Contribuição Especial #29: Chile 1973: um golpe contra os trabalhadores e trabalhadoras


Ángela Vergara
Professora do Departamento de História da California State University Los Angeles


O golpe de Estado de 11 de setembro de 1973 foi um golpe contra os trabalhadores e seus sonhos de construir uma sociedade mais justa e democrática. Uma contrarrevolução, liderada pelas Forças Armadas e apoiada por amplos setores da sociedade civil e pelo governo dos EUA, que buscava, entre outras coisas, eliminar as conquistas sociais e desmobilizar o movimento sindical e camponês que, nos últimos três anos, havia tomado as fábricas e fazendas e “marchado pelas grandes Alamedas” para apoiar o governo do “companheiro Presidente.”

As trajetórias políticas dos líderes sindicais refletem como o golpe pôs fim ao processo de mobilização social e radicalização da década de 1960. Em setembro de 1973, Héctor Olivares Solís era membro do parlamento e militante do Partido Socialista. Olivares havia iniciado sua carreira política como líder sindical na mina de cobre El Teniente na década de 1940, na época da Kennecott Corporation. Junto com outros líderes sindicais, ele participou da fundação da Confederação dos Trabalhadores do Cobre e lutou incansavelmente pela nacionalização do cobre e pela expansão dos direitos trabalhistas. Olivares estava familiarizado com a repressão estatal e havia sido preso e mantido incomunicável por convocar uma greve geral em meados da década de 1960. Do sindicato, ele foi para a Câmara dos Deputados em 1965, representando seu distrito de mineração, Machalí, onde lutou por melhores condições de trabalho para todos os chilenos e apoiou Salvador Allende.

Quando os militares tomaram o poder, os políticos e líderes sociais foram instados a se apresentar “voluntariamente” às novas autoridades. Aqueles que o fizeram não tinham ideia da violência que os aguardava. Olivares se apresentou e seguiu o caminho de muitos prisioneiros políticos: escola militar, campo de concentração da Ilha Dawson, no sul da Patagônia, e exílio. Em junho de 1992, de volta ao Chile e mais uma vez eleito deputado, o ex-líder sindical lembrou-se de Allende como “um homem que, apesar de não ser filho de um trabalhador, apesar da classe a que pertencia, durante sua carreira como militante do Partido Socialista, foi coerente não apenas com um ideal político, mas com os trabalhadores, com os despossuídos deste país e também com o povo do Chile, para quem sempre quis o melhor”.

Assim como Olivares, a grande maioria dos líderes sindicais tinha uma forte lealdade a Allende e sofreram na própria carne o golpe de Estado. Trabalhadores, líderes camponeses e funcionários públicos foram presos, executados ou desapareceram de seus locais de trabalho, bairros ou casas. Em muitos casos, houve cumplicidade por parte dos empregadores, que não apenas denunciaram seus funcionários, mas também colaboraram com a detenção, transferência e até mesmo  com o assassinato de líderes sindicais, camponeses e trabalhadores.

O impacto do golpe no mundo sindical e nas condições de trabalho pode ser lido nas ordens militares e nos decretos-lei emitidos pela junta militar nos dias e meses que se seguiram ao golpe. Para o historiador Danny Monsálvez, esses instrumentos legais foram usados pela ditadura para institucionalizar e legitimar a repressão, bem como para controlar a população e impor um clima de medo e terror. Embora em seu primeiro comunicado a junta tenha prometido aos trabalhadores “que as conquistas econômicas e sociais obtidas até o momento permaneceriam fundamentalmente inalteradas”, na prática isso não aconteceu. Com o passar dos dias, ficou claro que as fábricas se tornariam um laboratório para a imposição do modelo neoconservador dos militares e de seus aliados civis e empresariais.

Uma das primeiras ações contra os trabalhadores foi a suspensão da negociação coletiva e dos reajustes salariais e previdenciários. Por um lado, essa foi uma medida econômica destinada a controlar a inflação; por outro lado, teve um caráter político e antissindical que corroeu o poder dos trabalhadores e as formas tradicionais de luta. As Forças Armadas também acreditavam que o marxismo havia se “infiltrado” no movimento sindical, por isso decidiram suspender as eleições sindicais e vigiar de perto suas reuniões, estabelecendo também que os sindicatos, “suas direções e seus líderes devem se abster de qualquer atividade de natureza política no exercício de suas funções”.  Na prática, o decreto foi ainda mais abrangente, destruindo os espaços de participação e os vínculos que existiam entre os trabalhadores e seus líderes e os partidos políticos.

Passeata de trabalhadores em apoio ao Presidente Salvador Allende durante o governo da Unidade Popular. Referência: https://teoriaedebate.org.br/2018/06/20/%EF%BB%BFreflexoes-sobre-a-experiencia-do-governo-da-unidade-popular-chileno-1970-1973/

O caso da repressão contra a Central Única dos Trabalhadores, a principal confederação de trabalhadores do país, foi particularmente severo. Durante o governo da Unidade Popular, a CUT não só havia obtido reconhecimento legal, como também desempenhava um papel importante no governo e no processo de participação popular. Para os golpistas, a CUT era sinônimo de radicalização e politização do movimento dos trabalhadores e foi duramente reprimida. Em 24 de setembro de 1973, a CUT perdeu seu status legal e todos os seus bens foram confiscados.

A  repressão assumiu muitas formas, sendo uma delas a demissão, que afetou não apenas aqueles que haviam desempenhado um papel de liderança durante os anos da Unidade Popular, mas também aqueles que simpatizavam com Salvador Allende. O simples fato de ter participado de uma assembleia ou de uma manifestação popular poderia ser usado como motivo para demissão. Um decreto permitiu que os empregadores demitissem por motivos que supostamente prejudicassem a ordem pública, ao mesmo tempo em que o governo militar declarou quase todo o pessoal da administração pública como “interino”. Ao eliminar as regras de proteção ao emprego, os empregadores e os interventores militares usaram a demissão como uma forma de represália que também lhes permitiu eliminar qualquer resistência aos processos de reestruturação produtiva. Na prática, a repressão política e sindical estava sempre ligada às reformas econômicas, e as demissões eram uma arma eficaz de controle em um contexto econômico precário de alto desemprego e incerteza quanto ao futuro.

As medidas econômicas, primeiro de estabilização e depois de refundação e implementação de um modelo neoliberal, tiveram um forte impacto sobre a classe trabalhadora. Por exemplo, a decisão de abrir a economia nacional para o mercado internacional afetou o setor industrial e deu início a um processo acelerado de desindustrialização. O setor têxtil, um ícone das lutas dos trabalhadores durante o governo da Unidade Popular, foi um dos mais afetados pelas políticas de liberalização econômica, e muitas das fábricas reduziram o quadro de funcionários e acabaram fechando as portas.

No final da década de 1970, a ditadura começou a realizar uma série de reformas neoliberais que afetaram o código trabalhista, o sistema de pensões, a assistência médica e a educação pública. Quando a economia chilena entrou em colapso em 1982, os trabalhadores tiveram que sobreviver à crise com direitos trabalhistas mínimos e sem proteção social. 

Nesse contexto de repressão política e econômica, a reconstrução do movimento sindical e a busca de alianças políticas foram extremamente difíceis. As primeiras reuniões de líderes no país foram organizadas sob os auspícios da Igreja Católica, enquanto os exilados procuraram restabelecer contato com líderes políticos. Dez anos após o golpe de Estado e em meio a uma profunda crise econômica, foi criado o Comando Nacional dos Trabalhadores, reunindo diferentes grupos sindicais e desempenhando um papel fundamental na luta pelo retorno à democracia.

No entanto, o movimento social dos trabalhadores não foi reconstruído apenas a partir de formas tradicionais de organização, mas também a partir de e em conjunto com uma ampla gama de organizações sociais e comunitárias que surgiram em bairros da classe trabalhadora. Organizações de direitos humanos, grupos de mulheres, refeitórios e oficinas comunitárias  são alguns exemplos. Esses lugares desempenharam um papel fundamental na reconstrução de um tecido social atingido pela ditadura e pela crise econômica, contribuíram para a criação de espaços de resistência e incorporaram setores que haviam sido historicamente marginalizados do mundo sindical.

Em suma, para os trabalhadores, o golpe significou a perda de direitos trabalhistas e sociais, desemprego e repressão. Foram anos de profunda incerteza econômica e medo, silêncio e abandono. As formas de trabalho também mudaram à medida que a economia se recuperava e o modelo neoliberal se consolidava: os contratos eram menos estáveis e seguros, as jornadas de trabalho foram alongadas sob o pretexto de flexibilidade e os novos empregos não eram mais gerados pela indústria, mas pelo setor de serviços e pelas atividades agroexportadoras. Com o fim da ditadura, um dos grandes desafios era como rearticular a atividade sindical nesse cenário político, econômico, trabalhista e jurídico. Cinquenta anos após o golpe, muitas dessas questões ainda estão pendentes.

Visita de Salvador Allende a uma fábrica na periferia  de  Santiago em janeiro de 1972. Fonte: Arquivo Nacional, Fundo Correio da Manhã. BR_RJANRIO_PH_0_FOT_07847_006


PARA SABER MAIS:

Araya Gómez, Rodrigo. Organizaciones Sindicales En Chile: De La Resistencia a La Política de Los Consensos: 1983-1994. Ediciones Universidad Finis Terrae, 2015.

Bravo Vargas, Viviana. Piedras, barricadas y cacerolas: las jornadas nacionales de protesta: Chile 1983-1986. Ediciones Universidad Alberto Hurtado, 2017.

Garcés, Mario e Leiva, Sebastián. El golpe en la Legua: Los caminos del golpe y la memoria. LOM, 2014

Winn, Peter (org.). Victims of the Chilean Miracle: Workers and Neoliberalism in the Pinochet Era, 1973-2002. Duke University Press, 2004.

Filme “Chicago Boys” (2015) de Carola Fuentes y Rafael Valdeavellano, https://ondamedia.cl/show/chicago-boys


Crédito da imagem de capa: Presidente Salvador Allende nas celebrações  de Primeiro de Maio de 1971 promovida pela CUT em Santiago. Crédito: Associated Press / Alamy Stock Photo

LEHMT

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