Cinthia Fanin
Jornalista do Centro de Memória do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC
A categoria metalúrgica na região do ABC paulista tem uma longa história que remonta ao final do século XIX. Seria, no entanto, a instalação da indústria automobilística em São Bernardo do Campo no final dos anos 1950, que definitivamente marcaria a região como o principal polo industrial do país. São Bernardo, município emancipado de Santo André em 1957, ficaria conhecido como a “Capital do Automóvel”, reunindo algumas das maiores unidades fabris do país e uma crescente população operária.
Em 1959, era fundado o Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema. No início dos anos 60, o Sindicato se fortalecia e mobilizava os trabalhadores na luta por direitos e pelas reformas de base que empolgavam os setores populares no país. Com o golpe de 1964, o Sindicato sofreu intervenção governamental. Em 1965, uma eleição sindical foi autorizada e Afonso Monteiro da Cruz foi eleito presidente. Cruz foi sucedido por Paulo Vidal em 1969, que permaneceria como presidente até 1975, quando Lula assumiria o cargo.
No final dos anos 1960 e início dos 1970, o setor metalúrgico do ABC ganhou novo impulso. O “milagre econômico” brasileiro ancorava-se no apoio governamental às indústrias multinacionais, que tiravam vantagem do clima de repressão e do arrocho salarial proporcionado pela ditadura. Num contexto de privação das liberdades e superexploração do trabalho, mas também de crescimento do emprego, sindicatos como o dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo, viam o número de trabalhadores em suas bases multiplicarem-se. Uma Sede própria, que atendesse às demandas da categoria e fosse uma demonstração da força dos metalúrgicos, era agora uma necessidade e uma real possibilidade.
A Sede era sonho antigo. Já em 1962, a direção sindical havia aprovado a compra de um terreno na rua João Basso, número 121 (hoje 231). O local era estratégico, próximo à Via Anchieta, onde se concentravam as principais indústrias metalúrgicas. A obra durou 33 meses entre 1971 e 1973. Finalmente, em 6 de outubro de 1973, era inaugurada a Casa de Tiradentes, como a Sede foi batizada. Mais de dez mil pessoas estiveram presentes, com o hasteamento de bandeiras, visitação às dependências do prédio, sessão solene e comemoração no Clube dos Funcionários na Brastemp. O presidente do Sindicato, Paulo Vidal, recepcionou diversas figuras políticas, como o governador do Estado, Laudo Natel, dentre outras autoridades e dirigentes sindicais.
Logo, a Sede abrigaria reuniões e congressos que começariam a desenhar as linhas gerais do que viria a ser conhecido como o “novo sindicalismo”. O pioneiro I Congresso da Mulher Metalúrgica, em janeiro de 1978, foi um destes eventos e teria papel decisivo na denúncia das desigualdades salariais e dos assédios sofridos nas empresas.
A Sede também foi um importante espaço de sociabilidade da categoria. As festas de carnaval dos metalúrgicos, por exemplo, eram as mais famosas da região. O Sindicato tornou-se ponto de encontro de amigos e uma extensão da fábrica. Era comum, após o expediente, os trabalhadores reunirem-se na Sede para debater política, falar de futebol ou da vida em geral, entre goles de bebida no bar do sindicato ou nas imediações.
Foi, igualmente, espaço de atividades culturais e esportivas. Shows e exibição de filmes ocorriam com frequência. O Grupo de Teatro Forja, fundado por Tin Urbinatti em 1978, marcou época. Composto por metalúrgicos e metalúrgicas, o grupo ensaiava no terceiro andar da Sede, e suas peças relatavam de forma única o cotidiano, as agruras e as lutas dos trabalhadores.
O prédio da rua João Basso foi um dos epicentros das grandes greves dos metalúrgicos do ABC no final dos anos 1970 e início dos 1980. O chamado “novo sindicalismo” foi forjado dentre aquelas paredes, assim como o Partido dos Trabalhadores. Durante as greves, o salão social da Sede ficava pequeno a cada ato e as assembleias passaram a ser realizadas em frente à Igreja Matriz, no Paço Municipal e no Estádio da Vila Euclides.
Neste prédio, o Sindicato sofreu intervenção governamental em 1979, 1980 e 1983 e a Sede foi cercada por forças policiais. Os retornos das diretorias legitimamente eleitas, após as intervenções, foram sempre emocionantes e tiveram grande impacto político e simbólico.
Nas últimas décadas, a Sede dos metalúrgicos manteve-se como o “quartel-general” da categoria e espaço de grande projeção nacional e internacional. Tem sido ponto de encontro dos trabalhadores para assembleias, local de formação sindical, vigílias em defesa de direitos e atividades culturais, entre outras.
Dois grandes eventos políticos também marcaram recentemente a Sede dos Metalúrgicos do ABC. Foi para lá que Lula se dirigiu quando sua prisão foi decretada em abril de 2018. Uma multidão ocupou as dependências da Sede em defesa do ex-presidente e protestou contra a injustiça. A emocionante missa em homenagem à esposa de Lula, Marisa Letícia (que falecera exatamente um ano antes) transformou-se num ato público em frente ao Sindicato, reunindo algumas das mais importantes lideranças políticas do país, com enorme repercussão em todo o mundo.
Quinhentos e oitenta dias depois, foi para a Sede, seu berço político, que um Lula livre se encaminhou ao deixar a prisão em Curitiba. Novamente uma multidão, agora em festa, celebrava a liberdade do ex-presidente. Mais uma vez, a Sede dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo, estava no centro da vida política e social da nação. Como em outros momentos, não apenas como um lugar de memória, mas também como um lugar de esperança dos trabalhadores.
Imagem 1: Fachada da Sede do Sindicato no dia de sua inauguração em 6 de outubro de 1973 (Crédito: Acervo SMABC).
Imagem 2: Sede do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC em São Bernardo do Campo, 2020. O prédio passou por ampla reforma em 2012. (Foto: Adonis Guerra).
Para saber mais:
- NEGRO, Antonio Luigi. Linhas de montagem: o industrialismo nacional-desenvolvimentista e a sindicalização dos trabalhadores. São Paulo: Boitempo, 2004.
- OLIVA, Aloízio Mercadante (org.). Imagens da luta: 1905-1985. São Bernardo do Campo: Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Metalúrgicas, Mecânicas e de Material Elétrico, 1987.
- PARANHOS, Kátia Rodrigues. Era uma vez em São Bernardo: o discurso sindical dos metalúrgicos (1971/1982). Editora da Unicamp/Centro de Memória-Unicamp, 1999.
- RAINHO, Luís Flavio & BARGAS, Osvaldo Martines. As lutas operárias e sindicais dos metalúrgicos em São Bernardo do Campo – 1977/1979. Volume 1. São Bernardo do Campo: Associação Beneficente e Cultural dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema, 1983.
- Filme – documentário: ABC da Greve. Direção de Leon Hirszman. 1979. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=2hhFk0cml6Y
Crédito da imagem de capa: Lula é carregado pela multidão em frente à Sede do Sindicato após saída da prisão em novembro de 2019 (Foto: Adonis Guerra).
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Lugares de Memória dos Trabalhadores
As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.
A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.
Excelente trabalho da Cinthia. O marido dela foi meu aluno no Curso de História na FASB. Aparecida Casseb Lossano
Parabéns minha querida companheira Cinthia Fanin!! Sua seriedade, responsabilidade, profissionalismo e compromisso com a memoria historica da classe trabalhadora, só poderia resultar nesse resultado ímpar!!! Bjs
Parabéns CINTHIA FANIN, voce nos fez voltar no tempo….que maravilha tudo que escreve e nos enche de muito orgulho e admiração….. Sem palavras Damiana Fanin
Parabéns Cinthia,Fanin, Texto muito bem escrito e elucidativo.
Adorei!!!!!!!
Excelente texto.Uma boa iniciativa nesse momento que o grande anfitrião (PT) permanece calado e essas memórias nos ajuda a ter esperança.
Com a compra do terreno a diretoria pediu ao famoso arquiteto modernista Villanova Artigas que fizesse um projeto para a construção da nova sede. Projeto feito o secretário geral na época Orrison Saraiva viajou até o Rio de Janeiro e negociou com o Dante Pelancane representante do ministério do trabalho a antecipação do imposto sindical para construção do prédio. Em março 1964 veio o golpe militar e a construção foi abortada, o projeto original da sede se encontra na biblioteca da Fau USP. A diretoria tentou resgastar o projeto original más com a eleição do Paulo Vidal o projeto tomou outro rumo.
Como sempre brilhantes, ricos e irretocáveis os textos da companheira e competente jornalista Cinthia; mas permita-me um reparo: lamento constatar/dizer (e os mais antigos sabem do que estou falando) que há muito a sede deixou de ser “A SEDE”, e além de outros erros, ela continua falando pra si mesma. Durante o episódio da prisão do companheiro Lula, quantas fábricas e/ou trabalhadores metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema paralisaram mesmo??? Que saudades “DA SEDE”, do combativo “CASTELO DAS PASTILHAS” onde respirava-se LUTA. Companheiro GUILHERME BOULOS e do MTST, obrigado pela demonstração de de luta e resistência em Abril/2018. Ainda resta esperança. “A LUTA FAZ A LEI”. Abraços a todos. JANUário