Exposição mescla artes visuais e memória operária em Sorocaba (SP)

Em entrevista, a artista Flávia Aguilera fala sobre seu processo de criação e o envolvimento com grupo que trabalha para preservar e divulgar fontes e pesquisas sobre os trabalhadores da região.
Julia Chequer entrevista FLÁVIA AGUILERA

Arte e memória operária se fundem na mostra “Livro de Registro” da artista plástica Flávia Aguilera, aberta ao público no Sesc Sorocaba, prorrogada até o dia 30 de novembro. A exposição tem curadoria de Ana Maria Maia e apresenta parte da produção recente da artista sorocabana, resultante do contato com documentos sobre a experiência operária da região, assim como da escuta e organização de testemunhos.

As obras são parte da contribuição de Aguilera ao Centro de Memória Operária de Sorocaba (CMOS), uma iniciativa que procura dar visibilidade à luta por direitos e à história da classe operária no interior paulista, reunindo fontes e trabalhos sobre o tema. No grupo, a artista combina desenho, pintura e escultura – predominantes em seu trabalho – com pesquisa em arquivos, cartografia e entrevistas de história oral. Além de Aguilera, fazem parte do CMOS o historiador Carlos Carvalho Carvalheiro e o bibliotecário Alexandre Vieira de Camargo. 

Exposição “Livro de Registro”, no Sesc Sorocaba. Foto: Divulgação

Como foi o processo de criação da exposição “Livro de Registro”?

O argumento principal surgiu do contato com um livro de registro de operários da Fábrica de Tecidos Votorantim. O documento faz parte de um acervo pessoal, o qual eu não tenho mais acesso, então, resolvi pintar os retratos com base nas fotos que havia feito do documento. O resultado não foi uma reprodução fiel, já que inseri também outros personagens importantes da história do operariado sorocabano no lugar das imagens que aparentemente se perderam. 

Quando fui convidada pelo Sesc, a Ana Maria Maia, uma curadora ligada ao debate sobre o trabalho, me ajudou a organizar o material. Em outra parede da exposição, focamos em histórias individuais e é possível ouvir os depoimentos de José Antunes, Aurea Figueiredo Bruson e Salvadora Lopes – a primeira mulher eleita vereadora em Sorocaba, uma sindicalista. Em todas as entrevistas, as pessoas também mostraram seu acervo pessoal, suas fotos e eu fui coletando esse material. Além disso, pintei um mural com o slogan da campanha da Salvadora Lopes.

Exposição “Livro de Registro”, no Sesc Sorocaba. Foto: Divulgação

Você aborda esteticamente a deterioração e ausências do material de arquivo. Qual a relação entre a documentação de arquivo e o seu trabalho?

Esse apagamento é bem característico. É uma documentação em geral escassa, de difícil acesso e guardada sem cuidado, em acervos com pouca manutenção. Isso tem a ver com os tons amarelados e lacunas que ficam também na estética. Mas, com a pintura, eu congelei esse processo de deterioração.

Exposição “Livro de Registro”, no Sesc Sorocaba. Foto: Divulgação

Em sua trajetória, como surgiu a ideia de misturar artes visuais e história? 

Foi um desdobramento do meu trabalho sobre a Julieta Chaves, uma criança assassinada em 1899, que ficou conhecida como a “santinha de Sorocaba”. Desde a minha infância, essa história me marcou muito, então, tive a ideia de pesquisar em jornais e documentos da época para um ateliê de estética visual. Foi o inicio da colaboração com o historiador Carlos Carvalho Cavalheiro, com quem lancei um livro sobre a Julieta, e também a primeira vez que eu misturei a minha necessidade de criar desenhos com uma investigação histórica.

Buscando registros fotográficos dela, eu me deparei com uma foto de operárias e operários da fábrica Nossa Senhora da Ponte, de 1896, na Biblioteca Infantil de Sorocaba. Me impressionei muito com aqueles rostos, com a quantidade de mulheres e crianças, e fui atrás de informações sobre a classe operária da região, que é também a minha origem. 

 Foi assim que passou a desenvolver o tema da memória operária? 

Sim. Aos poucos, me dei conta que Sorocaba é uma cidade operária, ainda que haja um apagamento dessa história. Meu primeiro trabalho sobre o tema partiu justamente dessa foto da fábrica: eu reproduzi em tamanho natural as imagens das operárias e colei com lambe-lambe na região onde ficava a vila operária, propondo uma reflexão sobre esses lugares ocultos de memória, junto com o CMOS.

Pintura de uma operária da fábrica Nossa Senhora da Ponte, feita por Flávia Aguilera, colada no viaduto Jânio Quadros, centro de Sorocaba, em 2015. Foto: Emídio Marques

Conte um pouco sobre o Centro de Memória Operária de Sorocaba.

O CMOS foi idealizado do historiador Carlos Carvalho Carvalheiro, e começou com a produção de um folheto sobre a greve de 1917 em Sorocaba. Em 2014, passei a colaborar com o Centro na reunião de registros, entrevistas e estudos sobre o tema.

Por enquanto, não temos uma sede nem reserva técnica, apenas páginas nas redes sociais. Nosso objetivo é que mais gente colabore e que possamos elaborar materiais não apenas para o público acadêmico, mas para a população em geral, pois, hoje em dia, se fala que greve é coisa de vagabundo, mas pouca gente sabe o quanto conquistamos dessa forma. 

Quais os desafios e potencialidades de se trabalhar com memória operária? 

É muito difícil porque pouca coisa está preservada e, em geral, precisamos trabalhar com fontes institucionais ou acervos familiares, cujo acesso nem sempre é concedido. Ao mesmo tempo, é muito potente a abordagem das artes para esse tema, pois ela trabalha a emoção e comunica de maneira diferente do trabalho acadêmico. Muitas pessoas se lembram de histórias da avó e até choram ao entrarem em contato com uma obra.  Essa conexão com a memória operária é muito latente em uma cidade como Sorocaba.

O artista pode transitar por vários campos. Eu, particularmente, não vejo sentido na arte se não for como uma ferramenta para a reflexão e para a consciência, porque o circuito da arte pode ser muito elitista. O caminho que eu encontrei para isso foi através da história e da memória, na contramão da vida “instantânea” e do esquecimento.


SERVIÇO

Exposição “Livro de Registro”

Quando: até 30/11 (terça a sexta, das 9h às 21h30; sábados, domingos e feriados, das 10h às 18h30).

Onde: Sesc Sorocaba (Rua Barão de Piratininga, 555, Jardim Faculdade – Espaço de Exposições, 1º Andar). Grátis. Livre.


CMOS

Clique para acessar a página do facebook do CMOS

Instagram: @centrodememoriaoperaria

Email: centrodememoriaoperaria@gmail.com


Bibliografia
  • CARVALHEIRO, C. C.; AGUILERA, F. A história de Julieta Chaves: a “santinha” de Sorocaba. Sorocaba: Crearte, 2016.

Andréa Casa Nova Maia traz o cotidiano de mineiros no contexto da promulgação da CLT, no livro “Waldir dos Santos, o sambista operário”

Em entrevista, a historiadora aponta como tarefa a reflexão sobre as novas formas de exploração e para a necessidade de reconstrução tanto de uma legislação, quanto da resistência nos mundos do trabalho.
Julia Chequer entrevista andréa casa nova maia

O novo livro da historiadora Andréa Casa Nova Maia apresenta Waldir dos Santos, trabalhador desde os 16 anos da mina de Morro Velho, no município de Nova Lima, em Minas Gerais. Por meio da narrativa deste personagem, o livro atravessa as décadas de 1930 e 1940 levantando questões ligadas tanto às formas de exploração e disciplinarização do trabalho, quanto à conquista das Leis Trabalhistas, passando pelas resistências cotidianas, pelas formas de sociabilidade, pela cultura e pelas festas populares. Nesse contexto, Waldir dos Santos era também ávido boêmio, compositor de sambas sobre o cotidiano operário, muitas vezes acompanhados, nos bares, por instrumentos como caixas de fósforos, copos e talheres.

A autora conta que seu contato com essas histórias e com os sambas sobre Nova Lima do passado é antigo, pois o filho do senhor Waldir se casou com a sua mãe, Vera Casa Nova. O estudo foi iniciado na graduação, quando realizou por volta dez horas de entrevistas com ele para um projeto de história oral, aprofundado durante o Mestrado. A obra será lançada no dia 30 de setembro, com show de Dorina Barros, no Rio de Janeiro.

Waldir dos Santos em bar de Belo Horizonte, nos anos 1990 (Arquivo Pessoal).

Na sua opinião, como os estudos sobre os espaços de sociabilidade, as formas de lazer e o cotidiano contribuem para a produção acadêmica da história dos mundos do trabalho? 

O mundo do trabalho não pode ser compreendido sem ser relacionado com outras esferas da vida cotidiana dos trabalhadores. Afinal, as pessoas vivem a vida e, fatalmente, começam a trabalhar em um determinado momento. Mas, nos espaços de lazer, no morar, no comer, no beber, no rezar, no dançar, no caminhar, etc, podemos ver as pequenas resistências, as brechas que surgem às tentativas de controle e disciplinarização dos corpos. Às vezes, a empresa tenta regular os horários dentro da vila operária e até mesmo delimitar as festas, a escola onde os filhos dos funcionários podem estudar, as práticas esportivas, o transporte… Mas, felizmente, os sujeitos conseguem ir além desses espaços e criam outros a partir de suas experiências. Assim, é sempre enriquecedor pensar o mundo do trabalho junto com as relações do trabalhador na cidade, na rua, no comércio, na igreja, no clube, e também na casa, na família, já que a complexidade de uma vida não pode ser simplificada em um chão de fábrica.

Hoje, a própria ideia de trabalho está em mutação. Os operários da mina nos anos 1930 não podem ser pensados da mesma maneira que trabalhadores de empresas de telemarketing, de fábricas do pós-fordismo ou de motoristas de aplicativos de transporte. As novas tecnologias e o neoliberalismo modificaram as formas do viver dos trabalhadores, a cada dia com menos direitos, ou sem direito algum. Como um sujeito submetido ao trabalho análogo ao escravo, em uma fazenda no Mato Grosso, pode ter algum momento de lazer? São questões fundamentais para os historiadores dos mundos do trabalho.

De que maneira o relato de Waldir colabora com as reflexões acerca das noções de populismo, trabalhismo, autonomia e heteronomia na história dos trabalhadores?

A história de vida do senhor Waldir ajuda a demolir uma visão simplista do populismo, como manipulação das massas. E mostra a construção do conceito antes da forma pejorativa que ganhou no Brasil na imprensa antitrabalhista, ao estilo de Carlos Lacerda. Waldir se posiciona como populista ao traduzir o populismo como movimento popular. Ser populista para ele era ser um apoiador do povo, das camadas populares. O ethos trabalhista aparece em vários momentos de sua fala, e Vargas como um presidente que ajudou o povo brasileiro a sair da escravidão, ao promulgar as Leis Trabalhistas. 

Mas é interessante notar como ele percebe em sua narrativa que sem a luta dos trabalhadores dificilmente as leis sairiam do papel. Era preciso que o sindicato agisse com base na “lei de Getúlio” e lutasse. Era difícil, pois “o ouro comprava tudo”, dos vereadores da cidade aos mais altos cargos do legislativo, judiciário e executivo. Assim, se sujeitando ao controle da empresa, dos ingleses, e se rebelando, em outros momentos, o operário viveu sua vida.

O seu livro percorre o período de implementação das leis trabalhistas e é publicado justamente no ano em que o Ministério do Trabalho é extinto. Quais reflexões seu estudo pode trazer sobre as questões trabalhistas atuais?

Eu resolvi publicar o livro esse ano justamente por causa dessas questões. Primeiro veio a Reforma Trabalhista, que praticamente dilacerou a CLT, depois, o fim do Ministério do Trabalho, e há também as questões trabalhistas próprias da mineração, pois nós tivemos dois eventos terríveis, Mariana e Brumadinho, com uma série de mortes. O que restou de auxílio a essas famílias? Quando existia uma legislação, esses mineiros já eram vítimas, porque “o ouro comprava tudo” e nem mesmo a lei de insalubridade era seguida na mina de Morro Velho, naqueles anos. Então, a lição que fica desse livro para a atualidade é que só a lei também não adiantava. Era preciso que os trabalhadores lutassem por seus direitos para que a lei saísse do papel.

 Hoje, vivemos um retrocesso e vai ser preciso reconstruir muita coisa. Eu li recentemente um artigo do Archille Mbembe falando que vivemos o fim da era do humanismo, então, é bom pensar que há uma verdadeira guerra discursiva entre um Estado Democrático de Direito e um capitalismo depredador do ser humano sem precedentes, com o neoliberalismo. Assim, precisamos refletir sobre essas novas formas de exploração do trabalho e vai ser preciso responder com resistência. Resta saber qual tipo de resistência. 

TítuloWaldir dos Santos, o sambista operário: história de uma mina de ouro no tempo de Vargas
AutoraAndréa Casa Nova Maia
EditoraGramma
Ano2019
Páginas  302
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SOBRE A AUTORA

Andréa Casa Nova Maia é professora associada de História do Brasil Republicano do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e professora de História da Arte e História da Paisagem Urbana no Programa de Pós-Graduação em História Social (PPGHIS/UFRJ). É doutora em História Social da Cultura pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e mestre em História das relações de poder e dominação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde também se licenciou. É também pesquisadora da FAPERJ e líder do Grupo de Pesquisa do CNPq Laboratório IMAM (Imagem, Memória, Arte e Metrópole). Ultimamente, pesquisa a história do skate nas metrópoles do sudeste brasileiro.


Serviço

Lançamento do livro “Waldir dos Santos, o sambista operário: história de uma mina de ouro no tempo de Vargas”.

Quando: 30 de setembro, a partir das 18 horas.

Onde: Casa do Porto (Largo São Francisco da Prainha, 4, Saúde – Rio de Janeiro).


Bibliografia e outras publicações
  • MBEMBE, Archille. A era do humanismo está terminando. In: Revista IHU. São Leopoldo: Unisinos, 2017. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/564255-achille-mbembe-a-era-do-humanismo-esta-terminando.
  • MAIA, A. C. N; CARDOSO, L. C.; SANTOS, V. S. M. Lições do tempo: temas em história e historiografia do Brasil Republicano. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2016.
  • MAIA, A. C. N. O mundo do trabalho nas páginas das revistas ilustradas. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2015.
  • MAIA, A. C. N. Encontros e Despedidas: história de ferrovia e ferroviários de Minas. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2009.

Livro “Corpos para o Capital”, da historiadora Ana Beatriz Ribeiro Barros Silva, analisa período em que o Brasil foi o “campeão mundial” de acidentes de trabalho, durante a ditadura militar (1964-1985)

Em entrevista, a autora alerta para os brutais impactos das alterações nas leis trabalhistas e da redução de normas regulamentadoras na saúde e na segurança dos trabalhadores.

Julia Chequer entrevista Ana Beatriz Ribeiro Barros Silva

A análise de casos de acidentes e adoecimentos ocupacionais durante a ditadura militar brasileira é o tema do livro da historiadora Ana Beatriz Ribeiro Barros Silva. Fruto de sua tese de doutorado pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), o estudo percorre momentos distintos dentro dessa problemática: a ocorrência, a contabilização e a divulgação dos sinistros, com aumento notável durante o período ditatorial; as políticas formuladas pelo regime para minimizar o problema, estimulando um “espírito prevencionista” nos trabalhadores; e a reabilitação profissional para recuperar os corpos incapacitados para e pelo trabalho.

Em sua trajetória de pesquisa, a autora aliou o impacto em sua memória de infância do Centro de Reabilitação Profissional de João Pessoa (PB), onde seus pais trabalharam, o seu interesse em história política do período republicano, e a vivência pessoal na Inglaterra, onde trabalhou como garçonete, recepcionista e barista, em caráter intermitente. Naquele país, realizou também seu mestrado na University of Manchester e se aprofundou nos estudos clássicos sobre a revolução industrial, sendo marcada especialmente pela obra A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, de Friederich Engels.

A partir do golpe de 1964, quais são as principais mudanças no cotidiano e nas formas de organização dos trabalhadores? Há, na sua opinião, uma correlação direta entre o número de acidentes de trabalho e o chamado “milagre” econômico?

O imediato pós-golpe foi avassalador para a classe trabalhadora brasileira. Mas, além dessa violência mais evidente e direcionada aos elementos mais combativos, a ditadura pôs em prática uma série de mecanismos que possibilitaram uma maior exploração do labor: o arrocho salarial progressivo; as exigências de maior produtividade; o fim da estabilidade nos empregos; a rotatividade; a extensão das horas de trabalho para além do limite legal; a diminuição dos intervalos e dias de descanso; a efetiva proibição de greves etc. Isso tudo em uma conjuntura de favorecimento ao grande capital, afinal, o empresariado nacional e internacional foi partícipe e um dos grandes favorecidos pelo golpe.

É claro que o milagre teve diversos determinantes, como a política econômica implementada nos primeiros anos da ditadura, o crescimento da economia mundial durante a década de 1960, e a desregulamentação do mercado de eurodólar.  Mas, esse crescimento foi potencializado pela superexploração do labor e pelo fato de o Brasil ter se tornado o recordista mundial de acidentes de trabalho no início da década de 1970, evidenciando a brutalidade desse processo sobre os corpos e mentes da classe trabalhadora. No livro, eu procuro analisar como se deu esse processo e como a ditadura procurou dirimir o problema da sinistralidade laboral através das campanhas de prevenção de acidentes e reabilitação profissional dos incapacitados para o trabalho. 

Ainda são poucos os estudos dedicados ao papel dos trabalhadores, organizados em sindicatos ou não, durante a ditadura militar, especialmente entre 1964 e 1977, antes do surgimento do chamado “novo sindicalismo”. Quais são os desafios para pesquisadores interessados no cotidiano e na ação política de trabalhadores, durante o período?

A impressão mais corrente é a de que os trabalhadores desapareceram da cena política no período inicial da ditadura, e consequentemente, ficaram fora do raio de interesse dos pesquisadores. E voltam quase que “do nada” em fins da década de 1970. Esta visão silencia sobre a longa tradição de lutas da classe trabalhadora brasileira, muito além dos restritos limites do sindicalismo varguista, por exemplo. O que foram as grandes greves da Primeira República? As amplas mobilizações populares no início da década de 60? As Ligas Camponesas? Foi contra essa tradição que a ditadura se abateu com ferocidade. 

Mesmo em momentos de refluxo, não podemos esquecer que a maioria dos trabalhadores não participa ativamente das mobilizações e do movimento organizado, o que evidencia a importância de compreendermos o seu cotidiano, sua cultura, suas condições de vida e trabalho, pois é justamente da cotidianidade da exploração que surgem as insatisfações, os conflitos, as insurgências. Esta dimensão precisa ser mais valorizada pelos pesquisadores do trabalho, especialmente por estudos da classe trabalhadora durante a ditadura empresarial-militar.

Em que medida o tema abordado em sua pesquisa ajuda a compreender questões do presente?

Infelizmente, o meu tema de pesquisa tem se mostrado cada vez mais atual. O desastre ambiental da Vale, em Brumadinho, também foi o maior acidente de trabalho da nossa história. Além disso, o Brasil é atualmente o quarto colocado no mundo em volume de acidentes de trabalho – atrás apenas da China, Índia e Indonésia – e especialistas apontam que a Reforma Trabalhista tendencialmente aumentará a informalidade e a rotatividade nos empregos, problemas agudizados pela recessão econômica, com requintes de protofascismo e perseguição às esquerdas, setores que travam as disputas contra-hegemônicas e têm o potencial de barrar as retiradas de direitos e garantias fundamentais. 

Mas tudo isso ganha contornos ainda mais graves se recordarmos os recentemente divulgados planos de Rogério Marinho, Secretário Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia, de reduzir em 90% as normas em saúde e segurança do trabalho no Brasil, sobretudo no que tange às chamadas Normas Regulamentadoras (NRs). Como abordo no livro, após longas negociações, as NRs foram criadas em 1978, em plena ditadura, justamente para responder aos altíssimos índices de sinistros laborais. Sua elaboração contou com a participação de especialistas e desde então vêm sendo ampliadas e atualizadas. Portanto, ver o governo Bolsonaro adotar como “estratégia” de crescimento a desregulamentação, a desproteção, em uma lógica de crescimento voraz e autoritário, ao custo da dilapidação de quem trabalha, é assustador. Caso isso se efetive, em pouco tempo, voltaremos ao triste título de “campeão mundial de acidentes de trabalho” dos tempos da ditadura. 

Título Corpos para o capital:acidentes de trabalho, prevencionismo e reabilitação profissional durante a ditadura militar brasileira (1964-1985)
Autora Ana Beatriz Ribeiro Barros Silva
Editora Paco Editorial
Ano 2019
Páginas 460
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SOBRE A AUTORA

Ana Beatriz Ribeiro Barros Silva é graduada em Licenciatura pela em História pela Universidade Federal da Paraíba, mestre em Direitos Humanos (Direito/Ciência Política) pela Universidade de Manchester, na Inglaterra e doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Foi professora da Rede Estadual de Educação da Paraíba e professora substituta de História Moderna e Contemporânea no Campus III da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), em Guarabira (PB). Atualmente, é bolsista do Programa Nacional de Pós-Doutorado (PNPD/CAPES), no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).


Bibliografia
  • ENGLES, F. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2008.
  • SILVA, Ana Beatriz R. B. Freedom from hunger and other socioeconomic rights as human rights: the case of Fome Zero in Brazil. Dissertação de Mestrado. The University of Manchester, 2009.
  • SILVA, Ana Beatriz R. B. La recuperación de los cuerpos para el capital: la rehabilitación profesional durante la dictadura militar brasileña (1964-1985). In: GALLO, Óscar; CASTAÑO, Eugenio (orgs.). La salud laboral en el siglo XX y el XXI: de la negación al derecho a la salud y la enfermedad. Medellín: Ediciones Escuela Nacional Sindical, 2016.