Kátia Franciele Corrêa Borges
Doutora em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora
Nos arredores de Diamantina, em Minas Gerais, situa-se a Vila do Biribiri, onde sobrevivem antigas instalações de uma fábrica de tecidos que funcionou entre 1877 e 1973. A Fábrica do Biribiri foi fundada pelo bispo Dom João Antônio Felício dos Santos e seus familiares. Dom João pertencia a uma família do Serro, cujo patrimônio provinha de negócios minerários. Os tecidos produzidos, em sua maioria de algodão grosso, eram vendidos na região e no Rio de Janeiro.
Do alto da estrada, avista-se o conjunto arquitetônico da vila composto pela Capela do Sagrado Coração de Jesus, galpões da antiga fábrica, um casarão que, no passado, era o dormitório feminino (chamado de convento) e 33 casas. O nome “Biribiri” tem origem tupi e significa “buraco fundo”. O maquinário foi adquirido nos Estados Unidos e ao chegar ao Rio de Janeiro seguiu longa viagem até finalmente ser conduzido em carros de boi e tropas até Biribiri.
A posição geográfica da fábrica, isolada e distante do centro urbano, tornava difícil o acesso ao local do trabalho e exigiu a construção de uma vila para moradia dos(as) trabalhadores(as). Um armazém também foi erguido, inclusive com o propósito de gerar laços de dependência e controle. Os operários moravam na vila e seguiam normas rígidas de disciplina, sobretudo, as mulheres.
A fábrica começou a funcionar com 63 operários(as), sendo 36 mulheres, 18 meninos e 9 homens. Este quadro de emprego majoritariamente feminino manteve-se ao longo da existência de Biribiri e as ocupações e hierarquias eram claramente definidas pelo gênero. As mulheres ocupavam funções de fiadoras, tecelãs, copeiras, cozinheiras e auxiliares de escritórios, enquanto os homens eram carpinteiros, mecânicos, ferreiros, motoristas, e ocupavam os lugares de supervisão e chefias. No ápice de sua produção, na primeira metade do século XX, a empresa contou com 300 trabalhadores(as).
A maioria deles era arregimentada na própria região de Diamantina e seu entorno. No início, as trabalhadoras eram denominadas de “pobres órfãs-operárias”, pois parte delas provinha de obras assistenciais, como o Colégio e Orfanato Nossa Senhora das Dores. Um jornal da época conta que Dona Mariana Valadares Fernandes dos Santos, cunhada do bispo, se responsabilizava por cuidar das moças que ali trabalhavam. Produziu-se a ideia de que tais meninas “infelizes”, por serem muito pobres, precisariam ser amparadas por meio do emprego na fábrica ou de um casamento.
A religiosidade foi um fenômeno marcante em Biribiri, sobretudo para as mulheres. Associações católicas como Filhas de Maria e o Apostolado da Oração incentivavam as operárias a seguirem regras de idoneidade moral, autovigilância e submissão.
Ao ingressarem na associação Filhas de Maria, por exemplo, as mulheres recebiam fitas que indicavam o nível de pertencimento na ordem. A cor azul indicava que aquela devota havia sido penitente, praticado boas ações, não tinha dançado e desrespeitado seus pais ou superiores. O ritual de troca das fitas era assinalado por momentos de grandes festividades religiosas.
As associações católicas femininas disseminavam a ideia de que uma “boa operária” teria que ser virtuosa e ter boa moral e tiveram forte impacto na identidade daquelas mulheres. O pertencimento a uma associação católica chegava a ser um pré-requisito para ingresso na fábrica. Mas, para além de um espaço de controle e resignação, as atividades das associações possibilitavam a difusão de informações e a inserção das mulheres no mundo das leituras. Espaços de alguma autonomia no interior dessas associações também foram construídos pelas operárias e não eram incomuns as burlas e desobediências às regras.
Em 1908, o Banco Hipotecário do Brasil assumiu o controle da fábrica, que em 1921, passou às mãos dos irmãos Algemiro Pompoloni Duarte e João Gerundino Duarte. Em junho de 1943, quando entrou em vigor a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), o gerente da fábrica contratou o fotógrafo Assis Horta para fazer os retratos de 300 operários(as) para as carteiras profissionais. Para a imensa maioria delas, aquele seria seu primeiro documento. Não à toa, o fotógrafo relatou o esmero com que as moças se preparavam para serem fotografadas, arrumando seus cabelos e vestindo suas melhores roupas.
O empresário Alexandre Mascarenhas, em 1954, tornou-se acionista majoritário da Biribiri. Em 1973, mesmo diante dos protestos do ex-presidente Juscelino Kubitschek, natural de Diamantina, e do prefeito da cidade, o industrial optou pelo fechamento da fábrica argumentando que empreendimento havia se tornado obsoleto e dispendioso. Parte dos(as) operários(as) foi realocada em unidades fabris de propriedade do empresário em Diamantina, Gouveia e Contagem.
Em 1994, um movimento organizado por moradores de Diamantina resultou no tombamento do conjunto arquitetônico e paisagístico da Vila do Biribiri pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais. E o lugar que outrora foi movimentado pelo apito da chaminé, agora é ressignificado como espaço turístico. Mas Biribiri também é um fundamental lugar de memória do trabalho e dos operários e operárias que ali construíram suas vidas.
Para saber mais:
- BORGES, Kátia Franciele Corrêa. Fiar, tecer e rezar: a história das mulheres na Fábrica de Tecidos do Biribiri (1918-1959). Tese de doutorado. Universidade Federal de Juiz de Fora, 2019.
- FERNANDES, Antônio Carlos. O turíbulo e a chaminé: a ação do bispado no processo de constituição da modernidade em Diamantina, 1864-1917. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Minas Gerais, 2005.
- MARTINS, Marcos Lobato. Breviário de Diamantina: uma história do garimpo de diamantes em Minas Gerais (Século XIX). Belo Horizonte: Fino Traço, 2014.
Crédito da imagem de capa: Fotos das operárias do Biribiri para carteira de trabalho feitas por Assis Horta (1943). Fonte: HORTA, Guilherme. Assis Horta: a democratização do Retrato Fotográfico através da CLT. Catálogo digital da Exposição. Ouro Preto: Funarte e Minc, 2012. Disponível em https://issuu.com/studioanta/docs/catalogo_democratizacao
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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.
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Um Paraizo, criado com função nobre, objetivo sublime, por isso detém essa energia maravilhosa. Vila linda.
Amei, li rapidamente, mas o farei saboreando cada palavra.