Lugares de Memória dos Trabalhadores #35: Trevo do Bairro Alto, Guariba (SP) – Julia Chequer



Julia Chequer
Doutoranda em História SOCIAL na Unicamp E PESQUISADORA DO LEHMT



Na madrugada do dia 15 de maio de 1984, enquanto vários trabalhadores e trabalhadoras rurais se preparavam para pegar os “caminhões de turma”, que os levariam para os canaviais de Guariba e da região de Ribeirão Preto, no interior paulista, outros seguiam em direção às saídas da cidade para formar piquetes. Uma greve havia começado no dia anterior, quando várias turmas pararam de trabalhar nas lavouras, exigindo o fim do regime de sete ruas, que tornava o corte de cana mais penoso e diminuía os ganhos de uma remuneração baseada na produção – medida em toneladas de cana cortada por cada trabalhador.

Os piquetes nas saídas da cidade foram fundamentais para a eclosão do movimento grevista que tomaria as ruas da cidade, se espalharia para outros municípios da região e tornaria Guariba conhecida em todo o país, assim como a situação de miséria dos chamados boias-frias. Era dessa forma que ficaram conhecidos os trabalhadores rurais transportados diariamente para a lavoura em traseira de caminhões junto com seus instrumentos de trabalho e suas refeições, as “boias”, que já estariam frias na hora do almoço.

A entrada principal da cidade leva ao trevo do Bairro Alto, através da rodovia José Corona, nomeada em 1981 em homenagem ao fundador da usina Bonfim. A rodovia dá acesso às maiores usinas do entorno e algumas das grandes produtoras nacionais de álcool e açúcar: a Bonfim, em Guariba, a São Martinho, em Pradópolis, e as usinas São Carlos e Santa Adélia, em Jaboticabal. Ponto estratégico, o trevo na entrada do Bairro Alto foi o palco dos principais piquetes de greve.

O bairro foi o primeiro bolsão periférico da cidade, em uma expansão que teve início nos anos 1950 e acompanhou o ritmo de crescimento da agroindústria canavieira na região, com notável salto a partir de 1975, com a promulgação do Programa Nacional do Álcool. O local ganhou o apelido de João-de-Barro pelo tipo de casas, muitas vezes construídas pelos próprios residentes. Os cerca de 10 mil trabalhadores rurais de Guariba eram compostos em sua maioria por famílias de migrantes, sobretudo da região do Vale do Jequitinhonha (MG), do Nordeste e do Paraná. Em grande parte eram negros e negras, de modo que a segregação espacial da cidade também foi marcada por uma dimensão racial.


Naquela terça-feira, os trabalhadores que desceram dos caminhões engrossaram os piquetes e, em seguida, se juntaram às milhares de pessoas que partiram em direção ao centro da cidade, com seus instrumentos e vestimentas de trabalho – uma sobreposição de peças para proteger ao máximo o corpo do sol, da palha da cana, da fuligem e de insetos.


O primeiro alvo da ira dos grevistas foi a Sabesp, empresa que passara a prestar serviços de saneamento na cidade alguns anos antes e que colecionava queixas acerca do péssimo serviço e do alto valor das cobranças. O escritório da companhia foi destruído. Em seguida, foi saqueado um supermercado local, cujo dono havia sido um “gato”, nome dado aos intermediadores de mão de obra rural.

A chegada de batalhões de choque de cidades vizinhas deu inicio a um trágico enfrentamento que deixou 30 pessoas feridas e um morto. Acuado, o movimento – que ainda crescia com piquetes nas lavouras e com o retorno de outros trabalhadores em greve para a cidade – retornava aos bairros periféricos, onde a Polícia Militar perseguiu indiscriminadamente seus habitantes em violentas ações de repressão, que incluiu a invasão de domicílios.

A mobilização tomou de surpresa a cidade, os fazendeiros e mesmo a direção do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Jaboticabal, que possuía uma subsede em Guariba. Auto-organizado, o movimento ganhara forma na noite anterior, nas ruas, nos bares e nos espaços de sociabilidade dos trabalhadores.

O Bairro Alto foi o epicentro da greve. Os piquetes no trevo foram fundamentais para o sucesso do movimento e remetem a uma memória de resistência, já que décadas antes, em novembro de 1961, outra (pouco conhecida) greve de canavieiros provavelmente teve início ali, de onde os trabalhadores também tomaram o centro da cidade e conquistaram a assinatura de um acordo por usineiros e governantes.

Em 1961, no entanto, setores do sindicalismo católico mediaram a assinatura do acordo, ao passo que, em 1984, pela primeira vez, patrões e governantes sentaram para negociar diretamente com uma comissão de trabalhadores para firmar o chamado Acordo de Guariba. Não demorou para que essas conquistas fossem pautadas por uma série de mobilizações que se espalharam pela região. Em 1985, o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Guariba seria refundado. Ainda que as mulheres tenham demorado a fazer parte das diretorias e sejam pouco associadas à imagem do boia-fria, sua participação na greve e na força de trabalho é notável nos testemunhos.

Em um contexto de redemocratização, a greve de Guariba em 1984 tornou os boias-frias sujeitos políticos de importância central. Juntamente com outras mobilizações do período, como as dos canavieiros de Pernambuco, denunciou a miséria e os limites do “novo agronegócio” promovido pela ditadura, além de contribuir para a renovação do sindicalismo rural e para a conquista de direitos que teria na Constituição de 1988 um momento crucial. Um repertório de lutas gestado por anos e experimentado nos trevos e nas ruas do Bairro Alto tornam esses espaços fundamentais lugares de memória dos trabalhadores e trabalhadoras rurais de Guariba e do país.

Assembleia realizada no dia 17 de maio de 1984, no Estádio Municipal de Guariba, aprova o acordo e põe fim à greve
(Foto: Carlos Fenerich/Editora Abril).


Para saber mais:

  • CHEQUER, Julia. Memórias ocultas: experiências de mulheres canavieiras em Guariba (1975-1985). Dissertação (mestrado) – Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais, CPDOC/FGV, 2019.
  • NOVAES, J. R., ALVES, F. Guariba 1984 (vídeo). São Paulo: FERAESP, UFRJ e UFSCar, 2002a.
  • PENTEADO, Maria Antonieta Gomes. Trabalhadores da cana: protesto social em Guariba – maio de 1984. Maringá: Eduem, 2000.
  • VETTORASSI, Andréa. Espaços divididos e silenciados: um estudo sobre as relações sociais entre nativos e os “de fora” de uma cidade do interior paulista. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – UFSCar, São Carlos, 2006.
  • WELCH, Clifford Andrew. A semente foi plantada: as raízes do movimento sindical camponês no Brasil, 1924-1964. São Paulo: Expressão Popular, 2010.

Crédito da imagem de capa: Piquete da greve de Guariba, 1984. Foto: Carlos Fenerich/Editora Abril.


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

Lugares de Memória dos Trabalhadores #34: Recreio Operário de Fernão Velho, Maceió (AL) – Ivo dos Santos Farias



Ivo dos Santos Farias
Doutor em Ciências Sociais pela Unesp-Marília



Construído em 1948, durante a gestão fabril do grupo Othon Bezerra de Mello (iniciada em 1943), o Recreio Operário é um dos mais imponentes e conservados prédios da antiga vila operária de Fernão Velho, que foi propriedade da Fábrica Carmen de Fiação e Tecelagem, a mais longeva indústria têxtil de Alagoas, inaugurada em 1857. Localizada atualmente na periferia de Maceió, às margens da laguna Mundaú, a fábrica funcionou até janeiro de 2010 e chegou a empregar cerca de cinco mil trabalhadores, entre as décadas de 1940 e 50. Foi a maior indústria têxtil de Alagoas, produzindo tecidos de algodão para o mercado nacional e internacional.

O Recreio foi construído entre dois conjuntos de moradias de operários, ao lado da linha férrea, integrada ao conjunto arquitetônico já existente. Desde a fundação da fábrica, os industriais montaram gradualmente uma estrutura que buscava a organização e o controle sobre a vida dos operários fora do local de trabalho. Diferentes moradias, praças, quadras poliesportivas, igreja católica, cinema, ambulatório, e escolas – todas propriedades dos industriais -, compunham um sistema de “fábrica com vila operária”.

Nesse contexto, o Recreio tinha a função de ser um espaço de entretenimento. Os proprietários da Fábrica Carmen propagandeavam-no como um exemplo do bom tratamento supostamente dado aos trabalhadores. Era no Recreio Operário que ocorriam bailes de carnaval, festas do dia das mães, de aniversários e casamento, festejos organizados por times de futebol da localidade, além de espaço para recepção de autoridades políticas e empresariais. Dessa forma, tornou-se um dos mais importantes locais de sociabilidade da classe operária local, mantendo-se ainda hoje como referência constante na memória social.

As festas em espaços públicos, por sua vez, representavam um instrumento pensado pelos industriais para o controle do tempo livre do operariado, inspecionando seu ócio e buscando evitar o “prazer desregrado”. Por isso, a gerência fabril se preocupava com a administração das atividades recreativas realizadas na vila operária.  Em Fernão Velho havia um gerente, conhecido como Sr. Campina, responsável pelo lazer dos trabalhadores.

Entretanto, o que foi pensado como espaço de controle tornou-se também importante local da fermentação de uma identidade de classe. Consolidou-se como o lugar da recreação “popular” na localidade em oposição a outro, dentro da vila operária, de caráter “elitista”. Segundo o operário Veríssimo Ferreira, maestro da orquestra da fábrica e ex-presidente Sindicato dos Trabalhadores Têxteis nos anos 1970, em Fernão Velho havia dois ambientes de cerimônias que distinguiam as classes sociais. O carnaval, segundo ele, era celebrado com “baile na Sede e baile no Recreio. No Recreio era popular, na Sede era para uma sociedade que tinha aqui, a Sociedade Recreativa Othon: só entrava sócio. No Recreio entrava todo mundo”.


Além de lugar de festividades, o espaço do Recreio também foi utilizado pelo Sindicato dos Trabalhadores Têxteis, particularmente no efervescente contexto político que antecedeu o golpe de 1964. Foi ali que, em 21 de abril de 1962, tomou posse a direção sindical presidida por José Conrado Alves.  Foi um concorrido evento, contando com a presença de diversas lideranças sindicais de Alagoas, do delegado regional do Trabalho e do próprio governador do estado, o General Luiz Cavalcante. Em agosto daquele mesmo ano, o Sindicato lideraria uma vitoriosa greve, que paralisou toda a produção da fábrica por três dias.


O Recreio, desse modo, tornou-se um articulador da identidade de classe, servindo de elo entre o passado e o presente do operariado têxtil de Fernão Velho. Décadas depois, antigos operários e seus “herdeiros fabris” retomam e ressignificam, na memória social local, aquele espaço como um lugar de rememoração de seus encontros e lutas. São comuns nos relatos dos/as antigos/as trabalhadores/as o orgulho de dizer que artistas de reconhecimento nacional, como Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, entre outros, se apresentaram no Recreio. Os bailes de domingo, os carnavais ou as festas juninas que aconteciam no local também são recorrentes nas recordações operárias

Com o primeiro fechamento da Fábrica Carmen, em 1996 (o definitivo só se deu em 2010), o Recreio passou a pertencer à Prefeitura Municipal de Maceió. Durante alguns anos o espaço ficou abandonado. No início da década de 2000, porém, o prédio foi reformado e reutilizado pelos moradores da localidade para o funcionamento do CRAS (Centro de Referência de Assistência Social), com atividades esportivas, artísticas e educativas. Assim, de certa forma, esse importante lugar de memória dos trabalhadores alagoanos foi retomado, para as mãos daqueles que podem ser considerados os herdeiros fabris de uma longa tradição cultural de lutas, trabalho e resistência.

Recreio Operário de Fernão Velho.
Autoria: Lisandra Pereira, 2007.


Para saber mais:

  • CORREIA, Telma de Barros. Pedra: plano e cotidiano operário no sertão. Campinas: Papirus, 1998.
  • FARIAS, Ivo dos Santos Farias. Nossa casa é do patrão: dominação e resistência operária no núcleo fabril de Fernão Velho (Maceió-AL). Curitiba: Appris, 2014.
  • LOPES, José Sérgio Leite. A tecelagem dos conflitos de classe na cidade das chaminés. São Paulo: Editora Marco Zero; Brasília Editora da Universidade de Brasília, 1988.

Crédito da imagem de capa: Evento no Recreio Operário de Fernão Velho. Década de 1960. Autoria: desconhecida.


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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Lugares de Memória dos Trabalhadores #33: Cais do Valongo, Rio de Janeiro (RJ) – Ynaê Lopes dos Santos



Ynaê Lopes dos Santos
Professora do Instituto de História da UFF



O maior porto escravista das Américas. Essa é a alcunha pela qual o Cais do Valongo ficou conhecido. Foi ali, entre os bairros da Saúde e Gamboa – região central do Rio de Janeiro – que ficava o local que mais recebeu africanos escravizados em toda a história do tráfico transatlântico.

Em 1774, o Vice-Rei Marquês do Lavradio decidiu transferir o local de desembarque e o mercado de africanos escravizados da Praia do Peixe, atual Praça XV, para a região do Valongo, paragem um pouco mais afastada da cidade. A transferência do mercado foi concretizada em 1779. Contudo, apenas em 1811 o cais propriamente dito foi construído, facilitando assim, o desembarque dos navios negreiros.

Os viajantes estrangeiros que visitaram o Cais do Valongo, testemunharam a violência que marcava a instituição escravista e que atravessou a vida de milhares de homens e mulheres retirados de diferentes partes do continente africano, sobretudo da África Centro-Ocidental. Os recém-chegados geralmente estavam desnutridos, doentes e acometidos por imensa tristeza. Não era para menos. Após ficar semanas ou meses em barracões de cidades costeiras na África, a travessa do Atlântico era uma experiência traumática: 40 a 90 dias de confinamento, em porões abarrotados, com pouca comida e água potável, condições higiênicas degradantes que levavam à morte de 30% da embarcação. E no final disso tudo: a escravidão.  

Era comum que muitos africanos não fossem postos a venda antes que “melhorassem seu aspecto” e estivessem aptos ao trabalho. Além dos barracões que vendiam os africanos escravizados, também fazia parte do “complexo do Cais do Valongo” o cemitério dos pretos novos, local no qual eram enterrados aqueles que não resistiam à travessia e aos primeiros dias de cativeiro. Parte desse cemitério e das histórias que ele guarda podem ser conhecidos atualmente, graças às ações do Instituto dos Pretos Novos.

Não é mera coincidência que o maior porto escravista esteja localizado justamente no território americano que mais recebeu africanos. Cerca de 40% de todo o tráfico transatlântico tinha o Brasil como destino final. Dos 4,5 milhões de africanos escravizados trazidos para o país, aproximadamente um milhão desembarcou no Valongo. O número de desembarques ficou especialmente elevado entre os anos de 1811 e 1831, período no qual o Brasil passou por uma série de mudanças políticas e sociais – como a Independência em 1822 -, sem que isso abalasse a escolha das elites pela manutenção da escravidão.


O Cais do Valongo foi uma espécie de “porta de entrada” para milhares de africanos escravizados, trabalhadores que foram a força motriz do país.


Grande parte dos escravizados que aportava no Cais do Valongo foi vendida para outras localidades das províncias do Sudeste, principalmente para as regiões rurais. Mas também existiram aqueles que não iam para tão longe, vivendo e trabalhando na cidade do Rio de Janeiro, executando um sem número de tarefas e atividades que garantiram o funcionamento daquela que se tornou a maior cidade escravista das Américas. Lavradores de pequenas e grandes propriedades, mineradores, carregadores da Alfândega, quituteiras, padeiros, barbeiro-cirurgiões, vendedores ambulantes, trabalhadores/as domésticos/as eram alguns dos ofícios aos quais esses homens e mulheres eram destinados depois de passar pelo Valongo.

No ano de 1831, após forte pressão da Inglaterra, o governo imperial finalmente aboliu oficialmente o tráfico, fazendo com que todo o complexo do Cais fosse desmontado. Ainda que os traficantes continuassem atuando em portos clandestinos a partir de 1831, o Valongo foi fechado. Em 1843 o Cais do Valongo foi soterrado e no seu lugar foi erguido o ancoradouro que recebeu Tereza Cristina, futura esposa de D. Pedro II, rebatizando o local como Cais da Imperatriz. Décadas depois, em 1904, o local foi novamente aterrado em meio às reformas urbanísticas de Pereira Passos, que transformaram radicalmente o espaço urbano do Rio de Janeiro. Apenas no ano de 2011, com as reformas que preparavam a cidade para as Olimpíadas, escavações permitiram que o Cais do Valongo fosse apresentado ao grande público, trazendo com ele a história e a memória da escravidão. Em 2018, o Cais do Valongo foi oficialmente reconhecido como Patrimônio da Humanidade pela UNESCO.

O reconhecimento da importância histórica do Cais do Valongo foi fundamental para desnudar o que os dois aterramentos aos quais foi submetido tentaram apagar. De um lado, a violência da escravidão e a escolha reiterada do Brasil por toda violência que ela carregou, inclusive a construção do racismo estrutural que nos define socialmente. De outro, a tentativa de silenciar não só a história dos trabalhadores no Brasil, mas também a história e a memória que esses trabalhadores e seus descendentes construíram nas cercanias do Cais do Valongo, uma região que, não por acaso, tornou-se um importante centro de resistência, luta e trabalho de homens e mulheres negros, fossem eles escravizados, libertos ou livres. Por tudo isso, o Cais do Valongo é um lugar de memória fundamental para todos os trabalhadores e trabalhadoras brasileiros.

Sítio Arqueológico do Cais do Valongo em 2018.
Acervo Folhapress.


Para saber mais:

  • HONORATO, C. de P. Valongo: o mercado de escravos do Rio de Janeiro, 1758 a 1831. 2008. Dissertação (Mestrado em História). Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2008.
  • MATTOS, H.; ABREU, M.; GURAN, M. (Org.). Inventário dos lugares de memória do tráfico atlântico de escravos e da história dos africanos escravizados no Brasil. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2014.
  • PEREIRA, J. C. M. da S. À flor da terra: o Cemitério dos Pretos Novos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Garamond: Iphan, 2007.
  • VASSALO, Simone e CICALO, André,  “Por onde os africanos chegaram: o Cais do Valongo e a Institucionalização da Memória do Tráfico Negreiro na Região Portuária do Rio de Janeiro”. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, Ano 21, n. 43, p. 239-271, 2015.
  • Site do Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos (IPN): http://pretosnovos.com.br/

Crédito da imagem de capa:
Editado em 15/05/2020 11:10: a imagem de capa “Litografia “Desembarque” (1835) de Johann Rugendas mostra a chegada de africanos escravizados num dos barracões que compunham o Valongo. Domínio Público” não se refere ao Valongo e foi trocada para “Litogravura de Jean Baptiste Debret de um dos mercados existentes na rua do Valongo em 1835. Fonte: Biblioteca Pública de Nova York. Litografia a partir de aquarela de Jean-Baptiste Debret”.


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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Lugares de Memória dos Trabalhadores #32: Corporação Musical Operária da Lapa, São Paulo (SP) – Leonardo Mello e Silva



Leonardo Mello e Silva
Professor do Departamento de Sociologia da USP



A Corporação Musical Operária da Lapa surgiu no início do processo de industrialização brasileira. A cidade de São Paulo, a partir da Primeira República, tornou-se o centro da modernidade industrial capitalista do país. A Lapa era um dos vários bairros industriais da cidade que emergiram nesse período.

Naquele contexto, um forte associativismo operário prosperou. Para além de um importante movimento reivindicativo por direitos sociais, cujo maior símbolo e expressão foi a greve geral de 1917, organizações culturais e de lazer, como bandas de música, grupos teatrais, times de futebol e grupos de passeio (tais como saídas para piqueniques), eram marcas características do movimento operário daquela época. Algumas dessas instituições permanecem até os dias hoje, como a Corporação Musical Operária da Lapa

A data oficial de fundação da Corporação é 1914, mas sua origem remonta a 1881. Nos primeiros anos do século XX ela teve a denominação de Banda XV de Novembro, como que a afirmar sua posição pró-republicana. Mas também já se chamou “Lira da Lapa” e “Banda Sete de Setembro”, além de “Banda dos Ferroviários”, pelo fato de agregar muitos empregados da Sorocabana e da Santos-Jundiaí (a linha coberta pela antiga São Paulo Railway).


Suas apresentações aconteciam inicialmente em procissões, quermesses, além de clubes operários (como o União Lapa Clube) e carnavalescos (como o Carnavalesco Lapeano). Desta forma, ganhou certa projeção na cidade.


A banda era restrita apenas aos músicos homens (o que só mudaria no final dos anos 1970). As primeiras gerações eram compostas apenas por italianos e seus descendentes, muitos deles trabalhadores industriais ou artesãos empregados nas fábricas e oficinas da região.

Em 1930, a Corporação Musical Operária da Lapa construiu sua sede em um terreno doado por Nicola Festa, um imigrante italiano fruticultor e entusiasta das tradições musicais. Desde então, a casinha permanece no mesmo lugar, na rua Joaquim Machado esquina com a passagem que conduz à rua Roma, e por onde anteriormente passava um córrego (chamado então Córrego Mandi), próxima à tradicional estação ferroviária do bairro. Trata-se de uma construção bem simples, composta de uma sala de ensaio, com um curto tablado do lado direito, junto a uma escada que conduz ao mezanino (hoje desativado), além de um pequeno banheiro; as janelas dão para a rua (frente) e para a passagem do antigo córrego (lado).

Com o paulatino declínio de sua composição majoritariamente italiana e o relativo sucesso auferido com as apresentações externas, já a partir da década de 1930, a banda passou a almejar a profissionalização. Na verdade, ela chegou a contar, entre os seus integrantes, com músicos que teriam destaque na cena musical da cidade como foram os casos dos maestros Vicente Santoro e Victor Barbieri, e do clarinetista Nabor Pires Camargo.

Ademais, do ponto de vista de seu formato e do recrutamento de seus membros, a banda musical operária não padecia de acirrada concorrência, a não ser das bandas militares – mas essas últimas tinham exatamente a característica de assegurar o sustento de seus membros, coisa que a Corporação Musical Operária da Lapa não podia fazer, de modo que ela dependia da auto-sustentação dos próprios integrantes para sobreviver. O solidarismo operário, que vinha da própria condição do trabalho, e a manutenção da banda musical numa forma associativa, com certeza reforçaram-se mutuamente.

Com a expansão da indústria cultural, ela foi perdendo a sua exclusividade na animação dos eventos sociais, e uma certa decadência, percebida pelos próprios músicos, adveio. A banda passou a fazer apresentações em festas privadas, de empresas ou shoppings centers que não necessariamente estavam situados no bairro, o que acabou possibilitando a extensão de sua existência, embora não com as mesmas características de origem. Por outro lado, a própria desindustrialização e gentrificação da Lapa e seu entorno contribuíram para a fragmentação, tanto da audiência, quanto do recrutamento de seus membros, quebrando o elo que havia entre os produtores e os consumidores de suas apresentações festivas. Nenhum dos atuais músicos, por exemplo, mora mais no bairro.

No entanto, a Corporação Musical Operária da Lapa ainda se mantém ativa contando com diretoria, regente e estatuto próprios. Foi registrada formalmente como uma associação privada em 1972, e desde então é mantida graças ao caráter voluntário do trabalho de seus membros. Os atuais misturam músicos de ambos os sexos, mas muito mais homens do que mulheres (proporção de seis para uma); idosos mais do que jovens (nenhum menor de 45 anos, grande parte acima dos setenta); e oriundos de locais variados da cidade, mesmo de fora dela. A composição profissional inclui principalmente funcionários públicos e profissionais do setor de serviços. Ensaios abertos ainda podem ser acompanhados por interessados no endereço original, tombado pelo patrimônio histórico municipal em 2009, lembrando tanto aos protagonistas sobreviventes quanto ao seu público de que se trata de uma instituição histórica importante, hoje incorporada à própria vida da cidade.

Fotografia de Ulisses Barbosa (2019).
Acervo da Corporação Musical Operária da Lapa.


Para saber mais:

  • FONTES, Paulo. Mapeando o Patrimônio Industrial em São Paulo. Patrimônio. Revista Eletrônica do IPHAN, Dossiê: Herança Industrial, n°4, março/abril, 2006.
  • HARDMAN, F. Foot. Nem pátria, nem patrão! Vida operária e cultura anarquista no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1983.
  • MENEGUELLO, Cristina.; SILVA, Leonardo M.; FONTES, Paulo. Patrimônio Industrial e Especulação Imobiliária: o caso da Lapa, São Paulo. Minha Cidade – Vitruvius 107.04, Ano 9, São Paulo, junho, 2009, http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/09.107/1847
  • SILVA, Juliana S. C. Práticas Musicais, Comunidade, Locabilidade e Vellhice: um estudo etnográfico sobre a Corporação Musical Operária da Lapa. Campinas: Dissertação de Mestrado, Unicamp-Instituto de Artes, 2018.

Crédito da imagem de capa: Corporação Musical Operária da Lapa nos anos 1950. Acervo da família Roseli Abu.


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Lugares de Memória dos Trabalhadores #31: Praça da Conceição, Porto Alegre (RS) – Isabel Bilhão



Isabel Bilhão
Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da UNISINOS



O Primeiro de Maio viveu, desde o seu surgimento, divergências em torno de seu significado e formas de representação. Para alguns, era dia de festejar, protestar contra as injustiças sociais e homenagear os trabalhadores, ressaltando sua importância para o progresso econômico e social. Para outros, era dia de greve geral pela conquista da jornada diária de oito horas de trabalho e momento de lembrar os mártires operários. Mas, tanto como festividade, quanto como greve, observava-se a necessidade de marcar publicamente a data e torná-la um momento-chave de identificação internacional do operariado.

No final do século XIX, Porto Alegre começava a se industrializar. As primeiras oficinas e fábricas da cidade eram dos ramos alimentício, metalúrgico e de móveis. Portugueses, afrodescendentes, espanhóis, italianos, alemães e poloneses compunham uma nascente e diversificada classe operária. Fundada em 1892 por trabalhadores alemães inspirados na socialdemocracia, a Allgemeiner Arbeiter Verein (União Geral de Trabalhadores) foi a primeira e mais influente organização operária porto-alegrense naquele período.

Foi a Allgemeiner que, em 1897, iniciou as comemorações do Primeiro de Maio na cidade, congregando, a exemplo de suas congêneres internacionais, o caráter festivo, de confraternização e de protesto. Os relatos encontrados na imprensa apresentam um roteiro de comemorações que parece ter sido seguido na virada do século XIX para o XX.

Conhecida como Praça da Conceição, devido à localização da Igreja da Conceição, a Praça Dom Sebastião (nomenclatura oficializada em 1884) ocupou um papel primordial no roteiro de celebrações do Primeiro de Maio realizadas até pelo menos 1906. A Praça se tornou um ponto de encontro privilegiado para os grupos de trabalhadores que vinham dos variados arrabaldes da cidade, reunindo bandas musicais e associações operárias e populares em geral. Ali, nas primeiras horas da manhã do dia primeiro de maio, se concentravam para ouvir discursos alusivos à data e entoar hinos operários. Também era da praça que saia o desfile que percorreria as ruas centrais da cidade.


Esse cortejo geralmente seguia uma ordem: a comissão organizadora fazia a frente, seguida por uma banda musical formada por trabalhadores e por senhoritas trajando vestes alusivas às aspirações operárias – liberdade, solidariedade e redução da jornada diária de trabalho.


Na sequência, apresentavam-se as organizações operárias e os distintos grupos de trabalhadores, muitas vezes acompanhados de suas famílias. As mais assíduas eram a Liga Operária Internacional, os operários da Companhia Industrial, com sua respectiva banda de música e a mencionada Allgemeiner Arbeitervein. Após percorrer as principais ruas do centro e adjacências – Independência, Ramiro Barcellos, Voluntários da Pátria, Marechal Floriano, Andradas – retornavam à Praça da Conceição para o encerramento das atividades da parte da manhã.

As comemorações do Primeiro de Maio, entretanto, se prolongavam ao longo do dia. No início da tarde, os trabalhadores voltavam a se reunir na Praça da Conceição para rumarem à Chácara Mostardeiro, no bairro Moinhos de Vento. Ali prosseguiam as atividades. Dentre elas: a audição de poesias, apresentações musicais e piquenique. Ao entardecer, regressavam novamente à Praça da Conceição, onde ocorria o encerramento das atividades e a dissolução do préstito.

Observa-se, assim, o visível cuidado do operariado da época para se apresentar publicamente e demarcar espaços simbólicos e geográficos diante das outras classes sociais no dia que lhe era consagrado. Esses desfiles possuíam um forte apelo, não apenas por sua aproximação aos rituais consagrados pela tradição católica, mas também pelo fato de congregarem operários de diversos ofícios, homens e mulheres que, vestindo suas melhores roupas e portando estandartes e bandeiras de suas associações, marchavam lado a lado, reforçando as noções de coesão e unidade, bem como a de honorabilidade operária.

Em outubro de 1906, Porto Alegre viveu, durante 21 dias, sua primeira greve geral. Um dos resultados desse movimento foi a fundação da Federação Operária do Rio Grande do Sul (FORGS). A partir do ano seguinte o ponto de encontro para as comemorações e desfiles do Primeiro de Maio transferiu-se para a sede da Federação, localizada na Rua Comendador Azevedo, no bairro operário chamado Floresta. A Praça da Conceição, situada a aproximadamente três quilômetros, tornou-se paulatinamente o ambiente de um novo público na reorganização urbana da cidade, passando a receber as famílias mais abastadas que tinham suas chácaras nos arredores.   

O local segue sendo um importante ponto de encontro e de circulação de uma significativa parcela da população porto-alegrense. Em suas imediações, além da Igreja da Conceição, localizam-se alguns dos prédios que fazem parte do patrimônio histórico e arquitetônico da capital gaúcha, como o do Hospital Beneficência Portuguesa e o do Colégio Marista Rosário. No entanto, houve certo apagamento de sua importância como espaço pioneiro de celebração da data mais importante do movimento operário. Trata-se de um lugar fundamental para a memória dos trabalhadores porto-alegrenses que merece destaque na geografia histórica da cidade.

Praça da Conceição atualmente, vista da Rua Irmão José Otão.
Fonte: Porto Imagens.


Para saber mais:

  • BILHÃO, Isabel. Identidade e Trabalho: uma história do operariado porto-alegrense (1898 a 1920). Londrina/PR: EDUEL, 2008. 
  • FRANCO, Sérgio da Costa. Guia Histórico de Porto Alegre (edição revista e ampliada). Porto Alegre: Edigal, 2018.
  • PETERSEN, Silvia. Que a União Operária Seja Nossa Pátria! História das lutas dos operários gaúchos para construir suas organizações. Santa Maria: Editora UFSM; Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2001.

Crédito da imagem de capa: Cartão postal retratando a Praça da Conceição no início do séc. XX. Fonte: Site Porto Alegre Antiga.


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Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

Lugares de Memória dos Trabalhadores #30: Estádio de São Januário, Rio de Janeiro (RJ) – Bernardo Buarque de Holanda



Bernardo Buarque de Holanda
Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas



O estádio do Clube de Regatas Vasco da Gama possui uma história quase centenária. Localizado na zona norte do Rio de Janeiro, no tradicional bairro de São Cristóvão, convertido desde o início do século XX, em um bairro industrial e operário, São Januário tem importância não apenas no âmbito esportivo, mas também na conformação da cultura política brasileira, tendo sido palco de manifestações e da promulgação de direitos da classe trabalhadora no Brasil.

O espaço foi inaugurado em 21 de abril de 1927, após uma extraordinária mobilização dos associados do clube para o soerguimento de um estádio próprio, com capacidade para mais de quarenta mil espectadores. Graças ao empenho dos imigrantes portugueses na arrecadação de contribuições e ao associativismo da colônia lusitana na cidade, o estádio foi construído em torno de onze meses. Em formato semicircular de ferradura, o estádio é considerado um monumento da arquitetura neocolonial, adornada com azulejos e brasões portugueses. Sua fachada é hoje tombada pelo Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

Até 1940, com a criação do Pacaembu, em São Paulo, São Januário foi o equipamento esportivo arquitetônico de maior envergadura no Brasil. No Rio, o campo do Vasco constituiu o principal espaço para a prática do futebol, durante as fases amadora e depois profissional da capital da República. Este status de grandeza durou até o advento do Maracanã, estádio municipal construído para sediar a Copa do Mundo de 1950. Mesmo após a inauguração deste, São Januário continuou a ser referência no universo esportivo brasileiro e permanece em plena atividade

Pode-se dizer que o clube e o estádio simbolizam o processo de popularização e de massificação do futebol no Brasil. O Vasco ficou conhecido como um dos pioneiros na introdução de jogadores negros, mulatos e brancos pobres, recrutados junto às classes trabalhadoras da cidade. Com esse elenco de atletas, em 1923, o Vasco sagrou-se campeão carioca. O feito inédito gerou reações elitistas de parte da entidade responsável pela organização das competições de futebol que impediu a continuidade do time na liga principal, sob o pretexto de ausência de um estádio próprio, fato que motivou a construção de São Januário.

A monumentalidade do estádio tornar-se-ia terreno propício não só para competições desportivas como para eventos de caráter cívicos, com grande repercussão no imaginário político da Era Vargas. Foi em São Januário, por exemplo, que o compositor Villa-Lobos, na condição de músico imbuído do ideário do Estado Novo, desenvolveu nos anos 1940 o projeto educativo nacionalista dos cantos orfeônicos, no qual multidões de crianças entoavam peças do cancioneiro popular e dos repertórios do folclore infantil.

Além das festividades e das cerimônias cívicas, São Januário foi apropriado de igual maneira por atos e manifestações políticas, em especial os desfiles e pronunciamentos de Getúlio Vargas. Frequentador da tribuna de honra nos dias de jogo, Vargas valeu-se da estratégia de utilizar o estádio para fazer discursos de rádio em cadeia nacional. O Dia do Trabalho, comemorado em primeiro de maio no Brasil desde 1925, passou a ser realizado frequentemente no estádio vascaíno durante o Estado Novo.


Em meio a arquibancadas apinhadas de trabalhadores, transmissões radiofônicas e a uma série de ritualizações do poder em campo, anunciaram-se as leis trabalhistas naquelas ocasiões. Um dos auges desse processo ocorreu em 1940, quando se anunciou a criação do salário mínimo, no campo do Vasco. No ano seguinte, seria em São Januário que Vargas instituiria a Justiça do Trabalho.


Correntes políticas que também disputavam a adesão dos trabalhadores igualmente se valeram daquela praça de esportes para a arregimentação de suas bases. Nos estertores do Estado Novo, a promoção de comícios no estádio do Vasco foi uma das estratégias adotadas pelo Partido Comunista do Brasil. Foi ali que, após sair da prisão, o líder do PCB, Luís Carlos Prestes, promoveu um grande ato no dia 23 de maio de 1945. O comício foi uma gigantesca demonstração de força do partido e de prestígio de seu líder, reunindo cerca de cem mil trabalhadores.

Durante a campanha eleitoral de 1950 e no início de seu governo, Vargas e seus seguidores trabalhistas voltariam a eleger São Januário como espaço privilegiado para comícios e mobilizações coletivas. A partir de meados dos anos 1950, o uso do estádio para manifestações de partidos diminuiria de maneira significativa. Isto, entretanto, não significou que as arquibancadas de São Januário deixassem de ser espaço de manifestações e protestos, muitas vezes com clara conotação política, tradição que, de alguma forma, se mantém. 

No Rio de Janeiro do século XXI, o outrora bairro operário em que se inscrevia o estádio é hoje uma grande comunidade – a Barreira do Vasco – envolta nos problemas cotidianos que assolam as periferias das grandes cidades. Em meio às novas arenas erigidas para reconfigurar o perfil social dos torcedores de clubes e para se ajustar à nova economia política do futebol internacional, São Januário permanece como um especial lugar de memória dos trabalhadores-torcedores brasileiros.

Trabalhadores nas arquibancadas de São Januário no Comício do PCB em homenagem à libertação de Luis Carlos Prestes, 23/05/1945.
Fonte: Site NetVasco


Para saber mais:

  • GOMES, Ângela de Castro. A invenção do trabalhismo. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2005.
  • MASCARENHAS, Gilmar. “São Januário, essa força estranha”. In: Ludopédio. 20 de outubro de 2017. Acesso em 24/10/2019: https://www.ludopedio.com.br/arquibancada/sao-januario-essa-forca-estranha/
  • MALHANO, Clara; MALHANO, Hamilton Botelho. São Januário: arquitetura e história. Rio de Janeiro: Mauad; Faperj, 2002.
  • SANTOS, João Manuel Casquilha Malaia. Revolução vascaína: a profissionalização do futebol e a inserção socioeconômica de negros e portugueses na cidade do Rio de Janeiro (1915-1934). São Paulo: Tese de Doutorado em História Econômica/USP, 2010.
  • Site do Centro de Memória Vasco da Gama: https://www.vasco.com.br/site/home/centromemoria

Crédito da imagem de capa: Desfile em celebração do dia Primeiro de maio no Estádio de São Januário. Arquivo Nacional, Fundo Agência Nacional. 01/05/1942. Notação: BR_RJANRIO_EH_0_FOT_EVE_02720_d0003/0029.


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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Lugares de Memória dos Trabalhadores #29: Usina Cinco Rios, Maracangalha, São Sebastião do Passé (BA) – Idalina Maria Almeida de Freitas



Idalina Maria Almeida de Freitas
Professora da UNILAB-Campus dos Malês



O pequeno distrito de Maracangalha onde se encontram as ruínas da Usina Cinco Rios, está situado no município de São Sebastião do Passé, no Recôncavo Baiano. Local que inspirou a famosa canção de Dorival Caymmi na década de 1950, as histórias que envolveram o “ir para Maracangalha” e a exímia “sambadeira”, a Anália, personagem imortalizada pelo poeta, que nasceu e morou na região, são memórias ainda vivas entre os moradores.

A Usina Cinco Rios foi fundada em 6 de novembro de 1912, sucedendo a antiga Usina Maracangalha. O engenho Maracangalha, que deu origem à usina, já existia desde 1757. Inicialmente de propriedade da tradicional família Costa Pinto, a Usina foi adquirida nos anos 1930 por Clemente Mariani, famoso empresário e político baiano. Fechou e reabriu na mesma década, passando para a administração de Álvaro Martins Catharino. No final da década de 1940 esteve à frente Augusto Novis, um dos mais conhecidos usineiros da Bahia. Em meio à decadência de outras usinas no Estado, teve êxito considerável entre as décadas de 1950 e 70.

Cinco Rios foi uma das mais bem equipadas usinas baianas, com maquinário de última geração e força motriz de máquinas a vapor. Possuía propriedades agrícolas que forneciam a cana de açúcar, direcionadas para as moendas e caldeiras. Ao longo do tempo chegou a ter um laboratório químico de controle de qualidade, oficina mecânica, serraria, carpintaria, fundição e outros serviços auxiliares capacitados a produzir peças de reposição. Além de utilizar a estrada de ferro Centro Oeste da Bahia (EFCOB), dispunha de 8 quilômetros de linha férrea, e uma pequena estação própria, juntamente com três locomotivas que realizavam o transporte da cana vindas de suas propriedades agrícolas.

Como várias usinas no Nordeste, Cinco Rios oferecia casas para a acomodação dos trabalhadores e suas famílias. No livro de notas da Usina da década de 1940, por exemplo, encontram-se registros de residências de trabalhadores; uma casa de oração; hospedaria; escritório; uma casa da sociedade dos operários; uma escola, todos com serviços sanitários, cobertas de telhas e com luz elétrica instalada.


Os/as trabalhadores/as da Usina eram, em sua grande maioria negros e negras, descendentes de famílias que há muito habitavam antigas fazendas da região, nos entornos de São Francisco do Conde, Santo Amaro e São Sebastião do Passé. No seu auge, todo o processo produtivo chegou a empregar cerca de mil trabalhadores.


Para muitos deles, a rotina nos campos começava logo cedo com a limpa da cana e a plantação. Alguns possuíam relação fixa de trabalho na empresa, em geral nos ofícios de cozinhador, soldador, evaporador, motorista, carpinteiro, caldeireiro, pedreiro, entre outros. Já uma outra parcela trabalhava de forma sazonal, nas épocas de corte da cana e transporte até a usina para a moagem. As mulheres trabalhavam no corte da cana nos campos. Algumas também foram professoras dos/as filhos/as de trabalhadores em escolas no entorno. As atividades, em geral, eram penosas e o olhar atento do feitor “lembrava o tempo dos engenhos”, em uma memória ainda presente do período da escravidão.

Uma forte sociabilidade cultural dos trabalhadores contrapunha-se ao árduo cotidiano na Usina. Eram comuns os sambas de roda, as brigas de galo, a prática do futebol e de rodas de capoeira. Ainda são recorrentes as lembranças de Besouro, lendário capoeirista temido na região por sua valentia e mandigas. O largo da capela de Nossa Senhora da Guia, próximo à Usina, era o principal ponto de concentração dos trabalhadores e de suas famílias.

Em 1946, os trabalhadores da Usina Cinco Rios aderiram ao Sindicato do Trabalhadores das Usinas de Santo Amaro que naquele ano ampliou sua representação para São Francisco do Conde e São Sebastião do Passé. Nos anos 1940 duas grandes greves paralisaram as usinas do Estado, inclusive Cinco Rios. Em 1954 uma nova greve generalizada espalhou-se pela região. Naquele período, um sindicalismo ativo, com forte influência da militância do Partido Comunista Brasileiro (PCB), organizou os trabalhadores locais e denunciou as péssimas condições de trabalho e o descumprimento da legislação trabalhista. Com a ditadura militar, a região foi declarada área de segurança nacional e o movimento sindical foi fortemente reprimido, jamais recuperando sua pujança anterior.

A Usina Cinco Rios encerrou definitivamente suas atividades em 1987 e hoje encontra-se em ruínas. Quem se aproxima pela estrada de terra e adentra o pequeno distrito de Maracangalha, já avista o que sobrou da imponente construção. Grande parte dos maquinários vindos da Europa e EUA ainda se encontram no local, deteriorando-se sob a ação do tempo. Ao andarmos pela localidade é impossível não ouvir histórias de vidas de gerações de famílias ligadas ao trabalho nas atividades açucareiras. Estão ali as lembranças de jornadas exaustivas, de deslocamentos, de formas de associativismos, dos sambas de roda e capoeira, além da reestruturação nas relações de trabalho por meio da carteira assinada e das lutas por direitos. São diversas histórias e memórias ainda a desvendar de quem foi para Maracangalha.

Notícia sobre Usina Cinco Rios na revista Bahia Ilustrada em 1918.
Acervo Hemeroteca digital Biblioteca Nacional
.


Para saber mais:

  • CASTELLUCI, Aldrin Armstrong Silva; SOUZA, Robério Santos. Os trabalhadores negros na História Social do Trabalho no Brasil: o longo século XIX. In XAVIER, Giovana (org.). Histórias da Escravidão e do Pós-abolição para as escolas. Cruz das Almas: EDURFB; Belo Horizonte: Fino Traço, 2016.
  • CUNHA, Joaci de Sousa. Amargo açúcar. Aspectos da história do trabalho e do capital no Recôncavo Açucareiro da Bahia (1945-64). Dissertação de Mestrado. Universidade Federal da Bahia, 1995.
  • FRAGA, Walter. Encruzilhadas da Liberdade. Histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.
  • LIMA, Henrique Espada. Sob o domínio da precariedade: escravidão e os significados da liberdade de trabalho no século XIX. Topoi. V.6, n°11, jul-dez, 2005.
  • PAIVA, Neves Valdivino. Maracangalha: Torrão de Açúcar, Talhão de Massapé. São Sebastião do Passé. 1996.

Crédito da imagem de capa: Fachada da Usina Cinco Rios. Acervo Hemeroteca Digital Biblioteca Nacional, sem data.


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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Lugares de Memória dos Trabalhadores #28: Tecejuta, Santarém (PA) – Daniela Rebelo Monte Tristan



Daniela Rebelo Monte Tristan
Doutoranda em História Social da Amazônia na UFPA



A Companhia de Fiação e Tecelagem de Juta de Santarém, conhecida como Tecejuta, foi a primeira e mais importante fábrica têxtil daquele município paraense. A Tecejuta produzia sacos confeccionados com fibra vegetal, principalmente a juta, para acondicionamento de grãos. A planta, de mesmo nome, da qual é extraída a fibra, foi introduzida na Amazônia por japoneses na década de 1930, poucos anos após o início da imigração nipônica para a região. A produção de fios e tecidos de juta constituiu um importante ramo da indústria na Amazônia, sobretudo nos estados do Pará e do Amazonas.

Embora tenha sido fundada na década de 1950, a fábrica só começou a funcionar em 1965 e fechou definitivamente suas portas em 1990. A companhia foi fundada por Kotaro Tuji, um dos responsáveis pela introdução da juta na Amazônia, em associação com um grupo de empresários locais. Ao longo de sua existência, no entanto, a empresa teve diversas modificações em sua composição acionária.

Um dos maiores empregadores do Baixo Amazonas, a Tecejuta, em seu auge, chegou a empregar cerca de 900 trabalhadores(as). Na sua maioria eram antigos pescadores, lavadeiras, carregadores do porto e trabalhadores rurais originários de Santarém e de regiões próximas. Como em outras experiências industriais no Brasil, a maioria dos trabalhadores aprendeu o serviço na prática.           


O trabalho fabril disciplinado e pautado pelo ritmo das máquinas causava estranhamento para as operárias e operários. Jurema, ex-trabalhadora da Tecejuta, rememora seu primeiro contato com a máquina: “A primeira vez, quando eu entrei, foi uma sensação estranha, esquisita. Eu pensei: ‘Meu Deus, como as pessoas operam isso aqui?’ Coisa de outro mundo! Mas depois de um mês eu mexia toda aquela máquina.”


As mulheres compunham mais de 70% da mão-de-obra da fábrica. Sua presença provocava escândalo na cidade, pois mulheres trabalhando ao lado de homens, em especial, no turno noturno, era visto com grande suspeição por boa parte da população local.

Alguns trabalhadores braçais da Tecejuta, que efetuavam serviços como o transporte de fardos de juta, acabaram aprendendo algum ofício dentro da fábrica. Esse é o caso de Nonato Serra, que em 1966 foi admitido para trabalhar na função de braçal, mas em pouco tempo foi chamado para ajudar no processo de funcionamento da caldeira e acabou se tornando operador da caldeira.

Em suas memórias, o antigo operário ressalta a importância da caldeira para a fábrica: “ela era responsável em dar vapor para a engomadeira, para a calandra e fazer a chamada do pessoal”. Essa chamada se dava através de um apito, sobre o qual explicou o funcionamento: “Tinha muito vapor na caldeira; então você chegava lá, puxava uma corda e a sirene apitava lá: ‘txãããããã’. Essa sirene ia numa distância quase no final da cidade. Aí tudo por lá tinha gente que vinha trabalhar, né?” A sirene da Tecejuta faz parte da memória coletiva da cidade. Os moradores de Santarém a tinham como referência em sua gestão do tempo ao longo do dia.

A Tecejuta criou um novo perfil de trabalhador em Santarém, embora não exatamente o operário disciplinado, em perfeita sintonia com as diretrizes da fábrica, como desejado pela gerência da Companhia. A experiência dos(as) trabalhadores(as) no cotidiano fabril gerou vivências coletivas e um mundo de sociabilidades no chão da fábrica e fora dela, incluindo festas e excursões às praias do rio Tapajós em dias de folga. O cotidiano do trabalho ensejava um senso de identidade como trabalhadores, que se expressou, entre outras manifestações, no entendimento da memória sobre o tempo ali vivido como um patrimônio partilhado em comum.

Ali se trabalhava, ali se resistia, ali se lutava por direitos. Embora no início do funcionamento da fábrica não houvesse um sindicato, apenas uma associação controlada pela direção da empresa, os/as trabalhadores/as buscavam diferentes formas de defender seus interesses. Em 1966, por exemplo, Miranilce Silva, jovem operária foi demitida por organizar um movimento reivindicativo no setor da tecelagem em protesto contra uma lista de demissão de cerca de cem trabalhadoras. Miranilce foi à Justiça do Trabalho, obteve ganho parcial de causa e ainda prestou depoimento como testemunha de outras operárias demitidas .

No final dos anos 1980, já com a existência de um sindicato atuante, ocorreram três grandes greves, entre outros motivos, para repor a corrosão do salário pela inflação. A presença das mulheres, tanto na liderança como na base desses movimentos, era majoritária. Na última greve, em 1988 houve uma intensa solidariedade na cidade, com a arrecadação e distribuição de mantimentos para os/as trabalhadores/as.

Em 1989, em meio à falta de matéria-prima e encolhimento do mercado consumidor de seus produtos, o grupo empresarial que mantinha a Tecejuta decidiu fechar a fábrica. Em 2013, seus edifícios, às margens do Tapajós, foram ocupados para a instalação de um terminal hidroviário. Contudo, a fábrica, espaço marcante de conflitos, lutas, sociabilidades e de construção de identidades, permanece como uma fundamental referência na memória da população de Santarém.

Trabalhadoras da Tecejuta no setor de tecelagem, 1973.
Fonte: Revista Manchete, edição especial “Amazônia”, fev. 1973.


Para saber mais:

  • FERREIRA, Aldenor da Silva. Fios dourados dos Trópicos: culturas, histórias, singularidades e possibilidades (juta e malva-Brasil e Índia). Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2016.
  • SOUZA, José Camilo Ramos. “Parintins e Vila Amazônica: Uma história de construção de vida urbana de imigrantes nipônicos”. In: HOMMA, Alfredo Kingo Oyama. Imigração japonesa na Amazônia: contribuição na Agricultura e vínculo com o desenvolvimento regional. Manaus: EDUA, 2011.
  • MATOS, Maria Izilda Santos de. Trama e poder: a trajetória e polêmica em torno das indústrias de sacaria para o café (São Paulo, 1888-1934). 2ª. ed. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996.
  • TRISTAN, Daniela Rebelo Monte. Trabalhadores da Tecejuta: experiência operária e construção da memória numa fábrica têxtil no Oeste do Pará (Santarém, 1951-1990). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Amazonas,  Manaus, 2016.

Crédito da imagem de capa: Instalações da Tecejuta em 1975. Fonte: Revista do Programa da Festa de Nossa Senhora da Conceição. 08/12/1975.


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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Lugares de Memória dos Trabalhadores #27: Fábrica Nacional de Motores (FNM), Xerém, Duque de Caxias (RJ) – José Ricardo Ramalho



José Ricardo Ramalho
Professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ



Fundada em 1942, no contexto da Segunda Guerra Mundial, e localizada em Xerém, distrito do município de Duque de Caxias, no Estado do Rio de Janeiro, a Fábrica Nacional de Motores (FNM) foi construída pelo Estado, sob o rigor da disciplina militar e do apelo ao patriotismo. Assim como a Companhia Siderúrgica Nacional, a Companhia Nacional de Álcalis e a Companhia Vale do Rio Doce, o projeto da fábrica se enquadrava na estratégia de desenvolvimento industrial do período Vargas. A escolha da Baixada Fluminense visava garantir a realização de uma “Cidade dos Motores”, autossuficiente em alimentação e moradia, quase como a ideia de um laboratório.

Inicialmente concebida como uma indústria de motores aeronáuticos, a empresa estatal passou, a partir de 1949, a fabricar caminhões e, posteriormente, automóveis. Seus vagarosos e resistentes caminhões ficaram conhecidos como “Fenemê” ou “João Bobo”, e seu automóvel ganhou o nome do presidente JK. Sua história estava entrelaçada com o desejo de parte da elite governamental, militar e empresarial de transformar o “homem brasileiro” em um “trabalhador brasileiro”.

As exigências do processo de trabalho fabril ainda eram desconhecidas para a maioria dos trabalhadores, em sua maioria migrantes mineiros e nordestinos. A fábrica chegou a ter perto de 5.000 operários no final da década de 1950, um quarto deles vivendo nas vilas operárias construídas ao redor da fábrica. A ênfase na disciplina e no respeito às chefias eram elementos centrais de um sistema que se implantava com apelo aos valores de “dignidade” e “caráter”. Eram relações de trabalho marcadas pelo exercício da subordinação com características militares, paternalistas e de controle sobre a esfera da reprodução social.

Quando a política “invadiu a FNM”, principalmente nos anos 1960, aquele modelo de dominação passou a sofrer questionamentos. Com uma estratégia de estar mais presente dentro da fábrica, o Sindicato dos Metalúrgicos da Guanabara não só passou a ter representantes em cada seção, como passou a discordar publicamente das decisões que prejudicavam os operários, chegando, em certos momentos, a reverter algumas delas, graças a paralisações parciais ou mesmo greves.


Foi o que ocorreu em março de 1961, quando pela primeira vez na história da fábrica, os operários paralisaram totalmente o trabalho. Como destacou o jornal Última Hora, foi uma “vigorosa manifestação de protesto contra os baixos salários e que a administração da empresa se nega a reajustar”. A greve era a confirmação do fortalecimento do movimento sindical e teve como consequência a construção de uma subdelegacia do sindicato nos domínios da FNM, em plena vila operária.


Como parte desta ação sindical de ocupação do espaço político, particularmente em empresas estatais, foram deslocados para a FNM, desde o final dos anos 1950, metalúrgicos militantes de partidos políticos, em especial do Partido Comunista Brasileiro (PCB). A presença de operários politicamente mais experientes no chão da fábrica estimulou a organização dos trabalhadores enquanto classe. Aquele também foi um período de intensas disputas políticas entre os próprios operários. Além da militância comunista, o Círculo Operário Católico atuava com vigor no interior da FNM.

Embora defendessem a empresa como baluarte da indústria nacional (o nacionalismo era uma das principais linguagens do sindicalismo daquele período), os militantes sindicais colocaram em xeque os mecanismos de dominação utilizados no cotidiano de trabalho e nas atividades extra-fabris (vilas, cooperativas). Assim, transformaram o ambiente da FNM, marcado pela ” tranquilidade”, em um espaço onde o sindicato passou a ser respeitado e a ter suas reivindicações levadas em conta.

A presença sindical virou uma referência na vida cotidiana dos trabalhadores e nas próprias decisões corporativas da gerência. A delegação da FNM era chamada de “Conselho 51” (no início dos anos 1960, o Sindicato dos Metalúrgicos da Guanabara possuía cerca de 80 Conselhos Sindicais), e como relata uma liderança da fábrica, por volta de 1964, “não se fazia nada na empresa sem que fosse ouvido o Conselho 51”.

O golpe de 1964 atingiu em cheio toda essa organização. Os trabalhadores da FNM foram os primeiros a sentir a intensidade da repressão militar. Na madrugada do golpe, quando tropas desciam de Minas Gerais para o Rio de Janeiro, a fábrica, que ficava no caminho, foi imediatamente ocupada e muitas prisões foram feitas. A própria FNM não resistiu à nova orientação econômica dos governos militares e foi vendida em 1968 para a Alfa Romeo (em seguida incorporada pela multinacional FIAT).

No entanto, uma persistente tradição de luta sindical acabou por influenciar os trabalhadores mais jovens durante as greves dos metalúrgicos do Rio de Janeiro no final da ditadura militar, em particular em julho de 1979 e especialmente em maio de 1981, quando os operários da FIAT realizaram uma longa greve “pelo direito ao trabalho”. Em crise econômica, a empresa italiana decidiu fechar a fábrica em 1985, transferindo a produção para Betim (MG). Décadas após o encerramento de suas atividades, a presença de várias edificações relacionados à FNM ainda marcam o cenário urbano e as lembranças do cotidiano de trabalho e lutas ainda permanecem na memória de muitos moradores de Xerém e da Baixada Fluminense.

Manifestação política dos operários da FNM em Xerém, 1963.
Fotos: autor desconhecido. Acervo de José Ricardo Ramalho.


Para saber mais:

  • GOMES, Angela Castro. “O Redescobrimento do Brasil”. In Estado novo – ideologia e poder. Rio de Janeiro, Zahar, 1982.
  • RAMALHO, José Ricardo. Estado Patrão e Luta Operária. O caso FNM. São Paulo, Paz e Terra, 1989.
  • RAMALHO, José Ricardo. “Empresas Estatais de Primeira Geração: Formas de gestão e ação sindical”. In ABREU, Alice & PESSANHA, Elina (Orgs), O Trabalhador Carioca: Estudos sobre trabalhadores urbanos do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, J.C. Editora, 1994.
  • VALLE Rogério. A Experiência da FNM. Rio de Janeiro, GPCT/Coppe-UFRJ, 1983.

Crédito da imagem de capa: Operários na Linha de Montagem do FNM 2000 – modelo JK. Foto: autor não identificado/ não conhecido. Acervo: Relatório da Diretoria da Fábrica Nacional de Motores, 1961.


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

Lugares de Memória dos Trabalhadores #26: Estação da Calçada, Salvador (BA) – Robério S. Souza



Robério S. Souza
Professor da Universidade do Estado da Bahia



Os caminhos de ferro são antigos na Bahia, datam dos primórdios da segunda metade do século XIX. A primeira ferrovia – Bahia and San Francisco Railway­ – começou a ser construída em 1858, com o traçado que partia de Salvador em direção ao interior. Esse empreendimento demandou muitos recursos financeiros, além do engajamento de uma multidão de homens imigrantes e nacionais livres, libertos e escravizados. Naqueles tempos, as máquinas, instrumentos de trabalho, ferragens, entulhos ou a presença dos operários de construção logo passaram a compor e alterar o cotidiano e a fisionomia do local onde as obras começavam. Dentre estas, a então monumental Estação da Calçada, onde começava a linha do trem.

Erguer aquele imponente edifício exigiu não só a supervisão de engenheiros, mas, sobretudo, muito suor de seus trabalhadores, que se desdobravam nas escavações, nos serviços de terraplanagem, remoção de entulhos, preparação de massa de concreto, na carpintaria, fundição, alvenaria, entre outros. Alguns trabalhadores arriscavam suas vidas pendurados entre as ferragens, montando a pesada estrutura metálica ou os suportes necessários para a elevação do prédio. Não por acaso, aquele foi o cenário de diversos acidentes de trabalho. Às 3 horas da tarde de 12 de janeiro de 1861, por exemplo, uma das arcadas de ferro da parte que integrava as paredes do edifício desabou, tirando a vida de José Maria, além de ferir gravemente outros trabalhadores.

Localizada na zona limítrofe da área urbana de Salvador, a Estação da Calçada se tornaria assim “a principal edificação da Bahia and San Francisco Railway­ e a mais importante estação de quase todas as ferrovias que viriam ser construídas na Bahia”. Destinada ao transporte de passageiros e mercadorias, a Estação também se tornou um espaço fundamental de trabalho e trânsito para seus trabalhadores.   


Em 1909, os trabalhadores ferroviários da Bahia and San Francisco Railway­ protagonizaram um dos mais importantes movimentos grevistas da Primeira República. Na imprensa da época circularam as primeiras notícias da insatisfação entre os operários da Estação da Calçada. Longas jornadas de trabalho, esquema clássico da exploração da classe trabalhadora, seriam o estopim da parede. Os trabalhadores também denunciavam os baixíssimos salários e as constantes multas e transferências, prejudicando a sua vida familiar e afetiva.


Essas foram as principais razões para que aqueles homens dessem início a uma onda grevista que se espalhou ao longo da linha do trem, tirou o sossego das elites e abalou a ordem pública baiana. No calor da greve, os trabalhadores da Estação da Calçada montaram uma comissão central encarregada de negociar com os patrões, além de usarem os telégrafos da estação para se comunicarem com as comissões setoriais nas cidades e vilas do interior, com vistas a debater a pauta de reivindicações e construir coletivamente o movimento.

Os patrões e as autoridades baianas sabiam desde cedo que a Estação da Calçada, juntamente com a de Periperi, à aproximadamente onze quilômetros dali, constituíam o front da resistência em Salvador. Assim, sob o argumento do restabelecimento da ordem pública, conseguiram que, durante uma madrugada, a polícia fosse designada para arrancar das mãos dos trabalhadores as duas estações. Na tentativa de inviabilizar a comunicação entre os núcleos grevistas pelo telégrafo, a polícia encarcerou o telegrafista da Estação da Calçada, Domingo Gusmão. Além de aplicar demissões exemplares, os patrões tentaram impor fura-greves, quando não usaram da coação e violência física para forçar o fim da greve.

A intransigência e as arbitrariedades praticadas pelos administradores da estrada de ferro aumentaram a insatisfação dos trabalhadores fazendo com que o movimento ganhasse força. Não foi à toa que, na calada da noite, os grevistas executaram o plano de tomar as locomotivas desde a estação da Calçada até Periperi, conduzindo-as para Alagoinhas, um dos núcleos grevistas no interior do Estado. Tropas foram enviadas para tentar recuperar as locomotivas, que só foram entregues após o presidente da República nomear um interventor federal nas estradas de ferro da Bahia, fragilizando o poder dos arrendatários. Assim, as negociações foram retomadas e, aos poucos, o movimento foi suspenso.

Quase duas décadas depois, a Estação da Calçada ainda era um espaço importante de organização dos ferroviários. Em 1927, ao tomar conhecimento de mobilizações operárias em Sergipe, os trabalhadores reuniram-se na Estação da Calçada e declararam-se em greve, fazendo com que os patrões acionassem as forças policiais. Hoje em dia, a Estação da Calçada ainda permanece de pé, servindo de local de embarque e desembarque dos trens de passageiros oriundos ou com destino ao subúrbio ferroviário, em Salvador.  Além de ter sido local de relações opressivas de trabalho, a Estação da Calçada se constituiu para os trabalhadores como um lugar de memória de suas lutas.

“Grevistas da Estrada de Ferro da Bahia ao S. Francisco”
Fonte: Revista do Brasil. 31/10/1909. Acervo: Biblioteca Pública do Estado da Bahia


Para saber mais:

  • FERNANDES, Etelvina. Do mar da Bahia ao Rio do Sertão. Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo, 2006.
  • FONTES, José Raimundo. Manifestações operárias na Bahia: O movimento grevista. 1888-1930. Salvador: UFBA, 1982. (Dissertação de mestrado).
  • SANTOS, Mário Augusto da Silva dos. A República do povo: sobrevivência e tensão: Salvador (1890-1930). Salvador. EdUFBA, 2001.
  • SOUZA, Robério Santos. Trabalhadores dos trilhos: imigrantes e nacionais livres, libertos e escravos na construção da primeira ferrovia baiana (1858-1863). Campinas: Editora da Unicamp, 2015.
  • SOUZA, Robério Santos. Tudo pelo trabalho livre: trabalhadores e conflitos no pós-abolição. Salvador: Edufba, 2011.

Crédito da imagem de capa: Fachada frontal da Estação de Jequitaia (Calçada). Fotógrafo: Benjamin R. Mulock, Bahia, 5 jun. 1861. Collection Vignoles of Institution of Civil Engineers, London, ICE ACC 1335.


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