Lugares de Memória dos Trabalhadores #33: Cais do Valongo, Rio de Janeiro (RJ) – Ynaê Lopes dos Santos



Ynaê Lopes dos Santos
Professora do Instituto de História da UFF



O maior porto escravista das Américas. Essa é a alcunha pela qual o Cais do Valongo ficou conhecido. Foi ali, entre os bairros da Saúde e Gamboa – região central do Rio de Janeiro – que ficava o local que mais recebeu africanos escravizados em toda a história do tráfico transatlântico.

Em 1774, o Vice-Rei Marquês do Lavradio decidiu transferir o local de desembarque e o mercado de africanos escravizados da Praia do Peixe, atual Praça XV, para a região do Valongo, paragem um pouco mais afastada da cidade. A transferência do mercado foi concretizada em 1779. Contudo, apenas em 1811 o cais propriamente dito foi construído, facilitando assim, o desembarque dos navios negreiros.

Os viajantes estrangeiros que visitaram o Cais do Valongo, testemunharam a violência que marcava a instituição escravista e que atravessou a vida de milhares de homens e mulheres retirados de diferentes partes do continente africano, sobretudo da África Centro-Ocidental. Os recém-chegados geralmente estavam desnutridos, doentes e acometidos por imensa tristeza. Não era para menos. Após ficar semanas ou meses em barracões de cidades costeiras na África, a travessa do Atlântico era uma experiência traumática: 40 a 90 dias de confinamento, em porões abarrotados, com pouca comida e água potável, condições higiênicas degradantes que levavam à morte de 30% da embarcação. E no final disso tudo: a escravidão.  

Era comum que muitos africanos não fossem postos a venda antes que “melhorassem seu aspecto” e estivessem aptos ao trabalho. Além dos barracões que vendiam os africanos escravizados, também fazia parte do “complexo do Cais do Valongo” o cemitério dos pretos novos, local no qual eram enterrados aqueles que não resistiam à travessia e aos primeiros dias de cativeiro. Parte desse cemitério e das histórias que ele guarda podem ser conhecidos atualmente, graças às ações do Instituto dos Pretos Novos.

Não é mera coincidência que o maior porto escravista esteja localizado justamente no território americano que mais recebeu africanos. Cerca de 40% de todo o tráfico transatlântico tinha o Brasil como destino final. Dos 4,5 milhões de africanos escravizados trazidos para o país, aproximadamente um milhão desembarcou no Valongo. O número de desembarques ficou especialmente elevado entre os anos de 1811 e 1831, período no qual o Brasil passou por uma série de mudanças políticas e sociais – como a Independência em 1822 -, sem que isso abalasse a escolha das elites pela manutenção da escravidão.


O Cais do Valongo foi uma espécie de “porta de entrada” para milhares de africanos escravizados, trabalhadores que foram a força motriz do país.


Grande parte dos escravizados que aportava no Cais do Valongo foi vendida para outras localidades das províncias do Sudeste, principalmente para as regiões rurais. Mas também existiram aqueles que não iam para tão longe, vivendo e trabalhando na cidade do Rio de Janeiro, executando um sem número de tarefas e atividades que garantiram o funcionamento daquela que se tornou a maior cidade escravista das Américas. Lavradores de pequenas e grandes propriedades, mineradores, carregadores da Alfândega, quituteiras, padeiros, barbeiro-cirurgiões, vendedores ambulantes, trabalhadores/as domésticos/as eram alguns dos ofícios aos quais esses homens e mulheres eram destinados depois de passar pelo Valongo.

No ano de 1831, após forte pressão da Inglaterra, o governo imperial finalmente aboliu oficialmente o tráfico, fazendo com que todo o complexo do Cais fosse desmontado. Ainda que os traficantes continuassem atuando em portos clandestinos a partir de 1831, o Valongo foi fechado. Em 1843 o Cais do Valongo foi soterrado e no seu lugar foi erguido o ancoradouro que recebeu Tereza Cristina, futura esposa de D. Pedro II, rebatizando o local como Cais da Imperatriz. Décadas depois, em 1904, o local foi novamente aterrado em meio às reformas urbanísticas de Pereira Passos, que transformaram radicalmente o espaço urbano do Rio de Janeiro. Apenas no ano de 2011, com as reformas que preparavam a cidade para as Olimpíadas, escavações permitiram que o Cais do Valongo fosse apresentado ao grande público, trazendo com ele a história e a memória da escravidão. Em 2018, o Cais do Valongo foi oficialmente reconhecido como Patrimônio da Humanidade pela UNESCO.

O reconhecimento da importância histórica do Cais do Valongo foi fundamental para desnudar o que os dois aterramentos aos quais foi submetido tentaram apagar. De um lado, a violência da escravidão e a escolha reiterada do Brasil por toda violência que ela carregou, inclusive a construção do racismo estrutural que nos define socialmente. De outro, a tentativa de silenciar não só a história dos trabalhadores no Brasil, mas também a história e a memória que esses trabalhadores e seus descendentes construíram nas cercanias do Cais do Valongo, uma região que, não por acaso, tornou-se um importante centro de resistência, luta e trabalho de homens e mulheres negros, fossem eles escravizados, libertos ou livres. Por tudo isso, o Cais do Valongo é um lugar de memória fundamental para todos os trabalhadores e trabalhadoras brasileiros.

Sítio Arqueológico do Cais do Valongo em 2018.
Acervo Folhapress.


Para saber mais:

  • HONORATO, C. de P. Valongo: o mercado de escravos do Rio de Janeiro, 1758 a 1831. 2008. Dissertação (Mestrado em História). Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2008.
  • MATTOS, H.; ABREU, M.; GURAN, M. (Org.). Inventário dos lugares de memória do tráfico atlântico de escravos e da história dos africanos escravizados no Brasil. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2014.
  • PEREIRA, J. C. M. da S. À flor da terra: o Cemitério dos Pretos Novos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Garamond: Iphan, 2007.
  • VASSALO, Simone e CICALO, André,  “Por onde os africanos chegaram: o Cais do Valongo e a Institucionalização da Memória do Tráfico Negreiro na Região Portuária do Rio de Janeiro”. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, Ano 21, n. 43, p. 239-271, 2015.
  • Site do Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos (IPN): http://pretosnovos.com.br/

Crédito da imagem de capa:
Editado em 15/05/2020 11:10: a imagem de capa “Litografia “Desembarque” (1835) de Johann Rugendas mostra a chegada de africanos escravizados num dos barracões que compunham o Valongo. Domínio Público” não se refere ao Valongo e foi trocada para “Litogravura de Jean Baptiste Debret de um dos mercados existentes na rua do Valongo em 1835. Fonte: Biblioteca Pública de Nova York. Litografia a partir de aquarela de Jean-Baptiste Debret”.


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

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