Lugares de Memória dos Trabalhadores #47: Empresa Brasileira de Aeronáutica (Embraer), São José dos Campos (SP) – Richard Martins



Richard Martins
Doutorando em História Social pela UNICAMP



Fundada em agosto de 1969, no auge da ditadura empresarial-militar, a Empresa Brasileira de Aeronáutica (Embraer) foi a expressão mais bem-acabada do projeto de construção de uma indústria aeroespacial e bélica no país, amadurecido a partir de 1950 no Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) e no Centro de Tecnologia da Aeronáutica (CTA), sediados em São José dos Campos. Até então, as experiências brasileiras no ramo da aviação haviam sido bastante limitadas, e somente uma empresa, a Neiva (mais tarde, adquirida pela Embraer), produzia um avião nacional em série, o Paulistinha. A partir de 1966, engenheiros e oficiais da Aeronáutica desenvolveram o projeto do Bandeirante, aeronave que convenceu o governo ditatorial a assumir a construção de uma empresa de aviação majoritariamente estatal.

Instalada às margens da Via Dutra, a fábrica joseense começou a operar em janeiro de 1970. Ter a gigante General Motors como vizinha favoreceu a Embraer, que recrutou seus primeiros operários junto à indústria automobilística local. No fim daquela década, a empresa aeronáutica já empregava mais de dez mil pessoas, em grande parte, vindas do interior de São Paulo, de Minas Gerais e do sul fluminense. Nas metalúrgicas do Vale do Paraíba, era comum que jovens operários aprendessem seu ofício nas próprias fábricas, embora a formação técnica e experiências prévias no ramo também fossem valorizadas, facilitando a contratação de trabalhadores com esse perfil. Até os anos 1990, a força de trabalho empregada no setor produtivo da Embraer era quase exclusivamente masculina, e mesmo na área administrativa, o número de mulheres era reduzido.

Para seus trabalhadores, ser operário da Embraer era razão de orgulho: poucos produtos representavam tão bem as ideias de progresso tecnológico e desenvolvimento nacional quanto um avião. A estatal pagava salários acima da média regional, mas impunha forte disciplina. Os mecanismos típicos da lógica da suspeição vigente durante a ditadura também se faziam notar, ainda mais em uma fábrica considerada estratégica para os interesses nacionais. Assim como ocorria em outras empresas e repartições públicas, a Embraer possuía uma Assessoria de Segurança e Informações (ASI), subordinada ao Ministério da Aeronáutica e integrada ao Serviço Nacional de Informações, responsável por monitorar o ambiente fabril. O Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica (CISA) também acompanhava a estatal e o movimento sindical local.

No fim dos anos 1970, em um momento de fortalecimento do movimento operário em todo o país, a luta contra o arrocho salarial levou trabalhadores(as) de diversas categorias a se chocarem contra o despotismo fabril, a legislação de exceção, as políticas ditatoriais e as burocracias sindicais. Nesse contexto, o Sindicato dos Metalúrgicos da região, dirigido desde sua fundação pelo “pelego” José Domingues, foi incapaz de conter a disposição de luta dos operários.


Em 13 de março de 1979, os trabalhadores da Embraer organizaram a primeira greve na estatal, numa campanha que envolveu piquetes em diversas fábricas e nos principais corredores de ônibus da cidade, duramente reprimidos pela polícia. Após a mobilização, formou-se uma oposição, que assumiu o Sindicato em 1981. Com os “novos sindicalistas” à frente da entidade, as greves – e a retaliação patronal – se tornariam comuns na região.


Em julho de 1983, depois de uma greve geral, quatro funcionários da estatal foram demitidos por justa causa como “agitadores”. Entre eles, estava Antonio Donizete Ferreira, mais tarde, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos. Em agosto de 1984, uma greve com ocupação foi reprimida pela Polícia da Aeronáutica, que expulsou os operários da planta industrial sob a mira dos fuzis. 126 trabalhadores, incluídos dois dirigentes sindicais, João Pires e Francisco de Souza, foram demitidos. Na ocasião, houve interrogatórios ilegais de grevistas, realizados dentro da Embraer por agentes da Polícia Civil e do SNI. A estatal cancelou a eleição de uma Comissão de Fábrica que ocorreria em seguida.

A repressão não impediu que os operários seguissem mobilizados nos anos seguintes, marcados pela crise do setor aeronáutico, em um cenário de inflação desenfreada e ascensão da agenda neoliberal. Durante o governo Collor, começaram os preparativos para a privatização da Embraer, que envolveram mais de 7.000 demissões. O movimento sindical lutou contra a venda da companhia, mas sua resistência não bastou para conter a sanha privatista. Com o leilão da estatal, em 1994, especuladores que dispunham de informações privilegiadas graças a seus vínculos com o governo lucraram fartamente. Consideradas as injeções prévias de recursos e as facilidades oferecidas na negociação, argumenta-se que o prejuízo para os cofres públicos foi sete vezes maior que a arrecadação com a venda da Embraer.            

Depois da privatização, radicalizou-se a chamada “reestruturação produtiva”, com terceirização de atividades, redução de salários e intensificação do trabalho. Apesar disso, a importância econômica, política e simbólica da empresa para a região de São José dos Campos, a “Capital do Avião”, segue sendo inquestionável. A história de organização e luta de seus operários, e sua resistência aos projetos ditatoriais e neoliberais consolidaram a Embraer como um fundamental lugar de memória da classe trabalhadora do Vale do Paraíba

Operários ocupam a fábrica da EMBRAER durante greve em 1984.
Foto: Luiz Roberto/Acervo do Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos e Região.



Para saber mais:

  • GODEIRO, Nazareno; SILVA, Cristiano M.; SILVA; Edmir M (Orgs.). A Embraer é Nossa: Desnacionalização e reestatização da Empresa Brasileira de Aeronáutica. São Paulo: Sundermann, 2009.
  • MARTINS, Richard de Oliveira. “A vigilância sobre o movimento operário nos arquivos da polícia política paulista: autoritarismo e suspeição na ‘transição democrática’ (1984-1985)”. Revista de Fontes. Unifesp – Guarulhos. vol. 4, nº 7, 2017.
  • MORAES, Lívia de Cássia Godoi. Pulverização de capital e intensificação do trabalho: o caso da EMBRAER. Tese (Doutorado em Sociologia). Campinas: IFCH/Unicamp, 2013.
  • RODENGEN, Jeffrey L. A História da Embraer. Fort Lauderdale: Write Stuff Enterprises Inc, 2009.
  • Filme documentário: SINDICATO DOS METALÚRGICOS DE SÃO JOSÉ DOS CAMPOS E REGIÃO. ARQUIVO: Dossiê Embraer. 24 min. 2011. Disponível em: <<https://www.youtube.com/watch?v=NKTk5zfBGDI&t=609s>>.

Crédito da imagem de capa: O Tucano era um dos modelos produzidos nos hangares da Embraer no começo da década de 1980. Foto: Acervo Histórico EMBRAER/Divulgação.


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

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