Contribuição especial de Cláudia Viscardi¹
“ Quando eu falava, todos sabiam que era um sindicalista que estava falando. ”
Clodesmidt Riani, 2005
Com o que sonhava um filho de trabalhador nascido no interior de Minas na década de 1920? Talvez sobreviver, ter um emprego que lhe proporcionasse uma vida digna, casar-se e ter filhos… Riani atendeu a todas essas expectativas, mas foi mais além. Tornou-se um dos mais importantes líderes sindicais de sua geração.
Nascido na pequena cidade do leste mineiro, Rio Casca, Clodesmidt cedo mudou-se para Juiz de Fora. Sua inserção no mundo do trabalho foi precoce, como era comum entre seus pares. Para ajudar nas despesas da família vendia doces caseiros. Filho de operário, logo seu pai lhe incentivou a aprender alguns ofícios, como o de açougueiro, tipógrafo e sapateiro. Aos 13 anos conseguiu seu primeiro emprego formal em uma fábrica de tecidos, na qual estudou, jogou futebol e ficou conhecido como o Sr. Garoto, por ser um dos mais novos trabalhadores da Cia de Tecelagem Moraes Sarmento.
Por indicação do irmão mais velho, migrou para uma empresa maior e tornou-se eletricitário da Companhia Mineira de Eletricidade, responsável pelo fornecimento de energia e gestão dos bondes elétricos do município. Lá trabalhou até a sua aposentadoria, jornada interrompida apenas pelas prisões e pelos mandatos políticos que exerceu.
Casou-se aos 20 anos e teve dez filhos: cinco meninas e cinco meninos. Seus depoimentos revelam preocupações com os períodos em que esteve afastado de casa e com as dificuldades vividas pela família enquanto estava em Ilha Grande como uma das vítimas da ditadura civil-militar de 1964.
Ao final da década de 1940, envolveu-se na política municipal, apoiando candidaturas trabalhistas. Filiou-se ao PTB em 1950, tornando-se protagonista no sindicato de sua categoria e, embora não tenha sido eleito vereador em razão das regras do coeficiente eleitoral, foi muito bem votado. Logo em seguida, alçaria voos mais altos ao representar os trabalhadores mineiros no Conselho Deliberativo da Caixa de Aposentadoria e Pensões. E quatro anos mais tarde conseguiu não só que os trabalhadores de Juiz de Fora fossem representados na comissão do salário mínimo – já que o município reunia 18 sindicatos fortemente organizados – como se orgulha de ter lutado e obtido o salário de 100% para os trabalhadores que representava.
Tal protagonismo lhe propiciou apoio político para eleger-se deputado estadual por dois mandatos, em 1954 e 1958, ocasiões em que os governadores de Minas eram do PSD e da UDN, respectivamente, partidos sempre mais fortes que o PTB no estado.
Na condição de deputado, representou os trabalhadores de Minas na Conferência da OIT em Genebra, em 1958. Um ano depois, apoiaria a candidatura de Tancredo Neves ao governo de Minas pelo PSD. A derrota para Magalhães Pinto fora um revés para os trabalhadores do estado. No mesmo ano, iniciou sua trajetória na Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria (CNTI), na condição de vice-presidente da agremiação, cargo ocupado até 1961. Com o apoio de João Goulart, tornou-se presidente da CNTI em 1962.
Riani lidera a comissão de líderes sindicais de Minas Gerais em audiência com o vice-presidente João Goulart em 1958. Acervo pessoal de Clodesmidt Riani.
Em um contexto de ascenso das lutas dos trabalhadores e de forte presença do movimento sindical no espaço público, foi fundado, em 1962, o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), uma articulação de sindicatos e federações de diversas categorias, ligados aos comunistas, nacionalistas de esquerda vinculados ao PTB, socialistas e outros grupos menores. Na conjuntura que antecedeu ao golpe de 1964, o CGT teve grande visibilidade e influência, chegando a ser denominado pejorativamente pelos setores conservadores de “quarto poder”.
Na condição de presidente da CNTI Riani assumiu a vice-presidência do CGT. Em maio de 1963 tornou-se presidente da entidade. O apoio do CGT às reformas de base não implicava, no entanto, em adesão imediata a Goulart. A autonomia da agremiação permitiu com que se opusesse aos cortes orçamentários derivados do Plano Trienal e se manifestasse contrária ao estado de sítio proposto pelo Presidente em outubro de 1963.
De qualquer forma as relações com o Presidente eram muito próximas, ao ponto de Riani afirmar que o golpe de 1964 havia interrompido uma importante participação do CGT no governo, já que ele próprio discutia com o Presidente temas fundamentais de interesse dos trabalhadores como o salário mínimo, a previdência e demais direitos. Riani faz referências também a sua intervenção contra a indicação por Goulart de seu ministro do trabalho, Hugo de Faria, que teria obrigado Jango a voltar atrás na escolha. Riani também fez parte de algumas comitivas presidenciais acompanhando Jango em viagens aos Estados Unidos, México, Berlim e Chile. Riani continuava a sua trajetória ascendente. Assumiu a presidência do PTB de Juiz de Fora. Acumulando postos importantes na hierarquia organizacional dos trabalhadores, reelegeu-se presidente da CNTI em 1964.
Como visto, nas décadas de 1950 e 1960 Riani ampliara significativamente a sua inserção no trabalhismo nacional, por meio de sua proximidade a lideranças sindicais e políticas. Nas inúmeras funções de liderança por ele exercidas, participou de conselhos e comissões, representou as associações internacionalmente e esteve próximo aos projetos reformistas em curso.
O golpe de 64 interromperia a sua militância sindical e partidária. Teve seus direitos políticos cassados pelo novo regime, e por ter perdido sua imunidade parlamentar (havia sido reeleito deputado estadual em 1962), foi preso e condenado a cumprir pena de 17 anos, reduzida posteriormente para dez anos. Em razão de mobilizações a seu favor e da ação de advogados, saiu após cumprir quatro anos e dois meses, mas retornaria ao cárcere.
Ressalte-se que a prisão de Riani esteve relacionada a dois fatos imediatos que revelam traços marcantes de sua atuação política. O primeiro diz respeito ao seu envolvimento com a organização de uma greve geral, em que pesem os esforços de Jango em demovê-lo deste objetivo. O segundo em sua recusa em assinar um documento que atestava ser Jango comunista. O primeiro é revelador de sua autonomia como líder sindical em relação ao quadro político-partidário; o segundo, o de sua lealdade ao PTB e aos demais parceiros de luta.
Em 1968, ao ser solto, voltou à antiga Companhia Mineira, embora não tivesse sido fácil obter seu antigo posto de volta. Na ocasião, sua família vivia intensas dificuldades, muito em razão da discriminação que sofria por vizinhos e demais conhecidos. Mas sua liberdade duraria pouco. Riani voltou a ser preso e cumpriu mais três anos, desta feita em Ilha Grande.
Libertado em 1971, voltou ao seu antigo emprego na Cia Mineira de Eletricidade e também ao movimento sindical, mas com moderação, em razão da contínua vigilância exercida sobre a sua vida privada. Aproveitou a ocasião para estudar e se formar em Direito.
Após a anistia e tendo início o processo de redemocratização, Riani se filiou ao PMDB e foi eleito deputado estadual em 1982, quando Tancredo assumira o governo de Minas. Tentou sem êxito a reeleição. Atuou fortemente nas disputas locais, valendo-se de sua liderança para indicar cargos e interferir sobre os rumos políticos do município.
De seu antigo emprego Riani se aposentou em 1983, quando a Cia Mineira de Eletricidade já havia sido agregada à CEMIG. A partir daí sua atuação política e sindical foi reconhecidamente mais discreta. Eram novos tempos. O “Novo Sindicalismo” assumia o protagonismo das lutas sindicais, tendo o eixo paulista se sobressaído sobre os demais estados da federação. As críticas ao sindicalismo trabalhista fechavam espaços para antigas lideranças como a dele. Para além disso, o adoecimento e morte de sua esposa o aproximava mais da vida privada.
Fotografia recente de Riani (sem data). Acervo Pessoal de Clodesmidt Riani.
Nas décadas recentes, Riani preocupou-se em construir uma memória sobre si, concedendo inúmeros depoimentos e entrevistas e organizando um pequeno museu em sua própria residência. Na escrita de si fazem-se claros alguns valores: a humildade de quem reconhece os limites impostos por uma sociedade desigual; a defesa da honra como se dela dependesse a sua imagem; a crença no trabalhismo como o regime que foi capaz de atender a maior parte dos interesses dos trabalhadores brasileiros; a rejeição ao udenismo, que só lhes prejudicou e contribuiu para seu injusto encarceramento; o orgulho de ter tido uma vida digna e voltada para a família e para a sociedade. No último dia 20 de outubro, após ter vencido o Covid, Riani comemorou junto aos seus, seu centenário. Sua trajetória nos fala muito sobre o Brasil do século XX, sobre as lutas por direitos e sobre as interrupções e retomadas democráticas.
¹ Professora do Departamento de História da Universidade Federal de Juiz de Fora
Referências:
HELENO, Alexandre Peixoto . Trabalhismo e história: um percurso nas memórias de Clodesmidt Riani. Perseu: História, Memória e Política , v. 1, p. 11-39, 2011.
PAULA, Hilda R. e CAMPOS, Nilo de A. (orgs.) Clodesmidt Riani: trajetória. Juiz de Fora: Funalfa Edições, 2005.
SILVA, Fernanda R. Abreu. Memórias sindicais da anistia Estudos de caso de operários sindicalistas no contexto da Justiça de Transição pós-ditadura civil-militar. Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2015, cap. 2.
Clodesmidt Riani faz 100 anos! Biografia e homenagens: https://youtu.be/KrRgj68uqcc
Crédito da imagem de capa: Riani em uma passeata durante a greve dos 700 mil de São Paulo (outubro/novembro de 1963). Acervo pessoal de Clodemisdt Riani.