Marcos Virgílio da Silva
Doutor em História e Fundamentos da Arquitetura e Urbanismo (FAU/USP)
Fiquei sem o terreiro da escola
Já não posso mais sambar Sambista sem o largo da Banana
A Barra Funda vai parar
Surgiu um viaduto, é progresso,
Eu não posso protestar
Adeus, berço do samba,
Eu vou-me embora,
Vou sambar noutro lugar.
Geraldo Filme. “Vou sambar noutro lugar”
Em janeiro de 2020, o Departamento de Patrimônio Histórico da Prefeitura de São Paulo instalou uma placa comemorativa no pilar do viaduto Pacaembu localizado no cruzamento da rua Barra Funda. A placa indica que ali havia existido o largo da Banana, considerado o “berço” do samba paulistano. O desaparecimento desse espaço invizibilizou um lugar de memória relevante dos trabalhadores negros na cidade.
Embora as origens do bairro da Barra Funda sejam antigas, o fator preponderante para sua ocupação foi, de fato, a industrialização, especialmente a partir da década de 1890. Inicialmente, a área abrigava fábricas de pequeno porte (massas, óleos, tinta de escrever e de bebidas), estabelecimentos comerciais e de serviços (sapatarias e mercearias), entremeados de habitações. A estrada de ferro São Paulo Railway foi um elemento estruturador do bairro, a ponto de marcar a divisão entre a “Barra Funda de Baixo”, situada entre a ferrovia e as margens do rio Tietê, e a “Barra Funda de Cima”, da linha férrea até a rua das Palmeiras – atual rua General Olímpio da Silveira.
Ao mesmo tempo que essa paisagem industrial era marcada pela forte presença de imigrantes italianos desde o final do século XIX, a Barra Funda constituiu também um dos principais núcleos da população negra em São Paulo, especialmente na área limítrofe dos trilhos da ferrovia. Essa população se fixou em moradias precárias como cortiços, cômodos ou porões de casas. Trabalhava nos serviços ligados à ferrovia, no emprego doméstico nas moradias de elite do vizinho bairro do Campos Elíseos e no comércio em pequenos estabelecimentos, ou mesmo de maneira informal.
Não sabemos muito como se davam as relações entre os imigrantes italianos e a população negra naquela região. Considerando o contexto do pós-abolição e as disputas pelo mercado de trabalho, é factível supor que disputas, hostilidades e casos de racismo existissem. Mas também havia situações de ajuda mútua e solidariedades. Há registros, por exemplo, do apoio de pequenos donos de estabelecimentos comerciais (vinculados à colônia italiana) aos primeiros desfiles do Grupo Carnavalesco Barra Funda, fundado em 1914 por afrodescendentes.
O Largo, que existiu até meados da década de 1950, situava-se no final da rua Brigadeiro Galvão, na confluência com a alameda Olga. A avenida Pacaembu não havia alcançado o local nas primeiras décadas do século XX. Não tendo sido concluído na primeira gestão Prestes Maia (1938-1945), o projeto de extensão dessa avenida só foi retomado no final da década de 1950, quando o então prefeito Ademar de Barros (1957 – 1961) retoma e conclui a obra, inaugurada ainda inacabada em 1958.
Era ali que essa população negra, se ocupava em trabalhos temporários na estrada de ferro. Um contingente de trabalhadores exercia atividades de carregadores e ensacadores das mercadorias que circulavam pelo pátio ferroviário da São Paulo Railway e estação da E. F. Sorocabana.
Durante as horas livres, principalmente ao final do expediente, transformavam o espaço de trabalho no local do jogo de “tiririca” (espécie de capoeira típica do interior de São Paulo) e das batucadas. Fazendo uso dos próprios instrumentos de trabalho, tais como caixotes, latões, latas e caixas de engraxate para criar seus instrumentos de percussão, esses trabalhadores faziam do Largo da Banana um espaço (e um tempo) que embaralhava e as rotinas do trabalho e do samba.
Tudo indica que se tratava de uma atividade majoritariamente masculina. Os testemunhos de Geraldo Filme sobre sua mãe dão indícios de que as mulheres geralmente acabavam empregadas em serviços domésticos nas casas mais abastadas. Essas mulheres, no entanto, tiveram papel relevante na constituição das primeiras agremiações carnavalescas em São Paulo, e não foi diferente na Barra Funda. Ali destacaram-se as figuras de Tia Olímpia e as demais “tias africanas’, importantes na origem aos primeiros cordões carnavalescos da cidade, além de Benedicta Carvalhaes e D. Sebastiana Barreto, do Cordão Campos Elyseos, e mais tarde “Dona Sinhá”, do G. C. Barra Funda.
Da infância à juventude, o sambista Geraldo Filme frequentou o local, onde se juntava aos outros negros que ali trabalhavam e se divertiam ao final do expediente. O sambista declarou que a reduzida remuneração desses trabalhadores era, ao menos parcialmente, compensada pela oferta de uma parcela da carga movimentada por eles. Esses produtos podiam ser consumidos ou, como ocorria com frequência, revendidos nas imediações. Foi nessa vizinhança do Largo da Banana que, em 1914, Dionísio Barbosa criou o Grupo Carnavalesco Barra Funda, considerada a primeira agremiação carnavalesca de São Paulo. Um ano antes, o bairro já havia sido o local de fundação do pequeno Bloco dos Boêmios, que deu origem ao Grupo Carnavalesco Campos Elyseos, fundado em 1919 por Argentino Celso Wanderlei em sua residência, próxima ao Largo da Banana. Esse grupo deu origem, por sua vez, à Escola de Samba Mocidade Camisa Verde e Branco, em 1953.
A destruição do Largo para implantação das vias rápidas foi um mote para Filme escrever um de seus sambas mais emblemáticos, cuja letra serve de epígrafe a esse artigo. A homenagem prestada ao samba de São Paulo em 2020 (e, posteriormente, a inauguração de estátua de Geraldo Filme também nas proximidades) procura ao menos mitigar parte do esquecimento imposto à cidade a respeito de um dos lugares mais significativos de sua memória cultural e social. Ainda há, porém, uma lacuna importante nesse reconhecimento, que é afirmar com maior ênfase o fato de que o samba de São Paulo deve ao menos parte de sua existência ao encontro dos estivadores nos fins de tarde de um largo na Barra Funda.
Para saber mais:
- AZEVEDO, Amailton Magno. São Paulo Negra: Geraldo Filme e a geografia do samba paulista. Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), 6(13), jun de 2014.
- BRUNELLI, Aideli S. Urbani et al. Barra Funda. São Paulo, Departamento do Patrimônio Histórico, 2006 (Série História dos Bairros – São Paulo; v. 29).
- SILVA, Marcos Virgílio da. Debaixo do ‘Pogréssio’: sambistas e urbanização paulistana nas décadas de 1950 e 1960. São Paulo: Alameda/FAPESP, 2018.
- SIQUEIRA, Renata Monteiro. Lutas negras no largo da Banana. Tempo social., São Paulo , v. 33, n. 3, Sept. 2021.
- SIMSON, Olga R. M. von. Carnaval em branco e negro: Carnaval popular paulistano, 1914-1988. Campinas: Editora da Unicamp; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2007.
Crédito da imagem de capa: O Largo da Banana nas primeiras décadas do século XX. Fonte: FAUSTINO, Oswaldo. Largo da Banana. Revista Raça. São Paulo: 28/10/2018. Disponível em: https://revistaraca.com.br/largo-da-banana/. Acesso em 22 de setembro de 2022. Autoria da foto e data original desconhecidos.
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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.
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