LMT #118: Estação Ferroviária de Camocim (CE) – Carlos Augusto Pereira dos Santos


Carlos Augusto Pereira dos Santos
              Professor do Curso de História da Universidade Estadual Vale do Acaraú


Menino da Rua do Egito em Camocim, filho de maquinista,
morando à beira da linha, eu terminei ficando com o trem no
sangue, como diz Rachel de Queiroz.

(Pe. Luís Ximenes, em Paixão Ferroviária, 1984)

A Estrada de Ferro de Sobral, no Ceará, funcionou por quase um século.  Quando da seca de 1877, o Governo Imperial autorizou a análise da viabilidade da ferrovia, no sentido de socorrer os flagelados com postos de trabalho e minimizar a fome que assolava o território cearense. Além disso, a construção da ferrovia seria uma forma de ligar os sertões do norte da província ao porto de Camocim, considerado o de melhor navegabilidade no estado. Os estudos para a construção da estrada de ferro tiveram início em 1878. No ano seguinte, a 26 de março de 1879, realizou-se com solenidade de estilo, o assentamento do primeiro trilho da estrada de ferro em Camocim. Neste mesmo ano, Camocim passou à condição de município se emancipando de Granja. A inauguração do primeiro trecho da Estrada de Ferro de Sobral, entre Camocim e Granja, numa extensão de 24,5 quilômetros, ocorreu no dia 15 de janeiro de 1881, dois anos após o início dos trabalhos.

Construída para ser o ponto inicial que interligava o Porto de Camocim à Sobral, a estação ferroviária apresenta traços da influência europeia no Brasil no que diz respeito às edificações ferroviárias erguidas durante o século XIX. Como se disse anteriormente, a chegada da ferrovia provocou imediatamente a mudança de status administrativo de Camocim alavancando as transações comerciais que já se faziam pelo porto, escoando a produção agropecuária do noroeste cearense. Em pouco tempo, estas atividades demandaram a chegada na cidade da Alfândega, do Banco do Brasil, dos Correios, entre outras repartições públicas e privadas.

A ferrovia para Camocim e região promoveu não somente a economia regional, mas, um interessante espaço para se compreender o mundo do trabalho naquela época. O complexo ferroviário, no auge de suas atividades, chegou a ter em média 800 trabalhadores entre a administração e o pessoal alocado nas oficinas de manutenção de trens. Estas oficinas foram importantes para a formação de várias categorias profissionais como mecânicos, torneiros, carpinteiros, ferreiros, dentre outras. A maioria destes trabalhadores era de Camocim e da região noroeste do estado. Grande parte dos ferroviários se estabeleceram em ruas próximas da estação e os funcionários mais graduados, como os engenheiros e agentes de estação, tinham moradia dentro do pátio de manobras de trens ainda hoje preservadas e habitadas por descendentes destes.


A presença de uma massa de trabalhadores na ferrovia e no porto acabou por despertar as ideologias políticas da época.


Com efeito, a cidade de Camocim foi a primeira do interior cearense a organizar uma célula comunista em 1928 e por conta de seu histórico de lutas na própria ferrovia, acabou por obter o epíteto de “Cidade Vermelha” na imprensa comunista. Por outro lado, o integralismo, embora em menor número, esteve presente entre os trabalhadores ferroviários no contexto da polarização ideológica dos anos 1930.

Um exemplo dessa militância pode ser observado no episódio que ficou conhecido como “A Rebelião da Ferrovia”. Entre novembro de 1949 e janeiro de 1950 uma greve de ferroviários tomou conta da cidade em um protesto contra o fechamento das oficinas de manutenção e a tentativa de transferir funcionários da ferrovia para outros locais. A greve ganhou ares de revolta popular, envolvendo várias categorias e lideranças sindicais. O leito da ferrovia foi interditado pela população com paus, pedras e caldeiras velhas evitando assim a saída dos trens. A tensão durante a rebelião foi muito intensa, a ponto de ser instalada uma espécie de sirene na Estação Ferroviária que era acionada para chamar os manifestantes a qualquer hora do dia quando se percebia algum movimento da direção da ferrovia em desobstruir a via férrea. As mulheres, muitas delas organizadas pela União Feminina Camocinense ligada ao Partido Comunista, tiveram uma participação particularmente significativa na greve e na rebelião popular.

Apenas a vinda de um representante do Ministro de Obras e Viação e do próprio Governador do Estado acalmou os ânimos. Em um grande comício, essas autoridades terminaram por atender ao clamor popular e as oficinas e os funcionários foram mantidos na cidade.

No entanto, o processo de desmonte do ramal ferroviário Camocim a Sobral se acelerou a partir de 1950. Os funcionários foram sendo paulatinamente transferidos para outras estações e praticamente não houve substituição do material rodante neste período até o fechamento do ramal.

Em 24 de agosto de 1977, o último trem partiu de Camocim rumo à Sobral, pondo fim a 96 anos de serviços prestados pela ferrovia à população da então zona norte do Ceará, e de muitas histórias do mundo do trabalho e dos trabalhadores da “estrada”.  Hoje, tombada pelo patrimônio público estadual, a estação ferroviária sedia a Secretaria da Educação Municipal.

Ferroviários em greve e população obstruem a ferrovia. Camocim.  Fonte: Arquivo particular da Sra. Elda Aguiar.

Para saber mais:

  • CARVALHO, Cid Vasconcelos de. O Trem em Camocim: Modernização e Memória. 2001. Dissertação (Mestrado em Programa de Pós-Graduação em Sociologia) – Universidade Federal do Ceará.
  • OLIVEIRA, André Frota de. A Estrada de Ferro de Sobral. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 1994.
  • SANTOS, Carlos Augusto Pereira dos. Entre o porto e a estação. Cotidiano e cultura dos trabalhadores urbanos de Camocim-CE. 1920-1970. Fortaleza: INESP, 2014.

Crédito da imagem de capa: Estação Ferroviária de Camocim. s/d. Fonte: IBGE.


MAPA INTERATIVO

Navegue pela geolocalização dos Lugares de Memória dos Trabalhadores e leia os outros artigos:


Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

Paulo Fontes

One thought on “LMT #118: Estação Ferroviária de Camocim (CE) – Carlos Augusto Pereira dos Santos

  1. Obrigado ao LEHMT e ao Prof. Dr. Paulo Fontes por divulgar os lugares de memória dos trabalhadores brasileiros. Camocim presente!

Deixe um comentário para CARLOS AUGUSTO PEREIRA DOS SANTOS Cancelar resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Next Post

Vale Mais #26: Mulheres bancárias

sáb dez 3 , 2022
Vale Mais é o podcast do Laboratório de Estudos de História dos Mundos do Trabalho da UFRJ, que tem como objetivo discutir história, trabalho e sociedade, refletindo sobre temas contemporâneos a partir da história social do trabalho.  O episódio #26 do Vale Mais é sobre Mulheres bancárias. Neste episódio conversamos com a historiadora Luciana Carlos Geroleti que recentemente defendeu sua tese de doutorado intitulada “Mulheres nos bancos: caminhos da profissionalização e lutas por direitos (1960-2000)”, pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) sob a orientação da professora Dra. Janine Gomes da Silva. Luciana defendeu em 2019 a tese na qual analisa a profissionalização das mulheres nos bancos e as lutas que protagonizaram por seus direitos. A partir de fontes como jornais de circulação interna do Banco do Brasil, documentos e relatórios do Banco Bradesco, entrevistas de história oral com mulheres bancárias, documentação sindical, dentre outras, a autora nos apresenta reflexões em torno de como as mulheres ao longo do século XX foram construindo seus direitos, utilizando o gênero como categoria de análise. Funções genereficadas, lutas travadas nos locais de trabalho ou no sindicato, condições de trabalho de mulheres bancárias (incluindo as discussões sobre mulheres grávidas), padrões de beleza e comportamento estão entre as diversas questões desenvolvidas pela autora. Produção: Alexandra Veras e Yasmin Getirana Roteiro: Alexandra Veras, Larissa Farias e Yasmin Getirana Apresentação: Yasmin Getirana