Yuri Simonini
Doutor em História pela UFMG e Professor do Centro Universitário do Rio Grande do Norte
Em 1927, durante o processo de melhoramento do porto da capital do estado do Rio Grande do Norte foram capturadas diversas fotografias com o propósito de documentar o dia a dia das atividades em curso. Destaca-se, entre elas, uma imagem, na qual os operários se posicionam em fileiras sobre a locomotiva destinada ao transporte das pedras destinadas à construção da guia-corrente da entrada do porto. Nessa composição visual, trabalhadores e máquina interagem de forma confluente, fundindo-se em uma coesão quase indistinguível.
A mão de obra utilizada nas atividades de melhoramento do porto de Natal consistiu principalmente em sertanejos retirantes devido às condições pluviométricas irregulares da região. O “flagelo das secas”, termo comum adotado após a Grande Seca de 1877, forçou milhares de nordestinos a migrarem para as grandes cidades em busca de auxílios em diversos momentos ao longo do século XX.
Entre os anos de 1904 a 1907, período que coincide com o estabelecimento da Comissão de Melhoramentos do Porto de Natal, a capital experimentou significativo influxo de migrantes afetados pela seca de 1905. Em 1906, o governador Tavares de Lyra observou a presença aproximada de milhares desses migrantes, resultando em uma série de desafios relacionados à ordem pública e às condições sanitárias, em uma cidade que contava com população de 23.121 habitantes. As cenas, registradas em jornais, crônicas e nos relatórios da chefatura de polícia, enfatizavam “espetáculo de horrores”, como saques à estabelecimentos comerciais, fome, disseminação de doenças e mortes.
Para evitar maiores convulsões sociais, era comum o poder público organizar comissões para recrutamento de parte desse grupo de flagelados para trabalhar em diversas frentes, mediante pagamento ao dia de serviço.
As formas de recrutamento, os valores pagos e o montante de pessoas envolvidas eram vagos e imprecisos. As tarefas incluíam atividades como pavimentação de ruas, limpeza de avenidas, construção de edifícios residenciais e instalações portuárias. Além disso, foram designados para participar na construção de ferrovias, cultivo agrícola e uma variedade de outros serviços, incluindo a atuação na pedreira Macahyba.
A pedreira se situava à margem esquerda do Rio Potengi – que seguia até Natal –, próxima à cidade de Macaíba, distante cerca de 20 quilômetros do porto e conectada por rede ferroviária destinada ao transporte do material extraído. A pedreira havia sido criada quase que exclusivamente para o melhoramento portuário. Da mesma maneira que as frentes de trabalho que ocorriam na capital potiguar do início do século XX, os registros documentais sobre esses trabalhadores são muito raros.
O trabalho era predominantemente de natureza manual, contando apenas com uma estrutura mínima para a extração das pedras destinadas à construção das guias e ao aterramento das áreas destinadas à infraestrutura terrestre do porto. Além do guindaste, utilizado para o içamento das pedras a serem transportadas, a pedreira dispunha de barracão equipado com as máquinas essenciais para o funcionamento do sistema de ar comprimido, empregado para acionar as ferramentas de extração. Esta estrutura, impulsionada por força a vapor e operada por uma equipe de dois trabalhadores, foi inaugurada em 20 de agosto de 1927.
Diferentemente dos engenheiros e de outros profissionais com qualificações técnicas, esses operários, incluindo todo o ciclo de serviços relacionados ao aprimoramento do porto, careciam de registros profissionais ou de qualquer outro dado oficial, sendo rotineiramente remunerados em uma genérica categoria de diárias de serviço, conforme evidenciado pelos relatórios orçamentários. O que restou destes trabalhadores foram suas presenças quase sem rostos nas fotografias. A única exceção a essa condição de invisibilidade era representada por Manuel Gaya, cuja natureza do trabalho de mergulho com auxílio do escafandro lhe conferiu certo destaque nas publicações jornalísticas locais naquele período.
A relevância da pedreira para as operações portuárias da cidade, no entanto, não encontra paralelo nas documentações relativas ao processo de aprimoramento do porto. Macaíba, anteriormente um centro comercial e ponto de destino para mercadorias provenientes do interior do norte do Rio Grande do Norte e direcionadas à capital, possui atualmente diversas pedreiras em atividade nas suas proximidades. Historicamente, a região forneceu rochas graníticas utilizadas para uma variedade de propósitos na cidade, mas inexiste informações sobre outras pedreiras em atividade naquele período. A região fornecia material para os trabalhos de cantaria e pavimentação de ruas nas primeiras décadas do século XX, particularmente se considerarmos a finalização das extensas obras de pavimentação urbana em 1929, durante o mandato do prefeito Omar O’Grady.
A pedreira Macahyba, apesar de sua relevância no processo de melhoramento portuário da capital potiguar, possui uma história tão imprecisa quanto aqueles trabalhadores oriundos das secas, impedindo a reconstrução de suas histórias individuais e do seu papel nas obras de infraestrutura portuária de Natal. Assim, tanto os operários anônimos quanto a pedreira permanecem como testemunhos silenciosos de um período importante para o Rio Grande do Norte, cuja força de trabalho e as rochas extraídas contribuíram para o desenvolvimento e transformação da cidade, sem deixar rastro visível de suas jornadas e de suas próprias vidas.
Extração e transporte das rochas graníticas na Pedreira Macahyba, 1927. Fonte: Centro de Documentação Norte-rio-grandense/RJ; Acervo digital do HCUrb/UFRN.
Para saber mais:
- Cascudo, Luís da Câmara. História da Cidade de Natal. Natal: IHGRN, 1999.
- Silva, Matheus Lisboa Nobre et al. As Rochas Contam Sua História: Programa de Divulgação da Geodiversidade no Centro Histórico de Natal. In: XXVI SIMPÓSIO DE GEOLOGIA DO NORDESTE, 24., 2015, Natal. Anais […]. Natal: UFRN, 2015
- Simonini, Yuri. Porto das Secas: os anônimos trabalhadores do porto de Natal (1861-1932). Revista Mundos do Trabalho, v.12, p.1 – 17, 2020.
Crédito da imagem de capa: Os construtores da guia-corrente no trem de apoio aos serviços, 1927. Fonte: Centro de Documentação Norte-rio-grandense/RJ; Acervo digital do HCUrb/UFRN.
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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.
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