LMT#100: Companhia Nitro Química Brasileira, São Paulo (SP) – Paulo Fontes



Paulo Fontes
Professor do Instituto de História da UFRJ e coordenador do LEHMT/UFRJ



Sorridente, Getulio Vargas recebeu o buquê de flores das mãos de Yole Souza e ouviu atento as palavras de gratidão da jovem operária que, em seu nome e de suas colegas, agradecia a visita do presidente à fábrica onde trabalhavam. Era a tarde de 26 de abril de 1940 e Vargas participava da cerimônia de inauguração oficial da Companhia Nitro Química Brasileira no bairro de São Miguel Paulista, periferia leste da cidade de São Paulo. Após visitar as instalações da fábrica, ouviu o discurso de um dos dirigentes da empresa. José Ermírio de Moraes não apenas a agradeceu a visita, mas também enfatizou que a Nitro Química estaria “ao serviço devotado e constantes dos mais altos interesses econômicos e militares do Brasil”.

O apoio do governo havia sido fundamental para o empreendimento. Horácio Lafer e José Ermírio de Moraes, dois autointitulados “capitães da indústria” paulista, viram no fechamento de uma fábrica de raiom nos Estados Unidos, a oportunidade de construir um complexo industrial químico no país. Com o decisivo suporte de Vargas, que autorizou a isenção de taxas alfandegárias, dezoito mil toneladas de máquinas, equipamentos e estruturas foram transferidas da Virgínia para São Paulo. O bairro de São Miguel foi escolhido pela proximidade da ferrovia, do rio Tietê e pelo baixo custo dos terrenos para a instalação da planta fabril. Após dois anos de épica construção, a indústria começou a produzir.

A complexa produção do raiom, um fio sintético conhecido como “seda artificial”, então com largo uso comercial, permitia a fabricação de uma série de produtos químicos. Alguns deles de uso militar, o que certamente estimulou o apoio governamental. A Nitro, abreviação que logo se popularizou, era vista como um versátil complexo industrial que teria papel decisivo no progresso do país. O desenvolvimento industrial durante a II Guerra Mundial consolidou a Nitro Química como uma das maiores e mais lucrativas empresas brasileiras. Em 1946 já possuía quase 5 mil trabalhadores e esse número praticamente dobraria nos anos seguintes, quando os dirigentes da empresa elaboraram um ambicioso plano de expansão que visava tornar a companhia a “CSN do setor químico”.

Foi durante a guerra também que a Nitro edificou seu setor de “Serviço Social”, um grande aparato assistencial voltado para seus trabalhadores e suas famílias. Hospital, creche, clube esportivo, vilas operárias faziam parte de um sistema de benefícios propagandeado como missão de uma “indústria esclarecida e democrática com um capitalismo humano e progressista” a serviço dos interesses nacionais. O discurso empresarial usava largamente a noção paternalista de “família” em busca da “harmonia e paz social”.

Essa retórica, no entanto, era contrastada com um cotidiano de superexploração, baixos salários, alta rotatividade e despotismo das chefias. As condições de trabalho, em particular, eram motivo de reclamações e protestos por parte dos operários. A fábrica era famosa por sua periculosidade e insalubridade. Histórias sobre o uso de batatas nos olhos para “sugar os gases” expelidos nas seções fabris, o temor de explosões (como a de 1947 que oficialmente teria matado 9 operários) ou sobre os efeitos da poluição do ar e das águas (a Nitro foi uma das maiores poluidoras do Tietê) marcaram gerações de moradores de São Miguel.

A maioria dos trabalhadores da Nitro eram homens migrantes rurais, em particular de Minas Gerais e do Nordeste. Grande parte, negros e descendentes dos povos originários do sertão brasileiro. Havia setores da empresa, no entanto, de predominância feminina. Essa presença migrante, especialmente nordestina, caracterizou a empresa e todo o bairro. A São Miguel “dos baianos” foi a região de maior crescimento da cidade entre as décadas de 1950 e 70. Inicialmente eram atraídos pela Nitro, mas logo pelos loteamentos baratos onde suas casas eram autoconstruídas. O bairro simbolizou como poucos a expansão periférica de São Paulo.


Uma forte cultura comunitária, ancorada nas experiências migratórias e de classe, forjou uma tradição de organização sindical e política entre os trabalhadores da Nitro Química


Já em 1945, uma passeata de celebração pela vitória aliada na guerra desdobrou-se num quebra-quebra em que os operários destruíram carros de chefes identificados como integralistas. No ano seguinte, uma greve de grandes proporções paralisaria vários setores da fábrica pela primeira vez. Neste período, o Partido Comunista do Brasil (PCB) teve forte influência no Sindicato dos Trabalhadores Químicos de São Paulo. A Nitro era a principal célula fabril do partido na cidade, sendo visitada por lideranças como Luís Carlos Prestes, Carlos Marighella e Jorge Amado.

A cassação do PCB e a intervenção no sindicato em 1947, bem como a repressão no interior da empresa, refreou, mas não eliminou a mobilização operária na Nitro. Em 1956, agora sob a liderança de Adelço de Almeida, baiano, negro e comunista, o Sindicato dos Químicos passou a ter uma presença ativa na vida da fábrica e do bairro. Em 1957, na esteira da “Greve dos 400 mil”, os operários da Nitro paralisaram totalmente a empresa, naquilo que ficou conhecido como a “Batalha de São Miguel”. A partir de então, teriam participação decisiva nas mobilizações da efervescente conjuntura do início dos anos 60.

Com o golpe de 1964, os militantes sindicais foram cassados e perseguidos. Além disso, a Nitro, com o fracasso de seu plano de expansão, entrou em crise e demitiu quase 1/3 de seus empregados em 1966. Apesar disso, a companhia, parte do poderoso grupo Votorantim, sobreviveu e permaneceu como um importante empresa na cidade. Durante a redemocratização, a militância operária também se reergueu e a fábrica foi uma das principais bases da oposição que conquistou o Sindicato em 1983. Três anos depois, as denúncias sobre as péssimas condições de trabalho na Nitro tiveram um peso considerável na derrota de Antônio Ermírio de Moraes, proprietário da fábrica, nas eleições para governador de São Paulo.

A partir dos anos 1990, a empresa perdeu prestígio e poder econômico. Em 2011, após uma campanha que mobilizou moradores e organizações de São Miguel, o órgão municipal de preservação do patrimônio tombou algumas estruturas da fábrica. Nesse mesmo ano, o grupo Votorantim vendeu a empresa para um fundo de investimentos. Era o fim de uma era, apesar da fábrica continuar em funcionamento. A Nitro Química foi uma das principais fábricas da industrialização nacional-desenvolvimentista no país. Foi também um símbolo da força e da luta dos trabalhadores brasileiros no século XX.

Vista área da Companhia Nitro Química Brasileira, 1940.
Acervo do Centro de Memória Votorantim
Pavilhão de células de eletrólise da Nitro Química.
Acervo do Centro de Memória Votorantim


Para saber mais

  • FONTES, Paulo. Trabalhadores e cidadãos. Nitro Química: a fábrica e as lutas operárias nos anos 1950. São Paulo: Sindicato dos Trabalhadores Químicos de São Paulo/AnnaBlume, 1997.
  • FONTES, Paulo. Um Nordeste em São Paulo. Trabalhadores migrantes em São Miguel Paulista (1945-1966). Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2008.
  • PAIVA, Odair da Cruz. Caminhos cruzados. Migração e construção do Brasil moderno (1930-1950). Bauru: Edusc, 2004.
  • ROCHA, Antônia Sarah Aziz. O bairro à sombra da chaminé. Um estudo sobre a formação da classe trabalhadora da Companhia Nitro Química Brasileira de São Miguel Paulista (1935-1960). Dissertação de Mestrado, PUC-SP, 1992.
  • TONAKI, Luciana Lepe. A Companhia Nitro Química Brasileira: indústria e vila operária em São Miguel Paulista. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Instituto de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Carlos, 2013.

Crédito da imagem de capa:  Trabalhadores da Nitro Química em um piquete durante a greve de 1957. Ao fundo, discursando, Adelço de Almeida. Acervo do Sindicato do Trabalhadores Químicos de São Paulo.


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

Paulo Fontes

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