Contribuição especial #06: O facão, o vírus e a crise. Como uma roda de conversa na General Motors recordou a Quebra da Bolsa de 1929.

Contribuição especial de Antonio Luigi Negro¹

Em 1953, quando o Brasil não produzia automóveis e só fazia importar veículos que chegavam desmontados no porto de Santos – cabendo às fábricas de São Paulo remontarem as partes (ou produzir componentes para os quais já possuíamos tecnologia) –, uma roda de conversa se formou na General Motors de São Caetano. A pergunta do bate-papo era qual a memória dos trabalhadores, no chão de fábrica, tinham da fatídica manhã de 24 de outubro de 1929, dia da derrubada e quebradeira da bolsa de valores de Nova Iorque. Quando o mundo sentiu os efeitos do Craque da Bolsa – causa da Grande Depressão –, milhões de trabalhadores perderam seus empregos e passaram fome. O desemprego foi longo e profundo. As empresas, antes de decretar lock down, demitiam em massa.

Entrada da fábrica da General Motors em São Caetano do Sul (SP) em 1939. Foto: John Philips. Disponível em https://medium.com/@eliezer_santos/s%C3%A3o-paulo-antiga-pelas-lentes-da-life-266c22bbfed4.

Exatamente porque as demissões tinham sido em massa, a conversa de veteranos na General Motors em 1953 juntou, não os dispensados, mas sim aqueles pouquíssimos que haviam conseguido permanecer no emprego. Os homens reunidos para lembrarem dos “dias pretos de 1930” deviam ser brancos, pois possuíam sobrenomes europeus. Iniciando as recordações, o feitor geral de carrocerias e estufa lembrou-se que, no setor de montagem, a firma ia muito bem no início de 1929. Batendo recordes de produção, o expediente no mês de maio era esticado até as primeiras horas da noite, sendo que já tinha começado antes do habitual. Os trabalhadores chegaram a comparecer tão cedo para o serviço que o desjejum era feito na fábrica. E o improviso fez o pessoal inclusive pegar antigas calotas das rodas para servir café.

No ano seguinte, por conta da crise, o ritmo tinha diminuído. Em 1930, quando o mais antigo empregado da GM – Arno Fritz Ehrhardt – entrava nas seções, mil e quinhentos funcionários se inquietavam. Apesar de divididos em 22 nacionalidades, o medo era um só e tinha nome: facão. Temiam Ehrhardt porque era o “fantasma da ópera”. Encarregado pela Seção de Pessoal, ele chegava para “mandar todo mundo embora”, executando as ordens vindas lá de cima.

Facão significava rua. Rua da amargura, conforme se dizia, local de ajuntamento de desempregados. “Quando a coisa piorou”, disse Ehrhardt, “os feitores passaram a trabalhar como guardas”.

Facão significava rua. Rua da amargura, conforme se dizia, local de ajuntamento de desempregados. “Quando a coisa piorou”, disse Ehrhardt, “os feitores passaram a trabalhar como guardas”.

Aí ficou claro quem a GM queria preservar. Ao mandar os guardas embora, substituindo-os pelos feitores, a empresa fez suas escolhas e mostrou quem era mais importante para ela: não era quem vigiava o movimento, mas quem estava encarregado de tirar a produção dos operários.

Mas o pior ainda estava por chegar. Com a Revolta Constitucionalista de 1932, veio a decisão da firma do lock down, fechando as portas. Para alívio dos trabalhadores, a situação não se alongou porque o governo do estado de São Paulo mandou adquirir todo o estoque para fins militares (inclusive modelos encalhados). Edmundo Drexler e seus colegas, que estavam parados, chegaram então “a trabalhar 24 e até 36 horas consecutivas para poder dar conta do serviço a realizar”. Em poucas palavras, deram o couro para cooperar com o esforço de guerra de São Paulo contra Getúlio Vargas. Katafaj acrescentou que o ritmo de produção era “dos mais rigorosos”. Em muitas ocasiões, trabalharam “‘vários dias sem ir para casa’”. De fato, concordou Basílio Rossi, lembrando da ocasião quando a produção voltou a bater recordes: apareceu um diretor, escreveu num quadro a nova marca alcançada e, ao lado, baixou a nova meta, escrevendo ‘“quebre esse recorde’”. Foi pensando nisso que a GM protegeu feitores, colocando-os para fazerem o serviço da vigilância. Para arrancar a produção dos trabalhadores, os patrões sempre precisaram de feitores.

Com o espalhamento do coronavírus, a crise global em 2020 também derrubou as bolsas de valores e provoca desemprego. Mas vai mais além. Fábricas como as de Bergamo, na Itália, que mantiveram a produção sem respeitar as normas de saúde pública, se tornaram focos irradiantes de contágio, o que depois se refletiu nos comboios de caminhões, em marcha fúnebre, levando os mortos – no silêncio tenebroso do escuro da noite fria – até cemitérios distantes, destino final das vítimas que perderam suas vidas para manter empresas funcionando. O anúncio recente da General Motors do Brasil de consertar 3 mil ventiladores mecânicos a serem usados no tratamento dos doentes com dificuldades respiratórias é ótimo, até porque a produção brasileira anual não passa de 200. Mas isso não é suficiente. De uma vez por todas, os empresários precisam entender que a vida humana vem na frente do cálculo de seus lucros particulares. Como foi visto recentemente, industriais alinhados ao governo, em linguagem chula e cruel, estão mais preocupados com os supostos “CNPJs na UTI” do que com a vida de milhões de trabalhadores e trabalhadoras pobres e explorados. Não podem simplesmente passar o facão e estragar ou tirar a vida dos trabalhadores, diversos deles, talvez, sem nem mesmo um CPF. Na sua crítica ao distanciamento social sanitário, muitos patrões, na verdade, acabam por praticar um distanciamento social desumano, ao desconhecerem por completo o valor da solidariedade e ao nutrirem desprezo pela situação da classe trabalhadora. Por um lado, se desfazem dos funcionários quando lhes convém. Por outro, tiram o sangue dos empregados quando querem produção. Melhor não duvidarem da capacidade de luta da classe trabalhadora.

¹ Professor do Departamento de História da UFBA, pesquisador CNPq.

Referências
Costa, Hélio da, Em Busca da Memória. Organização no Local de Trabalho, Partido e Sindicato m São Paulo. São Paulo, Scritta, 1995.
Mazzo, Armando, Memórias de um Militante Político e Sindical no abc. São Bernardo, Secretaria de Educação, Cultura e Esportes, 1991.
Medici, Ademir, Migração e Urbanização. São Paulo, Hucitec, 1993.
Negro, Antonio Luigi, Linhas de Montagem. O Industrialismo Nacional-Desenvolvimentista e a Sindicalização dos Trabalhadores. São Paulo, Boitempo, 2004.
Negro, Antonio Luigi, “Entre a solidariedade e o egoísmo, patrões escolhem defender seus próprios interesses”, entrevista a Mariana Lemle, Blog de HCS-Manguinhos, 3/4/2020. http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/entre-a-solidariedade-e-o-egoismo-patroes-escolhem-defender-seus-proprios-interesses/
Pereira Neto, Murilo L., A reinvenção da classe trabalhadora (1953-1964). Campinas, Editora da Unicamp, 2012.
Vida na GMB, nos 29-33, 1953-54. Biblioteca Nacional (periódicos), 2-468, 2, 2.

Crédito da imagem de capa: Operários e operárias na linha de produção da GM em São Caetano do Sul (SP), 1939. Foto: John Philips.
Disponível em https://medium.com/@eliezer_santos/s%C3%A3o-paulo-antiga-pelas-lentes-da-life-266c22bbfed4

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