Laboratório de Estudos de História dos Mundos do Trabalho

Contribuição especial #04: Panela de pressão: O 1º de maio de 1980 e a greve dos metalúrgicos do ABC, 40 anos de história

Contribuição especial de Luís Paulo Bresciani e Deise Cavignato¹


“É possível saber que um dia será histórico quando você está nele? Ou depende de uma avaliação posterior, baseada em um conjunto de acontecimentos?”, se perguntou Nelson Campanholo ao ver quase cem mil pessoas na praça da Igreja Matriz Nossa Senhora da Boa Viagem, em São Bernardo de Campo. Era 1º de maio de 1980, Dia do Trabalhador, dia de lutar pelos direitos, mas também dia de mostrar a resistência à ditadura militar.

Defender a redução da jornada de trabalho, estabilidade no emprego e aumento salarial significava questionar o governo. E quem não gostaria de vencer uma partida de xadrez contra um regime que controlava o tabuleiro, mas não os peões? Já estava em xeque um novo momento político, as massas entrando no jogo.

Aquele 1º de maio seria um catalisador do descontentamento, a panela de pressão prestes a explodir. A greve servia para denunciar muitas coisas, entre elas, o arrocho salarial, que foi a espinha dorsal que sustentava a política econômica da ditadura militar. O país estava crescendo com a exportação de automóveis e autopeças, e o grau de intensidade de trabalho era absurda, com uma jornada extremamente longa, com 48h normais para época, além das horas extras. Todos tinham algo em comum, antes da greve, as conversas escondidas sobre o encontro do 1º de maio eram normais aos peões, isso revelou o quanto os trabalhadores eram unidos e a ditadura frágil, vulnerável e provisória.

Nelson Campanholo aos 40 anos, idade em que participou do 1º de Maio.

Nelson Campanholo sabia disso, os metalúrgicos do ABC estavam há 30 dias em greve e teriam mais 11 dias pela frente, ainda sem saber disso. Naquele dia, ele não pôde dar um beijo na mulher e nos filhos ao sair de casa, e nem lá ele estava. Um carro estranho, parado há dias em sua porta, fez com que a família rumasse para a casa de parentes, enquanto ele pulava de lar em lar, acolhido por seus companheiros. Campanholo era perseguido pela polícia, que o queria preso junto ao restante da diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema. Os sindicalistas que encabeçavam a greve não puderam participar do ato do 1º de maio, Luiz Inácio Lula da Silva e outros estavam encarcerados há dias pela polícia política, o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social).

As mulheres tiveram um papel fundamental na preparação daquele dia. As esposas de alguns trabalhadores e dirigentes sindicais, que estavam presos, saíram à frente da passeata aos gritos de “a greve continua”. As forças policias, acostumadas a intimidar, intimidadas recuavam diante da força da multidão.

Mesmo com a aglomeração na praça, o exímio soldador na Karmann Ghia, e então secretário-geral do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, encontrou personalidades como o deputado federal Ulysses Guimarães, o senador Teotônio Vilela, o escritor Fernando Moraes, o advogado Almir Pazzianotto e outros apoiadores da causa de toda a categoria. Ali, naquela praça, se escrevia uma história que seria contada por muito tempo depois. E nem o apoio firme da Pastoral da Juventude e das comunidades eclesiásticas de base fez com que os metalúrgicos se sentissem seguros ao lado da igreja ou dentro dela.


Nelson Campanholo lembraria para sempre as palavras de Teotônio Vilela aos oficiais do Exército que tentavam cercar os trabalhadores, mesmo sendo inviável confrontar aquela massa de operários: “Coronel, ontem na Câmara eu deixei bem claro que o que aconteceria aqui hoje seria problema de vocês”. O Exército sabia que os trabalhadores estavam ali e que seria um dia como nenhum outro antes.

Com as palavras de Teotônio Vilela, abriu-se o caminho para os manifestantes saírem em passeata até o velho Estádio da Vila Euclides, hoje orgulhosamente chamado Primeiro de Maio. Aquele seria o único local capaz de caber a gigantesca concentração de pessoas. No entanto, quando Campanholo começou a atravessar a rua Faria Lima, o então deputado Ulysses Guimarães pegou em seu braço e disse: “Entre no meu carro, ‘eles’ querem pegar você”. Sem pensar muito e já sabendo que estava ‘foragido’ há tempos, entrou no carro e foi parar próximo aos antigos estúdios da Vera Cruz. “Fiquei debaixo daquelas árvores sozinho desde manhã até umas 15h e fui para a casa de um amigo. À noite me encontrei com todos novamente, desta vez na casa do senador Severo Gomes, no Morumbi, para discutir as medidas que deveriam ser tomadas, mas não chegamos a um acordo. De qualquer forma, eu sabia que o ato tinha sido grandioso”.

Ironicamente, mesmo sendo um dos organizadores do evento, ele não pôde estar no olho do furacão, no coração pulsante da greve, o velho estádio. O impacto das greves do ABC seria enorme, a pauta econômica andava de mãos dadas com a pauta política, o fim da ditadura estaria próximo, mas Campanholo ainda não sabia o quanto. As palavras autoridade, administração, comando, domínio, governo, liderança e poder eram os sinônimos de controle a cada dia de trabalho, não apenas o controle do feitor, termo que vinha lá da escravidão: o controle também era da ditadura sobre os inúmeros ‘chãos de fábrica’, em cada cidade industrial do Brasil.

“Lutávamos porque não tínhamos liberdade para nada. Às vezes batalhávamos por um refeitório ou um vestiário, não tínhamos nenhum direito de manifestação, nosso trabalho era conquistar direitos”, lembra Campanholo.

Ele viveria a greve do Primeiro de Maio de 1980 pelos olhos de seus companheiros, e não se arrependeu. A História estava feita, a mudança estava plantada, e os 40 anos que se seguiram trazem as marcas daquele dia inesquecível, no gramado da Vila Euclides.

Hoje, aos 80 anos, Nelson tem orgulho de sua história.

¹ Luís Paulo Bresciani é professor da Universidade Municipal de São Caetano do Sul e da Fundação Getúlio Vargas – SP, e Coordenador da Subseção DIEESE no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC.
Deise Cavignato é mestre em Comunicação, professora da pós-graduação da FMU, jornalista e escritora.

Nosso agradecimento à historiadora Luci Praun, e muito especialmente para Osvaldo Cavignato, por nos trazer até aqui.

Crédito da imagem de capa: Fotógrafo Ricardo Alves.

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