Lugares de Memória dos Trabalhadores #46: Mina do Cauê, Itabira (MG) – Cristiane Maria Magalhães



Cristiane Maria Magalhães
Doutora em História pela UNICAMP



Vista do alto, como num voo de pássaro, a cidade de Itabira parece estar dentro da mineração a céu aberto. A Mina do Cauê, durante anos a principal da cidade, foi o local de origem da Companhia Vale do Rio Doce em 1942. Nos últimos anos, a Vale tornou-se mundialmente conhecida pelos criminosos desastres ambientais e humanos provocados pelo rompimento de duas de suas barragens de rejeitos de minérios localizadas em jazidas nas cidades de Mariana e de Brumadinho. Todavia, a trajetória da empresa, muito antes de se espalhar pelo Brasil e pelo mundo, se amalgamou à história de Itabira, transformando a localidade numa “cidade operária”. As minas a céu aberto que circundam Itabira transmutaram a paisagem e impregnaram de minério de ferro o seu povo e as suas memórias.

O Pico do Cauê, desenhado na bandeira do município, marcou o destino de Itabira. O Pico, que alçava os céus nos seus 1.600 metros de altitude, era um gigante que continha o mais puro minério de ferro. Entre 1911 e 1940, passou a ser explorado pela empresa inglesa Itabira Iron Ore Company. No entanto, em 1942, em meio à Segunda Guerra Mundial, as minas de Itabira, vistas como estratégicas para os interesses nacionais, foram encampadas pelo governo de Getulio Vargas. O mesmo decreto que nacionalizou as minas criou a Companhia Vale do Rio Doce S.A., empresa estatal responsável pela exploração das jazidas e pela exportação do minério de ferro.

Na Mina do Cauê pelo menos três gerações de trabalhadores retiraram dali o seu sustento. Com as mãos, empunhando no ar as picaretas contra as paredes duras de minério de ferro, para depois encher balaios tecidos com bambus, durante anos os mineiros levavam nas costas o pesado mineral até os vagões das locomotivas.


Quase todos negros, chegavam a Itabira vindos das adjacências e de outras regiões de Minas Gerais e do país atraídos pela carteira assinada e pelos direitos a ela associados. No ano de 1944 há registros de que 6 mil operários trabalhavam na Companhia em Itabira.


Desde suas origens a Cia. Vale do Rio Doce implementou um modelo paternalista de relações de trabalho, articulado ao discurso corporativistas e às políticas nacional-desenvolvimentistas do governo. Os trabalhadores eram chamados, treinados e disciplinados para produzir em nome dos interesses da nação. A “Vale é mãe” sempre foi um jargão repetido à exaustão na cidade. De um lado, havia um controle e vigilância que ultrapassavam os muros da empresa, chegando às famílias e dominando a própria cidade. Por outro, havia grande estabilidade no emprego e a Companhia era vista como portando objetivos sociais em nome da própria nação.

Apesar da força desse discurso paternalista e da identificação entre empregados e empresa, tensões e conflitos não estavam ausentes do cotidiano de trabalho. Poucas vezes, no entanto, eclodiram no cenário público. Em 1946, uma greve articulada por militantes do Partido Comunista do Brasil (PCB) paralisou a Mina do Cauê e foi intensamente reprimida pelas forças policiais. De toda forma, o Sindicato Metabase, criado em 1945, consolidou-se na vida política e associativa de Itabira. Apenas em 1989, uma greve de grandes proporções ocorreria novamente. Liderada pelo Metabase,  agora filiado à CUT, a paralisação duraria 5 dias, com importante impacto no cotidiano da cidade.

No início da década de 1980 não existia mais o Pico do Cauê.  No seu lugar se formou um platô e, depois, uma enorme cratera reluzente. O impacto ambiental e simbólico foram enormes e são sentidos até os dias de hoje. Ao redor da cidade, mantém-se a mineração a céu aberto, formando grandes crateras. Há décadas, o pó do minério de ferro, levado pelo vento, brilha em cada superfície de Itabira e em seus habitantes. Nos famosos versos do poeta Carlos Drummond de Andrade, os itabiranos foram transformados em “homens de ferro: noventa por cento de ferro nas calçadas/ oitenta por cento de ferro nas almas”.

Em 1997 a Companhia Vale do Rio Doce foi privatizada e renomeada apenas como “Vale”. Atualmente, é uma das maiores empresas do mundo no setor de mineração. As antigas relações de trabalho paternalistas foram abolidas, a mecanização da exploração do minério intensificou-se e boa parte da mão de obra foi terceirizada. No entanto, ainda é considerado um “privilégio” ser funcionário da Vale. Em Itabira, modernas escavadeiras e gigantescos caminhões Caterpillar de 7,6 metros de altura retiram e transportam dia e noite o minério das crateras do entorno da cidade.

A cor do uniforme dos trabalhadores da antiga Vale do Rio Doce, que era marrom semelhante à  terra das entranhas de Itabira, foi substituída, com a privatização, pelo verde, como sinal de uma mudança lenta que se precipita há algumas décadas. Há muitos anos Itabira vive a expectativa do que virá após a mineradora abandonar suas instalações e deixar o legado ambientalmente danoso. Haverá de vir uma “terceira Itabira”, como previu Drummond em Vila de Utopia? Talvez, mas será uma cidade sem a Mina do Cauê que tanto marcou a vida de milhares de trabalhadores, suas famílias e a própria identidade local.

Cratera que atualmente ocupa o local onde existia o Pico do Cauê em Itabira (MG).
Fotografia de Cristiane Magalhães, 2007.


Para saber mais:

  • ANDRADE, Carlos Drummond. Confissões de Minas. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
  • CRUZ, Carlos. Braços cruzados, máquinas paradas. O dia que a Vale parou fez 30 anos. Vila de Utopia, 3 de abril de 2019. Disponível em: http://www.viladeutopia.com.br/bracos-cruzados-maquinas-paradas-o-dia-que-a-vale-parou-faz-30-anos/.
  • MAGALHÃES, Cristiane Maria. Mundos do Capital e do Trabalho: a construção da paisagem fabril itabirana (1874- 1930). Dissertação (Mestrado em História). FAFICH/UFMG, 2006.
  • MINAYO, Maria Cecília de Souza. Os homens de ferro: estudo sobre os trabalhadores da Vale do Rio Doce em Itabira. Rio de Janeiro: Dois Pontos, 1986.
  • WISNIK, José Miguel. Maquinação do Mundo. Drummond e a Mineração. São Paulo: Cia. das Letras, 2018.

Crédito da imagem de capa: Trabalhadores da Companhia Vale do Rio Doce transportando carvão vegetal, em Itabira, em cestos de vime. Foto: Vale/Divulgação.


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

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