direitos Reservados.


Para saber mais:

  • BONFIM, Aira F. Futebol Feminino no Brasil: entre festas, circos e subúrbios, uma história social (1915-1941). Edição da Autora, 2023.
  • SANTOS, Regina Helena Vieira. Vilas Operárias como patrimônio industrial. . Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/VI_coloquio_t2_vilas_operarias.pdf. Portal do IPHAN, VI Colóquio Vilas Operárias, 2012.
  • DOS SANTOS, Alberto Luiz; BONFIM, Aira; SPAGGIARI, Enrico. Mapeamento do futebol de várzea de São Paulo (SP): Reflexões para processos de proteção ao patrimônio. Revista Desenvolvimento Social, v. 28, n. 1, p. 122-152, 2022.
  • OLIVEIRA, Gabriel Yukio Shinoda. Entre a bola e a fábrica: reflexos da industrialização paulistana no clube de fábrica Santa Marina. Revista Hydra: Revista Discente de História da UNIFESP, v. 5, n. 9, p. 339-356, 2021.
  • RODRIGUES, Angela Rosch. Patrimônio industrial e atividade fabril: o caso da antiga Vidraria Santa Marina. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/264044619_Patrimonio_industrial_e_atividade_fabril_o_caso_da_antiga_Vidraria_Santa_Marina
  • Portal Researchgate, VI Colóquio Latino-Americano: sobre recuperação e preservação do patrimônio industrial, São Paulo, 2012.

Crédito da imagem de capa: Vista aérea da fábrica e do campo de futebol de várzea do Santa Marina Atlético Clube. Direitos Reservados. 


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Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.