Lugares de Memória dos Trabalhadores #05: Doca da Fortaleza, Macapá (AP) – Sidney Lobato



Sidney Lobato
Professor da Universidade Federal do Amapá



Inaugurada como vila em 1758, Macapá foi edificada entre dois cursos d’água: o Igarapé das Mulheres e o Igarapé da Fortaleza. Este último recebeu tal nome porque na sua entrada foi construída (1764-1782) a maior fortificação portuguesa das Américas, a Fortaleza de São José, cuja função era guardar para Portugal a foz do rio Amazonas. No Relatório do Conselheiro J. M. de Oliveira Figueiredo, escrito em 1854, lê-se que na margem leste deste igarapé “se permitiu a edificação das casas que formam o renque [ou fileira] que no desenho se vê, com a condição porém de serem demolidas no primeiro aviso, visto ser aquele lugar pertencente à esplanada da praça.” Nesse aglomerado de palafitas moravam famílias de baixa renda que aí conviviam com um intenso comércio.

Ao longo de dois séculos, as embarcações (ubás, gaiolas, lanchas, etc.) que vinham a Macapá pararam na Doca da Fortaleza, que se tornou um grande mercado a céu aberto. O movimento de barcos era frequente. Eles levavam e traziam pessoas, mercadorias, notícias, entre outros. Em 1955, por exemplo, 4.704 barcos aportaram neste lugar, conforme dados oficiais. Isto representava uma média de aproximadamente 78 embarcações por semana.

Muitos destes barcos pertenciam a regatões que mercadejavam entre Macapá, Belém, ilhas da foz do Amazonas e interiores do Pará e do Amapá. Estes mascates fluviais desempenhavam um papel fundamental no abastecimento da cidade de Macapá, que em 1944 se tornou a capital do recém-criado Território Federal do Amapá (1943). Somente as embarcações com carga inferior a 10 mil quilos conseguiam atracar nesta Doca, pois seu canal navegável era raso. E, ainda que respeitasse tal limite, o marítimo deveria esperar a maré alta, pois, caso contrário, poderia ficar encalhado. Deste modo, o “pinga-pinga” do comércio de regateio era responsável por boa parte dos víveres consumidos pelos moradores de Macapá.


O dinâmico comércio da Doca oferecia várias oportunidades de trabalho. Um diversificado espectro de trabalhadores informais se movimentava entre embarcações, palafitas, xerimbabos (animais de criação) e transeuntes (funcionários públicos, operários do governo e da mineradora Icomi, comerciantes, entre outros).


O movimento começava muito cedo. No início dos anos 1950, por exemplo, Amiraldo Bezerra, um dos sacoleiros que trabalhavam na Doca, levantava ainda sonolento, ia tomar banho e fazer o desjejum para, em seguida, lançar-se “na busca ansiosa pela sobrevivência”.

A Doca, além de um espaço de comércio e moradia, era um importante centro de divertimentos populares. Nela, a boemia concentrava-se e ganhava força, pois, chegada a escuridão, suas vielas e pequenas pontes eram tomadas pelos notívagos, que aí buscavam seus pequenos bares para rápidos aperitivos ou demoradas farras. Botequins e lupanares atraíam homens de toda a cidade, e também de fora dela. Na década de 1950, quando surgiam os primeiros sindicatos amapaenses, os momentos de lazer vividos neste lugar ajudavam a reforçar a camaradagem entre os trabalhadores.

Percebida pela classe dirigente local como espaço gerador de crimes e fonte de degradação humana, a Doca era objeto de frequente policiamento. Igualmente era vista como algo feio que, lamentavelmente, ficava na frente de Macapá. Seu apagamento da cartografia urbana deu-se em nome do ideal de uma cidade socialmente higienizada. Após o golpe militar de 1964, o governo territorial investiu no desaparecimento deste lugar. Depois do grande incêndio da noite do dia 28 de novembro de 1967 – que destruiu muitas das palafitas aí existentes e que, para alguns moradores, teria sido causado por agentes do governo territorial –, os desabrigados foram transferidos para outros bairros. O Igarapé da Fortaleza foi então transformado num canal com leito concretado e com margens aterradas. Mas, a Doca sobrevive ainda hoje na memória e na história dos trabalhadores macapaenses.

Canal de concreto que substituiu o Igarapé da Fortaleza (1974). Fotógrafo(a) desconhecido(a). Arquivo Pessoal de Sidney Lobato.


Para saber mais:

  • BEZERRA, Amiraldo. A margem esquerda do Amazonas. Fortaleza: Premius, 2008.
  • COSTA, Paulo Marcelo Cambraia da. Na ilharga da Fortaleza, logo ali na beira, lá tem o regatão: os significados dos regatões na vida do Amapá – 1945 a 1970. Belém: Açaí, 2008.
  • LOBATO, Sidney. A cidade dos trabalhadores: insegurança estrutural e táticas de sobrevivência em Macapá (1944-1964). Belém: Paka-Tatu, 2019.
  • PAZ, Adalberto. Os mineiros da floresta: modernização, sociabilidade e a formação do caboclo-operário no início da mineração industrial amazônica. Belém: Paka-Tatu, 2014.

Crédito da imagem de capa: Doca da Fortaleza em 1965. Fotógrafo desconhecido. Arquivo Pessoal de Edgar Rodrigues de Paula.


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Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.


Lugares de Memória dos Trabalhadores #04: Bürgerklub, Porto Alegre (RS) – Frederico Duarte Bartz



Frederico Duarte Bartz
Doutor em História pela UFRGS



O Bürgerklub (Clube dos Cidadãos) era uma sociedade beneficente voltada para a comunidade alemã de Porto Alegre. A associação havia sido fundada nos anos 1880, mas sua sede definitiva, na Rua Comendador Azevedo, n.26 (atualmente n.444) no Arrabalde da Floresta, só foi construída na década de 1910. Apesar de ser uma sociedade beneficente de caráter étnico, o local acabou se transformando em um espaço importante de reuniões para o movimento operário, especialmente para grupos de trabalhadores de origem germânica. A presença dos alemães em Porto Alegre já era significativa desde o século XIX, quando representavam entre 7% e 15% da população da capital, mas é muito provável que ela tenha aumentado durante a Primeira República, especialmente pela chegada de um grande número de operários e operárias dessa origem étnica.

O Bürgerklub foi fundado em 1883 e suas primeiras sedes estavam localizadas na Praça Dom Feliciano e no inicio da Rua Voluntários da Pátria, no centro da cidade. Na segunda década do século XX, foi inaugurada uma sede própria no coração do Arrabalde da Floresta, que era a região da cidade para onde se expandia não apenas a industrialização, mas também as moradias da classe trabalhadora, se constituindo no primeiro bairro fabril de Porto Alegre. Além de operários industriais, a região também se caracterizava pela grande presença de imigrantes alemães. Como as organizações de classe muitas vezes não possuíam sedes próprias era comum a utilização de salões de tavernas, hotéis e sociedades beneficentes. Neste caso, a partir de 1912 o Bürgerklub passou a sediar as reuniões da Allgemeiner Arbeiter Verein (Associação Geral dos Trabalhadores), principal entidade socialdemocrata de Porto Alegre, que teve uma forte atuação como uma das principais organizações de classe na virada do século XIX para o XX, com a liderança de militantes como Wilhelm Koch e Joseph Zeller-Rethaler.


Ao longo da década de 1910, com o crescimento da hegemonia dos anarquistas no movimento operário da capital, a Algemeiner foi perdendo o caráter de resistência, até a chegada de Friedrich Kniestedt em 1917, que se tornaria uma das principais lideranças anarquistas da cidade.


Apesar de libertário, Kniestedt entrou na associação reformista e começou a modificá-la, imprimido novamente um caráter de resistência à Allgemeiner e tornando o prédio do Bürgerklub um espaço de mobilização para além da comunidade alemã. Em 1918, foi neste local em que foi instalada a União Geral dos Trabalhadores, associação criada para se contrapor à influência de figuras ligadas ao Partido Republicano Riograndense sobre o operariado e retomar a liderança anarquista na Federação Operária do Rio Grande do Sul. Mas este também era um espaço de conflito e contradições dentro da própria classe: em 1918, ainda durante a Grande Guerra, a Sociedade Polonesa Tadeusz Kosciuszko, que ficava ao lado do Bürgerklub, organizou uma homenagem aos poloneses do Rio Grande do Sul que partiriam para lutar na Europa, enquanto a Allgemeiner organizava uma conferência de protesto contra o militarismo e a guerra.

No início dos anos 1920, Friedrich Kniestedt rompe com a Allgemeiner, fundando a Sozialistischer Deutscher Arbeiter Verein (Associação dos Trabalhadores Alemães Socialistas), enquanto o Bürgerklub se tornava novamente um espaço para beneficência e convívio social, como o amparo aos sócios em caso de doença e morte, a prática esportiva do bolão e a realização de uma importante festa anual. Na década de 1940, durante a Segunda Guerra, o Bürgerklub teve de mudar seu nome para Sociedade Flórida (antiga designação da Praça Bartolomeu de Gusmão, próxima da sede do clube). Nos anos 1950 e 1960, a Sociedade Flórida se notabilizou pela formação de equipes de vôlei e de basquete, representando ainda um espaço importante de sociabilidade no bairro. Nos dias de hoje, porém, a associação encontra-se totalmente desmobilizada e seu prédio é utilizado apenas para encontros de lojas maçônicas, mas sua memória permanece entre os moradores do bairro, assim como no seu frontão permanece a imagem das duas mãos enlaçadas, símbolo da ajuda mútua.

Apesar dos anos passados e do processo de esquecimento, é necessário recordar este local como um espaço de luta, como uma referência para a classe trabalhadora da região. Isso também diz respeito a memória dos alemães em Porto Alegre, que foi construída pela burguesia, deixando de fora os aspectos de resistência, os conflitos e a importância dos teutos para a formação do movimento operário. Desta forma, recordar o Bürgerklub como um espaço apropriado pelos trabalhadores é também ajudar a construir uma memória alternativa para a cidade de Porto Alegre.

Panorama do Floresta e Navegantes em 1920
Panorama dos bairros operários Arrabalde da Floresta e Navegantes em 1920. 
Arquivo Central do IPHAN-ACI-RJ.


Para saber mais:

  • AMSTADT, Theodor (Org.) Cem Anos de Germanidade no Rio Grande do Sul. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2005 (original de 1924).
  • GANZ, Magda Roswita. Presença teuta em Porto Alegre no século XIX (1850-1889). Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.
  • GERTZ, René E. Operários alemães no Rio Grande do Sul (1920-1937) ou Friedrich Kniestedt também foi um imigrante alemão. Revista Brasileira de História, São Paulo: ANPUH, vol. 6, n. 11, 1885/1986.
  • KNIESTEDT, Friedrich. Memórias de um imigrante anarquista. Tradução, Introdução, Epílogo e Notas de Rodapé: René E. GERTZ. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana. 1989.
  • PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz. “Que a união operária seja nossa pátria”: história das lutas dos operários gaúchos para construir suas organizações. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2001.

Crédito da imagem de capa: Fachada do antigo Bürgerklub em 2019. Fotógrafa: Laura Spritzer Galli .


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Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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Lugares de Memória dos Trabalhadores #03: Fábrica de Tecidos Aliança, Rio de Janeiro (RJ) – Isabelle Pires



Isabelle Pires
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ


Estranho é pensar que o bairro das Laranjeiras satisfeito sorri quando chego ali.



Os versos de All Star, canção de Nando Reis, popularizada na voz de Cassia Eller, deu projeção nacional a Laranjeiras, bairro da zona sul do Rio de Janeiro. Conhecido, atualmente, por atrair intelectuais e boêmios, o bairro também é lembrado por seus elegantes edifícios antigos, como o Palácio Laranjeiras, residência do governador que abriga o Parque Guinle. Mas um imponente símbolo da localidade, entre o final do século XIX e as primeiras décadas do XX, deixou poucas marcas físicas.

A Fábrica de Tecidos Aliança, criada em 1880, interferiu na configuração do bairro e escancarou contradições sociais, como destacou o militante anarquista Albino Moreira em um artigo no jornal A Voz do Trabalhador em junho de 1913. Albino ressaltava que além de “popularizar” o bairro, a companhia têxtil também tornou vizinha dos burgueses as precárias condições de vida e trabalho da classe operária.

Entre o final do século XIX e o início do XX, a então capital federal era o maior centro manufatureiro do país, tendo como principal setor a indústria têxtil. Segundo o censo de 1920, por exemplo, as 73 tecelagens cariocas empregavam 20.054 trabalhadores, sendo 11.779 homens e 8.275 mulheres. Bairros como Jardim Botânico, Gávea, Vila Isabel e Bangu constituíram-se, naquele período, como importante núcleos fabris.

Localizada na Rua Aliança (atual General Glicério), a Fábrica Aliança foi a maior indústria de tecidos do país, no final do século XIX. Em uma elogiosa reportagem publicada no jornal O Paiz em 1913, o empreendimento era descrito como “uma cidade erguida dentro do Rio de Janeiro”. A tecelagem contava com dois mil operários, entre homens, mulheres e crianças, que enfrentavam extenuantes jornadas de trabalho. Em seus poucos momentos de lazer, o jornal destacava que os/as operários/as saíam da fábrica e se dirigiam para “os cinemas, o theatro, as salas das sociedades recreativas, os salões de musica…” que a companhia oferecia.

Mas tal estrutura de entretenimento, que visava à disciplinarização dos/as trabalhadores/as, não atrofiava a mobilização operária, que tomava as ruas de Laranjeiras em momentos de luta, como greves, protestos, manifestações de solidariedade e em participações em meetings e comícios.


Em 7 de agosto de 1903, por exemplo, mais de 500 operárias vestidas de branco e mil operários com roupas de trabalho paralisaram suas atividades na fábrica e caminharam pelas ruas do bairro para acompanhar o cortejo fúnebre de Antonio José Ferreira, vítima de acidente de trabalho no estabelecimento.


Dias depois, em meio a uma greve que havia se dado, entre outros motivos, pela readmissão da operária Ludovica, que havia sido demitida após retornar do parto, alguns grevistas estavam apagando os combustores da iluminação pública na Rua das Laranjeiras para atrair atenção para o movimento paredista. Além desta rua, a própria Rua Aliança e a Rua Cardoso Júnior também foram espaços constantes de mobilização no bairro. É possível encontrar na imprensa diversas referências a reuniões contra a carestia de vida, meetings operários promovidos pela União dos Operários em Fábricas de Tecidos e comícios políticos.

Circula na memória local que o pai do compositor Cartola trabalhou na Fábrica Aliança e que a família residia nas encostas de Laranjeiras antes de se mudar para a Mangueira. Também está presente na lembrança a centenária tradição carnavalesca do bairro, pois desde as primeiras décadas do século XX já contava com dois ranchos carnavalescos criados pelos operários da fábrica, Os Arrepiados e a União da Aliança. Um dos destaques de Os Arrepiados era o mestre-sala Camarão, o tecelão João Pereira Subtil, que ganhara o apelido ainda garoto por ficar vermelho por conta do calor da tecelagem da Fábrica Aliança, onde trabalhava junto com seu pai.

Na década de 1930, a zona sul do Rio de Janeiro estava deixando de ser uma região fabril. Após enfrentar períodos de crise, a fábrica foi vendida, em 1935, para o empresário pernambucano Severino Pereira da Silva, que encerrou as atividades da empresa em 1937. Pereira da Silva aproveitou o maquinário da Aliança em outros empreendimentos de tecelagem menores. No lugar da fábrica iniciou um empreendimento imobiliário chamado Cidade-Jardim Laranjeiras, inaugurado nos anos 1940. Do antigo complexo fabril restam apenas algumas casas da antiga vila operária, na Rua Cardoso Júnior. O fechamento da tecelagem, além de ter acarretado uma considerável queda na economia do bairro na década de 1930, também gerou consequências para a vida de seus operários, pois muitos tiveram que sair a contragosto das Laranjeiras.

Décadas depois de sua demolição, as memórias da Fábrica Aliança ressaltam um espaço de labuta, de lazer e de lutas por melhores condições de vida e trabalho, que tomavam as ruas de Laranjeiras e marcaram a história do Rio de Janeiro.

Anúncio publicitário do empreendimento imobiliário que foi edificado no local da Fábrica de Tecidos Aliança, após sua demolição
(O Globo, 15/01/1945)



Para saber mais:

  • GERSON, Brasil. Histórias das Ruas do Rio. Rio de Janeiro: Lacerda Editora. 5ª Edição, 2000.
  • GOLDMACHER, Marcela. A “Greve Geral” de 1903: O Rio de Janeiro nas décadas de 1890 e 1910. Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense, 2009.
  • GOMES, Ângela Maria de Castro; FERREIRA, Marieta de Moraes. Industrialização e classe trabalhadora no Rio de Janeiro: novas perspectivas de análise. Rio de Janeiro: Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, 1988.
  • LOBO, Eulalia; CARVALHO, Lia A.; STANLEY, Myrian. Questão habitacional e o movimento operário. Rio de Janeiro: UFRJ, 1989.
  • PIRES, Isabelle Cristina da Silva. Entre teares e lutas:relações de gênero e questões etárias nas principais fábricas de tecidos do Distrito Federal (1891-1932). Dissertação de mestrado. Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil – CPDOC/FGV, Rio de Janeiro, 2018.

Crédito da imagem de capa: Fábrica Aliança em Laranjeiras, Rio de Janeiro, 1907. Acervo: Arquivo Nacional. Fundo Correio da Manhã. BR_RJANRIO_PH_0_FOT_04463_007


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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Lugares de Memória dos Trabalhadores #02: Estádio de Vila Euclides, São Bernardo do Campo (SP) – John French



John French
Professor do Departamento de História da Duke University



As famosas greves dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo entre 1978 e 1980 constituíram uma história incrível, recheada de apostas audaciosas. Quando o Sindicato dos Metalúrgicos convocou a primeira greve geral da categoria em 1979, a forte adesão dos trabalhadores pode ser creditada, em grande medida, a uma excêntrica ideia que ocorreu a Lula, então presidente da entidade, e a alguns outros dirigentes sindicais, enquanto assistiam a um jogo do Corinthians no estádio do Morumbi, em São Paulo. Lula teria dito que “quando pudermos convocar uma assembleia com metade do tamanho dessa multidão poderemos virar o mundo de cabeça para baixo” e mudar o país “de cima abaixo!”. Encarando o desafio, os sindicalistas agendaram a assembleia inaugural da campanha salarial daquele ano em um estádio de futebol no bairro de Vila Euclides, em 13 de março de 1979.

Naquele dia, segundo um relatório da polícia política, o DOPS, 20.000 trabalhadores compareceram à reunião, apesar da chuva, entusiasmando as lideranças sindicais. Um precário palanque foi improvisado apressadamente, de onde Lula se dirigiu à multidão. Na ausência de um sistema de som, ele falava para os que estavam à sua frente que, por sua vez, repetiam o que estava sendo dito para os detrás.


No início, como Lula recordaria anos depois, “a peãozada”, que lotou aquele campo de futebol encharcado, não parecia muito interessada, mas logo lhe dirigiriam palavras encorajadoras: “Fique calmo. Ninguém está com pressa. Vá devagar, Lula. Não fique nervoso”. A experiência teve um impacto muito forte para os líderes dos trabalhadores. “Era muita confiança. Muita fé!”.


O Estádio de Vila Euclides se tornaria o icônico marco zero onde os metalúrgicos do ABC Paulista fizeram história ao paralisar o coração industrial do país e mudar os rumos políticos da nação. Daquele momento em diante, os olhos e a imaginação da sociedade seriam repetidamente atraídos para aquele provinciano estádio municipal. Pelo menos 18 assembleias foram realizadas em Vila Euclides durante as greves de 1979 e 80. De 12 delas, de acordo com relatórios do DOPS, participaram entre 40 e 70 mil grevistas, familiares e expectadores em geral. As outras 6 teriam atraído entre 15 e 35 mil pessoas. Na avaliação do sindicato, as maiores assembleias contaram com a participação de 80 a 100 mil trabalhadores. De qualquer forma, aquelas multidões de operários surpreenderam o país. A fama de Lula e a construção de sua impressionante liderança ficariam inextricavelmente ligadas às suas performances naquele estádio onde foi rotineiramente aclamado com gritos de apoio, aplausos e carregado nos ombros de entusiasmados metalúrgicos anônimos.

Construído nos anos 1950, o campo de futebol pertencia originalmente à Fiação e Tecelagem Elni. Com o fechamento dessa fábrica, as instalações foram incorporadas como Estádio Distrital de Vila Euclides pela Prefeitura de São Bernardo. Após reforma que incluiu a construção de arquibancadas e de sistema de iluminação, o estádio foi oficialmente inaugurado em agosto de 1968 com o nome de Arthur da Costa e Silva, em homenagem ao general ditador do período. O nome, no entanto, nunca “pegou” de fato e foi como Estádio de Vila Euclides que o lugar se tornaria mundialmente famoso com as paralisações dos metalúrgicos do final dos anos 1970. Após a greve de 1980, o então prefeito da cidade, Antônio Tito Costa, alterou o nome oficial do estádio para Primeiro de Maio.

As imagens sem precedentes das assembleias em Vila Euclides rodaram o mundo, divulgadas por uma imprensa que acabava de escapar da censura como parte de um processo de liberalização do regime. À medida que as notícias circulavam, mais e mais pessoas ficavam simpáticas ao movimento e fascinadas com o que consideravam um verdadeiro “espetáculo de democracia”. Quanto mais ouviam, mais convencidos estavam de que os metalúrgicos do ABC, liderados por Lula, sintetizavam seu desejo de participação política e o fim da tutela militar. “A República de São Bernardo”, como a denominou o jornalista Ricardo Kotscho, era um território livre em um país governado por uma ditadura sufocante que já havia durado demais. No calor da hora, cineastas como Leon Hirszman, João Batista de Andrade e Renato Tapajós perceberam a novidade e o potencial histórico daquelas cenas impressionantes, que registaram em filmes antológicos.  As greves dos metalúrgicos do ABC e suas históricas assembleias representaram um momento fundamental para a crescente oposição popular em sua luta por democracia e direitos sociais. E foi no Estádio de Vila Euclides que os trabalhadores começaram a mudar o Brasil “de cima abaixo”.

Assembleia que abriu a Campanha Salarial de 1979 dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema no Estádio de Vila Euclides.
Fotógrafo Fernando Pereira. Acervo CPdoc JB.


Para saber mais:

  • BARGAS, Osvaldo Martines; RAINHO, Luis Flavio. As lutas operárias e sindicais dos metalúrgicos em São Bernardo: (1977-1979). São Bernardo do Campo: Associação Beneficente e Cultural dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, 1983.
  • FRENCH, John. Lula’s Politics of Cunning: From Trade Unionism to the Brazilian Presidency and Beyond. Chapel Hill: UNC Press (no prelo)
  • MEDICI, Ademir. O 1º de Maio. Um estádio. Patrimônio nacional. Diário do Grande ABC. 21 dez. 2008. Disponível em: https://www.dgabc.com.br/Noticia/362208/o-1-demaio-um-estadio-patrimonio-nacional
  • PARANÁ, Denise. Lula, o filho do Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo. 2003.
  •  Filme: ABC da greve. Direção de Leon Hirszman. 1979. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=2hhFk0cml6Y

Crédito da imagem de capa: Assembleia do Metalúrgicos no Estádio de Vila Euclides, São Bernardo do Campo, 1979. Foto: Juca Martins. Acervo Olhar Imagens.


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Lugares de Memória dos Trabalhadores #01: Cais do Porto, Salvador (BA) – João José Reis



João José Reis
Professor do Programa de Pós-Graduação em História da UFBA



O porto de Salvador destacou-se, desde o final do século XVII até meados do século XIX, entre os mais movimentados da bacia atlântica. No início do século XVIII figurava como o mais movimentado da orla ocidental do oceano. Tome-se, por exemplo, o tráfico de escravos, um dos mais importantes negócios do mundo ao longo dos quatro séculos desde a fundação da cidade, em 1549, até meados do século XIX. Pois bem, a Bahia foi responsável pela importação, principalmente através do porto de sua capital, de cerca de 15% dos cerca de 11 milhões de africanos traficados para as Américas, e de 33% dos quase cinco milhões embarcados para o Brasil. No caso das exportações, do porto de Salvador  partiam o açúcar produzido nos seus engenhos, além de outros produtos de como fumo, algodão, couros, entre outros. Além disso, recebia por mar passageiros e a produção de alimentos vindos das numerosas localidades do litoral baiano e de outras partes do Brasil.

Salvador era, então, uma cidade-porto e sua economia girava em torno de seu ancoradouro. Até a reforma do porto, na segunda década do século XX, os navios de grande calado não chegavam até o cais. Eles ancoravam ao largo e as mercadorias eram embarcadas e desembarcadas por meio de barcos menores manejados por marinheiros negros, na sua maioria africanos escravizados e libertos.


Esses barcos, ao alcançarem o ancoradouro, tinham suas cargas retiradas por carregadores igualmente negros, que as levavam para os diversos destinos na cidade. Esses trabalhadores eram chamados de ganhadores porque viviam do ganho, o trabalho urbano de rua.


Quando escravizados, dividiam a remuneração do ganho com seus senhores a uma taxa combinada que deveria ser paga a cada semana. Quando libertos ou livres, os ganhadores mantinham para si todo o valor auferido do seu trabalho.

Os ganhadores eram, até meados do século XIX, africanos na sua quase totalidade. Eles se reuniam em grupos chamados cantos, espalhados por toda a cidade, para oferecer serviços como carregadores de todo tipo e volume de objetos, além de transportar passageiros nas chamadas cadeiras de arruar, que eram conduzidas por dois ganhadores. Os cantos tinham uma liderança própria, os capitães do canto, responsáveis por negociar os fretes e manter os seus liderados em ordem. Cada grupo reunia os de sua própria nação africana (nagôs, jejes, angolas etc.), embora alguma mistura se desse, sobretudo a adesão de membros de nações menos numerosas. E estas, aliás, contavam com um grande número de cantos.

Na sua maioria os cantos de trabalho estavam localizados no bairro portuário de Salvador, que equivalia à freguesia da Conceição da Praia, onde se encontra a igreja com o mesmo nome. O local é também conhecido como Cidade Baixa, cujo marco maior é hoje o elevador Lacerda. Um grande número de cantos se reunia precisamente no cais do porto, e em torno das diversas escadas existentes no embarcadouro. Essas escadas podem ser consideradas o mais importante marco territorial desses grupos de trabalhadores na região portuária. Assim como os cantos, elas podiam ser identificadas pelos nomes dos cais a que serviam: Cais do Sodré, Cais Dourado, Cais de Cachoeira, Cais do Comércio,  e assim por diante. Vale salientar que, em muitos casos, cada cais (ou cada escada) abrigava diversos cantos de ganhadores, que provavelmente se revezavam no serviço do carrego. É possível observar em fotografias da época a grande atividade que girava em torno dessas escadas, sugerindo a intensa vida social dos cantos de ganhadores no porto de Salvador.

A relevância dos ganhadores para o funcionamento da capital baiana foi dramaticamente exposta quando eles resolveram suspender os trabalhos por mais de uma semana em junho de 1857. Organizada pelos cantos, a paralização foi motivada por uma lei municipal que obrigaria os ganhadores a se matricular junto à Câmara Municipal, pagar um pequeno imposto de serviço, usar uma placa de ferro ao pescoço com o número da inscrição municipal, e os libertos seriam compelidos a encontrarem cidadãos idôneos que afiançassem  sua conduta passada e futura.

O movimento parou a cidade. Nenhuma mercadoria era desembarcada, nenhum volume transportado nas costas de negros do porto para os armazéns e lojas, nenhum passageiro carregado em cadeiras de arruar. O ancoradouro da cidade foi sem dúvida o epicentro da parede grevista, uma vez que a maior parte do abastecimento da população passava por lá.  Apesar de sugerida pela imprensa, a greve não pôde ser reprimida porque o governo não se dispôs a invadir casas para obrigar os ganhadores a retornarem ao trabalho, manobra que seria complicada no caso dos escravos, maioria entre eles, pois implicaria na invasão de casas senhoriais. A paralisação logrou abolir temporariamente o imposto e suspendeu a obrigatoriedade de os libertos apresentarem fiança, bastando agora uma declaração de nada consta emitida por uma autoridade policial. Foi mantida a chapa, mas, antes paga, seria agora gratuita. Esta medida fora a que mais ultrajou os ganhadores, que a consideravam um ultraje à sua dignidade, motivo aliás pelo prolongamento da paralisação.

Fica assim explicado porque o velho ancoradouro de Salvador, sobretudo suas escadas, hoje soterradas pela construção do novo porto, entre 1911 e 1913, representa um importante lugar de memória dos trabalhadores na capital da Bahia. Antes e depois das obras, o porto se manteria, já no período republicano, como o local mais relevante de mobilização operária, pois marítimos, doqueiros, estivadores e carregadores figuram como os trabalhadores que mais greves fizeram entre 1890 e 1930.

Na década de 1880, a reunião de ganhadores africanos e brasileiros já era a norma nos cantos do cais do porto de Salvador

Fotógrafo desconhecido. New York Public Library, Brazil Collection, 1860-1900.


Para saber mais:

  • ANDRADE, Maria José de Souza. A mão de obra escrava em Salvador, 1811-1860. São Paulo: Corrupio, 1988.
  • COSTA, Ana de Lourdes Ribeiro da. “Espaços negros: ‘cantos’ e ‘lojas’em Salvador no século XIX”. Cantos e toques: Suplemento do Caderno CRH (1991), pp. 23-37.
  • MATTOS, Wilson Roberto de. Negros contra a ordem: astúcias, resistências e liberdades possíveis (Salvador -BA, 1850-1888). Salvador: Eduneb; Edufba, 2008.
  • REIS, João José. Ganhadores: a greve negra de 1857 na Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
  • SAMPAIO, Consuelo Novais. 50 anos de urbanização: Salvador da Bahia no século XIX. Rio de Janeiro: Versal, 2005.

Crédito da imagem de capa: Cais das Amarras, Porto de Salvador, por volta de 1885. Fotógrafo: Rodolpho Lindemann.


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Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

Contribuição especial #01: Homenagem: Walter Barelli, o economista dos trabalhadores – Paulo Fontes

Walter Barelli foi o intelectual mais importante vinculado ao movimento sindical brasileiro durante a ditadura militar. Nascido em 25 de julho de 1938 em São Paulo, Barelli vinha de uma típica família operária de origem italiana. Sua mãe foi tecelã e seu pai, mecânico de manutenção da Nitro Química, grande indústria do bairro de São Miguel Paulista, onde Barelli viveu sua infância. Os laços com a classe trabalhadora permaneceriam por toda sua vida.

Ainda adolescente, tornou-se funcionário do Banco do Brasil o que acabou estimulando-o a prestar vestibular para Economia na Universidade de São Paulo. Na USP, no início dos anos 1960, Barelli começou a militar na Juventude Universitária Católica (JUC) e aproximou-se da Ação Popular (AP).

O golpe militar de 1964 atingiu violentamente as organizações dos trabalhadores, dentre elas o DIEESE, o Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Sócio-Econômicos. Fundado em 1955 por sindicalistas paulistas, o DIEESE logo firmou-se como o mais importante órgão de assessoria econômica do sindicalismo. Não por acaso, o órgão seria quase desativado logo após o golpe. Aos poucos foi retomando suas atividades e ainda se encontrava em situação bastante precária, quando em 1966, a convite da socióloga Heloísa de Souza Martins, o jovem economista Walter Barelli lá começou a trabalhar. Pelas duas décadas seguintes, Barelli seria a alma do DIEESE e o principal responsável por torná-lo a mais respeitada instituição do sindicalismo brasileiro. 

Competente, humanitário e conciliador, Barelli navegava com habilidade pelas várias correntes políticas que povoavam o movimento sindical durante a ditadura. Conseguia, por exemplo, ser ao mesmo tempo amigo pessoal de Joaquinzão, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, tido como “pelego”, e muito respeitado pelos aguerridos dirigentes da Oposição Metalúrgica paulistana.

Alçado ao cargo de diretor-técnico do DIEESE, Barelli investiu fortemente na relação direta com os principais sindicatos paulistas. O DIEESE passou a ter um papel chave no assessoramento, formação sindical e, principalmente nos processos de negociação coletiva com os empresários. Nas assembleias sindicais ao longo da década de 1970, não era incomum encontrar o alto e corpulento técnico do DIEESE explicando diretamente aos trabalhadores os cálculos de reajuste salarial e sobre  a inflação. Tal ativismo não passou despercebido pela repressão ditatorial. O DOPS monitorava cotidianamente as atividades de Barelli e do DIEESE. Em 1979, já nacionalmente conhecido e respeitado, chegou a ser preso pela polícia política, o que causou protestos generalizados e indignados, obrigando o DOPS a um constrangedor pedidos de desculpas pelo “lamentável engano”.

No auge da tecnocracia econômica ditatorial, Barelli foi uma poderosa voz em favor de uma “economia para os trabalhadores”. Teve um papel fundamental na denúncia do caráter concentrador de renda do “milagre econômico”. Sua revelação da manipulação pelo governo dos índices inflacionários de 1973, reconhecida pelo Banco Mundial em 1977, traria notoriedade e angariaria respeito acadêmico e político. Mais importante ainda, o ataque à manipulação dos índices da inflação foi um dos motores das campanhas salariais de 1977 e 1978, que deram início ao ciclo de greves e lutas sociais que mudaram o sindicalismo brasileiro e recolocaram os trabalhadores no centro do processo de redemocratização do país.

A proeminência sindical no final dos anos 1970 e na década de 1980 alçou o DIEESE à condição de instituição reconhecida e respeitada no cenário político brasileiro. Walter Barelli tornou-se renomada figura pública, cuja opinião reverberava na mídia e nos meios políticos e empresariais.  O DIEESE cresceu e nacionalizou-se. Criou seções em quase todos os estados e nos principais sindicatos do país. Consolidou metodologias de medição de índices inflacionários, de desemprego, de valor do salário mínimo, entre outras, que se tornaram referência e rivalizavam, muitas vezes superando em qualidade, os cálculos de instituições consolidadas como o IBGE e a FGV. Durante o processo constituinte, o DIEESE teve papel importantíssimo, assessorando as centrais sindicais e outras organizações na construção de políticas trabalhistas e sociais que forjariam muito do que há de melhor em termos de direitos para os trabalhadores na Constituição de 1988.

Barelli deixaria a coordenação técnica do DIEESE no início dos anos 1990. Passou a lecionar no Departamento de Economia da Unicamp, onde anos depois, ajudaria a consolidar o CESIT (Centro de Estudos Sindicais de Economia do Trabalho). Simultaneamente, foi um dos coordenadores na área de economia do “governo paralelo” criado por Lula após as eleições de 1989.

Quando Itamar Franco assumiu a presidência, após o impeachment de Fernando Collor em 1992, Barelli foi indicado para o Ministério do Trabalho. Durante dois anos, abriu amplas negociações com entidades de trabalhadores e empresários na tentativa, ao final frustradas, de construir um novo sistema de contrato coletivo de trabalho nas relações trabalhistas. Também capacitou o Ministério em ações de combate ao trabalho escravo que se tornariam uma importante política pública nos anos vindouros. No processo de formulação do Plano Real teve numerosos atritos com Fernando Henrique Cardoso, como a defesa de um salário mínimo de US$100, repudiada pelo então ministro da Fazenda.

Com a eleição de Mario Covas como governador de São Paulo, Barelli foi, por duas gestões, Secretario de Emprego e Relações de Trabalho. Também foi suplente de deputado federal pelo PSDB, assumindo o mandato entre 2005 e 2007. Apesar da filiação tucana, manteve relações de proximidade, amizade e respeito com o movimento sindical e com diversos setores do PT, inclusive com o ex-presidente Lula. No final daquela década, voltou a lecionar na Unicamp, onde se aposentou.

Em abril deste ano, Barelli sofreu um acidente ao cair numa escada no Instituo Tomie Ohtake em São Paulo. Seriamente ferido, ficou internado durante três meses, vindo a falecer no último dia 18 de julho. Certa vez, numa crítica à ditadura, afirmou “A classe operária é muito mais digna do que os governantes”. Poucos intelectuais foram tão dignos na defesa da classe trabalhadora quanto Walter Barelli.

Paulo Fontes
Professor do Instituto de História da UFRJ e Coordenador do LEHMT

Crédito da imagem de capa: Jonne Roriz/AE/VEJA