Laboratório de Estudos de História dos Mundos do Trabalho

LMT#113: Cais do Porto Salgado, Parnaíba, (PI) – Pedro Vagner Silva Oliveira


Pedro Vagner Silva Oliveira
Doutorando em História pela Universidade Federal Fluminense


O sol ainda nem apareceu no horizonte e já se via a labuta no antigo Porto Salgado, hoje Porto das Barcas. Como sugere o primeiro nome, o lugar ficou assim conhecido pelo comércio de carne salgada realizado no século XVIII. Em mais de duzentos anos, trabalhadores e trabalhadoras protagonizaram e deixaram marcas na memória local. Após longas viagens pelo rio Parnaíba, finalmente se aportava no cais do Porto Salgado. Estivadores carregavam mercadorias procedentes do sul do Piauí e de outras localidades. Caixas e caixotes tinham como primeiro destino o porto fluvial, levadas posteriormente a Tutóia (MA) ou Amarração (atual Luís Correia, PI). No próprio Porto Salgado as empresas responsáveis pelo transporte de mercadoria recrutavam os homens para a estiva.

Nas primeiras décadas do século XX Parnaíba foi o principal entreposto comercial do estado e, dado o movimento de embarcações a vela e vapor, eram necessários melhoramentos em seu porto fluvial, dentre eles, a construção do cais em 1912.  Sob o sol escaldante homens – muitos deles negros – descalços e descamisados embarcavam fardos e caixas com borracha de maniçoba, amêndoas de tucum e cera de carnaúba. No final da Segunda Guerra Mundial, o comércio fluvial parnaibano conheceria seu declínio.

O porto se transformava em grande teatro: em cada cena os estivadores exibiam valentia e vigor ao transportar sacas de até duzentos quilos. Vez ou outra, algum companheiro era zombado por carregar os fardos com a coluna arqueada. Ao cair da noite, os trabalhadores do rio divertiam-se na companhia dos colegas e de prostitutas no Tucuns e Coroa, bairros ribeirinhos. Não raro a festa se transformava em contenda. A faca marinheira ou “espim”, trazida sempre à cintura, era desembainhada; rapidamente a música dava lugar a gritos e tumulto.

Além dos produtos extrativistas exportados pelas casas Inglesa e Marc Jacob, outras “mercadorias” eram igualmente embarcadas. Gatos maracajás, filhotes de onças-pintadas, macacos, papagaios, araras e outras aves também eram “cargas” transportadas para fora do Piauí pelo porto, comércio hoje proibido pela legislação ambiental brasileira, embora infelizmente ainda praticado.

Nas imediações e não muito longe das casas comerciais, uma Parnaíba pobre lutava para sobreviver. Buscando algum dinheiro, meninos quando não tomavam banho no rio, iam ao cais a fim de fazer mandados em troca de moedas. As mulheres cozinhavam e vendiam comida aos embarcadiços



O Porto Salgado era um centro gravitacional que reunia uma miríade de trabalhadores e trabalhadoras. Quando chegavam à Parnaíba, era lá que os retirantes fugindo das secas que acometiam outros lugares do Piauí e do Ceará, procuravam emprego e o pão de cada dia.



Ao passo que as alvarengas eram “alimentadas” com as mercadorias, outros homens enchiam barris com as águas barrentas do rio. Ali mesmo os asnos, importantes companheiros de labuta dos aguadeiros, tomavam banho e saciavam a sede. Como a cidade não possuía sistema de encanamento até os anos 1960, por décadas os aguadeiros foram os responsáveis por abastecer boa parte das casas parnaibanas. Temendo doenças oriundas de tão suspeito líquido, os mais remediados possuíam poços em seus quintais.

Ainda no cais, era costumeiro ver a grande quantidade de lavadeiras “batendo” roupa. Sentadas e com a água pela cintura, lavavam as vestimentas da família ou de outras que pagassem pelo serviço. Quem por ali passava, de longe ouvia as melodias das fortes pancadas que o contato do tecido fazia ao encontrar as pedras. Após ensaboadas, as roupas eram postas para “quarar”, posteriormente enxaguadas e estendidas no chão. O vento e o sol faziam o resto do trabalho. A fim de abrandar o calor, vez ou outra alguma dessas trabalhadoras mergulhava no rio. 

Na outra margem do Igaraçu, famílias inteiras aguardavam o “passador”. A canoa era impulsionada pelo “varejão” ao tocar o leito do rio e deslizava pelas águas. Esses passageiros vinham dos povoados pesqueiros e agrícolas da Ilha Grande de Santa Isabel e região. Suas jornadas começavam já de madrugada, pois, enfrentavam caminhadas por horas no chão de areia. Peixes, cereais, feijão, ovos e frutas eram trazidos em cofos, jacás e outras cestas carregadas por burros ou pelas próprias pessoas. Homens botavam calões – espécie de haste de madeira – nos próprios ombros e traziam peixes, já as mulheres equilibravam em suas cabeças quilos de camarão ou murici. Os mercados eram o último destino da dura expedição.

Em virtude da precariedade da labuta, alguns trabalhadores do porto fundaram em 1920 a Sociedade União dos Estivadores. Com o passar dos anos, outras associações mutualistas desse mesmo grupo surgiriam, dentre elas, o Sindicato dos Operários Estivadores, e o Sindicato dos Trabalhadores dos Armazéns e Trapiches, ambos atuantes nos anos 1940. Décadas depois, com o golpe de 1964, os líderes do Sindicato dos Estivadores e do Sindicato de Marítimos de Parnaíba foram processados e perseguidos pelo regime militar.

O outrora movimentado cais, é hoje apenas sombra do que já foi um dia. Os armazéns coloniais do Porto das Barcas ainda existem, tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN em 2008 e recentemente revitalizados. Apesar disso, as memórias e experiências dos homens e mulheres que dia após dia pelejaram no cais do porto, construíram e alimentavam a cidade, são sobrepostas pelo turismo e propagandas do poder público.

Aspecto das obras do porto de Parnaíba. Fonte: Revista O Malho. Ano: 1913. 


Para saber mais:


Crédito da imagem de capa: Cais do Porto Salgado em  Parnaíba, 1937. Fonte: Revista Vida Doméstica. Ano: 1937. 


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