Lugares de Memória dos Trabalhadores #34: Recreio Operário de Fernão Velho, Maceió (AL) – Ivo dos Santos Farias



Ivo dos Santos Farias
Doutor em Ciências Sociais pela Unesp-Marília



Construído em 1948, durante a gestão fabril do grupo Othon Bezerra de Mello (iniciada em 1943), o Recreio Operário é um dos mais imponentes e conservados prédios da antiga vila operária de Fernão Velho, que foi propriedade da Fábrica Carmen de Fiação e Tecelagem, a mais longeva indústria têxtil de Alagoas, inaugurada em 1857. Localizada atualmente na periferia de Maceió, às margens da laguna Mundaú, a fábrica funcionou até janeiro de 2010 e chegou a empregar cerca de cinco mil trabalhadores, entre as décadas de 1940 e 50. Foi a maior indústria têxtil de Alagoas, produzindo tecidos de algodão para o mercado nacional e internacional.

O Recreio foi construído entre dois conjuntos de moradias de operários, ao lado da linha férrea, integrada ao conjunto arquitetônico já existente. Desde a fundação da fábrica, os industriais montaram gradualmente uma estrutura que buscava a organização e o controle sobre a vida dos operários fora do local de trabalho. Diferentes moradias, praças, quadras poliesportivas, igreja católica, cinema, ambulatório, e escolas – todas propriedades dos industriais -, compunham um sistema de “fábrica com vila operária”.

Nesse contexto, o Recreio tinha a função de ser um espaço de entretenimento. Os proprietários da Fábrica Carmen propagandeavam-no como um exemplo do bom tratamento supostamente dado aos trabalhadores. Era no Recreio Operário que ocorriam bailes de carnaval, festas do dia das mães, de aniversários e casamento, festejos organizados por times de futebol da localidade, além de espaço para recepção de autoridades políticas e empresariais. Dessa forma, tornou-se um dos mais importantes locais de sociabilidade da classe operária local, mantendo-se ainda hoje como referência constante na memória social.

As festas em espaços públicos, por sua vez, representavam um instrumento pensado pelos industriais para o controle do tempo livre do operariado, inspecionando seu ócio e buscando evitar o “prazer desregrado”. Por isso, a gerência fabril se preocupava com a administração das atividades recreativas realizadas na vila operária.  Em Fernão Velho havia um gerente, conhecido como Sr. Campina, responsável pelo lazer dos trabalhadores.

Entretanto, o que foi pensado como espaço de controle tornou-se também importante local da fermentação de uma identidade de classe. Consolidou-se como o lugar da recreação “popular” na localidade em oposição a outro, dentro da vila operária, de caráter “elitista”. Segundo o operário Veríssimo Ferreira, maestro da orquestra da fábrica e ex-presidente Sindicato dos Trabalhadores Têxteis nos anos 1970, em Fernão Velho havia dois ambientes de cerimônias que distinguiam as classes sociais. O carnaval, segundo ele, era celebrado com “baile na Sede e baile no Recreio. No Recreio era popular, na Sede era para uma sociedade que tinha aqui, a Sociedade Recreativa Othon: só entrava sócio. No Recreio entrava todo mundo”.


Além de lugar de festividades, o espaço do Recreio também foi utilizado pelo Sindicato dos Trabalhadores Têxteis, particularmente no efervescente contexto político que antecedeu o golpe de 1964. Foi ali que, em 21 de abril de 1962, tomou posse a direção sindical presidida por José Conrado Alves.  Foi um concorrido evento, contando com a presença de diversas lideranças sindicais de Alagoas, do delegado regional do Trabalho e do próprio governador do estado, o General Luiz Cavalcante. Em agosto daquele mesmo ano, o Sindicato lideraria uma vitoriosa greve, que paralisou toda a produção da fábrica por três dias.


O Recreio, desse modo, tornou-se um articulador da identidade de classe, servindo de elo entre o passado e o presente do operariado têxtil de Fernão Velho. Décadas depois, antigos operários e seus “herdeiros fabris” retomam e ressignificam, na memória social local, aquele espaço como um lugar de rememoração de seus encontros e lutas. São comuns nos relatos dos/as antigos/as trabalhadores/as o orgulho de dizer que artistas de reconhecimento nacional, como Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, entre outros, se apresentaram no Recreio. Os bailes de domingo, os carnavais ou as festas juninas que aconteciam no local também são recorrentes nas recordações operárias

Com o primeiro fechamento da Fábrica Carmen, em 1996 (o definitivo só se deu em 2010), o Recreio passou a pertencer à Prefeitura Municipal de Maceió. Durante alguns anos o espaço ficou abandonado. No início da década de 2000, porém, o prédio foi reformado e reutilizado pelos moradores da localidade para o funcionamento do CRAS (Centro de Referência de Assistência Social), com atividades esportivas, artísticas e educativas. Assim, de certa forma, esse importante lugar de memória dos trabalhadores alagoanos foi retomado, para as mãos daqueles que podem ser considerados os herdeiros fabris de uma longa tradição cultural de lutas, trabalho e resistência.

Recreio Operário de Fernão Velho.
Autoria: Lisandra Pereira, 2007.


Para saber mais:

  • CORREIA, Telma de Barros. Pedra: plano e cotidiano operário no sertão. Campinas: Papirus, 1998.
  • FARIAS, Ivo dos Santos Farias. Nossa casa é do patrão: dominação e resistência operária no núcleo fabril de Fernão Velho (Maceió-AL). Curitiba: Appris, 2014.
  • LOPES, José Sérgio Leite. A tecelagem dos conflitos de classe na cidade das chaminés. São Paulo: Editora Marco Zero; Brasília Editora da Universidade de Brasília, 1988.

Crédito da imagem de capa: Evento no Recreio Operário de Fernão Velho. Década de 1960. Autoria: desconhecida.


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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  1. “Lugares de Memória dos Trabalhadores: Recreio Operário de Fernão Velho, Maceió (AL)” de Ivo dos Santos Farias faz um resgate da memória como um campo de abordagem e reflexão, no contexto fabril e têxtil. Ali, enseja o lugar no mundo das representações culturais, seja no plano tangível e intangível das construções sociais, cujo eixo temporal remete à Alagoas, como cotidiano vivido. (Maria de Lourdes Lima – PPGCI/UFAL – maio de 2020)

  2. Recordo com muitas saudades dos momentos de alegrias vividos. Uma delas foi a festa de eficiência patrocinada pela direção da antiga fábrica Carmen que trouxe como atração a escola de samba Unidos do Poço, de Maceió, sem mencionar as noites dançantes, em ritmo de discoteca, ocorreu nos anos 80/90.

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