Lugares de Memória dos Trabalhadores #28: Tecejuta, Santarém (PA) – Daniela Rebelo Monte Tristan



Daniela Rebelo Monte Tristan
Doutoranda em História Social da Amazônia na UFPA



A Companhia de Fiação e Tecelagem de Juta de Santarém, conhecida como Tecejuta, foi a primeira e mais importante fábrica têxtil daquele município paraense. A Tecejuta produzia sacos confeccionados com fibra vegetal, principalmente a juta, para acondicionamento de grãos. A planta, de mesmo nome, da qual é extraída a fibra, foi introduzida na Amazônia por japoneses na década de 1930, poucos anos após o início da imigração nipônica para a região. A produção de fios e tecidos de juta constituiu um importante ramo da indústria na Amazônia, sobretudo nos estados do Pará e do Amazonas.

Embora tenha sido fundada na década de 1950, a fábrica só começou a funcionar em 1965 e fechou definitivamente suas portas em 1990. A companhia foi fundada por Kotaro Tuji, um dos responsáveis pela introdução da juta na Amazônia, em associação com um grupo de empresários locais. Ao longo de sua existência, no entanto, a empresa teve diversas modificações em sua composição acionária.

Um dos maiores empregadores do Baixo Amazonas, a Tecejuta, em seu auge, chegou a empregar cerca de 900 trabalhadores(as). Na sua maioria eram antigos pescadores, lavadeiras, carregadores do porto e trabalhadores rurais originários de Santarém e de regiões próximas. Como em outras experiências industriais no Brasil, a maioria dos trabalhadores aprendeu o serviço na prática.           


O trabalho fabril disciplinado e pautado pelo ritmo das máquinas causava estranhamento para as operárias e operários. Jurema, ex-trabalhadora da Tecejuta, rememora seu primeiro contato com a máquina: “A primeira vez, quando eu entrei, foi uma sensação estranha, esquisita. Eu pensei: ‘Meu Deus, como as pessoas operam isso aqui?’ Coisa de outro mundo! Mas depois de um mês eu mexia toda aquela máquina.”


As mulheres compunham mais de 70% da mão-de-obra da fábrica. Sua presença provocava escândalo na cidade, pois mulheres trabalhando ao lado de homens, em especial, no turno noturno, era visto com grande suspeição por boa parte da população local.

Alguns trabalhadores braçais da Tecejuta, que efetuavam serviços como o transporte de fardos de juta, acabaram aprendendo algum ofício dentro da fábrica. Esse é o caso de Nonato Serra, que em 1966 foi admitido para trabalhar na função de braçal, mas em pouco tempo foi chamado para ajudar no processo de funcionamento da caldeira e acabou se tornando operador da caldeira.

Em suas memórias, o antigo operário ressalta a importância da caldeira para a fábrica: “ela era responsável em dar vapor para a engomadeira, para a calandra e fazer a chamada do pessoal”. Essa chamada se dava através de um apito, sobre o qual explicou o funcionamento: “Tinha muito vapor na caldeira; então você chegava lá, puxava uma corda e a sirene apitava lá: ‘txãããããã’. Essa sirene ia numa distância quase no final da cidade. Aí tudo por lá tinha gente que vinha trabalhar, né?” A sirene da Tecejuta faz parte da memória coletiva da cidade. Os moradores de Santarém a tinham como referência em sua gestão do tempo ao longo do dia.

A Tecejuta criou um novo perfil de trabalhador em Santarém, embora não exatamente o operário disciplinado, em perfeita sintonia com as diretrizes da fábrica, como desejado pela gerência da Companhia. A experiência dos(as) trabalhadores(as) no cotidiano fabril gerou vivências coletivas e um mundo de sociabilidades no chão da fábrica e fora dela, incluindo festas e excursões às praias do rio Tapajós em dias de folga. O cotidiano do trabalho ensejava um senso de identidade como trabalhadores, que se expressou, entre outras manifestações, no entendimento da memória sobre o tempo ali vivido como um patrimônio partilhado em comum.

Ali se trabalhava, ali se resistia, ali se lutava por direitos. Embora no início do funcionamento da fábrica não houvesse um sindicato, apenas uma associação controlada pela direção da empresa, os/as trabalhadores/as buscavam diferentes formas de defender seus interesses. Em 1966, por exemplo, Miranilce Silva, jovem operária foi demitida por organizar um movimento reivindicativo no setor da tecelagem em protesto contra uma lista de demissão de cerca de cem trabalhadoras. Miranilce foi à Justiça do Trabalho, obteve ganho parcial de causa e ainda prestou depoimento como testemunha de outras operárias demitidas .

No final dos anos 1980, já com a existência de um sindicato atuante, ocorreram três grandes greves, entre outros motivos, para repor a corrosão do salário pela inflação. A presença das mulheres, tanto na liderança como na base desses movimentos, era majoritária. Na última greve, em 1988 houve uma intensa solidariedade na cidade, com a arrecadação e distribuição de mantimentos para os/as trabalhadores/as.

Em 1989, em meio à falta de matéria-prima e encolhimento do mercado consumidor de seus produtos, o grupo empresarial que mantinha a Tecejuta decidiu fechar a fábrica. Em 2013, seus edifícios, às margens do Tapajós, foram ocupados para a instalação de um terminal hidroviário. Contudo, a fábrica, espaço marcante de conflitos, lutas, sociabilidades e de construção de identidades, permanece como uma fundamental referência na memória da população de Santarém.

Trabalhadoras da Tecejuta no setor de tecelagem, 1973.
Fonte: Revista Manchete, edição especial “Amazônia”, fev. 1973.


Para saber mais:

  • FERREIRA, Aldenor da Silva. Fios dourados dos Trópicos: culturas, histórias, singularidades e possibilidades (juta e malva-Brasil e Índia). Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2016.
  • SOUZA, José Camilo Ramos. “Parintins e Vila Amazônica: Uma história de construção de vida urbana de imigrantes nipônicos”. In: HOMMA, Alfredo Kingo Oyama. Imigração japonesa na Amazônia: contribuição na Agricultura e vínculo com o desenvolvimento regional. Manaus: EDUA, 2011.
  • MATOS, Maria Izilda Santos de. Trama e poder: a trajetória e polêmica em torno das indústrias de sacaria para o café (São Paulo, 1888-1934). 2ª. ed. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996.
  • TRISTAN, Daniela Rebelo Monte. Trabalhadores da Tecejuta: experiência operária e construção da memória numa fábrica têxtil no Oeste do Pará (Santarém, 1951-1990). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Amazonas,  Manaus, 2016.

Crédito da imagem de capa: Instalações da Tecejuta em 1975. Fonte: Revista do Programa da Festa de Nossa Senhora da Conceição. 08/12/1975.


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

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