Lugares de Memória dos Trabalhadores #50: Fábrica de Ferro de Ipanema, Iperó (SP) – Jaime Rodrigues e Karina Oliveira Morais dos Santos



Jaime Rodrigues
Professor do Departamento de História e do PPGH da Unifesp

Karina Oliveira Morais dos Santos
Mestranda no PPGH da Unifesp



A Fábrica de Ferro São João de Ipanema operou oficialmente entre 1810 e 1895, sendo pioneira na produção siderúrgica no Brasil. Foi um empreendimento de capital misto, associando as Coroas portuguesa e brasileira a capitais particulares. Edificada na época colonial, atravessou todo o Império e encerrou sua atividade poucos anos depois da proclamação da República. Localizava-se na atual Floresta Nacional de Ipanema, entre os municípios de Iperó, Araçoiaba da Serra e Capela do Alto, próxima de Sorocaba. O local foi escolhido pela constatação de que ali havia jazidas de ferro, algo que já era sabido desde o final do século XVI.

A Fábrica de Ipanema está inserida em um esforço mais amplo da colonização portuguesa, iniciado na época pombalina, que aliava o estímulo às manufaturas e a exploração dos produtos de base, como foi também o caso da Fábrica de Ferro de Nova Oeiras, erigida na década de 1770 no território hoje incorporado a Angola. Além da expectativa de que a siderúrgica abastecesse o Brasil com um produto de base como o ferro, havia também a intenção de que a Fábrica se tornasse uma espécie de escola de treinamento de trabalhadores, diminuindo assim a dependência de mão de obra estrangeira especializada.

O trabalho na siderúrgica se organizava a partir de oito ofícios principais: carpinteiro, torneiro, fundidor, refinador, moldador, espingardeiro, serralheiro e ferreiro. Uma pluralidade de perfis compunha o conjunto dos trabalhadores de Ipanema: negros livres e escravizados, europeus assalariados, indígenas, sentenciados e os chamados “nacionais”, que eram livres e pobres, brancos ou mestiços. Na Fábrica, engendraram-se as histórias de homens, mulheres, crianças, católicos, protestantes e pessoas que professavam religiões de matrizes africanas, entre outros agentes. Todos eles exerciam funções na fundição e, sobretudo mulheres e crianças, no corte e transporte da lenha e no abastecimento dos fornos. A população do entorno de Ipanema dedicava-se ao cultivo e à produção de alimentos voltados também para o abastecimento da Fábrica.

O número de trabalhadores variou ao longo do tempo. Houve momentos em que os escravizados chegaram a representar 80% da força de trabalho na Fábrica. Em 1827, por exemplo, havia 73 empregados nos serviços da siderúrgica, sendo 10 europeus (portugueses, suecos e alemães), 7 brasileiros livres e 56 escravizados. Já entre 1835 e 1842, 51 alemães estavam empregados na Fábrica, além de 144 africanos libertos e 174 escravizados.

Os primeiros trabalhadores assalariados eram majoritariamente suecos e, mais tarde, alemães. Esses homens eram afamados na Europa pelo fabrico do ferro fundido. Chegavam sob contratos, para ocupar cargos especializados. No entanto, trabalhadores escravizados também se tornaram mestres fundidores, cargo reservado quase que exclusivamente a oficiais brancos especializados. Muitos adquiriram conhecimentos no próprio trabalho exercido na Fábrica ou em experiências anteriores de metalurgia. Diversos povos de etnias banto ou da África Ocidental tinham habilidades reconhecidas na mineração, na fundição e no artesanato em ferro.


Embora não haja relatos de revoltas ou levantes de trabalhadores que tenham abalado o empreendimento de Ipanema de modo agudo, o temor de motins era recorrente.


As fugas eram frequentes, organizadas de diversas formas, e não envolviam apenas africanos livres ou escravizados. Fugir era uma prática comum também entre os sentenciados e os europeus assalariados. Outras formas de resistência dos trabalhadores também podem ser constatadas. Em 1849, por exemplo, africanos livres que trabalhavam em Ipanema escreveram um raro requerimento de próprio punho a um juiz de Sorocaba. Nele exigiam a liberdade que só era sua nominalmente, pois na prática exerciam o trabalho compulsório. Isso motivou forte repressão e a prisão de um grupo desses homens na cadeia pública da capital paulista.

Em 1860, em função da instabilidade produtiva e de dificuldades no gerenciamento administrativo, a Fábrica foi desmontada e seu patrimônio, compreendendo maquinaria e escravos, foi enviado ao Mato Grosso, onde se iniciava a
construção de uma nova siderúrgica. Com a eclosão da Guerra do Paraguai, Ipanema foi reativada em 1865, a fim de fornecer insumos à guerra.

Com o definitivo encerramento da Fábrica, em 1895, o local tornou-se palco de outras atividades, em um processo de esquecimento enquanto lugar de memória. As instalações da antiga Fábrica se tornaram quartel do Exército, depósito, local de exploração de fosfato e de calcário para o fabrico de cimento e espaço de pesquisas nucleares. No final do século XX, em 1992, houve uma ocupação pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Até hoje existe o Assentamento Ipanema na região. Naquele ano, o governo federal criou a Floresta Nacional de Ipanema, uma área de proteção ambiental onde hoje é possível visitar os remanescentes das edificações da Fábrica e um pequeno museu, além de percorrer trilhas no Morro de Araçoiaba, onde se situava a jazida de ferro. 

Pioneira na fundição de ferro no país, espaço de encontros e dissonâncias, a Fábrica de Ferro São João de Ipanema é um fundamental lugar de memória do trabalho e dos trabalhadores. Experiência excepcional na história do trabalho, da siderurgia e da industrialização brasileira, sua trajetória permite conhecer e melhor compreender as múltiplas dinâmicas, diversidades e complexidades dos mundos do trabalho no Brasil escravista.

Remanescentes dos fornos de fundição da Fábrica de Ferro São João de Ipanema.
Fotografia de Karina Santos, 2014.


Para saber mais:

  • NETO, Mario Danieli. Escravidão e indústria: um estudo sobre a Fábrica de Ferro São João de Ipanema – Sorocaba (SP) – 1765-1895. Campinas: UNICAMP, 2006.
  • RODRIGUES, Jaime. No mar e em terra: história e cultura de trabalhadores escravos e livres. São Paulo: Alameda, 2016.
  • RIBEIRO, Mariana Alice Pereira Schatzer. Entre a fábrica e a senzala: um estudo sobre o cotidiano dos africanos livres na Real Fábrica de Ferro São João de Ipanema – Sorocaba – São Paulo (1840-1870). São Paulo: Alameda, 2017.
  • SANTOS, Karina Oliveira Morais dos. “Mão de obra na Fábrica de Ferro de São João de Ipanema: um catálogo de documentos do Arquivo Público do Estado de São Paulo (1810-1842)”. Revista de Fontes, v. 1, p. 35-136, 2017.

Crédito da imagem de capa: Vista das instalações de produção da Fábrica de Ferro de Ipanema em 1882. Fonte: Jesuíno Felicíssimo Jr., História da Siderurgia de São Paulo. São Paulo: ABM, 1969.


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

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Fabiane Popinigis é professora Associada do Departamento de História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Atualmente, coordena do GT Mundos do Trabalho/ANPUH. Publicou Proletários de casaca pela Editora da Unicamp e diversos artigos que relacionam gênero, raça e trabalho. Glaucia Fraccaro é professora da Pontifícia Universidade Católica […]

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