Laboratório de Estudos de História dos Mundos do Trabalho

LMT#112: Solar do Unhão, Salvador, (BA) – Daniel Rebouças



Daniel Rebouças
Doutor em História pela Universidade Federal da Bahia



Às margens da Baía de Todos-os-Santos, descansa o Solar do Unhão. Um local de ocupação bastante antigo, do início do século XVII, é a sede do Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM-BA) desde 1963. Para muitos turistas ou mesmo para moradores de Salvador, o lugar tem uma ligação “natural” com as artes. Além das exposições, faz anos que ocorre lá um prestigiado projeto de música instrumental. Porém, menos conhecida é história do solar com o universo do trabalho no Brasil do século XIX.

Por quase um século, a fábrica da Meuron e Cia funcionou no Unhão. O fundador foi Auguste Frédéric Meuron (1789-1852), membro de uma rica família da região de Neuchâtel, na Suíça. Seguindo no ramo do comércio exterior como seus parentes, o estrangeiro apostou em negócios na Bahia, chegando no dia 20 de agosto de 1817, em Salvador. Abriu uma manufatura na chamada “praia de Areia Preta”, atual bairro da Ondina, produzindo rapé – espécie de tabaco em pó muito apreciado na época. Concorrendo com o rapé Princesa de Lisboa, importado de Portugal, o suíço mudou de endereço diante da ameaça das tropas de Portugal, durante a Guerra de Independência na Bahia, em 1822. A fabriqueta em Ondina incomodava o nacionalismo dos súditos portugueses. 

Passadas as lutas políticas, o suíço mudou a fábrica para o Solar do Unhão em 1827. Alugou o prédio da poderosa família Pires de Carvalho e Albuquerque, que tinha feito, ao longo do século XVIII, uma grande mudança no local, dando elegância à antiga “Chácara do Unhão”, antiga posse do desembargador Pedro Unhão de Castello Branco. A influente família tinha erguido um prédio mais vistoso, uma capela, uma ponte com ricos azulejos portugueses, entre outros melhoramentos.

 A produção da fábrica cresceu em pouco tempo. Quando deixou a Bahia, em 1837, o dono da Meuron já era o principal produtor de rapé da província e, um dos maiores do Brasil, com filais em Pernambuco e no Rio de Janeiro. Até o final daquele século, o Rapé Areia Preta já era vendido país afora, sendo manufaturado, parte com fumo da Bahia, parte importado da Virgínia, nos Estados Unidos.


Utilizou a mão de obra livre e escrava simultaneamente, fato aliás comum em outras fábricas na Bahia, e fora dela. Não sabemos muitos detalhes sobre as atividades realizadas na fábrica e pouco sobre os recortes de gênero e a remuneração praticada. A direção fabril era geralmente ocupada por suíços ou alemães.


Melhor registradas estão as brigas dos gerentes da Meuron contra as falsificações do seu Areia Preta. Em meados de 1882, por exemplo, a concorrente em Salvador, a Companhia Imperial, tentou registrar seu rapé na Junta Comercial da Bahia. O nome: Areia Parda. Como a confusão seria evidente, o gerente da Meuron na época, o alemão Hermann Ochsenbein, conseguiu, junto ao Ministério da Agricultura, a anulação do registro da concorrente e a apreensão de muitos botes de rapé do adversário. Aos derrotados, restou ir aos jornais, reclamar de monopólio.   

Nada abalou o gerente da Meuron até se criticar a mão de obra no Unhão, tema sensível em meio à crise da escravidão no país. Acusava-se a firma suíça de prejudicar o progresso do Brasil pela falta de trabalhadores livres e ainda utilizar o braço escravo, sob terrível violência. Na sua resposta, Hermann Ochsenbein estava em sintonia com boa parte da elite nacional naquele contexto, afirmando que ao usar muitos trabalhadores nacionais contribuía para exterminar a ociosidade e o crime no país. Sobre os escravizados, o estrangeiro alegou ter somente cinco cativos na fábrica, todos sob a “aprendizagem da liberdade”. Três eram tratados “como livres há muito tempo”, recebendo salário, inclusive. Os outros dois só não recebiam um ordenado “unicamente por culpa deles”, ou seja, pelo suposto mau comportamento que vinham tendo. Tão logo dessem “sinal de regeneração”, concluía o gerente, seriam “elevados ao mesmo pé dos três referidos.” 

Todo o trecho já mostra a importância da Meuron para os mundos do trabalho no Brasil do século XIX. Mas Hermann Ochsenbein nos deixou ainda mais. Alguns anos depois, recorreu à fotografia para criar um discurso visual, tal como cafeicultores vinham fazendo em São Paulo, ao encomendar um álbum aos fotógrafos Guilherme Gaensly e Rodolfo Lindemann, artistas muito prestigiados à época. Em uma tomada do pátio, reiterava-se a versão da empresa: diferente da acusação, agia em prol do trabalho livre e da ordem social em um contexto de crise da escravidão. Na visão do plantel da Meuron, mostrava-se os operários – em número considerável comparando-se com outras fábricas na cidade – e os poucos escravizados. E não somente isso. Os cativos – e somente eles – apareciam trabalhando, em uma polissêmica representação da tal “aprendizagem da liberdade”. 

A fábrica no Solar do Unhão funcionou como Meuron até 1896, quando mudou o nome para Borel & Cia, produzindo mais charutos e cigarrilhas. Após fim das atividades, em 1926, o lugar virou a sede do Trapiche Santa Luzia, até por volta de 1943. Tombado pelo IPHAN, virou museu duas décadas depois, sob a direção da arquiteta Lino Bo Bardi. Poucos indícios restaram do passado fabril, como trilhos de ferro, mas fotografias, e outros documentos, vêm mostrando muito mais, como homens e mulheres trabalhando em uma linha de produção no subsolo do saguão principal do MAM. São memórias do trabalho no Brasil, que aos poucos, ganham nova luz. 

Vista do pátio da Meuron e Cia, na qual vemos um raro registro dos trabalhadores fabris em Salvador, em meados da década de 1880.
Crédito: Álbum Brésil – Coleção Flávia e Frank Abubakir / Instituto Flávia Abubakir. 


Para saber mais:


Crédito da imagem de capa: Vista da fábrica da Meuron no Solar do Unhão, na década de 1870. Nessa época, era a principal produtora de rapé da Bahia. Crédito: GAENSLY Guilherme. Fábrica da Meuron & Cia. [1873-1881]. Fundação Biblioteca Nacional.


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