Contribuição especial de Antonio Brasil Jr¹
“Em sentido literal, a análise desenvolvida é um estudo de como o Povo emerge na História, trata-se de assunto inexplorado ou mal explorado pelos cientistas sociais brasileiros”. Assim Florestan Fernandes justifica a densa e volumosa pesquisa que resultou em A integração do negro na sociedade de classes, tese por ele defendida em 1964 para assumir como professor catedrático na Universidade de São Paulo. Naquele momento decisivo da história brasileira, Florestan buscava consolidar um programa coletivo de pesquisa voltado à formação da sociedade capitalista no Brasil, chamando a atenção para os modos como aqui o capitalismo combinou simultaneamente um considerável dinamismo econômico e um tenaz compromisso com as estruturas sociais de origem colonial.
Esse assunto “mal explorado” não se refere à ausência de estudos sobre os grupos sociais subalternos que foram se articulando de modo mais ou menos direto à expansão do capitalismo no Brasil. Como assinalou Antonio Candido em texto conhecido sobre o significado das ciências sociais no Brasil, essas disciplinas não apenas aclimataram um universo de teorias, métodos e técnicas de pesquisa, mas igualmente implicaram uma rotação ética e cognitiva ao colocarem em primeiro plano as classes populares – o trabalhador rural, o caiçara, o negro, o operário – no centro da agenda sociológica.
O que Florestan pretendia trazer de novo, naquele livro, era a análise sistemática do sentido do processo de constituição do capitalismo entre nós desde um ângulo “plebeu”, isto é, visto a partir daqueles que foram colocados à margem da sociedade urbano-industrial em gestação. Daí a escolha da população negra como foco do estudo, que se justifica “porque foi esse contingente da população nacional que teve o pior ponto de partida para a integração ao regime social que se formou ao longo da desagregação da ordem social escravocrata e senhorial e do desenvolvimento posterior do capitalismo no Brasil”. É a partir das margens, e não do centro, que o sentido da formação da ordem capitalista se revelaria com maior nitidez – e esse sentido é o da reiteração da exclusão social. Florestan buscou, portanto, observar o capitalismo a partir dos grupos que, em larga medida, ficaram à margem inclusive da proletarização, ou que puderam apenas tardiamente ter acesso a formas de assalariamento regulares e com o mínimo de garantias sociais e jurídicas. Como sabemos, o título do livro, A integração do negro, é uma pista falsa pois trata justamente de seu oposto.
Por essa razão, o interesse do livro ultrapassa a análise da questão racial, uma vez que os padrões de relação entre brancos e negros em São Paulo – matéria imediata da pesquisa – só podem ser entendidos à luz de uma compreensão mais ampla de como a própria sociedade de classes, em vez de corrigir, reproduzia e ampliava formas herdadas de desigualdade e discriminação. Para usar um termo frequente na escrita de Florestan, o ponto central de A integração do negro era entender por que o “Antigo Regime” se recriava, com outras facetas e com outras roupagens, no “epicentro da revolução burguesa no Brasil”. Esse aspecto não é trivial. Na cidade em que a urbanização parecia literalmente derrubar um passado até pouco tempo praticamente rural, em que a industrialização avançava com um vigor inédito no país, em que a imigração europeia – e depois a migração interna – redesenhou profundamente sua demografia, em que tudo parecia novo, Florestan e sua equipe de pesquisadores e de interlocutores anotava metodicamente as formas pelas quais o “moderno” se articulava estruturalmente com os modos de pensar, sentir e agir que pareciam típicos de uma ordem escravista e senhorial.
Ao mesmo tempo em que Florestan concluía essa etapa da pesquisa que liderou sobre as relações raciais no sul do país, ele organizava a partir de 1962 o Centro de Sociologia Industrial e do Trabalho (CESIT), no qual pesquisas sobre empresários, Estado, trabalhadores industriais e desigualdades regionais, dentre outras, foram conduzidas por professores e alunos da Cadeira de Sociologia I. Quer dizer, os agentes sociais constitutivos do moderno capitalismo foram investigados e suas conexões com esse processo de mudança que se combina com o passado foram devidamente perseguidas nas monografias defendidas pelos pesquisadores do CESIT. O próprio Florestan passaria a se dedicar então à teorização sociológica do processo de expansão do capitalismo na periferia, cuja contribuição mais conhecida se encontra em A revolução burguesa no Brasil, de 1975, e que, àquela altura, trazia uma visão muito própria – ainda que coletivamente amadurecida no trabalho em equipe que ele sempre fomentou – sobre os temas da dependência e do desenvolvimento da sociedade brasileira.
É certo que o livro de Florestan de maior alcance teórico é A revolução burguesa no Brasil, mas suas teses fundamentais só se iluminam se lidas conjuntamente com o riquíssimo material empírico analisado em A integração do negro. Pois é na pesquisa sobre a população negra da capital paulistana que são descortinados os mecanismos – os mais explícitos e os mais sutis – que permitem entender a reprodução e a naturalização de desigualdades tão pronunciadas no nível das interações concretas dos agentes sociais. Se os trabalhadores em geral, a despeito de sua cor e de sua origem, tiveram (e ainda têm) que lutar permanentemente para que recebessem um mínimo de dignidade e direitos fundamentais, os trabalhadores negros tiveram (e ainda têm) que lutar por algo ainda mais básico e fundamental, que é o reconhecimento de sua própria condição de humanidade. “Ser gente”, como insistiam vários de seus interlocutores na pesquisa, era uma aspiração mínima e compartilhada pela população negra que encontrava barreiras sistemáticas na interação com os brancos.
Florestan descreve, por diferentes ângulos, os efeitos devastadores, seja para a subjetividade dos sujeitos negros, seja para as suas formas de ação coletiva, de uma sociedade em que a ideia de igualdade parece não fazer sentido nas relações sociais mais básicas. Vale lembrar que, embora identificando os limites estruturais à ação imposta por uma sociedade que racializa seus sujeitos, Florestan dedicou parte significativa do livro aos movimentos sociais negros – que levaram adiante a façanha de defender a igualdade e questionar o mito da democracia racial – e às agruras da ascensão social num contexto em que o “negro que sobe” é visto como a exceção que confirma a regra (racista).
Pesquisas no âmbito da historiografia assinalaram que a interpretação de Florestan não está isenta de problemas, posto que, entre outros temas, teria desconsiderado inúmeras formas de ação e de contestação à ordem racial que surgiram ao longo do processo. De qualquer forma, apesar de seu limites, a obra de Florestan captura o sentido de um processo de formação da sociedade de classes que se volta estruturalmente contra a democratização de suas relações fundamentais. Ou seja: houve luta, resistência (subjetiva e objetiva) e mobilização por parte da população negra durante todo esse processo, mas o circuito fechado (termo caro a Florestan) da dominação racial não se reverteu no plano estrutural. Isso também explicaria o que ele chama de “omissão” da população branca, inclusive um grande contingente da classe trabalhadora, composta de imigrantes brancos na primeira metade do século XX, que teria se mostrado indiferente ao protesto negro.
Nunca mais saiu do horizonte de Florestan as imbricações entre classe e raça na formação histórica dos trabalhadores no Brasil. Os movimentos sociais e políticos que emergiram no país no final dos anos 1970 abriam uma possibilidade inédita nesse sentido. Isso, em grande medida, explica o engajamento político de Florestan e sua eleição em 1986 como deputado federal constituinte pelo PT. Em uma publicação do partido, no centenário da Abolição, em maio de 1988, ele escrevia: “Os trabalhadores brancos, estrangeiros e nacionais, incumbiram-se da tarefa essencial de passar a limpo a noção de trabalho livre como categoria histórica. Agora, ela precisa abranger o negro, em todos os seus pressupostos ou determinações. Socialismo proletário, entre nós, implica raça e classe indissociavelmente associadas de modo recíproco e dialético”.
O programa de pesquisa de Florestan, ver a sociedade brasileira a partir de suas margens, como chamou nossa atenção Elide Rugai Bastos, comunicava (e ainda comunica) ao mesmo tempo dimensões teóricas, éticas e políticas. Em termos teóricos, a margem não é só um lugar (ou pior, um mero objeto), mas uma forma de ver melhor como se articulam centros e periferias, ou seja, o conjunto da sociedade. Do ponto de vista ético, Florestan, que atravessou as duas pontas da sociedade brasileira – em sua dura travessia das margens aos centros (do poder acadêmico e político) –, representou como poucos o compromisso intelectual com a efetiva democratização da sociedade brasileira. E político porque seu programa sociológico exige da sociedade brasileira aquilo que ela estruturalmente recusa: sua transformação no sentido da igualdade substantiva entre todos os grupos sociais que a compõem.
Não à toa, Florestan foi assumido não apenas como um clássico da sociologia brasileira, mas também como um símbolo de luta política. É reiteradamente lembrado e celebrado por diversas correntes do movimento negro, dá nome à principal escola do MST e continua a ser estudado e homenageado em cursos de formação sindical e política por todo o país. O ângulo “plebeu” da história sabe bem que a obra e atuação de Florestan Fernandes continuam a ser referências fundamentais para entender o Brasil a partir das margens.
¹ Professor de Sociologia do IFCS/UFRJ.
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Crédito da imagem de capa: Florestan Fernandes participa de manifestação a favor da educação pública em São Paulo, 1988 . Acervo da família.