Lugares de Memória dos Trabalhadores #15: Clube Renascença, Rio de Janeiro (RJ) – Lucas Pedretti



Lucas Pedretti
Doutorando em sociologia no IESP/UERJ



No início da década de 1970, o Clube Renascença, localizado no Andaraí, zona norte do Rio de Janeiro, recebia aos domingos a Noite do Shaft, festa que reunia centenas de jovens trabalhadores(as) negros(as) a cada edição. Nas caixas de som, o mais moderno da música soul estadunidense. Nas paredes, slides com cenas de filmes relacionados à questão racial e mensagens que incentivavam os frequentadores a tomarem consciência sobre sua identidade negra e sobre os problemas do racismo na sociedade brasileira.

O Renascença surgiu em 1951 como um local voltado para uma classe média negra que, a despeito de sua condição econômica, vivenciava a segregação em espaços recreativos da cidade. Ao longo dos anos 1960, esse projeto começou a ser objeto de tensões, especialmente a partir da realização de rodas de samba no local, atividade vista de forma negativa pelos sócios-fundadores. Em 1970, Asfilófio Filho, um jovem engenheiro negro conhecido como Dom Filó, se tornou diretor cultural do clube. Buscando estimular novos debates sobre a identidade negra, começou a promover a Noite do Shaft, nome em homenagem a um filme do gênero blaxploitation, movimento cinematográfico protagonizado por atores e diretores negros nos EUA.

Mas a Noite do Shaft era apenas um dos vários bailes que ocorriam nos finais de semana em diferentes localidades. Festas similares aconteciam tanto nos subúrbios das zonas norte e oeste da cidade, quanto na Baixada Fluminense, locais de moradia das classes trabalhadoras. Esse fenômeno sociocultural foi fundamental para disparar debates sobre a questão racial. Dentre todos os bailes, era o do Renascença que dava maior centralidade a essa dimensão.


Não são poucos os militantes que atuaram na reconstrução do movimento negro naquele momento e que narram como os bailes foram espaços importantes para o desenvolvimento de uma consciência acerca do racismo e da questão racial. Certamente não foram todos/as os/as trabalhadores/as que frequentavam os bailes que aderiram às organizações do movimento negro. Ainda assim, a linguagem, vestuário e expressão corporal daqueles jovens produziam uma profunda transformação no cenário cultural da cidade. O Renascença era o epicentro dessa mudança.


A ditadura militar havia aprofundando ainda mais a segregação social e racial no Rio de Janeiro, após um processo de remoções forçadas de favelas que atingiu milhares de famílias entre 1968 e 1973. Era um momento de repressão e censura a quaisquer manifestações políticas, em que o regime impunha o mito da democracia racial – ou seja, a ideia de que no Brasil não existiria o racismo – como importante pilar ideológico. Nesse contexto, fazer um penteado Black Power e se deslocar entre os bairros da cidade, mesmo que apenas para se divertir, eram gestos ousados, que colocavam em xeque uma série de valores e regras sociais.

Não à toa a ditadura logo passou a enxergar os bailes como uma ameaça, como é possível ver atualmente na extensa documentação produzida por órgãos do aparato repressivo. Foi nesse contexto, por exemplo, que Dom Filó chegou a ser preso e levado para o DOI-CODI. Mas, também eram comuns os relatos de jovens negros que, a caminho dos bailes ou voltando para casa após as festas, independentemente de quaisquer manifestações políticas explícitas, eram alvos de “duras” da polícia. As abordagens eram especialmente violentas quando os “suspeitos” tinham uma postura de afirmação e celebração da sua identidade negra – como, por exemplo, o penteado Black Power. Alguns chegavam a ser presos, acusados de “vadiagem”, expediente utilizado com frequência pela polícia para cercear os direitos de trabalhadores negros moradores das favelas, periferias e subúrbios. Para além das polícias civil e militar, grupos de extermínio da época, como a Invernada de Olaria e o Mão Branca, também faziam parte da sua experiência de circulação pela cidade.

Para a ditadura e os setores conservadores, o grande medo era a possibilidade de surgir um movimento político negro a partir dos bailes. Mas também setores da esquerda, ou mesmo parcelas do movimento negro organizado, viam as festas de maneira crítica. Para eles, os bailes eram um mero produto da indústria cultural, o que comprovaria a suposta “alienação” dos seus adeptos.

Em fins dos anos 1970, o fenômeno dos bailes perdeu força, mas deixou seu legado para a juventude negra das classes trabalhadores do Rio de Janeiro. A partir de sua influência, desenvolveram-se várias manifestações culturais que se tornaram fundamentais para o lazer e a sociabilidade das gerações seguintes, como o hip hop e, especialmente, o chamado funk carioca. O Renascença também mudou, mas sem perder a marca de um espaço de celebração e homenagem à cultura negra em suas várias dimensões. Desde 2005, por exemplo, o músico Moacyr Luz comanda ali uma das rodas de samba mais famosas da cidade, não por acaso denominada de “Samba do Trabalhador”. Em uma experiência histórica como a do Brasil, na qual raça e classe são elementos profundamente imbricados, o clube que melhor sintetiza a força do movimento black dos anos 1970 se constitui, de maneira inequívoca, como importante espaço de memória da classe trabalhadora brasileira.

Noite do Shaft, baile que ocorria todos os domingos no Renascença Clube na primeira metade dos anos 1970.
Acervo CULTNE.


Para saber mais:

  • ALBERTO, Paulina. Quando o Rio era Black: Soul Music no Brasil dos anos 70. História: Questões & Debates, v. 63, n. 2, 2015.
  • ESSINGER, Silvio. Batidão: uma história do funk. Rio de Janeiro & São Paulo: Record, 2005.
  • GIACOMINI, Sônia. A alma da festa: família, etnicidade e projetos num clube social da Zona Norte do Rio de Janeiro, o Renascença Clube. Belo Horizonte e Rio de Janeiro: UFMG e IUPERJ, 2006.
  • PEDRETTI, Lucas. Bailes soul, ditadura e violência nos subúrbios cariocas na década de 1970. Dissertação (mestrado) do Programa de Pós-graduação em História Social da Cultura da PUC-Rio, 2018.
  • Portal CULTNE – Acervo Digital de Cultura Negra: http://www.cultne.com.br

Créditos da imagem de capa: Ao longo dos anos 1970, os bailes black foram uma das principais diversões de trabalhadores(as) jovens negros(as) nos bairros populares do Rio de Janeiro. Créditos: CPdoc Jornal do Brasil, fotógrafo: Almir Veiga.


MAPA INTERATIVO

Navegue pela geolocalização dos Lugares de Memória dos Trabalhadores e leia os outros artigos:


Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

Lugares de Memória dos Trabalhadores #14: Igreja de São José do Ribamar, Recife (PE) – Marcelo Mac Cord



Marcelo Mac Cord
Professor da Faculdade de Educação da UFF



No Recife, em 1735, um grupo de artesãos fundou uma irmandade para fortalecer sua fé e sua autoproteção. Eles escolheram São José como patrono, pois, em sua maior parte, eram profissionais que lidavam com a madeira: carpinteiros, tanoeiros e calafates. Entre os carpinteiros existiam carpinas, especializados na feitura de escadas, janelas, pisos e telhados. Por causa desses últimos artífices, que trabalhavam em canteiros de obras, alguns pedreiros também foram convidados para fundar a entidade católica e leiga.

Na segunda metade do século XVIII, a Igreja de São José foi construída pelos devotos do santo padroeiro. Localizada na região central do Recife, a sede da Irmandade de São José foi edificada na parte mais pobre e negra da cidade, beirando o mar da ilha de Santo Antônio. Por causa de sua posição geográfica, o templo ganhou o nome de Igreja de São José do Ribamar. A própria Irmandade foi assim rebatizada. Em 1844, a localidade se transformou no bairro de São José. Contudo, devido aos aterros feitos, o edifício religioso ficou mais distante das águas.  

Mestres, oficiais e aprendizes daqueles ofícios podiam se matricular na Irmandade de São José do Ribamar, fossem eles nacionais ou estrangeiros. Mulheres e escravos também, mas somente os mestres, homens livres e libertos, podiam participar de sua direção. A partir dos anos 1770, com a autorização da Câmara Municipal, a Irmandade de São José do Ribamar conquistou alguns privilégios usufruídos pelas corporações de ofício: diplomar novos mestres, controlar o mercado de trabalho e monopolizar o ensino profissional.   

A Constituição de 1824 extinguiu as corporações de ofício, exigindo que a Irmandade de São José do Ribamar se reinventasse. Tal necessidade se aprofundou no final dos anos 1830, devido às reformas urbanas iniciadas pelo barão da Boa Vista, presidente da província. Marcadas pela “civilização” e pelo “progresso”, a “modernização” do Recife deveria prescindir de “arcaicas” formas de organização do trabalho. Nesse período de intensas transformações, a Irmandade aprovou novas regras. Para que seus artífices fossem mais respeitados e conquistassem mais serviços, o grupo deixou de matricular escravos e reconstruiu relações com a municipalidade.     


Neste contexto, alguns membros pretos e pardos da Irmandade de São José do Ribamar, todos livres e mestres pedreiros e carpinas, idealizavam uma sociedade de auxílios mútuos e de instrução. Fundada em 1841, a Sociedade das Artes Mecânicas oferecia uma caixa social e aulas noturnas aos seus filiados.


Por ser formada fundamentalmente por devotos do santo carpinteiro, uma dependência do templo foi cedida para suas atividades. A entidade recifense foi criada para lutar contra históricos estigmas que recaiam sobre os ombros dos trabalhadores de cor, como “preguiça” e “incapacidade”. E também para combater o “defeito mecânico”, que pressupunha a incapacidade intelectual dos trabalhadores manuais.

No início dos anos 1840, a Igreja de São José do Ribamar passava a abrigar dois grupos que possuíam membros em comum, especificidades organizacionais próprias e o desejo de orientar os artífices recifenses em tempos de “modernização”. Em 1866, contudo, após uma série de conflitos irreconciliáveis, a Irmandade de São José do Ribamar expulsou a rebatizada Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais do templo, pois não aceitava ser coadjuvante em sua própria casa. O grupo de auxilio mutuo e de instrução crescia em número de sócios, ganhava visibilidade pública e exigia cada vez mais autonomia política e espacial na Igreja de São José do Ribamar.

Na década de 1870, enquanto a Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais administrava o Liceu de Artes e Ofícios do Recife no bairro de Santo Antônio, a Igreja de São José do Ribamar perdia um pouco mais de sua centralidade na vida dos artesãos. Naquele momento a Igreja Católica procurava livrar os espaços sagrados das chamadas experiências “mundanas” e tornar o culto mais “piedoso” e “disciplinado”. Em 1872, interventores indicados pelas autoridades religiosas pernambucanas decidiram que a Irmandade de São José do Ribamar deveria aceitar qualquer católico em seus quadros, sem distinção. Essa forte ruptura com as tradições ligadas ao mundo do trabalho artesanal descaracterizou a entidade leiga dos trabalhadores. Como irmandade estritamente religiosa, suas atividades seguiram até os anos 1980, segundo seus livros de registro.   

Hoje, quando andamos pelas ruas do Recife, e passamos pela Igreja de São José do Ribamar, não conseguimos imaginar sua importância para a formação da classe trabalhadora pernambucana. Até as últimas décadas do Império do Brasil, nela conviveram artífices que sobreviviam do suor do próprio rosto e possuíam expectativas comuns. Gente que queria fortalecer sua inserção social por meio de organizações que valorizassem o trabalho bem feito e as experiências forjadas em oficinas e canteiros de obras. A maior parte desses homens era negra e mestiça. Eles precisam ser lembrados, sempre, como a base do nosso mundo do trabalho.

Notícia sobre evento da Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais na Igreja de São José do Ribamar; Echo Pernambucano, 23 de outubro de 1853.
Acervo: Setor de periódicos do Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano, Recife (PE).


Para saber mais:

  • GUERRA, Flávio. Velhas igrejas e subúrbios históricos. 2. ed. Recife: Fundação Guararapes, 1970.
  • MAC CORD, Marcelo. Artífices da cidadania: mutualismo, educação e trabalho no Recife oitocentista. Campinas, SP: Editora da Unicamp/Fapesp, 2012.
  • SILVA, Henrique Nelson da. Trabalhadores de São José: artesãos do Recife no século XVIII. Dissertação de Mestrado em História: UFPE, 2010.
  • SILVA, Henrique Nelson da. O paradoxo do trabalho: o corporativismo artesanal e as trajetórias de vida dos oficiais mecânicos, século XVIII. Tese de Doutorado em História: UFPE, 2018.

Crédito da imagem de capa: Panorama da freguesia de São José em Recife, com a Igreja de São José do Ribamar em destaque; Frederick Hagedorn (1856). Acervo da Fundação Joaquim Nabuco.


MAPA INTERATIVO

Navegue pela geolocalização dos Lugares de Memória dos Trabalhadores e leia os outros artigos:


Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.


Lugares de Memória dos Trabalhadores #13: Memorial 9 de Novembro, Volta Redonda (RJ) – Alejandra Estevez



Alejandra Estevez
Professora de Sociologia da Universidade Federal Fluminense – Volta Redonda



O Memorial 9 de Novembro foi inaugurado no dia 1° de maio de 1989 com o intuito de homenagear os três operários assassinados pelas forças repressivas do Exército no interior da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em Volta Redonda, durante a histórica greve de novembro de 1988. Esta paralisação foi a maior de uma série de greves operárias ocorridas na cidade ao longo dos anos 1980, capitaneadas pelo Sindicato dos Metalúrgicos de Volta Redonda e com forte apoio dos setores progressistas da Igreja Católica. Foi, sem dúvida, a mais significativa delas, não apenas pelas proporções que assumiu, mas porque extrapolou o espaço fabril para ocupar e envolver toda a cidade.

Volta Redonda, a chamada cidade do aço, que cresceu e se desenvolveu umbilicalmente vinculada à empresa siderúrgica, agora se mobilizava na defesa de seus direitos. A paralisação teve início no dia 7 de novembro e, dois dias depois, mesmo diante da manutenção do alto-forno da siderúrgica em funcionamento pelos grevistas, soldados do Exército e do Batalhão de Choques da Polícia Militar do Rio de Janeiro invadiram a usina, sob a alegação de proteção das máquinas, após terem dispersado violentamente uma manifestação em frente ao Escritório Central da Companhia. Este dia foi marcado pela trágica morte dos três operários metalúrgicos, William Fernandes Leite, de 22 anos, morto com tiro de metralhadora no pescoço; Valmir Freitas Monteiro, de 27 anos, morto com tiro de metralhadora nas costas; e Carlos Augusto Barroso, de 19 anos, morto por esmagamento de crânio.

A ferocidade das mortes chocou o país e dava mostras de que, na cidade metalúrgica, a ditadura militar e sua brutalidade ainda não haviam acabado. Apesar do assassinato dos operários, da intensa repressão e da ocupação da CSN pelos militares, a greve duraria 17 dias em clima de impressionante mobilização. Acabou encerrada com um acordo que evitou a punição dos grevistas, garantiu a readmissão dos dispensados em greves anteriores e previu a adoção do turno de 6 horas, além de um um abono salarial


Encomendado pela prefeitura de Volta Redonda, o Memorial 9 de Novembro foi projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer para inscrever na memória local a força operária e para que a população nunca se esquecesse das arbitrariedades cometidas contra os trabalhadores. A homenagem era prestada aos três operários mortos, William, Valmir e Barroso, ícones da resistência operária na cidade.


O prefeito era Juarez Antunes, antigo presidente do Sindicato dos Metalúrgicos, de tradição trabalhista e apoiado pelas forças do novo sindicalismo. A praça onde foi instalado o monumento foi rebatizada com o nome do prefeito sindicalista, em substituição ao nome de Edmundo de Macedo Soares, militar e engenheiro responsável pela instalação da CSN, nos anos 1940. Juarez Antunes havia falecido em março de 1989, dois meses após sua posse, num acidente de carro em circunstâncias até hoje não esclarecidas, causando grande comoção e indignação no meio operário.

O evento de inauguração do Memorial contou com a presença de milhares de pessoas. Naquele Primeiro de Maio, a Central Única dos Trabalhadores definiu que Volta Redonda seria o epicentro das mobilizações e manifestações sindicais. Além de milhares de ativistas de todo o país, o evento contou com a presença de figuras importantes do sindicalismo e da política nacional, como o então presidente nacional da CUT, Jair Meneguelli, e de Luis Carlos Prestes, histórico líder comunista.

Algumas horas depois da inauguração, contudo, o monumento sofreu um atentado terrorista, com bombas produzidas pela IMBEL, fábrica de material bélico do Exército, conforme comprovou o laudo do Instituto de Criminalística Carlos Éboli. Três bombas, colocadas na base do monumento recém-inaugurado, foram detonadas, deixando-o destroçado e causando estragos até mesmo no edifício do Escritório Central da CSN e em construções próximas ao local. O atentado até hoje não foi esclarecido e ainda envolve uma morte suspeita, a do cabo Charles Fabiano, que estava de vigia naquela madrugada e iria depor como testemunha no inquérito que investigava o caso.

Niemeyer foi convidado a projetar a reconstrução do monumento destruído, mas sugeriu que, ao invés de reformada, a obra fosse preservada tal como estava, em memória de mais um ato do autoritarismo de Estado. Atualmente, o monumento aos operários mortos permanece como um lugar de memória, na medida em que fornece sentido simbólico à cidade, protege-a do esquecimento e funciona como documento historicamente construído. Ainda que atualmente este monumento fique um pouco perdido em meio à correria de pessoas e edifícios construídos ao redor, a praça permanece viva para os movimentos sociais da região, que costumam fazer desse lugar, palco de suas manifestações políticas, atualizando seus sentidos e produzindo novas experiências coletivas.

Memorial 9 de novembro no dia seguinte ao atentando em 1989
(Acervo: Sindicato dos Metalúrgicos do Sul Fluminense) e atualmente (Acervo: Prefeitura Municipal de Volta Redonda)



Para saber mais:


Crédito da imagem de capa: Tropas militares ocupam a Companha Siderúrgica Nacional durante a greve dos metalúrgicos de 1988. Acervo: FolhaPress. Fotógrafo: Homero Sérgio.


MAPA INTERATIVO

Navegue pela geolocalização dos Lugares de Memória dos Trabalhadores e leia os outros artigos:


Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

Lugares de Memória das Trabalhadoras #12: Sede do Sindicato de Trabalhadoras Domésticas de Campinas (SP) – Louisa Acciari



Louisa Acciari
Pós-Doutoranda em Sociologia na UFRJ



Apesar de ser uma das categorias mais importantes no mercado do trabalho (cerca de 6 milhões, dos quais 93% são mulheres), as trabalhadoras domésticas sempre foram colocadas à margem dos direitos do trabalho e da cidadania. O trabalho reprodutivo, doméstico e de cuidado segue sendo percebido como a tarefa natural das mulheres e das mulheres negras em particular. A própria CLT e a lei complementar 150 de 2015, que estende direitos trabalhistas à categoria, perpetuam uma visão naturalizada da divisão social e sexual do trabalho ao definir o serviço doméstico como atividade “não lucrativa”. Assim, a luta dessa categoria, antes mesmo de conquistar qualquer direito, começa por poder se pensar e reivindicar o status de trabalhador. O espaço do Sindicato de Trabalhadoras Domésticas de Campinas teve um papel fundamental nesse processo.

A Associação Profissional Beneficente das Empregadas Domésticas de Campinas foi fundada em 1961 por Laudelina de Campos Mello, a mesma militante que havia criado a primeira associação de trabalhadoras domésticas do Brasil em 1936, na cidade de Santos. Sediada nas dependências do Sindicato da Construção Civil, no centro de Campinas, as demandas principais da Associação eram o direito à sindicalização e a equiparação dos direitos com os demais trabalhadores.


A Associação funcionava também como lugar de lazer, onde as trabalhadoras organizavam bailes, festas de aniversário e bingos. O fato de poder se reunir e compartilhar momentos festivos foi, e continua sendo, um ato essencial para uma categoria tão fragmentada. De fato, a maioria das domésticas trabalham sozinhas em casas particulares, e nos anos 1960, muitas moravam no emprego. Esses momentos de sociabilidade eram os únicos que elas tinham para encontrar suas colegas e confraternizar, se reconhecendo dessa forma como uma categoria com problemas e interesses comuns.


A Associação de Campinas não foi fechada durante a ditadura militar mas passou a funcionar como entidade beneficente, tendo uma atuação mais educativa do que abertamente reivindicativa. Após um período de paralisação nos anos 1970, retomou oficialmente suas atividades em 1983, sob o impulso de Anunciação Marquesa dos Santos Adão, militante da Pastoral Operária, e se tornou oficialmente sindicato em outubro de 1989, uma vez que esse direito foi conquistado na Constituição Federal de 1988. Dona Laudelina viu assim um dos sonhos mais antigos se realizar pouco antes de falecer, em 1991. Antes de morrer, ela doou uma casa na Rua Ataulfo Alves, 396, no bairro de Castelo Branco, que havia herdado de sua patroa para que o sindicato tivesse uma sede fixa. É lá que as militantes atendem as trabalhadoras, realizam suas reuniões mensais, cursos de formação, festas e bingos, e a tradicional feijoada do sindicato todo ano no mês de julho.

O sindicato de Campinas foi ainda um ator essencial na fundação da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (FENATRAD), criada em 1997 e sediada em Campinas durante seu primeiro mandato. A primeira presidenta da FENATRAD, Anna Semião, também atuou para fortalecer os encontros estaduais de São Paulo (nos anos 1990 havia 12 sindicatos ativos no estado), além de ser uma militante do movimento negro, do Partido dos Trabalhadores e da Central Única dos Trabalhadores. O sindicato de Campinas contribuiu para o desenvolvimento de um discurso sobre a exploração racial ao nível da federação e tornou essa questão uma pauta central do movimento. Como explicado por Anna: “quando entrei no sindicato, eu já estava no movimento de mulheres negras. Já sabia que a causa de muitas dificuldades na nossa vida, não era por conta de ser doméstica, era por conta de ser negra. Era por conta de ser negra que a gente era doméstica”.

O Sindicato das Trabalhadoras Domésticas de Campinas e sua sede continuam sendo uma referência em nível nacional. Representam um lugar onde foi possível organizar as “inorganizáveis”, essas mulheres que nem eram reconhecidas como trabalhadoras e que conseguiram, apesar de tudo, criar sindicatos, uma federação nacional e obter uma reforma constitucional em 2013.

Tradicional feijoada na Sede do Sindicato de Trabalhadoras Domésticas de Campinas, 2015.
Acervo do Sindicato de Trabalhadoras Domésticas de Campinas.


Para saber mais:

  • ACCIARI, Louisa. Paradoxes of Subaltern Politics: Brazilian Domestic Workers’ Mobilisations to Become Workers and Decolonise Labour. Tese de Doutorado. Londres: London School of Economics and Political Science, 2018. Disponível em: http://etheses.lse.ac.uk/3839/
  • BERNARDINO-COSTA, Joaze. Saberes Subalternos e Decolonialidade: os sindicatos das trabalhadoras domésticas no Brasil. Brasília: UnB, 2015.
  • KOFES, Sueli. Mulher, mulheres: identidade, diferença e desigualdades na relação entre patroas e empregadas domésticas. Campinas: UNICAMP, 2001.
  • PINTO, Elisabete Aparecida. Etnicidade, Gênero, e Educação: Trajetória de Vida de Laudelina de Campos Mello. São Paulo: Anita Garibaldi, 2015.
  • Site do Sindicato de Trabalhadoras Domésticas de Campinas: https://sinddomcampinas.wordpress.com

Crédito da imagem de capa: Laudelina de Campos Mello (ao centro) em reunião com empregadas domésticas de Campinas nos anos 1960. Fonte: Blog Casa de Laudelina.


MAPA INTERATIVO

Navegue pela geolocalização dos Lugares de Memória dos Trabalhadores e leia os outros artigos:


Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

Lugares de Memória dos Trabalhadores #11: Sítio Histórico do Irani (SC) – Paulo Pinheiro Machado



Paulo Pinheiro Machado
Professor do Departamento de História da UFSC



Na madrugada do dia 22 de outubro de 1912 um contingente de 55 soldados da polícia do Paraná investiu sobre um grupo de sertanejos, composto por um conjunto diverso de trabalhadores rurais que incluía lavradores pobres, ervateiros, tropeiros e pequenos criadores, que acompanhava o monge José Maria. A refrega foi rápida e a luta se deu em confronto corpo-a-corpo, sendo escutada a fala de um caboclo que se aproximou com seu grupo do comandante policial, apontou ao Coronel e bradou: “Piquem este desgraçado, que ele é o único culpado!” No combate morreram 11 sertanejos e 10 soldados, entre eles o Coronel João Gualberto Gomes de Sá, comandante do Regimento de Segurança do Paraná e o monge José Maria, líder dos sertanejos pobres que se encontravam na região do Irani.

Este combate marca o início da Guerra do Contestado, um longo conflito que se desenrolou no oeste dos atuais Estados de Santa Catarina e Paraná entre 1912 e 1916. A Guerra do Contestado é o ponto de intersecção de diferentes conflitos. A luta tem origem na perseguição das autoridades a um grupo de trabalhadores rurais que se reuniu em torno das curas praticadas pelo monge José Maria, na localidade de Taquaruçu. Dois meses antes do combate do Irani, José Maria e mais de 40 sertanejos abandonaram Taquaruçu para não se confrontar com uma força da polícia de Santa Catarina, chamada pelo chefe político local. Por isso, decidiram migrar mais a oeste, para Irani.

A ação de José Maria já era parte de uma tradição de monges penitentes que circularam pelo planalto meridional desde meados do século XIX. O profetismo popular destes monges que reproduziam um discurso católico tradicional, mas não eram membros oficiais do clero, tinha grande recepção pelas populações pobres do território. Esta tradição religiosa ajudou a criar o repertório discursivo e deu suporte sócio religioso para a formação do projeto rebelde.

A localidade de Irani pertencia ao município de Palmas, região entre os rios Uruguai e Iguaçu, que era disputado entre os estados de Paraná e Santa Catarina, daí a denominação de território Contestado. Santa Catarina ganhou esta região por três ações no STF, mas o Paraná não admitia sua derrota nos tribunais e pugnava por uma solução política para a questão, mantendo a administração efetiva sobre o Contestado. Quando o monge José Maria e os sertanejos que o acompanhavam internaram-se no Irani, a polícia paranaense interpretou este ato como uma “invasão catarinense” ao território em disputa e por isso sua ação foi rápida, violenta e justificada como “preventiva”.

No ano de 1912 havia várias crises que potencializaram estes conflitos. Desde 1908 se construíram na região dois longos ramais da estrada de ferro São Paulo – Rio Grande. Ao longo destes cursos da estrada, o governo federal concedeu as terras devolutas, até 15 km de cada margem da estrada, para a empresa ferroviária norte-americana, a Brazil Railway Company, para a organização de colônias com imigrantes europeus. Ocorre que nestas terras devolutas viviam milhares de lavradores pobres que passaram a ser objeto de expropriação de seus locais de trabalho e moradia. O grupo inicialmente pequeno de seguidores do monge foi agregando um crescente número de trabalhadores rurais despejados, o que potencializou a crise social e ofereceu milhares de habitantes para os futuros redutos organizados pelos sertanejos depois do combate do Irani, conhecidos como “cidades santas”.


Nas “Cidades Santas” os sertanejos, além de resistir aos ataques de latifundiários, policiais e numerosas tropas do exército; inventaram formas comunitárias e solidárias de subsistência. Apesar da derrota definitiva do movimento em 1916, os trabalhadores rurais do Contestado, construíram uma utopia camponesa que até hoje anima a memória de movimentos sociais no Brasil.


Criado em 1984,  o sítio histórico do Irani, localiza-se a 7 km da cidadã de Irani, à beira da BR 153. Trata-se do local onde ocorreu o combate do Irani, dando início à Guerra do Contestado. No sítio está sinalizada a colina onde ocorreu a batalha, o túmulo do monge José Maria e a “cova dos 21” local onde foram sepultados os 21 soldados e sertanejos mortos no combate (com exceção do corpo do Cel. João Gualberto). A poucos metros dali localiza-se o Museu do Contestado e um monumento em forma de cruz com as mãos abertas, com 5 metros de altura, de autoria do artista plástico José Alvim (Mano) inaugurado em 1984. O sítio histórico é local de visitação de turistas e escolares da região e de outros estados do país.

Entre os diferentes locais de memória do Contestado, o sítio histórico do Irani é um marco da luta camponesa pela terra e por uma vida melhor, sendo homenageado e alvo de eventos de muitos movimentos sindicais e sociais, como o MST, o Movimento das Mulheres Camponesas, o Movimento dos Atingidos pelas Barragens, o Movimento dos Pequenos Agricultores, a Comissão Pastoral da Terra e outras entidades populares e de trabalhadores rurais.

Monumento em homenagem aos sertanejos revoltosos do Contestado, Sítio Histórico do Irani.
Fotógrafo: Paulo Pinheiro Machado. Acervo pessoal do autor.


Para saber mais:

  • MACHADO, Paulo Pinheiro. Lideranças do Contestado: a formação e a atuação das chefias caboclas. Campinas: Ed. UNICAMP, 2004.
  • MONTEIRO, Duglas Teixeira. Os Errantes do Novo Século: um estudo do surto milenarista do Contestado. São Paulo: Duas Cidades, 1974.
  • VINHAS DE QUEIROZ, Maurício. Messianismo e Conflito Social: A guerra sertaneja do Contestado (1912-1916).
  • Portal do Sítio Histórico e Arqueológico do Contestado:  https://turismo.irani.sc.gov.br/equipamento/index/codEquipamento/6861
  • Filme: Terra Cabocla (1984). Direção de Márcia Paraíso.

Crédito da imagem de capa: Trabalhadores rurais sertanejos (sentados) rendidos às forças do Exército, janeiro de 1915. Foto de Claro Jansson. Acervo do Arquivo Histórico do Exército (Álbum de fotografias da Campanha do Contestado).


MAPA INTERATIVO

Navegue pela geolocalização dos Lugares de Memória dos Trabalhadores e leia os outros artigos:


Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

Lugares de Memória dos Trabalhadores #10: Engenho Galileia, Vitória de Santo Antão (PE) – Antonio Torres Montenegro



Antonio Torres Montenegro
Professor do Departamento de História da UFPE



Um grupo de trabalhadores constituído por 140 famílias que moravam no Engenho Galileia, no município de Vitória de Santo Antão, a 50 km do Recife, criou a Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco (SAPPP) no final de 1954. Procuravam assim resolver coletivamente os problemas do aluguel da terra (foro), do analfabetismo e do enterro dos seus mortos. Era, de fato, uma associação de ajuda mútua. Para evitar conflitos com Oscar Beltrão, proprietário do Engenho, o convidaram para presidente honorário da SAPPP. Entretanto, passado um breve período, Beltrão alertado de que esse tipo de organização era “coisa de comunista” proibiu a existência da Sociedade.

Esta interdição não paralisou os trabalhadores que, após buscarem apoio entre diversos parlamentares, bateram à porta do deputado do Partido Socialista, Francisco Julião. Este encontro redundou numa parceria que se ampliou com os anos. A assistência jurídica que Julião passou a oferecer aos associados da SAPPP adquiriu visibilidade e se propagou entre os camponeses, produzindo uma surpreendente mobilização. A SAPPP, denominada pela imprensa e pelos órgãos policiais de Ligas Camponesas, possibilitou ao camponês fazer uso dos meios legais para combater o arbítrio e as formas perversas de exploração praticadas pelo patronato rural.

A mobilização dos camponeses de Galileia gerou uma ação de expulsão por atraso no pagamento do foro e por pertencerem às Ligas Camponesas. Como resposta à ameaça de expulsão, Julião apresentou um Projeto de desapropriação do engenho à Assembleia Legislativa de Pernambuco. Após dois anos de forte mobilização, a desapropriação foi aprovada em 1959.


Esta vitória dos camponeses de Galileia fortaleceu a luta por direitos trabalhistas e sociais em Pernambuco e em outros estados do Nordeste, transformando as Ligas Camponesas num verdadeiro símbolo nacional da resistência e da luta pela reforma agrária e pelo fim do latifúndio improdutivo.


Entretanto, a desapropriação de Galileia  também provocou uma enorme reação dos latifundiários, de parlamentares conservadores e da grande imprensa. Para estes setores a Reforma Agrária e as Ligas Camponesas estariam associadas ao Partido Comunista e ameaçavam a “Paz Agrária”. Dois breves registros documentais ajudam a compreender o significado da denominada “paz”. Em uma cena do documentário Brazil: the trouble land, filmado em Pernambuco pela televisão americana ABC em 1961, aparece o deputado e senhor do engenho Constâncio Maranhão, exibindo um revolver como a garantia da lei e da ordem no trato com seus empregados. Um segundo registro, noticiado pela imprensa em janeiro de 1963, apresenta cinco trabalhadores assassinados no pátio da Usina Estreliana, localizada no município de Ribeirão. Estes se dirigiam ao escritório da Usina para entregar um ofício do Delegacia Regional do Trabalho (DRT) para a empresa efetivar o pagamento do 13º salário.

No final dos anos 1950 e início dos 60, diversas forças políticas se digladiavam pela hegemonia da condução das lutas dos trabalhadores rurais brasileiros: o Partido Comunista Brasileiro (PCB), o Movimento dos Agricultores Sem Terras (Master), as Ligas Camponesas, além de vários setores da Igreja Católica. Todos eles entraram em rota de colisão no 1o Congresso de Lavradores e Trabalhadores Rurais realizado na cidade de Belo Horizonte, em novembro de 1961. A disputa se dava fundamentalmente em torno da consigna defendida pelas Ligas Camponesas “Reforma Agrária: na lei ou na marra”.

As lutas pela Reforma Agrária e pelos direitos dos trabalhadores rurais dominavam a imaginação política brasileira naquele período de grandes esperanças de transformação social. Para muitos, o papel central dos camponeses e a política de distribuição de terras realizada pela Revolução Cubana eram forte fonte de inspiração. Foi naquele contexto que, em 1963, o Presidente João Goulart sancionou o Estatuto do Trabalhador Rural que possibilitava a sindicalização e outros direitos aos trabalhadores do campo.

O golpe militar com apoio civil em 1964 interrompeu de forma violenta toda essa mobilização de luta por direitos de trabalhadores rurais e urbanos. No entanto, diversas formas de resistência foram sendo lentamente recriadas. Quando um novo ciclo de mobilizações emergiu no final dos anos 1970 e na década de 1980, os trabalhadores canavieiros de Pernambuco, agora organizados em sindicatos rurais, estiveram à frente de greves e lutas sociais.

Hoje muitos moradores de Galileia ainda vivem e cultivam a terra. Mas uma parcela trabalha nas cidades próximas. Zito da Galileia, neto de Zezé da Galileia, um dos fundadores da SAPPP, tornou-se um “guardião da memória” destas lutas. Escreveu o livro A história das ligas camponesas. Testemunho de quem a viveu, fundou uma biblioteca, construiu uma pequena lápide em memória de Francisco Julião, entre outras iniciativas. Galileia se transformou num local de visitas daqueles interessados em conhecer um dos locais  que se tornaram um símbolo da luta pela reforma agrária e pelos  direitos dos trabalhadores rurais.

Sede da Liga Camponesa do Engenho da Galileia, 1961.
Acervo: Arquivo Público do Estado de São Paulo. Fundo: O Movimento.


Para saber mais:

  • AZEVEDO, Fernando de. As Ligas Camponesas. São Paulo: Paz e Terra, 1982.
  • CARNEIRO, Ana; CIOCCARI, Marta. Retrato da Repressão no Campo – Brasil 1962 – 1985 – Camponeses torturados, mortos e desaparecidos. Brasília: MDA, 2010.
  • MONTENEGRO, Antonio Torres. História, Metodologia, Memória. São Paulo. Editora Contexto, 2010.
  • PORFÍRIO, Pablo Francisco de Andrade. Francisco Julião: em luta com seu mito, golpe de Estado, exílio e redemocratização do Brasil. Jundiaí, SP. Paco Editorial, 2016.

Crédito da imagem de capa: Manifestação das Ligas Camponesas, Recife, 1963. Acervo: Cia. da Memória.


MAPA INTERATIVO

Navegue pela geolocalização dos Lugares de Memória dos Trabalhadores e leia os outros artigos:


Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

Lugares de Memória dos Trabalhadores #09: Praça Dom Pedro II, Petrópolis (RJ) – Eduardo de Oliveira



Eduardo de Oliveira
Doutor em História, Política e Bens Culturais pelo CPDOC-FGV



Situada no centro histórico de Petrópolis, a praça Dom Pedro II é um de vários logradouros que representam os fortes vínculos entre a cidade e a monarquia. A praça fica junto à Rua do Imperador, à Rua da Imperatriz e bem próxima ao Museu Imperial. Inicialmente batizada como “Praça do Imperador”, ainda na época do planejamento da cidade (1845), foi também denominada “Praça Pedro de Alcântara” por alguns poucos anos, após o advento da República. Em 1911, o barão do Rio Branco, em meio a uma grande solenidade festiva, inaugurou no local uma estátua do monarca, a primeira de Pedro II em praça pública. No entanto, as constantes alusões à monarquia expressadas na nomenclatura de ruas e praças de Petrópolis não refletem outros papeis exercidos por estes locais. A praça Dom Pedro II foi palco de importantes manifestações proletárias, em particular de trabalhadores têxteis, sem qualquer relação com as tradições imperiais.

Nos anos 1870, iniciou-se um processo de industrialização em Petrópolis, que se tornou um dos maiores pólos fabris do Estado nos primeiros anos do século XX. Os têxteis viriam a constituir o maior contingente de empregados nas fábricas locais, atingindo perto de 5 mil operários nos anos 1930. Graças à sua mobilização, nas primeiras décadas do século XX a praça foi o centro de significativas manifestações.


O primeiro registro de concentração proletária na praça Dom Pedro II ocorreu durante a greve geral de 1917: na noite do dia 6 de agosto, uma multidão de grevistas, sendo a maioria de operários têxteis, reuniu-se pacificamente no local após passeata e foi dispersada pela cavalaria da força policial. No mês seguinte, a seção local da União dos Operários das Fábricas Têxteis (UOFT), criada por iniciativa de anarquistas, organizou um grande comício na praça Dom Pedro II


O operário Pedro Medina, preso em 1918 devido à insurreição anarquista, foi libertado no ano seguinte, assumiu a presidência da UOFT e liderou outra greve geral nas indústrias têxteis ainda naquele ano. “Mais de cinco mil operários enchiam completamente a praça Dom Pedro”, informou um jornal da época. A UOFT promoveria outras mobilizações no local na década de 1920, como, por exemplo, o protesto contra as execuções de Nicola Sacco e Bartolomeu Vanzetti – operários anarquistas italianos condenados à morte  nos EUA em 1927.

Outras duas manifestações, iniciadas na praça Dom Pedro II, também iriam marcar a cidade nos anos 1930. A primeira, em 1934, reuniu milhares de cidadãos que reivindicavam a manutenção no cargo do então prefeito Yêdo Fiúza. A decisão do interventor estadual Ary Parreiras de substitui-lo, provocou a mobilização de distintas categorias e setores sociais. Embora não tenha sido um movimento exclusivamente operário, atingiu grande participação popular graças aos têxteis. Em 31 de dezembro, os manifestantes concentraram-se na praça e saíram em passeata, carregando um caixão para o “enterro simbólico” de Parreiras. Horas depois a multidão se dispersou. Mas alguns manifestantes envolveram-se num enfrentamento contra adversários de Fiúza, provocando um tiroteio na rua do Imperador. O resultado: dois operários mortos.

Seis meses depois, já no contexto do antagonismo entre Ação Integralista Brasileira (AIB)  e Aliança Nacional Libertadora (ANL), houve novas manifestações e conflitos. Já então congregados em um sindicato, os têxteis foram o esteio para a criação do núcleo local da Aliança na sede do próprio sindicato, a 200 metros da praça Dom Pedro II. Tendo organizado comícios com expressiva participação operária, a ANL promoveu, dia 9 de junho de 1935, outra manifestação na praça, reunindo 2.500 pessoas. De lá, a multidão saiu em passeata pela rua do Imperador. Em frente à sede integralista ocorreu um tiroteio, no qual morreu o tecelão Leonardo Candú, da ANL.

Outras manifestações iriam acontecer na praça Dom Pedro nas décadas seguintes, e até no século XXI, seja por sua localização central, seja pela “tradição” iniciada nos anos 1910 pelos têxteis. Com o esvaziamento do parque industrial local, a partir dos anos 1960, eles deixaram de protagonizar grandes protestos no local que, ainda assim, manteve-se como “palco” para manifestações públicas de diversos segmentos. Mesmo refletindo a tradição monárquica de uma cidade criada pelo próprio imperador, a praça Dom Pedro também simboliza, ainda hoje, apesar das omissões na memória oficial, trabalhadores que se reuniam em multidões para protestar ou reivindicar, vivendo (e morrendo) por uma causa.

Tribuna de Petrópolis de 11 de junho de 1935 informando sobre a morte do operário Leonardo Candu, episódio que deu início à greve geral na cidade.
Fonte: Pedro Aiello (blog “Petrópolis Antigamente”).


Para saber mais:

  • MACHADO, Paulo Henrique. Pão, terra e liberdade na Cidade Imperial: a luta antifascista em Petrópolis no ano de 1935. Petrópolis: ed. do autor, 2008.
  • OLIVEIRA, Eduardo. Cidade “verde” ou cidade “vermelha”: AIB e ANL em Petrópolis. Tese apresentada ao PPGHPBC do CPDOC da Fundação Getulio Vargas. Rio, 2018. In: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/24530
  • PINHEIRO, Paulo Sérgio. ”O Proletário Industrial Na Primeira República”. In: Boris Fausto (ORG.). III. O Brasil Republicano. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994.
  • SILVEIRA FILHO, Oazinguito Ferreira. Petrópolis a outra, um invisível universo operário. Revista do Instituto Histórico de Petrópolis. In: http://ihp.org.br/?p=1038
  • SOUZA, Amélia Maria. Considerações sobre a Historiografia Petropolitana, Petrópolis, Universidade Católica de Petrópolis, 1975.

Crédito da imagem de capa: Uma manifestação tomou conta de Petrópolis no último dia de 1934: a multidão se concentrou na praça Dom Pedro para protestar contra o governo do Estado do Rio de Janeiro. Fonte: Projeto Dami – Museu Imperial de Petrópolis.  


MAPA INTERATIVO

Navegue pela geolocalização dos Lugares de Memória dos Trabalhadores e leia os outros artigos:


Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

Lugares de Memória dos Trabalhadores #08: Palácio do Trabalhador, Maceió (AL) – Anderson Vieira Moura



Anderson Vieira Moura
Professor do Centro Educacional SESC-AM



Um dos principais logradouros do centro de Maceió, a Avenida Moreira Lima é ponto de referência na cidade. Boa parte dos moradores sabe indicar sua localização precisa, no território das ruas mais movimentadas da região, que cortam a avenida ou estão nos seus arredores. Esta característica é algo que não vem de hoje, sendo possível encontrar menções à sua importância em jornais que circulavam no início do século passado. Adentrando a Moreira Lima, vamos em busca da junção de três grandes bairros históricos de moradia da classe trabalhadora: Prado, Levada e Ponta Grossa. Em seu final, a avenida faz uma curva em direção à área onde a rua Formosa se transforma em rua do Livramento – outro ponto afamado do centro. É ali que encontramos o Palácio do Trabalhador.

Hoje o prédio abriga apenas seis sindicatos e o único busto do ex-presidente Getúlio Vargas em Maceió. A escultura fixada bem à frente e voltada para a rua é um importante símbolo da política trabalhista de Vargas, concebida durante a ditadura do Estado Novo (1937-1945). Curiosamente, o Palácio é uma obra posterior, inaugurada em 1950, no apagar das luzes do governo Silvestre Péricles, irmão do general Góis Monteiro, influente militar que ajudou a colocar e a tirar Vargas do poder. Antes de Péricles, seu irmão, Ismar Góis Monteiro, atuou como interventor em Alagoas, entre 1941 e 1945.

Ismar foi escolhido por Vargas e Silvestre Péricles pelo povo, nas eleições de 1947. Seja em uma ditadura, seja na precária democracia, um mesmo sujeito atuou em Alagoas com a missão de auxiliar os dois governantes a implementar a legislação trabalhista no estado: o delegado do Trabalho Muniz Falcão – que, posteriormente, elegeu-se deputado federal por dois mandatos consecutivos até tornar-se governador entre 1955 e 1961. Silvestre Péricles e Muniz Falcão conceberam e, em 1950, inauguraram o Palácio do Trabalhador. Há poucas informações disponíveis acerca de sua construção, concluída em setembro daquele ano.

O intuito da obra era claro: reunir, em um mesmo local, todos os sindicatos de Maceió, com amplo espaço para reuniões e assembleias unificadas, incluindo ambientes para atividades de cunho assistencial (serviços médicos e odontológicos e assessoria jurídica), bem no centro da capital e próximo ao local de moradia dos associados. A administração e direção do Palácio ficou a cargo da Federação dos Trabalhadores nas Indústrias de Alagoas, órgão ligado à Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria.

No ápice do movimento operário, antes do golpe militar-civil de 1964, o Palácio serviu para diversas assembleias sindicais, local de reuniões de pautas unificadoras, comícios, diversos cursos, ponto de encontro e de referência, com comitês de candidatos situados em suas imediações.


Em sua passagem pela cidade, em 1953, o então ministro do Trabalho João Goulart visitou o prédio (passou apenas um dia em Maceió); em 1957, três anos após o suicídio de Vargas, os trabalhadores se reuniram no Palácio, hastearam a bandeira e leram a carta-testamento; as comemorações do 1º de Maio incluíam em sua programação o Palácio como local de encontro e início das festividades.


Além disso, o Palácio servia como ponto de apoio para aqueles sindicatos menores, que não possuíam condições financeiras de manter uma sede própria. Em resumo, a política dos trabalhadores e para os trabalhadores acontecia naquele prédio. Após o golpe militar de 1964, ao longo dos anos 1970 e 1980, o edifício abrigou um número significativo de sindicatos e serviu, principalmente, para atendimentos médicos. No final de 1998, foi tombado pelo Governo do Estado.

Hoje, o Palácio do Trabalhador vive dias de completo esquecimento. Cercado pelo comércio ambulante – ironicamente, trabalhadores que nunca foram amparados pelo local e pela política que o inspirou –, sua estrutura carece de reparos e sua história de um estudo mais aprofundado. Uma boa amostra de como a memória do trabalho ainda é carente em Alagoas.

Diário de Alagoas, jornal ligado ao PTB, destaca evento de homenagem a Getulio Vargas no Palácio do Trabalhador, 24 de agosto de 1957.


Para saber mais:

  • Palácio hoje: “Getúlio Vargas e seu palácio esquecido em Maceió”. Gazeta de Alagoas. Maceió, 8 de jul. 2017. http://gazetaweb.globo.com/gazetadealagoas/noticia.php?c=308918
  • Inauguração: “PALÁCIO DO TRABALHADOR”. Gazeta de Alagoas. Maceió, 15 set. 1950, p. 1
  • MOURA, Anderson Vieira. Trabalhadores, populismo e comunistas: os operários têxteis de Maceió/AL durante o governo Muniz Falcão (1956-1961). 2017. 366 f. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2017.
  • “Fundação oferece serviços médicos gratuitos em Maceió”. TV Gazeta, AL TV, Maceió, 1 de out. 2013. https://globoplay.globo.com/v/2859931/

Crédito da imagem de capa: Palácio do Trabalhador, julho de 2019. Fotógrafo: Joel Morais.


MAPA INTERATIVO

Navegue pela geolocalização dos Lugares de Memória dos Trabalhadores e leia os outros artigos:


Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

Lugares de Memória dos Trabalhadores #07: Cobrasma, Osasco (SP) – Marta Rovai



Marta Rovai
Professora de História da Universidade Federal de Alfenas


Fiz uma poesia do que senti nesses vinte e três anos de Cobrasma. Todos os dias, às seis horas da manhã, o que sentia ao ouvir o seu apito. Da minha cama eu ouvia!



As palavras do operário-poeta Inácio Gurgel, ao lembrar da sirene da fábrica em que se empregou por longo tempo, procura traduzir a importância daquele lugar na memória dos trabalhadores da cidade de Osasco, durante os anos 1960. O apito, tocado três vezes ao dia, marcava o início, as trocas de turno e o encerramento das atividades de fundição e montagem de vagões de trem. Mais do que organizar o tempo e disciplinar o espaço fabril, a sirene também se tornou um símbolo da chamada “cidade trabalho” para a qual migraram italianos, armênios e também nordestinos e interioranos paulistas.

A Companhia Brasileira de Material Ferroviário, a Cobrasma, fundada no ano de 1944 por Gastão Vidigal, membro da elite industrial e financeira paulista, tornou-se referência de modernidade, atraindo trabalhadores de diferentes lugares. Em pouco tempo, a Vila Operária construída no terreno da Cia. Territorial de Osasco, em 1948, ficou pequena para abrigá-los. A expansão da fábrica foi rápida e, em 1956, a Cobrasma foi ampliada com a criação da Cobrasma Rockwell Eixos S.A. (popularmente conhecida como Braseixos), que produzia eixos de carros e caminhões, no projeto de desenvolvimento automobilístico do governo de Juscelino Kubitschek. Nesse momento, o número de trabalhadores já chegava a cerca de 2 mil.

Foi ali, nesta fábrica, que eles compreenderam as relações de desigualdade e organizaram lutas trabalhistas, forjando a si mesmos politicamente. A memória do apito fabril, tão presente em seus relatos, evidencia não apenas o tempo do labor na fábrica que se agigantava, mas principalmente as ações de resistência que realizaram. Em 1962, após o acidente e a morte de um operário em uma das caldeiras da Cobrasma, os trabalhadores tocaram a sirene e paralisaram os trabalhos, em protesto contra a falta de segurança. Esse dia tornou-se evento fundador na trajetória coletiva desses homens (o número de mulheres ainda era muito pequeno), quando então eles subverteram o sentido do toque fabril. Neste mesmo dia decidiram criar a primeira comissão de fábrica, que ficou conhecida como a Comissão dos Dez, a fim de exigirem negociações com seus patrões por seus direitos. Dela participavam dois grupos: os estudantes-operários – como José Ibrahim, Antônio Roberto Espinosa, Roque Aparecido e José Campos Barreto – jovens que estudavam à noite no Colégio Antônio Raposo Tavares (o Ceneart) e que, após o golpe de 1964, ingressariam na Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), organização de luta armada contra o regime ditatorial; e os membros das Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica – como Inácio Gurgel, José Groff, João Cândido e João Joaquim – católicos que deram origem à Frente Nacional do Trabalho (FNT).


Ali, no chão da fábrica, apesar de suas diferenças, esses grupos se encontraram e se uniram, organizando os trabalhadores para lutar contra o arrocho salarial e combater a ditadura. Juntos, com suas referências políticas e religiosas, fizeram nascer na Cobrasma o grupo de teatro, o Sindicato dos Metalúrgicos (para a direção do qual concorreram e ganharam, em 1967, com a Chapa Verde) e as lutas que atingiram seu auge com a famosa greve que paralisou a cidade no ano de 1968. Foi quando tocaram o apito mais uma vez, sinalizando a ocupação da fábrica e resistindo à repressão que se seguiu, com a invasão da cidade pelas tropas da Força Nacional.


Se, de um lado, a greve de 1968 tornaria Osasco uma referência nacional e internacional de resistência operária, por outro seu impacto afetaria famílias inteiras, uma vez que muitos trabalhadores foram presos e entraram para “listas negras” nas empresas, enquanto outros ingressaram na guerrilha e na clandestinidade. Seus familiares passaram a ser vigiados e suas casas invadidas, estendendo a mobilização política ao cotidiano fora da Cobrasma. Mulheres, em especial, criaram redes de proteção aos seus entes queridos, nas vizinhanças e nas prisões. A imprensa, por sua vez, associou a cidade de Osasco ao crime, imaginário que permaneceu por anos nos noticiários, deslegitimando a luta operária. Ainda assim, na onda grevista que varreu o cinturão industrial de São Paulo no final dos anos 1970, os trabalhadores da Cobrasma paralisariam suas atividades mais uma vez, tendo papel importante na luta por democracia e direitos sociais daquele período.

No contexto da crise econômica que afetou a indústria nacional no início dos anos 1990, a Cobrasma encerrou suas atividades em 1994. Além de ruínas, uma fábrica de menor porte e um empreendimento imobiliário ocupam o espaço da outrora poderosa indústria que foi simultaneamente um símbolo do desenvolvimento econômico e da luta dos operários de Osasco. No entanto, as memórias da fábrica como lugar de trabalho e de solidariedade permanecem nos eventos organizados pelo Sindicato dos Metalúrgicos e nas narrativas orgulhosas de trabalhadores e moradores da cidade contra todo tipo de esquecimento.

Anúncio publicitário sobre fabricação de reboques para caminhão na Cobrasma, 1953.
Fonte: Acervo de Jorge A. Ferreira Jr.


Para saber mais:

  • COUTO, Ari Marcelo M. Greve na Cobrasma: uma História de luta e resistência. São Paulo: Annablume, 2003.
  • MIRANDA, Orlando. Obscuros Heróis de Capricórnio, São Paulo: Global, 1987.
  • MOTTA, Antônio C.C.R. Cobrasma: trajetória de uma empresa brasileira. Tese de doutorado. Universidade de São Paulo, 2006.
  • ROVAI, Marta G.O. Osasco 1968: a greve no masculino e no feminino. São Paulo: Letra e Voz, 2014.
  • Filme: 1968: Memórias de uma História de Luta. Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco, 2009 – disponível em https://www.youtube.com/watch?v=B-nqv9NYq0s

Crédito da imagem de capa: Prisão dos operários que ocupavam a Cobrasma durante a greve dos metalúrgicos de Osasco, 17 de julho de1968. Acervo: Folhapress


MAPA INTERATIVO

Navegue pela geolocalização dos Lugares de Memória dos Trabalhadores e leia os outros artigos:


Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

Lugares de Memória dos Trabalhadores #06: “Federação”, Belo Horizonte (MG) – Raphael Rajão Ribeiro



Raphael Rajão Ribeiro
Doutorando em História Política e Bens Culturais pelo CPDOC-FGV



O golpe de 1964 e a instauração da ditadura militar no Brasil impactaram de inúmeras maneiras a vida das pessoas. Aspectos como o cerceamento dos direitos políticos e a perseguição a lideranças democráticas, estudantis e sindicais são alguns dos efeitos mais notórios da atuação do regime. Contudo, suas implicações se estenderam para diversas esferas do cotidiano e, com o lazer dos trabalhadores, não foi diferente. A “Federação”, como é chamado um ponto de encontro que se forma até hoje, na esquina da Avenida Santos Dumont com a Rua Rio de Janeiro no centro de Belo Horizonte guarda a memória da criação de alternativas frente aos constrangimentos que os autoritarismos impõem a livre organização dos divertimentos dos grupos populares.

Assim como em outros lugares do Brasil, o futebol, chegou à capital mineira no início do século XX com ares aristocráticos, mas logo caiu no gosto popular. Já na década de 1910, havia clubes formados em vários bairros operários e uma clara distinção entre as agremiações tradicionais e os chamados “times menores” estava colocada. A profissionalização do futebol, a partir de 1933, veio reforçar essa divisão, com a separação entre equipes tradicionais, que migraram para o novo regime, e clubes populares, que se mantiveram no amadorismo, compondo o que se chamou do circuito da várzea, que agregava centenas de times, mais ou menos formalizados, organizados entre trabalhadores reunidos por categoria profissional ou estabelecimentos onde atuavam, moradores de bairros, membros da mesma família ou grupos de amigos.

Com a regulamentação das políticas esportivas, promovida pelo Estado Novo, criou-se, em 1942, seção específica na Federação Mineira de Futebol para tratar desses clubes, o Departamento de Futebol Amador ou DFA. Por anos, o DFA manteve sua sede num tradicional ponto de intensa circulação da população trabalhadora da cidade, a Avenida Santos Dumont, antes chamada Avenida do Comércio.

As dependências do DFA eram um espaço não apenas de organização das competições que envolviam os clubes varzeanos a ele filiados, mas de uma enormidade de agremiações não federadas que se dirigiam para lá em busca da combinação de amistosos e excursões a outras cidades. A articulação dessas partidas fazia parte do esforço de dirigentes e jogadores de preencheram os fins de semana livres do calendário oficial de jogos, de modo a ter lazer garantido, de maneira ininterrupta, todo o ano.


Tais disputas autorreguladas permitiam a articulação entre clubes do meio oficial, equipes classistas e times não institucionalizados que compunham o circuito varzeano local, que representava a principal alternativa de lazer dos trabalhadores nos bairros periféricos.


A realização das partidas fora do calendário oficial nunca foi bem vista pelo DFA, que se incomodava com os pedidos de dispensa dos clubes para jogos em festivais ou em cidades do interior. Com as mudanças na política esportiva após o golpe de 1964, a atuação do órgão dirigente tornou-se cada vez mais burocrática e autoritária. Exigências de alvará, aplicação de multas, expulsão de agremiações, proibição de inscrição de jogadores que não comprovassem vínculo empregatício ou estudantil foram alguns dos constrangimentos impostos às associações filiadas.

Nesse contexto de tensão entre o DFA e o circuito da várzea, a mudança, no ano de 1967, da entidade dirigente para a Avenida João Pinheiro, na parte mais nobre do centro da cidade, foi ocasião para que os clubes se afastassem e passassem a organizar de forma mais autônoma suas atividades. A partir de então, constituiu-se, em frente à antiga sede do DFA, um ponto de encontro que se formava todas as segundas-feiras, no fim da tarde, após o expediente dos trabalhadores. Para lá se dirigiam membros de agremiações filiadas e não filiadas, assim como juízes não pertencentes aos quadros da Federação Mineira de Futebol.

Nesse momento, um verdadeiro pregão se formava com equipes possuidoras de campos anunciando receberem jogos em casa, ao mesmo tempo em que outras se voluntariavam a atuarem como visitantes. Árbitros ficavam à espreita dos acertos para se prontificarem a assumir a direção das disputas por um preço negociado. Clubes do interior enviavam representantes, que apresentariam as propostas para excursões. A atividade da “Federação” estendia-se até o fim da noite. Aqueles que logo acertavam suas partidas aproveitavam a ocasião para permanecerem pelos vários bares da região, que de zona de comércio diurna, convertia-se em área boêmia pela noite.

Os clubes varzeanos seguiram filiados ao DFA e participam ainda hoje de suas competições, contudo, o complemento de seu calendário de jogos desde então se faz no espaço da “Federação”. Ainda que as novas tecnologias permitam outras formas de agendar as partidas, os mais tradicionais ou os novatos no circuito ainda podem ser encontrados na “Federação”. Um espaço que guarda a memória da afirmação da autonomia daquela que segue sendo uma das alternativas de lazer mais recorrentes entre a população trabalhadora e periférica de Belo Horizonte.

Vista aérea do centro de Belo Horizonte em 1961. À esquerda a Avenida Santos Dumont. A “Federação” fica na esquina desta avenida com a Rua Rio de Janeiro.
Coleção Belo Horizonte. Acervo do Museu Histórico Abílio Barreto/ Fundação Municipal de Cultura.


Para saber mais:

  • ARREGUY, Cintia Aparecida Chagas e RIBEIRO, Raphael Rajão (coord.). Histórias de bairros de Belo Horizonte – Regional Centro-Sul. Belo Horizonte: APCBH/ACAP-BH, 2008.
  • BELO Horizonte & O Comércio: 100 anos de História. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1997.
  • RIBEIRO, Raphael Rajão. A bola, as ruas alinhadas e a uma poeira infernal: os primeiros anos do futebol em Belo Horizonte (1904-1921). Rio de Janeiro: Drible de Letra/Multifoco, 2018.
  • SILVA, Pedro Vasconcelos Costa e; MARCELINO, Fábio Cesar. A midiatização dos encontros varzeanos: Uma netnografia dos grupos de WhatsApp destinados a marcação de jogos amistosos em Belo Horizonte. Anais do X Encontro dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação Social de Minas Gerais, CEFET-MG, Belo Horizonte, 2017.
  • MAYOR, Sarah Teixeira Soutto. O futebol na cidade de Belo Horizonte: amadorismo e profissionalismo nas décadas de 1930 e 1940. 358 f. Tese (Doutorado). Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional, UFMG, 2017.

Crédito da imagem de capa:  Disputa de pênaltis em partida de várzea no campo do clube Inconfidência em Belo Horizonte, anos 1970. Acervo: Márcio Antônio Coelho.


MAPA INTERATIVO

Navegue pela geolocalização dos Lugares de Memória dos Trabalhadores e leia os outros artigos:


Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.