Lara de Castro
Professora da Universidade Federal do Amapá
A fome, as doenças e a morte eram as companheiras permanentes das famílias migrantes que foram abrigadas na Hospedaria Tapanã, na periferia de Belém do Pará. Construída em 1942 pelo Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para Amazônia (SEMTA) para servir como “pouso de imigrantes” da Batalha da Borracha durante a Segunda Guerra Mundial, a também chamada Hospedaria do Diabo ou Hospedaria do Inferno foi o lugar por onde passaram milhares de trabalhadoras e trabalhadores, especialmente nordestinos. Enquanto aguardavam para ocupar postos de serviços nas cidades ou no interior da floresta amazônica, os migrantes sobreviviam a um cotidiano de agruras, permanecendo isolados, enfrentando condições degradantes, sob vigilância constante da polícia.
A entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial e a supressão do fornecimento de borracha asiática aos países Aliados estimularam a assinatura dos “acordos de Washington” em 1942, pelos quais o Brasil se comprometia a garantir o suprimento daquela matéria-prima essencial ao esforço de guerra norte-americano. Assim, o governo brasileiro criou o programa Batalha da Borracha, que arregimentou milhares de trabalhadores para a lida nos seringais amazônicos. O contexto de seca foi a justificativa ideal para o envio de nordestinos pobres à região amazônica naqueles anos. A presença de nordestinos na Amazônia não era uma novidade, já que milhares de migrantes daquela região também haviam trabalhado nos seringais durante o boom da borracha no final do século XIX e início do século XX.
Por meio do SEMTA foi implantado um projeto que visava selecionar trabalhadores homens, assistir suas famílias, garantir alojamentos por meio da construção de pousos, assistência médica e alimentação até o momento da alocação nos seringais. Os chamados “soldados da borracha” eram alistados em barracões do SEMTA espalhados pelo Nordeste, que tinha um escritório central em Fortaleza (CE). A promessa, difundida em intensa propaganda, era garantir uma experiência laboral decente aos migrantes desde as partidas de seus estados de origem. Conforme os contratos de encaminhamento, ao chegar à Amazônia, os trabalhadores teriam direito ao cultivo de um hectare de terra, coleta de castanhas, pele de animais abatidos, extração de madeira de seringueiras e castanheiras. A borracha extraída era permutada em produtos para consumo próprio e familiar nos barracões dos seringais. Não havia pagamento em dinheiro.
Alistados ao SEMTA, os trabalhadores, muitas vezes acompanhados de suas famílias, partiam em vapores, especialmente do Ceará, rumo a Belém. Durante o trajeto, em virtude das precárias condições de viagem, era comum a rápida propagação de doenças e mortes. Chegando à hospedaria, aguardavam a oportunidade de serem encaminhados aos seringais do Pará, Rondônia, Acre e Amazonas.
Na hospedaria Tapanã, os trabalhadores e suas famílias dividiam barracos insalubres em espaços aglomerados, em péssimas condições. Gastroenterites e malária, além de tifo, tuberculose, entre outras doenças eram frequentes.
Além disso, as centenas dos “soldados da borracha” doentes que retornavam dos seringais à hospedaria, ampliava a reincidência dos surtos epidêmicos. A alimentação na Tapanã era de péssima qualidade e insuficiente. Em função disso, trabalhadoras e trabalhadores buscavam pequenos serviços na cidade para garantir meios de contornar a fome. Frequentemente, mulheres e crianças fugiam da hospedaria, burlando a vigilância da segurança armada. Essas condições aviltantes resultaram em grande número de mortos, apesar do serviço médico e de assistência social mantidos pelo SEMTA.
Nos seringais, os trabalhadores vivenciavam condições de trabalho altamente degradantes. As garantias firmadas em contrato com o Estado eram totalmente desrespeitadas. Doentes, mal nutridos, explorados e vigiados pelos patrões e seus guardas, presos ao aviamento – sistema marcado pelas dívidas exorbitantes dos seringueiros aos donos de barracões no isolamento da floresta -, as relações de trabalho eram análogas à escravidão. Em resposta a essas agruras, os trabalhadores resistiram de variadas formas. As fugas eram frequentes, bem como a organização em redes de apoio informais com outros migrantes e ribeirinhos, na luta pelo controle de seu tempo e formas de trabalho.
A situação de pousos como Tapanã e as condições de trabalho nos seringais provocavam indignação em setores da sociedade da região amazônica. Religiosos, entidades de caridade e parte da imprensa frequentemente denunciavam a exploração dos trabalhadores seringueiros. Em 1946 uma CPI sobre o tema chegou a ser instalada no Congresso Nacional. Os “soldados da borracha”, no entanto, teriam que esperar décadas por algum reconhecimento e reparação, só alcançada com a Constituição de 1988, quando passaram a receber uma pensão por parte do Estado.
Após a Batalha da Borracha, a “Hospedaria do Diabo” continuou a receber, até meados dos anos 1950, migrantes que tinham como destino a Amazônia. Conforme o jornal cearense Gazeta de Notícias, cerca de 63.000 nordestinos passaram por este alojamento entre 1942 e 1953. Ao redor do antigo “pouso”, a ocupação de antigo núcleo habitacional se intensificou, transformando-se no bairro Tapanã. Lugar marcado por uma memória catastrófica de surtos epidêmicos, fome e corajosa lida de trabalhadores e trabalhadoras pela sobrevivência, o bairro da periferia de Belém ainda guarda profundas marcas da pobreza, exclusão e desigualdades sociais.
Para saber mais:
- GONÇALVES, Adelaide; COSTA, Pedro Eymar Barbosa. (Org.) Mais Borracha para a vitória. Fortaleza: MAUC/NUDOC; Brasília: Ideal Gráfica, 2008.
- SECRETO, María Verónica. Soldados da borracha: Trabalhadores entre o sertão e a Amazônia no governo Vargas. São Paulo: Editora da Fundação Perseu Abramo, 2006.
- GOIS, Sarah Campelo Cruz. As linhas tortas da migração: estado e família nos deslocamentos para a Amazônia (1942-1944). 2013. Dissertação (Mestrado), Universidade Federal do Ceará, Programa de Pós-graduação em História, Fortaleza, 2013.
Crédito da imagem de capa: Trabalhadores nordestinos rumo a Amazônia durante a “Batalha da Borracha”, 1943. Fonte: COSTA, Pedro Eymar Barbosa; GONÇALVES, Adelaide (org.s). Mais borracha para a Vitória. Fortaleza: MAUC/NUDOC; Brasília: Ideal Gráfica, 2008.
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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.
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