E. P. Thompson e Paulo Freire: Agência histórica e educação popular – Alexandre Fortes




E. P. Thompson e Paulo Freire: Agência histórica e educação popular



Em 1963, um grupo de estudantes universitários, seguindo as orientações do educador Paulo Freire, realizou a experiência conhecida como “Quarenta horas de Angicos”, na qual 300 camponeses do nordeste brasileiro foram alfabetizados em poucos dias. Naquele mesmo ano, na introdução de The Making of the English Working Class, E.P. Thompson destacava que sua interpretação inovadora da formação da classe operária durante a Revolução Industrial foi moldada em grande medida pelas questões formuladas pelos trabalhadores que frequentavam suas aulas extramuros na University of Leeds a partir das suas próprias experiências.

A eficácia do método de alfabetização de Freire partia de um princípio similar. Era necessário pesquisar o vocabulário usado pela população local para expressar a sua luta cotidiana pela sobrevivência para que o aprendizado da palavra escrita fosse simultaneamente um processo de conscientização. Preso e forçado a se exilar após o golpe militar de 1964, o educador brasileiro realizou experiências pedagógicas importantes no Chile e em países africanos e sistematizou suas ideias em livros traduzidos em dezenas de idiomas, como Pedagogia do Oprimido. Suas extraordinárias realizações intelectuais enraizadas em experiências de educação de adultos contribuíram para que Freire e Thompson se tornassem referências obrigatórias nos estudos acadêmicos sobre pedagogia e história social sem desenvolver carreiras acadêmicas tradicionais.

No Brasil, enquanto a pedagogia de Paulo Freire teve um papel fundamental no trabalho de base junto aos movimentos sociais que ganharam as ruas a partir do final dos anos 1970 na luta contra a ditadura militar e desempenharam um papel decisivo na redemocratização do país, a influência de Thompson na produção historiográfica demorou a se fazer sentir. A leitura do original em inglês de The Making era limitado a um número ínfimo de pesquisadores com acesso às poucas bibliotecas de pesquisa localizadas no eixo Rio-São Paulo, a eventos acadêmicos no exterior e a cursos de línguas de alto padrão. O próprio ambiente intelectual da esquerda brasileira, dominado por versões vulgarizadas do marxismo estruturalista, não estimulava a leitura do exótico livro escrito numa linguagem refinada, repleto de personagens e fatos peculiares, citações literárias e ironia. O contato mais sistemático do leitor brasileiro com Thompson começou no início da década de 1980 com a circulação de uns poucos artigos traduzidos para o espanhol e o português, assim como de Miséria da Teoria, seu ensaio criticando as ideias de Louis Althusser.

Nessa mesma época, após uma breve e frustrante passagem pelo movimento estudantil, fui convidado por colegas da esquerda católica a colaborar com o trabalho de formação política da recém-criada Central Única dos Trabalhadores (CUT) na região operária do Vale dos Sinos, no estado do Rio Grande do Sul. Era uma situação curiosa. Eu havia me politizado na adolescência, que coincidiu com o processo de redemocratização do país, principalmente a partir da leitura de um leque bastante eclético de autores de esquerda, incluindo Marx, Lênin e Trotsky, mas também diversos anarquistas. Havia acabado de descobrir o autonomismo de Castoriadis e Lefort, que no Brasil influenciava os editores da revista Desvios, como Marco Aurélio Garcia, Éder Sader e Marilena Chauí.

O que me unia aos “igrejeiros”, como os membros das pastorais e comunidades de base católicas eram pejorativamente chamados pela esquerda marxista, era a rejeição à visão leninista de que os trabalhadores, por si só, seriam incapazes de superar seus “interesses imediatos” e que seus “interesses históricos” só poderiam ser assegurados por uma vanguarda revolucionária externa à própria classe. Acreditávamos que a transformação estrutural da sociedade passava por contribuir para que o próprio movimento operário desenvolvesse a capacidade de assumir coletivamente a construção do seu destino. Nossa atuação era concebida, portanto, como um trabalho de “educação popular”, fortemente influenciado pelas ideias de Paulo Freire.

O primeiro dos três volumes em que a tradução de The Making para o português foi dividida só foi lançado em 1987, o mesmo ano em que concluí a minha graduação em História. Apesar dos 24 anos que haviam se passado desde o lançamento do original, era o livro certo na hora certa. A CUT havia sido fundada quatro anos antes, e passava por um acelerado crescimento nas mais diversas categorias profissionais. O Partido dos Trabalhadores (PT), após uma estreia decepcionante nas eleições de 1982, conquistava suas primeiras vitórias eleitorais significativas e em breve viria a governar várias das mais importantes cidades do país, incluindo Porto Alegre, onde eu vivia, e o chamado ABC paulista, berço do novo sindicalismo desde o final da década de 1970, além de São Paulo, onde Paulo Freire foi nomeado secretário municipal de Educação.

Os ventos sopravam a favor de uma abordagem que colocava a agência dos trabalhadores no centro do processo histórico. A leitura das obras de Thompson nesse contexto me convenceu a largar o meu excelente emprego de assessor sindical e me dedicar ao ensino e à pesquisa em História. Em 1989, ao mesmo tempo que participava ativamente da campanha que levou o ex-metalúrgico Lula ao segundo turno da eleição presidencial, eu elaborei meu primeiro projeto de pesquisa, sobre o sindicalismo no Rio Grande do Sul na década de 1930, com o qual fui aceito como aluno de mestrado da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que havia se estabelecido como a Meca dos Thompsonianos brasileiros. No começo de 1991, passei a trabalhar no Instituto Cajamar, centro de formação política ligado ao PT, que tinha Paulo Freire como seu presidente de honra. Paulo Fontes, Hélio da Costa e Antonio Luigi Negro, colegas na Unicamp, também tiveram vínculos de maior ou menor duração com o Cajamar. Na mesma época, nos somamos a Fernando Teixeira da Silva para criar um grupo de estudos informal que permanece trabalhando coletivamente desde então. A influência de Thompson nas obras dos integrantes deste grupo fica evidente na ênfase dada à relação entre a luta por direitos sociais e o processo de formação de classe.

Esse relato pessoal ilustra a forma como as influências de Freire e Thompson se combinaram nas trajetórias de uma geração de ativistas e intelectuais que chegou à vida adulta durante o processo de redemocratização no Brasil. Elas foram fundamentais para criar as condições para a construção da atual Associação Nacional de História do Trabalho e sua revista Mundos do Trabalho, instrumentos fundamentais para a consolidação deste campo de estudos no país, com crescente projeção e impacto internacionais.

O centenário de Thompson chega num momento de grandes desafios políticos e intelectuais. Um historiador forjado na luta antifascista como ele certamente ficaria perplexo ao verificar que enfrentamentos que pareciam superados desde 1945 voltam ao centro da agenda contemporânea. Desindustrialização, precarização e ascensão do nacionalismo autoritário são alguns dos fatores que colocam em xeque as condições de reconstituição de políticas democráticas de base operária como as que Thompson descreveu. Mas ele também demonstrou que longe de pré-determinada por fatores políticos e econômicos externos, a classe operária forjou a si mesma num processo complexo marcado por fortes adversidades. É isso que o mantém como leitura e inspiração cada vez mais atuais.

E. P. Thompson and Paulo Freire: Historical Agency and Popular Education



In 1963, a group of university students, following the guidelines of educator Paulo Freire, carried out the experiment known as the “Forty Hours of Angicos“, in which 300 peasants in northeastern Brazil became literate in just a few days. That same year, in the introduction to The Making of the English Working Class, E.P. Thompson pointed out that his innovative interpretation of the working-class formation during the Industrial Revolution was primarily shaped by the questions posed by the workers who attended his extramural classes at the University of Leeds, based on their own experiences.

The effectiveness of Freire’s literacy method resulted from a similar principle. It was necessary to research the vocabulary used by the local population to express their daily struggle for survival so that learning the written word became simultaneously a process of conscientization. Imprisoned and forced into exile after the 1964 military coup, the Brazilian educator carried out important pedagogical experiments in Chile and African countries and systematized his ideas in books translated into dozens of languages, such as Pedagogy of the Oppressed. Their extraordinary intellectual achievements rooted in adult education experiences have contributed to Freire and Thompson becoming obligatory references in academic studies on pedagogy and social history without pursuing traditional academic careers.

In Brazil, while Paulo Freire’s pedagogy played a fundamental role in grassroots work with the social movements that took to the streets from the end of the 1970s in the fight against the military dictatorship and played a decisive role in the re-democratization of the country, Thompson’s influence on historiographical production was slow to make itself felt. Reading the English original of The Making was limited to a small number of researchers with access to the few research libraries located on the Rio-São Paulo axis, academic events abroad, and high-standard language courses. The intellectual environment of the Brazilian left, dominated by vulgarized versions of structuralist Marxism, did not encourage readers to read the exotic book written in refined language, full of peculiar characters and facts, literary quotations, and irony. Brazilian readers’ more systematic contact with Thompson began in the early 1980s with the circulation of a few articles translated into Spanish and Portuguese, as well as the Brazilian edition of Poverty of Theory, his essay criticizing the ideas of Louis Althusser.

At the same time, after a brief and frustrating stint in the student movement, I was invited by colleagues from the Catholic left to collaborate with the political formation work of the newly created Central Única dos Trabalhadores (CUT) in the working-class region of Vale dos Sinos, in the state of Rio Grande do Sul. It was a curious situation. I had become politicized during my teenage years, coinciding with the country’s re-democratization process, mainly by reading a very eclectic range of left-wing authors, including Marx, Lenin, and Trotsky, and various anarchists. I had just discovered the autonomism of Castoriadis and Lefort, which in Brazil influenced the editors of the journal Desvios, such as Marco Aurélio Garcia, Éder Sader and Marilena Chauí.

What united me with the “igrejeiros” (church-goers), as the members of Catholic pastorals and grassroots communities were pejoratively called by the Marxist left, was the rejection of the Leninist view that the workers, on their own, were incapable of overcoming their “immediate interests” and that their “historical interests” could only be secured by a revolutionary vanguard from outside the class itself. We believed that the structural transformation of society involved helping the workers’ movement develop the capacity to collectively take charge of building its destiny. Our work was therefore conceived as “popular education,” strongly influenced by the ideas of Paulo Freire.

The first of the three volumes into which The Making was translated was only released in 1987, the same year I got my degree in History. Despite the 24 years that had passed since the release of the original, it was the right book at the right time. The CUT had been founded four years earlier and was experiencing rapid growth in a wide range of professional categories. The Workers’ Party (PT), after a disappointing debut in the 1982 elections, was also winning its first significant electoral victories and would soon govern several of the country’s most important cities, including Porto Alegre, where I lived, and the so-called ABC of São Paulo, the cradle of the new unionism since the late 1970s, as well as São Paulo, where Paulo Freire was appointed municipal secretary of Education.

The winds were blowing in favor of an approach that placed workers’ agency at the center of the historical process. Reading Thompson’s works in this context convinced me to quit my excellent job as a union advisor and devote myself to teaching and researching history. In 1989, while actively participating in the campaign that took former metalworker Lula to the second round of the presidential election, I prepared my first research project on trade unionism in Rio Grande do Sul in the 1930s, with which I was accepted as a master’s student at the State University of Campinas (Unicamp), which had established itself as the Mecca of Brazilian Thompsonians. At the beginning of 1991, I started working at the Cajamar Institute, a political training center linked to the PT, which had Paulo Freire as its president of honor. Paulo Fontes, Hélio da Costa and Antonio Luigi Negro, colleagues at Unicamp, also had short or long-term links with Cajamar. At the same time, we joined Fernando Teixeira da Silva to create an informal study group that has been working collectively ever since. Thompson’s influence on the works of the members of this group is evident in the emphasis given to the relationship between the struggle for social rights and the process of class formation.

This personal account illustrates how the influences of Freire and Thompson were combined in the trajectories of a generation of activists and intellectuals who reached adulthood during the re-democratization process in Brazil. They were fundamental in creating the conditions for constructing the current National Labor History Association, and its journal Mundos do Trabalho, critical instruments for consolidating this field of study in the country, with growing international projection and impact.

Thompson’s centenary comes at a time of great political and intellectual challenges. A historian forged in the anti-fascist struggle like him would certainly be perplexed to see that confrontations that seemed to have been overcome since 1945 are back at the center of the contemporary agenda. Deindustrialization, precariousness, and the rise of authoritarian nationalism are some factors that call into question the conditions for reconstituting worker-based democratic politics like the ones Thompson described. But he also showed that far from being predetermined by external political and economic factors, the working class forged itself in a complex process marked by intense adversities. This is what keeps him an ever more timely read and inspiration.