Lugares de Memória dos Trabalhadores #49: Ginásio da FENAC, Novo Hamburgo (RS) – Evandro Machado Luciano



Evandro Machado Luciano
Mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul



O Ginásio de Esportes Alberto Mossmann ficou conhecido entre os trabalhadores e trabalhadoras de Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul, apenas como “Ginásio da FENAC”. O prédio, inaugurado em 1972, foi construído para abrigar competições esportivas. Localizava-se junto ao parque de exposições da Feira Nacional de Calçados (FENAC), onde era realizado o mais importante evento das indústrias do Vale do Sinos, na Região Metropolitana de Porto Alegre. O nome oficial do Ginásio faz referência a um antigo empresário calçadista, pai do prefeito em exercício no período de sua construção.

Novo Hamburgo, desde a primeira década do século XX, foi um importante polo industrial com base na produção de couro e calçado. A região é conhecida pela imigração alemã e empresários e trabalhadores teuto-brasileiros protagonizaram o processo de industrialização local. A partir dos anos 1960, no entanto, o crescimento fabril atraiu mão-de-obra de outras regiões do país, alterando as características étnicas e raciais de sua população. Já na década de 1970, mais de 70% dos trabalhadores do setor coureiro-calçadista provinham do interior do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. Nesse mesmo período, as mulheres ocupavam 40% dos postos de trabalho do setor. A produção de couro era massivamente delegada aos homens negros, por ser considerada um trabalho “sujo” e “pesado” demais para ser executado por operários brancos.

Ainda na década de 1960, o Serviço Social da Indústria (SESI) começou a organizar um campeonato que regulamentava os jogos de futebol e futsal de fábrica. Em Novo Hamburgo, ele ficou conhecido como “Campeonato do SESI” e tornou-se bastante popular. Em várias fábricas, ex-jogadores profissionais eram admitidos e muitos trabalhadores só eram contratados porque eram bons jogadores.

O Ginásio Alberto Mossmann era o mais importante espaço do campeonato, abrigando as grandes decisões, como na final do certame de 1977 em que os times das fábricas Calçados Kilate e Curtume Jaeger se enfrentaram com um público de mais de mil pessoas. Durante as décadas de 1970 e 1980 o Ginásio da FENAC recebeu jogos de futebol de salão (masculino), voleibol (masculino e feminino), shows e apresentações artísticas diversas. Se, de um lado, essas atividades reforçavam mecanismos paternalistas de dominação empresarial, por outro permitiam o compartilhamento de experiências comuns entre trabalhadores e trabalhadoras de diferentes lugares e fábricas de toda região. Assim, o que parecia ser apenas um local de diversão e sociabilidade, também foi um importante espaço para o movimento operário.

Ao final do ano de 1979, em um contexto de efervescência política e mobilização dos trabalhadores em todo o país, o Ginásio da FENAC foi palco de um movimento grevista de proporções inéditas naquele período. Apesar de mobilizações e formas de resistência operária terem existido em Novo Hamburgo durante a ditadura, a organização de trabalhadoras/es em larga escala só eclodiria no dia 4 de setembro daquele ano. Cerca de quinhentas pessoas que trabalhavam na fábrica de calçados Ciro S.A., em sua maioria mulheres, paralisaram suas atividades de forma espontânea e marcharam em direção à sede do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria do Calçado de Novo Hamburgo.


No dia seguinte, já eram mais de três mil grevistas que se dirigiram ao Ginásio da FENAC, onde realizaram uma histórica assembleia com o apoio do sindicato e demarcaram aquele espaço como um lugar onde também era possível debater política abertamente. Naquele dia, além do aumento salarial e melhores condições de trabalho, as trabalhadoras também exigiram creches nas fábricas e estabilidade para as gestantes, entre outras demandas.


O  Ginásio servia duplamente aos interesses dos trabalhadores. Em primeiro lugar, era um local amplo, necessário para a reunião de milhares de pessoas. Por outro lado, ocupar o ginásio possuía uma carga simbólica. O ato de dirigir-se ao ginásio naquele dia pode ser compreendido como a síntese de uma relação entre o trabalho, o esporte operário e a política durante a ditadura.

A assembléia do dia 5 de setembro de 1979 no Ginásio da FENAC teve forte impacto na dinâmica política e social da cidade. Ainda que a greve não tenha sido inteiramente vitoriosa, a paralisação impulsionou um grande crescimento da mobilização e organização dos/as trabalhadoras e de sua presença na esfera pública local. A greve gerou mudanças significativas na cúpula do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria do Calçado de Novo Hamburgo e nas relações intersindicais do Rio Grande do Sul ao longo da década de 1980, tendo impactos na construção da Central Única dos Trabalhadores e em forças políticas como o Partido dos Trabalhadores, entre outros.

As políticas econômicas neoliberais nos anos 1990 afetaram intensamente a indústria calçadista da região, gerando fechamento de fábricas e desemprego. O Ginásio de Esportes Alberto Mossmann também sofreu com a crise e descaso. Sem manutenção, suas instalações deterioraram-se. Nos anos 2000, deixou de abrigar jogos oficiais e em 2015 foi fechado para eventos esportivos e de lazer. Em 2018, foram retomadas obras de reforma, que ainda não resultaram em sua reabertura. Espaço de diversão e luta, no Ginásio de Esportes Alberto Mossmann, o “Ginásio da FENAC”, estão presentes as lembranças de das trabalhadoras e trabalhadores de Novo Hamburgo que resistiram aos despotismos dos industriais locais e do regime ditatorial que os apoiavam.

Assembleia dos trabalhadores do calçado de Novo Hamburgo no Ginásio da FENAC em 5 de setembro de 1979.
Acervo do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria de Calçado de Novo Hamburgo.


Para saber mais:

  • CIOCCARI, M.R. “Mina de jogadores: o futebol operário e a construção da “pequena honra”. Cadernos AEL, v.16, n.28, 2010.
  • CORRÊA, L. R. ; FONTES, P. “As falas de Jerônimo: Trabalhadores, sindicatos e a historiografia da ditadura militar brasileira.” Anos 90, Porto Alegre, v. 23, 2016.
  • LUCIANO, E. M. O nascimento dos “velhos”: sindicalismos, sociabilidades e a agência de sapateiros/as na ditadura civil-militar (Novo Hamburgo/RS, 1974-1979). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2019.
  • MARTINS, R. P. A produção calçadista em Novo Hamburgo e no Vale do Rio dos Sinos na Industrialização Brasileira: exportação, inserção comercial e política externa – 1969-1979. Tese (Doutorado em História) – Pontifícia Universidade Católica,  Porto Alegre, 2011.
  • PRODANOV, C. C. ; MARONEZE, L. A. G.  “Primeiro tempo: futebol, sociabilidade e as tensões da modernidade em Novo Hamburgo”. Recorde: Revista de História do Esporte , v. 8, 2015.

Crédito da imagem de capa: Assembleia dos trabalhadores do calçado de Novo Hamburgo no Ginásio da FENAC em 5 de setembro de 1979. Acervo do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria de Calçado de Novo Hamburgo.


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

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