Olhando a partir de dentro, olhando além: Thompson e o estudo das sociedades – Andrea Caracausi



Olhando a partir de dentro, olhando além: Thompson e o estudo das sociedades



Tive contato com o trabalho de E. P. Thompson em dois momentos precisos da minha formação como historiador. O primeiro foi durante a pesquisa para minha dissertação de mestrado. Eu estava estudando a fabricação de fitas em Pádua e região durante os séculos XVII e XVIII. Por acaso, deparei-me com um documento da prefeitura da cidade que informava sobre um protesto envolvendo uma “multidão de mulheres lamuriosas”. Elas se queixavam de que os comerciantes já não queriam lhes dar trabalho depois de recentemente ter entrado em vigor uma reforma fiscal. As mulheres viram-se então incapazes de sustentar suas famílias, e a autoridade local escreveu a Veneza pedindo intervenção e temendo que pudesse ocorrer um “distúrbio popular” por conta da introdução da nova lei. Falei desse documento a um pesquisador mais experiente (Francesco Maria Vianello) e ele me sugeriu ler “The Moral Economy of the English Crowd”, pois as dinâmicas do protesto das mulheres  evocavam aquelas descritas nos motins da fome. Naquela ocasião não desenvolvi um diálogo com o texto (talvez porque eu ainda não estivesse maduro), mas hoje essa referência introduz com frequência minhas falas sobre o assunto.

A segunda vez que um texto de Thompson cruzou meu caminho foi alguns anos depois, durante o doutorado. Minha pesquisa baseava-se numa fonte preciosa: disputas trabalhistas julgadas por um tribunal de corporação. Inicialmente, utilizei esses documentos para mera coleta de informações quando, graças a uma temporada de pesquisa em Paris, fui instigado a ler Thompson por ocasião dos seminários ministrados por Simona Cerutti na EHESS. A partir de então, as fontes já não eram um simples repositório de informações, peças que expressavam ações, fatos, direito, autoridade. Esses julgamentos foram utilizados para examinar a partir de dentro as relações de poder no local de trabalho e, dali, na sociedade em geral. Em particular, o estímulo para repensar a ideia de disciplina de trabalho levou-me a ler “Tempo, disciplina de trabalho e capitalismo industrial”. Desde então, E. P. Thompson tornou-se um importante farol para minha pesquisa.

Na Itália, o autor teve um duplo destino. De um lado, ele é um estudioso do movimento operário dos séculos XIX e XX, e por isso é conhecido, discutido e comentado pelos historiadores da era contemporânea. De outro, E. P. Thompson é um investigador da sociedade inglesa do século XVIII e uma referência para os historiadores que lidam com a época moderna. Pessoalmente, acho que tal divisão tem alguns aspectos negativos, e os historiadores do trabalho deveriam ler toda sua obra. De qualquer forma, uma importante contribuição para a recepção dos escritos do historiador inglês na Itália se deve à micro-história e, em particular, a Edoardo Grendi.

Como parte da série “Microstorie” publicada pela Einaudi e organizada por Carlo Ginzburg e Giovanni Levi (com a colaboração da própria Simona Cerutti), foi publicada em 1981 uma coletânea de oito ensaios de Thompson (organizada por Edoardo Grendi) sob o título Società patricizia, cultura plebea. Esses textos trazem elementos fundamentais do trabalho de Thompson sobre a sociedade inglesa do século XVIII e, curiosamente, muitos desses trabalhos foram posteriormente reunidos pelo próprio autor dez anos mais tarde, em Customs in Common (como “The Moral Economy and the English Crowd”, “Time, work discipline and industrial capitalism”, “The Patricians and the Plebs”, “Rough Music” etc). Como mencionado acima, a micro-história italiana teve uma contribuição importante na difusão de Thompson no país. Além disso, pelo menos inicialmente, o acadêmico inglês servia perfeitamente ao projeto de crítica a certas abordagens historiográficas estruturalistas que interpretavam de forma autômata os fenômenos socioeconômicos. Thompson nos convidou, ainda, a olhar “para dentro” da classe, investigando as relações sociais e seus mecanismos de formação. Ele foi um importante ponto de partida que não prescinde, porém, de uma leitura crítica. Já na introdução de L’eredità immateriale (1985)1, Giovanni Levi, embora se refira constantemente ao modelo de economia moral, não esconde seus limites, sugerindo, em vez disso, padrões de comportamento não necessariamente pertencentes a grupos sociais amplamente homogêneos. Mas há muitos outros casos: num ensaio basilar sobre as primeiras culturas laborais modernas, Carlo Poni falou de uma economia moral do trabalho que não derivava das elites e tampouco se opunha a elas, mas resultava de um processo de negociação contínuo entre interesses opostos e diversos, e era justificada até mesmo pelas mais altas autoridades morais.2 Em suma, a riqueza da obra de Thompson representa um desafio contínuo que levou a criticar e a rever até a própria ideia dos de baixo: esse processo está destacado num ensaio de Simona Cerutti que retrata etapas importantes na recepção de parte dos trabalhos de Thompson pela historiografia italiana e além.3

Hoje, Thompson pode oferecer aos pesquisadores um grande estímulo tanto temático quanto metodológico. Aqui mencionarei apenas alguns deles. Primeiro, a relação com as categorias. Como mencionado anteriormente, Thompson nos instou a abandonar termos ou categorias vagas e imprecisas (como “capitalista”, “feudal”, “paternalismo”, “pré-industrial”, “classe”), mas sempre olhar a partir de dentro do processos socioeconômicos, reconstruindo-os a partir dos sujeitos e de suas ações. Em segundo lugar, a relação com as ciências sociais. De acordo com Thompson, os historiadores não devem se colocar num lugar passivo, mas ser criativos, elaborando por sua vez teorias e modelos. Terceiro, a relação com os sujeitos que estudamos. Thompson nos convida a não julgar; devemos levar os sujeitos a sério, buscando compreender a razão das suas ações sem sermos influenciados pelo fato de sabermos o que veio depois. E aqui começam os temas que mantêm Thompson atual. O primeiro são as transformações tecnológicas. Pensemos, por exemplo, nos acontecimentos do movimento ludita, que Thompson reavalia, convidando-nos a compreender sua profundidade e as razões que levaram os tecelões a protestar em defesa de uma determinada forma de organização do trabalho. Em segundo lugar, estão os processos socioeconômicos mais amplos, como a Revolução Industrial. Thompson alertou os historiadores que consideravam tais processos como inevitáveis: aos olhos de um grande número de contemporâneos, considerá-los inevitáveis seria simplesmente aceitar a ideologia dominante. Terceiro, o conflito entre Estado e mercado. Na verdade, em “The Moral Economy Reviewed”, Thompson abriu um debate sobre a própria economia de mercado, vista como uma metáfora ou máscara do processo capitalista, e recorda como – mesmo na Inglaterra do século XVIII – não era possível ter uma economia sem mercado, tampouco havia uma economia não-mercantil oposta a ela.

Resumindo: num mundo como o de hoje, regido por rápidas mudanças tecnológicas e pelos fenômenos de fragmentação e desglobalização, a leitura do grande historiador inglês ainda pode nos servir de estímulo.

Disponível em: https://openroadmedia.com/contributor/e-p-thompson

Notas

1Giovanni Levi. L’eredità immateriale : carriera di un esorcista nel Piemonte del Seicento.Turim: Einaudi, 1985.
2Carlo Poni. “Misura contro misura: come il filo di seta divenne sottile e rotondo.” Quaderni Storici 16, no. 47 (2) (1981): 385–422.
3Simona Cerutii, “Who is below? E. P. Thompson, historien des sociétés modernes: une relecture.” Annales. Histoire, Sciences Sociales 70, no. 4 (2015): 931–56.

Looking Inside, Looking Beyond: E.P. Thompson and the Study of Societies



I encountered E.P. Thompson’s writings at two specific moments in my training as a historian. The first occurred during my research for my master’s thesis, where I focused on ribbon making in Padua and its countryside during the seventeenth and eighteenth centuries. I stumbled upon a document from the local city authority that reported on the protest of a ‘crowd of moaning women.’ These women complained that merchants no longer wanted to provide them with work due to a recently introduced tax reform. Finding themselves unable to support their families, the local authority wrote to Venice, requesting intervention out of fear that, due to this change, some ‘popular disturbance’ might ensue. I shared this document with a more experienced researcher, Francesco Maria Vianello, who suggested I read ‘The Moral Economy of the English Crowd’ because the dynamics recalled evoked those described in the food riots. On that occasion, I did not engage in a thorough dialogue with that piece of writing (perhaps because I was not yet mature), but today, this source often serves as the introduction to my lectures on the subject.

The second encounter with Thompson’s writings took place a few years later, during my PhD. My research was grounded in a valuable source of information: labor disputes brought before a guild court. Initially, I treated these sources as a mere collection of information. However, during a research stay in Paris, I became intrigued by Thompson’s work while attending seminars conducted by Simona Cerutti at the EHESS. The sources transformed from being a simple repository of information into elements embodying action, fact, law, and authority. These trials became a means to “look inside” power relations at the workplace and, consequently, within broader society. In particular, the impetus to reconsider the concept of labor discipline led me to read ‘Time, Work Discipline, and Industrial Capitalism.’ Since then, E.P. Thompson has become a crucial reference point in my research.

In Italy, E.P. Thompson has experienced a dual reception. On one hand, he is recognized as a scholar of the nineteenth- and twentieth-century labor movement, known, discussed, and analyzed by modern and contemporary historians. On the other hand, E.P. Thompson is acknowledged as a scholar of eighteenth-century English society and serves as a reference for early modern historians. Personally, I believe this division has some drawbacks, and labor historians should engage with all aspects of his work. Regardless, the substantial contribution to the reception of the English historian’s writings in Italy can be attributed to Italian microhistory, especially to the work of Edoardo Grendi.

As part of the ‘Microstorie’ series published by Einaudi and edited by Carlo Ginzburg and Giovanni Levi, with the collaboration of Simona Cerutti, a collection of eight essays by Thompson was published in 1981 under the title ‘Società patrizia, cultura plebea.’ Edited by Edoardo Grendi, these essays constitute fundamental elements of Thompson’s work on eighteenth-century English society. Interestingly, many of these works were later included by Thompson himself a decade later in ‘Customs in Common,’ such as ‘The Moral Economy and the English Crowd,’ ‘Time, Work Discipline and Industrial Capitalism,’ ‘The Patricians and the Plebs,’ ‘Rough Music,’ etc.

As mentioned earlier, Italian microhistory played a significant role in popularizing Thompson’s work in Italy. Moreover, Thompson initially aligned well with the project of critiquing certain structuralist historiographical approaches that automatically interpreted socio-economic phenomena. Thompson urged us to look “inside” the class, exploring social relations and their mechanisms of formation. While Thompson provided an important starting point, it did not preclude a critical reading that deviated from his perspectives. In the introduction to ‘L’eredità immateriale’ (1985), Giovanni Levi, while consistently referring to the ‘moral economy’ model, acknowledged its limits, suggesting alternative models that did not necessarily belong to broadly homogeneous social groups.1 Numerous instances illustrate this critical engagement. In a pivotal essay on early modern labor cultures, Carlo Poni spoke of a “moral economy of labor” that neither derived from nor opposed elites. Instead, it emerged as a result of a continuous process of negotiation between opposing and diverse interests, often justified by the highest moral authorities.2 In essence, Thompson’s richness poses a continuous challenge, prompting the following generations to criticize and revise even of the very idea of the “below.” This process is well elucidated in an essay by Simona Cerutti, retracing significant stages in the reception of Thompson’s writings in Italian historiography and beyond.3

Today, Thompson continues to provide researchers with substantial stimulation both methodologically and thematically. I will highlight a few key aspects. First, the approach to categories: Thompson emphasized the need to avoid dwelling on vague and imprecise terms or categories (such as ‘capitalist,’ ‘feudal,’ ‘paternalism,’ ‘pre-industrial,’ ‘class’). Instead, he advocated for delving ‘inside’ economic-social processes, reconstructing them from the perspective of the actors and their actions. Second, the interaction with the social sciences: Thompson argued that historians should not adopt a passive stance but rather be creative, actively developing theories and models. Third, the relationship with the actors under study: Thompson encouraged a non-judgmental approach. Researchers should take the actors ‘seriously,’ seeking to comprehend the reasons behind their actions without being swayed by hindsight or subsequent events. These principles lead to enduring themes in Thompson’s work. Firstly, technological change, exemplified by events like the Luddite movement. Thompson urged a re-evaluation, prompting an understanding of the depth and motivations behind the weavers’ protests in defense of their work organization. Secondly, broader socio-economic processes, such as the Industrial Revolution, were subjects of caution for Thompson. He warned against historians viewing such processes as inevitable, emphasizing that considering them as such would be tantamount to accepting the dominant ideology prevalent at the time. Thirdly, the ‘state/market’ conflict was a central focus for Thompson. In “The Moral Economy Reviewed,” he initiated a debate on the ‘market economy’ itself, portraying it as a metaphor or mask for the capitalist process. Thompson reminded us that, even in eighteenth-century England, it was impossible to have an economy without a market, challenging the dichotomy of a non-market economy opposed to a market economy.

In summary, in a contemporary world shaped by rapid technological change and marked by phenomena such as fragmentation and de-globalization, the insights of the eminent English historian, E.P. Thompson, can still serve as a valuable stimulus for us.

Available at: https://openroadmedia.com/contributor/e-p-thompson

Notes

1Levi, Giovanni. (1985). L’eredità immateriale : carriera di un esorcista nel Piemonte del Seicento. Torino Einaudi [(1990). La herencia inmaterial : la historia de un exorcista piamontes del siglo 17., Madrid: Nerea.]
2Poni, Carlo. “Misura contro misura: come il filo di seta divenne sottile e rotondo.” Quaderni Storici 16, no. 47 (2) (1981): 385–422. http://www.jstor.org/stable/43777795.
3Cerutti, Simona. «Who is below ?. E. P. Thompson, historien des sociétés modernes : une relecture», Annales. Histoire, Sciences Sociales, vol. 70, no. 4, 2015, pp. 931-956.