Contribuição Especial #19: Beatriz Loner: uma historiadora dos mundos do trabalho, das emancipações e do pós-abolição

Contribuição especial de Fernanda Oliveira¹

Beatriz Ana Loner nos deixou há 3 anos, mais precisamente em 29 de março de 2018, depois de um longo período de luta em que manteve o olhar crítico e acolhedor para as novas pesquisas e para as que pretendia dar sequência tão logo saísse do hospital. Esse momento não chegou, mas o ponto de partida dessa escrita não faz jus a fundamental contribuição para a historiografia brasileira e mesmo da região do Prata dessa historiadora social, dos mundos do trabalho, das emancipações e do pós-abolição. Utilizando uma expressão corporal da própria Beatriz, é tempo de baixarmos os óculos e erguermos a cabeça com o objetivo de olhar para partes de uma importante experiência marcada por engajamento político, ora nas associações de classe, representação acadêmica e salas de aula, quanto por uma extensa produção que aliou história e sociologia pela lente atenta de uma história da sociedade, para parafrasear uma de suas referências, Eric Hobsbawm, a saber, por meio do aporte da História Social. 

Beatriz nasceu em 1952, na cidade de Bento Gonçalves (RS). Era filha de imigrantes italianos recém chegados ao Brasil. Graduou-se em História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul no início dos anos 70 e,  no final daquela década, iniciou o  mestrado em história na Unicamp.  Em 1985 defendeu a dissertação intitulada “O partido Comunista do Brasil e a linha do Manifesto de Agosto: um estudo”.

A historiadora compôs o grupo que criou a primeira seção do grupo de trabalho Mundos do Trabalho, em 1999 no Rio Grande do Sul, e que na sequência, junto do grupo criado posteriormente em São Paulo, fundou a seção nacional do referido GT junto à então Associação Nacional de Professores Universitários de História (ANPUH). Momentos que coincidem com a defesa de sua tese de doutorado em sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A pesquisa empírica de fôlego aliada à sofisticada análise teórica ancorada na história social britânica uniu a um só tempo as linhas mestras das duas ciências irmãs – história e sociologia – as quais compunham a base de formação da licenciada e mestre em história que então doutorava-se em sociologia. O fez enfrentando problemas caros a ambas as ciências, a saber uma investigação concentrada nas experiências e relações sociais de operários de Pelotas e Rio Grande entre 1888 e 1930, explicitando a construção de classe.

Foi por meio dessa pesquisa, transformada em livro em 2001, que Loner nos evidenciou um sul do país com expressiva presença negra entre os operários, cuja experiência permitia refletir sobre as memórias da escravidão e as experiências de um mundo de trabalho livre naquelas duas cidades cujas economias haviam se fortalecido em virtude da exploração da mão de obra escravizada. Simultaneamente evidenciava a composição plural do operariado, ainda que não fosse composto pelos clássicos operários, principalmente no que tange aqueles envolvidos nas organizações sindicais, os imigrantes europeus e seus descendentes também estavam ali. A observação dessa pluralidade que lhe fez atentar para as divisões internas à classe, como evidencia-se sobretudo no capítulo 5, intitulado Associações negras. Ao observar o processo de formação da classe operária a partir de lideranças sindicais e outros operários evidenciava o papel do preconceito e da discriminação enfrentada por negros. Tais enfrentamentos estavam na base do desenvolvimento de uma rede associativa, entendida enquanto estratégia de luta por direitos, tanto como trabalhadores como de resistência aos processos tão caros a sociedade branca sulina em um momento de grandes transformações políticas e sociais. 

Beatriz Lorner foi a primeira  Coordenadora Nacional do GT Mundos do Trabalho. Em 2002, organizou a I Jornada Nacional de História do Trabalho, realizada em Pelotas no ano de 2002, considerada um momento decisivo na definição e articulação desse campo de estudos como o conhecemos hoje. Neste momento Beatriz já completava mais de uma década como professora da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), no curso de História. No entanto, sua trajetória docente vinha de muito antes, como professora do ensino básico público do estado do Rio Grande do Sul. Tais experiências moldaram a professora de História do Brasil e Teoria e Metodologia da História, responsável por dinâmicas de sala de aula que envolviam formação de senso crítico por meio de compartilhamento de saberes assentados em textos teóricos e de conteúdo histórico que mobilizavam discussões acaloradas. Não são raros alunos e alunas que recordam das discussões em torno dos pilares da escrita da história, da importância da metodologia e dos embates entre intelectuais, tanto por meio dos textos acadêmicos quanto por meio de artigos na imprensa brasileira, como os embates entre Silvia Lara, Sidney Chalhoub e Jacob Gorender no início dos anos 1990. Tais discussões apontavam também para as grandes questões que se colocaram no campo historiográfico da história da escravidão e da formação dos mundos de trabalho livre no Brasil.

Por entre tantos meandros de pura efervescência do conhecimento historiográfico no Brasil Beatriz dava início a outra forma de problematizar a experiência negra em tempos de liberdade, inclusive ao propor uma análise do associativismo negro para observar esses processos de hierarquização, mas também de resistência e de existência. Estes resultados desdobraram-se em muitas outras pesquisas, cada vez mais relacionadas com a experiência negra. Não raras vezes envolviam sua principal parceira acadêmica a também historiadora e amiga de longa data, Lorena Almeida Gill, e seus tantos alunos e alunas, dentre as quais felizmente me incluo. A Bia, como a chamávamos depois de vencida a barreira da mulher forte e temida por nós enquanto jovens estudantes, nos possibilitava percorrer os meandros dessa história com classe, raça e gênero. Ora percorrendo trajetórias de alguns daqueles sindicalistas negros, aos moldes dos irmãos Antonio Baobad e Rodolfo Xavier e de membros da família Silva Santos e das trajetórias coletivas como as da sociabilidade negra no extremo sul, ora extrapolando os limites das fronteiras nacionais e de gênero, para investigar as experiências de mulheres negras na fronteira entre o Brasil e o Uruguai. Com isso teceu redes intelectuais com pesquisadores uruguaios e argentinos de forma a também contribuir para as discussões acadêmicas dos países hermanos, não sem também se permitir repensar e agregar conhecimentos novos. 

Fora assim, entre projetos coletivos, sala de aula, pesquisas e apostas em projetos políticos partidários que reposicionassem o lugar dos trabalhadores e das trabalhadoras que Beatriz, que havia participado da fundação do Partido dos Trabalhadores, articulou as pontes de pesquisa historiográfica daquilo que viria a se delinear como campo do pós-abolição. Suas pesquisas já haviam apontado para a importância da experiência de liberdade geracional entre trabalhadores negros, salientando que as emancipações eram valorizadas pelos sujeitos negros. Por sua vez, os descendentes de escravizados, que carregavam em si a memória da escravidão, por vezes não vivida por si, mas combatida, apareciam como os operários por excelência. E tudo isso só fora possível por uma imersão constante nas fontes empíricas. Era assim que Beatriz equilibrava rigor teórico e metodológico no fazer historiográfico, e repassava isso às novas gerações. Principalmente por meio da experiência do Núcleo de Documentação Histórica (NDH-UFPEL), fundado em 1990. Projeto de uma vida dedicado à salvaguarda de acervos institucionais, como o da própria UFPEL e mais recentemente da Delegacia Regional do Trabalho e não menos importante também junto à Biblioteca Pública Pelotense, na qual desenvolveu projetos junto ao arquivo histórico e a hemeroteca. A professora Beatriz Loner está homenageada junto ao nome do NDH-UFPEL.  

Sua produção foi constante, e eu não me arriscaria a fazer um mapeamento nesse espaço, mas destaco para além dos textos, muitos dos quais de fácil acesso nos periódicos nacionais ou mesmo nos livros de referência, a sua atuação coletiva em defesa da pesquisa histórica e da formação de jovens cientistas sociais, historiadoras e historiadores. Isto pode ser acompanhado ao lançarmos um breve olhar para a aposentadoria de Beatriz, que aconteceu em 2011. Naquele momento ela passa a atuar como professora visitante da Universidade Federal de Santa Maria, onde permanece por dois anos. No entanto, sua passagem foi profícua o suficiente e serviu de estímulo para que um grupo de jovens estudantes de história criasse o Grupo de Estudos do Pós-Abolição, formalmente institucionalizado em 2016.

Em 2013 Beatriz participou da fundação do Grupo de Trabalho Emancipações e Pós-Abolição também junto a ANPUH, sem que isso significasse um afastamento dos Mundos do Trabalho. Aliás, bem pelo contrário. Beatriz era dessas intelectuais que constroem pontes, que estimulam trajetórias, que carrega consigo o ideal de que um dia a sociedade brasileira seja mais justa e de fato democrática. Não à toa a família de Beatriz, especialmente seu companheiro de uma vida José Bernardo e as três filhas Mariana, Lúcia e Eleonora, optaram por esperar para informá-la sobre o golpe sofrido pela presidenta Dilma Roussef em 2016. Aqueles já eram tempos sombrios demais para aquela intelectual que mesmo no hospital seguia lendo e se preparando para seguir na ativa tão logo saísse do hospital, como muitas e muitos de nós puderam presenciar quando do lançamento da 2º edição de Construção de Classe, que aconteceu em novembro de 2017 já nas dependências do hospital em que ela estava internada, mas que contou com sua presença e suas considerações.

Lançamento da 2ª edição de Construção de Classe (Porto Alegre. 2017). 
Da esquerda para a direita na frente: Micaele Scheer (UFRGS/GT Mundos do Trabalho-RS); Lorena Almeida Gill (NDH-UFPEL), Beatriz Ana Loner e Silvia Petersen (UFRGS)
Da esquerda para a direita atrás: Melina Perussatto (UFRGS/GT Mundos do Trabalho-RS/GT Emancipações e Pós-Abolição-RS), Fernanda Oliveira (UFRGS/ GT Emancipações e Pós-Abolição-RS)
Fonte: Acervo pessoal de Fernanda Oliveira.

Beatriz nos deixou no ano seguinte, mas seus textos bem como seu exemplo de intelectual rigorosa no trato com as fontes e com o aporte teórico, está na base da formação de um grupo de cientistas sociais, historiadoras e historiadores que hoje ocupa as salas de aula de todos os níveis de ensino no Brasil. Está também no cerne das discussões que hoje nos permitem observar a atualidade dos problemas históricos presentes nas pesquisas tanto dos mundos do trabalho quanto das emancipações e pós-abolição. Que sejamos capazes de seguir a mensagem que se fortaleceu nos últimos projetosproduções coletivas em que Beatriz se engajou e assim possamos construir pontes ao invés de muros.

*Agradecimento especial à Eleonora Loner e Vilma Norma Loner pelas informações orais gentilmente fornecidas.

¹ Professora do Departamento de História da UFRGS

Referências:
CHALHOUB, Sidney. “Gorender põe etiquetas nos historiadores”. Folha de São Paulo, 24/11/1990, Caderno Letras.
GORENDER, Jacob. “Como era bom ser escravo no Brasil”. Folha de São Paulo, 15/12/1990, Caderno Letras.
LARA, Sílvia H. “Gorender escraviza história”. Folha de São Paulo, 12/01/1991, Caderno Letras.
LONER, Beatriz. Construção de classe: operários de Pelotas e Rio Grande. Pelotas: Editora da UFPel, 2001. [2ª edição em 2016]
LONER, Beatriz Ana. A rede associativa negra em Pelotas e Rio Grande. In: SILVA, Gilberto Ferreira da; SANTOS, José Antônio dos; CARNEIRO, Luiz Carlos da Cunha. RS negro: cartografias sobre a produção do conhecimento. Edipucrs, 2008.
LONER, Beatriz Ana. Antônio: de Oliveira a Baobad. In: GOMES, Flávio; DOMINGUES, Petrônio. Experiências da Emancipação: biografias, instituições e movimentos sociais no pós-abolição (1890-1980). Selo Negro Edições, 2011.
LONER, Beatriz Ana; GILL, Lorena Almeida; MAGALHÃES, Mario Osório. Dicionário de história de Pelotas. Universidade Federal de Pelotas, 2017.
KOSCHIER, Paulo Luiz Crizel; GILL, Lorena Almeida. A família Silva Santos e outros escritos: escravidão e pós-abolição ao sul do Brasil. São Leopoldo: Casa Leiria, 2019.
MENDONÇA, Joseli; MAMIGONIAN, Beatriz; TEIXEIRA, Luana. Pós-abolição no Sul do Brasil: associativismo e trajetórias negras. Salvador: Sagga, 2020.


Crédito da imagem de capa: Beatriz Ana Loner (2015). Fonte: Redes sociais.

LEHMT

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