Leonilde Servolo de Medeiros
Professora do CPDA da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Pedra Lisa é uma pequena localidade rural, situada no município de Japeri, a poucos quilômetros da cidade do Rio de Janeiro. Hoje, os moradores reivindicam para ela o estatuto de “Comunidade Tradicional dos Camponeses de Pedra Lisa”.
Uma enorme pedra, em formato de pão-de-açúcar, indica a origem do nome do local. No sopé da pedra, um campinho de futebol, usado pelas crianças e demais moradores, uma escola e uma casa até há pouco mal conservada. Na sua parede, lia-se até antes da reforma recentemente realizada pelos moradores, uma inscrição bastante apagada: “Cooperativa de Pedra Lisa”, entidade criada pela Sociedade de Lavradores e Posseiros de Pedra Lisa, no final da década de 1940. Hoje, a casa é a sede do “Núcleo Agrário Miguel Couto Filho”.
Na frente da escola, há uma placa de bronze, onde se lê:
Os camponeses de Pedra Lisa, posseiros de mais de séculos dessas terras, por sucessões hereditárias e de compra e venda, perseguidos por grileiros, que lhes queimavam as casas e destruíam as plantações, testemunham neste bronze sua imorredoura gratidão ao governador Miguel Couto Filho, pelo seu ato justo e sábio desapropriando estas mesmas terras em favor daqueles que as ocupam e as cultivam e resolvem dar o seu nome a este núcleo agrário, que passará, de hoje em diante, chamar-se Miguel Couto Filho. 13-07-58.
Pedra Lisa é um dos lugares mais significativos das memórias dos trabalhadores em suas lutas por terras no Estado do Rio de Janeiro. A área de influência da associação de lavradores e posseiros abrangia terras que passaram a ser disputadas pelas famílias Guinle e Paes Leme. Os limites são imprecisos, mas nela se situava também a localidade de Jaceruba, atualmente pertencente a Nova Iguaçu (até 1991, Japeri era um distrito de Nova Iguaçu).
As fazendas Santo Antônio do Mato e Limeira, alguns dos polos dos conflitos, foram desapropriadas em 1958 pelo então governador do Rio de Janeiro, Miguel Couto Filho. Dois anos depois, a Fazenda São Pedro, vizinha a elas, mas situada em Jaceruba, foi desapropriada pelo governador seguinte, Roberto Silveira.
Nessa região foi criada, em 1948, uma das primeiras associações de lavradores do Estado, liderada por José Matias, assassinado por um jagunço em novembro de 1953. Desde então, na liderança dos posseiros, destacou-se a figura de Bráulio Rodrigues da Silva. A história do grupo não se separa da trajetória desse líder. Nascido em Minas Gerais, veio para o município de Volta Redonda, Rio de Janeiro, onde se tornou operário e depois foi para a “roça” para, como militante do Partido Comunista, organizar “camponeses”, como eram chamados pelos comunistas os lavradores do país. Na Baixada Fluminense, esses camponeses eram em sua grande maioria posseiros, muitos deles descendentes de migrantes, vindos, em especial do Nordeste e de Minas Gerais ou mesmo de outras localidades do estado do Rio, em busca de local para morar e trabalhar. Havendo terras “livres”, ou seja, abandonadas, nelas se fixavam.
As disputas por terra em Pedra Lisa, bem como em outras áreas do Rio de Janeiro, se iniciaram quando os que se diziam proprietários passaram a tentar expulsar os posseiros, quer por meio de violência direta, quer por despejos judiciais. Na entrada da região, considerada pela imprensa como “região conflagrada”, havia uma tabuleta onde se lia: “Aqui em Pedra Lisa não entra polícia. Nem grileiros. Estas terras têm donos. Cada palma de chão roubado há de custar a vida de todos nós”. Em 1956, ocorreu um primeiro confronto aberto: os posseiros resistiram, armados (foices, picaretas, armas de caça), a uma tentativa de despejo. O fato repercutiu na imprensa e após muitas pressões conseguiram, em 1958, a desapropriação.
A ação da Sociedade dos Lavradores e Posseiros de Pedra Lisa, sob liderança de Bráulio Rodrigues, foi além dos limites municipais, levando os camponeses de Pedra Lisa a prestarem apoio a lavradores, em situação similar, em outras localidades da Baixada Fluminense.
Quando ocorreu o golpe de 1964, foi forte a repressão na região. Casas foram invadidas, revistadas com violência. Os militares e a polícia queriam saber onde estavam as armas (e só achavam velhas espingardas de caça) e as lideranças. Bráulio saiu da região e ficou escondido em diferentes lugares por mais de dois anos, só sendo preso bem depois.
Após os momentos iniciais de violência, parte das famílias optou por permanecer no local, mantendo as atividades agrícolas e dando à região, ainda hoje, características bastante rurais. Mesmo com pouco apoio governamental sobrevivem nas terras que conquistaram a duras penas. Muitos ainda se lembram das atividades da antiga associação e têm uma memória viva e carinhosa de Bráulio Rodrigues, falecido em 20 de junho de 2019.
A criação de uma nova associação, a reivindicação pelo seu reconhecimento como camponeses, a recuperação, pelos próprios moradores, da sede da antiga associação são indicadores da permanência das lembranças dos conflitos e da luta desenvolvida para garantir a permanência na terra.
Pedra Lisa é, assim, um dos lugares de memória dos trabalhadores rurais mais importantes do Estado do Rio de Janeiro.
Para saber mais:
- BASTOS, Gabriel Souza. Conflitos de terra em Nova Iguaçu: uma análise a partir do caso de Pedra Lisa. Estudos Sociedade e Agricultura, fevereiro de 2017, vol. 25, n. 1, p. 179-207.
- GRYNSZPAN, M. Mobilização Camponesa e Competição Política no Estado do Rio de Janeiro (1950-1964). (dissertação de mestrado) Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/UFRJ, 1987.
- MEDEIROS, Leonilde Servolo de (org), Ditadura, conflitos e repressão no campo: A resistência camponesa no estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Consequência, 2018.
- SILVA, Bráulio Rodrigues da. Memórias da Luta pela Terra na Baixada Fluminense. Rio de Janeiro: Mauad X, 2008. Introdução, organização e notas de Leonilde Servolo de Medeiros.
Crédito da imagem de capa: Camponeses de Pedra Lisa após conflito com grileiros e a política. Imprensa Popular, 20/07/1957.
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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.
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