Lugares de Memória dos Trabalhadores # 65: Sede da Associação Auxiliadora das Classes Laboriosas, São Paulo (SP) – Hélio da Costa



Hélio da Costa
Mestre em História Social pela Unicamp e Doutor em Sociologia do Trabalho pela USP



As “Classes Laboriosas”, como se tornou popularmente conhecida, foi fundada em 31 de maio de 1891 como Associação Auxiliadora dos Carpinteiros e Pedreiros. Inicialmente com 400 associados, principalmente imigrantes portugueses, a Associação foi formada com o objetivo de criar cooperativas para o desenvolvimento da construção civil, promover a regulação da relação entre patrões e operários, além de prover assistência médica, serviço que permaneceria ao longo do tempo. A denominação “Associação Auxiliadora das Classes Laboriosas” seria adotada na década de 1930, quando a assistência foi ampliada para outras categorias profissionais, como os operários da indústria em geral, além dos trabalhadores do comércio.

O número de sócios da Associação cresceu rapidamente e uma nova e ampla sede logo se tornou necessária. Inaugurada em 1907 nas proximidades da Praça da Sé, em um trecho da rua do Carmo (que passaria a se chamar rua Roberto Simonsen na década de 1950), a nova sede impressionava com seus elegantes salões, além de consultórios, laboratório e farmácia.

Como forma de cotizar as despesas da Associação, uma parte do espaço do edifício foi alugado para grupos culturais, como o Centro Dramático e Recreativo Internacional, o Grêmio Dramático Maria Falcão e o Grêmio Dramático e Recreativo Anita Garibaldi. Assim, a Associação passou a fazer parte de forma destacada da cena cultural paulistana das primeiras décadas do século XX com exibição de peças teatrais, espetáculos de música e saraus que tinham grande repercussão na cidade. O salão Celso Garcia, no primeiro andar do edifício, denominado em homenagem ao conhecido advogado defensor dos direitos dos operários, tornou-se famoso na cidade como espaço cultural, de lazer e de organização dos/as trabalhadores/as.

No mesmo período, o salão Celso Garcia e as dependências da Associação em geral passaram a ser frequentemente usados por diferentes sindicatos e associações de trabalhadores para a realização de reuniões, assembleias e variados eventos. A adequação do espaço, a localização central e a proximidade de várias sedes sindicais (muitas delas instaladas, a partir do final dos anos 1920, no vizinho Palacete Santa Helena), tornaram a Associação um lugar de referência fundamental para o movimento operário e motivo de orgulho para os trabalhadores que viam aquele edifício como “seu” lugar em pleno centro aristocrático da capital paulista.

Um espaço de ajuda mútua, de divulgação da cultura operária e de mobilização e discussão política. Comícios contra o aumento da carestia de vida, como o protagonizado pelo poeta e ativista Silvio Romero em 1910 tiveram no prédio das Classes Laboriosas um espaço fundamental. Palestras de lideranças, como a do militante anarquista Oreste Ristori, ocorriam com frequência no local, assim como as festas promovidas por jornais operários.


A impressionante greve de 1917, que incendiou a cidade, teve na Associação um de seus epicentros de organização. Também o crescente  associativismo dos trabalhadores negros nos anos 1920 utilizou aquelas instalações para reuniões e festividades. Foi igualmente no salão Celso Garcia, para darmos um outro exemplo, que o primeiro ministro do Trabalho, Lindolfo Collor, foi recebido em 1931. Ao apresentar a nova legislação sindical, com seus diversos mecanismos de controle estatal, Collor foi fortemente vaiado e hostilizado pelos dirigentes e ativistas sindicais paulistanos.


Em 1933, o edifício, que originalmente fora construído dentro dos padrões do ecletismo, passou por uma grande reforma conduzida pelo engenheiro Amleto Nipote, destacando-se o redesenho da fachada seguindo o padrão estilo art déco muito em evidência na época. Do edifício original foram mantidos integralmente a sala Lourenço Gomes e o salão Celso Garcia.

Reprimidas durante a ditadura do Estado Novo, as discussões políticas e as mobilizações operárias voltariam a ecoar na sede das Classes Laboriosas no pós-guerra. Na onda grevista, que tomou conta da cidade em 1945 e 46, várias reuniões, assembleias e negociações tiveram o salão Celso Garcia e as dependências da Associação como palco. Foi ali também que, em janeiro de 1946, foi realizado o I Congresso dos Trabalhadores do Estado de São Paulo promovido pelo Movimento Unificador dos Trabalhadores (MUT), a principal reunião sindical do período. Também em 1953, durante a histórica “Greve dos 300 mil”, o Salão das Classes Laboriosas foi um dos principais QGs da paralisação.

O golpe de 1964 e as mudanças na geografia das lutas sindicais na cidade acabariam por esvaziar o papel político das Classes Laboriosas nas mobilizações dos trabalhadores paulistanos. A entidade focou-se cada vez mais em seus serviços assistenciais na área de saúde e, com a decadência do antigo edifício da Rua Roberto Simonsen, transferiu sua sede para outra localidade. De toda forma, em 1995, aquele histórico prédio foi tombado pelo CONDEPHAAT, órgão de preservação do patrimônio do Estado de São Paulo.

A deterioração do prédio, no entanto, não foi interrompida e no início de fevereiro de 2008 um incêndio, sem vítimas, destruiu parte da edificação. Apesar das promessas de reforma, o abandono do edifício permanece até os dias de hoje. Por enquanto, seus belos vitrais e sua imponente escada com gradis de ferro que conduziam até o elegante salão Celso Garcia, tão importante na trajetória do movimento operário paulistano, ficarão apenas na memória daqueles que fizeram a história desse lugar.

Legenda: Fachada e interior do prédio das Classes Laboriosas em 2011.
Fonte: Site São Paulo Antiga.



Para saber mais:

  • AVELINO, Yvone Dias. A Criação da Associação Auxiliadora das Classes Laboriosas no Processo da Imigração Portuguesa em São Paulo. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH.  São Paulo, julho 2011.
  • BIONDI, Luigi. Classe e Nação: trabalhadores e socialistas italianos em São Paulo, 1890-1920. Campinas- São Paulo: Editora da Unicamp, 2011.
  • COSTA, Hélio da.  Em Busca da Memória – Comissões de Fábrica, Partido e Sindicato no Pós-Guerra. São Paulo: Scritta, 1995.
  • DOMINGUES, Petrônio. Esta “Magnânima Volição”: a Federação dos Homens de Cor. Dossiê Escravidão e Liberdade na Diáspora Atlântica. História (São Paulo) v.37, 2018.
  • LEAL, Murilo. A Reinvenção da Classe Trabalhadora (1953-1964). Campinas: Editora da Unicamp, 2011.

Crédito da imagem de capa: Reunião de famílias operárias no Salão Celso Garcia em 1929. Fonte: Site São Paulo Antiga.



Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

Lugares de Memória dos Trabalhadores #64: Casa de Caboclo, Praça Tiradentes, Rio de Janeiro (RJ) – Flavia Veras



Flavia Veras
Doutora em  História pela FGV e pesquisadora do LEHMT-UFRJ



A Casa de Caboclo foi o nome dado ao espaço montado nos escombros preservados do famoso Teatro São José após um incêndio devastador em 1931. As ruínas em nada lembravam o pomposo teatro que era parte do complexo de diversões da vibrante Praça Tiradentes, a principal região teatral do Rio de Janeiro naquele período. A Casa de Caboclo foi montada com liderança da dupla Jararaca e Ratinho. Eles haviam vencido um concurso realizado pelo proprietário do Teatro São José, Pascoal Segreto, principal empresário do ramo das diversões no Rio de Janeiro naquele período. O processo seletivo foi dirigido por Duque, funcionário de Segreto e conhecido dançarino e produtor.

Rapidamente, a Casa do Caboclo adquiriu fama atraindo um público, em grande parte composto de trabalhadores e trabalhadoras. Foi uma experiência singular de divertimento popular que colocava em destaque o papel das classes subalternas na construção da identidade nacional, num momento de grandes transformações políticas, econômicas e culturais.

 O surgimento do teatrinho foi anunciado, à princípio, como mais um dos muitos cineteatros improvisados que  exibiam números humorísticos e dançantes e compunham o cenário da Praça Tiradentes. As condições de trabalho eram precárias. A circulação do ar era ruim, não havia um guarda-roupas elegante à disposição do elenco, nem camarins adequados para a preparação das personagens. Além disso, frequentemente, o repasse dos ganhos e o pagamento dos cachês eram fraudados pelos produtores.

Apesar dos problemas, a Casa do Caboclo construiu uma identidade estética própria.  As  improvisadas condições físicas do estabelecimento colaboravam para que os preços dos ingressos fossem acessíveis. Assim, tornou-se extremamente popular. Os espetáculos apresentados remetiam às condições de vida dos trabalhadores rurais, personificados como sertanejos e caipiras, com grande uso de elementos folclóricos e regionais. Naquele espaço, por exemplo, Lampião era caracterizado como uma figura popular e até revolucionária. Além disso, outros elementos do imaginário do sertão eram ressignificados e valorizados.

Os improvisos eram comuns e apreciados, o que favorecia que as apresentações fossem assistidas diversas vezes pelas mesmas pessoas. Além da falta de ensaios e dos erros técnicos, os improvisos eram também resultado da ação do público que intervinha nas apresentações aplaudindo, vaiando ou até atirando objetos ao palco. Os/As artistas respondiam as interferências do público de forma criativa e, às vezes, bastante inusitada, como na conhecida cena que Dercy Gonçalves é lembrada por cuspir na plateia.

Antes dos espetáculos as/os artistas tocavam músicas e dançavam na porta do teatro; também davam voltas na Praça Tiradentes para atrair o público. Essa prática estava ligada à longa tradição circense da qual compartilhavam vários componentes da companhia. A vinculação com o circo é coerente com o projeto nacional-popular da Casa de Caboclo, que era também chamada de “a casa do povo”. Essa ideia surgiu da dupla Jararaca e Ratinho, artistas que reproduziram em seus personagens os traços do imaginário sertanejo. Trabalharam também nesse teatro improvisado artistas que se tornaram muito conhecidos como Dercy Gonçalves, Pixinguinha, Pérola Negra, Dalva de Oliveira, Alvarenga e Ranchinho,  entre outros.


Os artistas do mundo do teatro popular participaram ativamente dos debates sobre a identidade nacional, intensificados no início dos anos 1930. Reivindicações e conflitos trabalhistas que chegaram a resultar em greves  nas décadas anteriores também forjaram em muitos profissionais teatrais uma forte identidade de classe e de valorização do trabalho. Não por acaso, naqueles anos constituíram-se entidades representativas como a Casa dos Artistas e sindicatos.


A peça “Quequé qué casá” inaugurou a Casa do Caboclo em 7 de outubro de 1932.  Os espetáculos, geralmente com quadros dançantes e musicados, frequentemente tinham títulos que remetiam à oralidade popular com peças como “Rei Momo na roça” (1933), “Sodade de caboclo” (1934), “Portera veinha” (1934), entre outras. O cotidiano da população envolvendo trabalhadores rurais e migrantes, o mundo do carnaval, bem como as sátiras aos políticos eram os temas mais frequentes das revistas apresentadas.. Na Casa de Caboclo também foram encenadas quatro peças de autoria de De Chocolat, que nos anos 1920 liderou a talentosa Companhia Negra de Revista. Composta apenas de artistas negros, a Companhia encenava comédias que confrontavam o racismo e discutiam o problema da inclusão social e econômica das pessoas negras.

A Casa do Caboclo encerrou suas atividades nos escombros do Teatro São José em novembro de 1935. Desentendimentos entre o produtor Duque e a dupla Jararaca e Ratinho selaram o final daquela experiência. Apesar de pouco lembrada, ela foi fundamental para revelar artistas que conquistaram muita popularidade, além de participar ativamente no debate público sobre a brasilidade no período que esteve em atividade. Suas produções valorizavam os sujeitos subalternos, atribuindo novos valores e significados às experiências dos trabalhadores. As temáticas das peças, a audiência popular e a presença de artistas e profissionais de teatro que se reconheciam como trabalhadores/as num contexto de profundas mudanças no universo cultural e político brasileiros fazem da extinta Casa do Caboclo,  apesar de sua curta existência, um importante espaço de memória dos mundos do trabalho do Rio de Janeiro e do Brasil.

Praça Tiradentes em 1928, centro da vida teatral carioca.
Fotografia de Augusto Malta.
Acervo do Instituto Moreira Sales.


Para saber mais:

  • AMARAL, Maria Adelaide. Dercy de Cabo a Rabo. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1994.
  • BARROS, Orlando de. Corações de Chocolat. A história da Companhia Negra de Revistas (1926-27). Rio de Janeiro: Livre Expressão, 2005.
  • RODRIGUES, Sonia Maria Braucks. Jararaca e Ratinho: a famosa dupla caipira. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1983.
  • VERAS, Flavia. Tablado e Palanque – A formação da categoria profissional dos artistas no Rio de Janeiro (1918 – 1945). Saarbrücken: Novas Edições acadêmicas, 2014.
  • VERAS, Flavia. “Fábricas da Alegria”: o mercado de diversões e a organização do trabalho artístico no Rio de Janeiro e Buenos Aires (1918 – 1945). Tese (Doutorado em História, Política e Bens Culturais) – FGV – Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2017.

Crédito da imagem de capa: Quadro de revista de apresentado na Casa do Caboclo no início dos anos 1930. Da esquerda para direita: Antonieta Matos (a terceira), Pérola Negra, Ratinho, Jararaca e Matinhos. Em pé: atrás de Pérola Negra, Evilásio Marçal. As duas primeiras não foram identificadas. Referência: RODRIGUES, Sonia Maria Braucks. Jararaca e Ratinho: a famosa dupla caipira. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1983. p. 54.



Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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Lugares de Memória dos Trabalhadores #63: Encruzilhada Natalino, Ronda Alta (RS) – Bernardo Mançano Fernandes



Bernardo Mançano Fernandes
Professor do Departamento de Geografia da Universidade Estadual Paulista



Na luta pela terra, a encruzilhada é um espaço de tomada de decisão, de escolher qual caminho construir. Foi na Encruzilhada Natalino que famílias sem-terra montaram um acampamento que se tornou uma das principais referências da história do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). No dia 8 de dezembro de 1980, uma família de colonos expulsa da Reserva Indígena Nonai acampou próximo ao encontro das estradas que levam a Ronda Alta, Sarandi e Passo Fundo, no Rio Grande do Sul.

O local do acampamento era conhecido como Encruzilhada Natalino, pois tinha como ponto de referência uma casa comercial, cujo dono era Natálio. Coincidentemente, o colono que lá acampou também se chamava Natálio. Logo, juntaram-se outras famílias também expulsas da Reserva e remanescentes de um acampamento da região. Num contexto de crise econômica e política da ditadura militar, rendeiros, parceiros, agregados, peões, assalariados e filhos de pequenos proprietários voltavam a se organizar coletivamente na luta pela terra e por justiça social.

O governo gaúcho enviou uma comissão para oferecer empregos aos sem-terra. Acompanhada do bispo de Passo Fundo, D. Claudio Colling, os representantes do governo procuraram convencer os trabalhadores rurais, que se recusaram a desmobilizar o acampamento.  Um levantamento dos latifúndios nos municípios da região, realizado pela Comissão Pastoral da Terra e pelo Movimento de Justiça e Direitos Humanos mostrou que havia 4.000 hectares de terras à venda, contrariando os argumentos do governo que afirmava não haver terras disponíveis no Rio Grande do Sul e, portanto, era preciso transferir os trabalhadores rurais acampados para outros estados do Centro-Oeste, Norte ou Nordeste.

Em abril de 1981, havia 50 famílias acampadas. Em junho já eram 600 famílias, reunindo mais de 3 mil pessoas que habitavam em barracos de lona, capim, madeira, sacos de cimento ou adubo. Os barracos ocupavam quase dois quilômetros da beira da movimentada estrada, o que ampliava muito a visibilidade pública do movimento. Formou-se uma forte rede de solidariedade aos acampados, com doação de alimentos e manifestações públicas que contavam com a participação das Igrejas Católica e Luterana, de sindicatos da região, de políticos de oposição ao regime militar e do movimento estudantil, entre outros. 

O apoio da paróquia local foi particularmente importante, tanto na organização do espaço do acampamento quanto na mística construída para as famílias resistirem na luta pela terra. Na festa da Páscoa, por exemplo, após uma caminhada, foi fincada uma grande cruz na terra, sustentada com escoras que tinham os nomes das entidades que apoiavam a luta. A cruz ganhou grande simbolismo e sempre que havia uma manifestação era transportada, sendo mantida em pé pelas escoras. Durante o período do acampamento morreram cinco crianças e as famílias colocaram cinco faixas brancas na cruz, representando as suas presenças na luta pela terra. Nos meses de junho e julho, missas de solidariedade celebradas pelos bispos D. Pedro Casaldáliga, de São Felix do Araguaia (MT) e Dom Tomás Balduino, de Goiás Velho (GO) reuniram milhares de pessoas, ampliando a repercussão nacional do acampamento. D. Tomas chegou a dizer que a Encruzilhada Natalino representava para o campo o que as greves do ABC significavam para os trabalhadores da cidade


A luta e resistência em comum, o amplo apoio social e a construção de processos de organização interna no acampamento com realização de assembleias, manifestações e atividades religiosas e de formação política geraram uma forte senso coletivo articulado em torno da identidade de trabalhadores rurais sem terra.


O regime militar reagiu com truculência. Declarou o acampamento como área de segurança nacional e o cercou com tropas militares, isolando e dificultando o acesso. Ao mesmo tempo, apresentou a proposta de transferir as famílias para projetos de colonização em Roraima, Acre, Mato Grosso e Bahia. Sebastião Rodrigues Moura, o “Coronel Curió”, membro do Serviço de Inteligência do Exército e conhecido agente da repressão na Guerrilha do Araguaia e em Serra Pelada (PA), foi enviado ao acampamento Encruzilhada Natalino. Os acampados criaram a frase: “em terra de quero-quero, Curió não canta”. A missão do major era desmanchar o acampamento e levar as famílias para os projetos de colonização. Apesar da intensa propaganda e pressão governamental poucas famílias migraram para outros Estados. Ao estado de terror instalado no acampamento, os sem-terra responderam com impressionante resiliência e coragem. As mulheres, em particular, tiveram papel destacado. Com seus filhos no colo, postavam-se diante da polícia militar e do Exército, fazendo-os recuar. Em 31 de agosto de 1981, Curió e as tropas militares retiraram-se do acampamento.

Com a saída dos interventores, os acampados, com apoio de várias instituições, conquistaram o assentamento Nova Ronda Alta. A vitória dos acampados da Encruzilhada Natalino demarcou a história das lutas camponesas e foi fundamental para a fundação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em 1984. Foi uma prova concreta de que a resistência e a persistência eram as armas contra a modernização conservadora e o modelo do agronegócio da ditadura militar. Na Encruzilhada Natalino, os trabalhadores rurais sem-terra escolheram o caminho da luta e da dignidade. Um lugar de memória e de orgulho.

Marcha de trabalhadores rurais da Encruzilhada Natalino em 1981.
Acervo do MST.


Para saber mais:

  • FERNANDES, Bernardo Mançano. A formação do MST no Brasil. Vozes: Petrópolis, 2000.
  • FERNANDES, Bernardo Mançano. 20 anos da encruzilhada Natalino e o Exército continua espionando o MST. Fatos da Terra, v.6, 2001.
  • MARCON, Telmo. Acampamento Natalino: história da luta pela reforma agrária. Passo Fundo: Editora da Universidade de Passo Fundo, 1997.
  • MÉLIGA. Laerte Dorneles e JANSON, Maria do Carmo. Encruzilhada do Natalino. Porto Alegre: Vozes, 1982.
  • Documentário: Terra para Rose. Direção de Tetê Moraes, 1987.

Crédito da imagem de capa: Vista parcial do acampamento na Encruzilhada Natalino, 1981. Fonte Acervo do MST.



Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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Lugares de Memória dos Trabalhadores #62: Ginásio Mineirinho, Belo Horizonte (MG) – Roberto Véras de Oliveira



Roberto Véras de Oliveira
Professor do Departamento de Ciências Sociais da UFPB



O Ginásio Poliesportivo Jornalista Felipe Drummond, o Mineirinho, em Belo Horizonte foi inaugurado em março de 1980. Construído durante a ditadura militar, foi projetado para ser o maior da América Latina, com capacidade para até 25 mil pessoas.  Era mais uma expressão da megalomania do regime, sendo chamado à época de sua inauguração de Palácio dos Esportes.  O ginásio foi concebido para integrar o complexo esportivo da Pampulha, que inclui o Estádio Mineirão. Ao longo de sua história, além de uma variedade de atividades esportivas, o espaço também abrigou eventos culturais, políticos, comerciais e religiosos. Entre 7 e 11 de setembro de 1988, foi a sede do maior encontro sindical da história do país e o mais importante da Central Única dos Trabalhadores, o III Congresso Nacional da CUT.

Nascida 5 anos antes, a CUT foi fruto direto das mobilizações dos trabalhadores brasileiros do final dos anos 1970 e início dos 80. O chamado “novo sindicalismo”, além da luta pela democracia, propunha o rompimento com a estrutura sindical corporativa e uma prática baseada na participação ativa das bases. Em grande medida, a CUT também era uma expressão das contradições e limites da modernização conservadora promovida pela ditadura militar. Reunia representantes dos segmentos mais dinâmicos da economia, como metalúrgicos, petroleiros, químicos, trabalhadores de telecomunicações e bancários, mas também se destacava pela presença de trabalhadores rurais e de ramos tradicionais da indústria e dos serviços. Articulava setores com longa tradição sindical, assim como novas experiências, como as associações profissionais de servidores públicos. Sua capilaridade e presença em todo o território nacional igualmente chamava a atenção.

Assim como o Partido dos Trabalhadores, a CUT aglutinava muitas pessoas  recém iniciadas na luta sindical, mas também muitos militantes ligados a um diversificado leque de agrupamentos políticos de esquerda. Lideranças que buscavam reformar a prática sindical “por dentro” da estrutura oficial misturavam-se a militantes de oposições sindicais que, frequentemente, nunca haviam tido cargos na burocracia de um sindicato. Ao longo dos anos 1980, essas diferentes visões foram se aglutinando em blocos cujos principais eram a “Articulação Sindical”, majoritária, e a “CUT pela Base”.

Apesar do nome, a CUT não foi a única central sindical brasileira que emergiu com a redemocratização do país. Sua rival, a Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT), reunia setores mais conservadores do sindicalismo, mas também contava com o apoio de grupos de esquerda, como sindicalistas do PCB e do PCdoB. A CUT, no entanto,  rapidamente ganhou visibilidade e tornou-se protagonista nas greves e lutas sociais que marcaram o final da ditadura e todo o governo Sarney. Foi precisamente no contexto da Constituinte que o terceiro congresso da central foi agendado para o Ginásio do Mineirinho. Assim como em outros momentos, Belo Horizonte seria o palco de um grande encontro sindical.


Assim, no início de setembro de 1988, acorreram ao local trabalhadores(as) do campo e da cidade de todas as regiões do país. Muitos haviam percorrido, de ônibus, longos trechos até chegarem à capital mineira. Ao todo somaram 6.247 delegados(as), sendo 3.178 representantes de base e 3.065 de diretorias sindicais, membros de 1.143 entidades sindicais.


Os(as) trabalhadores(as) rurais compareceram com a maior delegação (32%), seguida pela representação da indústria (24%), dos serviços (21%) e do funcionalismo (16%). Em uma conjuntura em que a crise do sindicalismo internacional já chamava a atenção, a CUT era vista com otimismo. Representantes das mais importantes organizações sindicais mundiais, incluindo visitantes de 39 centrais de 33 países, estiveram presentes no Mineirinho naqueles dias.

O congresso debateu diversos temas conjunturais, além de um plano de lutas. Foi, no entanto, a forma da organização da central que provocou as mais acirradas polêmicas. A Articulação Sindical avaliava que era preciso fazer a CUT passar de uma “referência de massa” (que a confundia com um “movimento” ou um “partido político”) a uma organização genuinamente “sindical”. Diante de tal posição, os demais segmentos convergiram para o entendimento de que a CUT deveria se consolidar como uma “central de trabalhadores”, ao invés de se converter em uma “central de sindicatos”.

A grandiosidade do evento e as disputas apaixonadas geraram um clima único. As bandeiras, camisetas, broches, bonés e faixas tanto tinham as marcas da identidade comum como demarcavam as diferenças. O Ginásio abrigou momentos de alegria e confraternização, expressas por meio de músicas, danças, comidas, bebidas e conversas informais com sotaques dos quatro cantos do país. Mas também ecoou discursos inflamados, palavras de ordem, entoação de refrãos de músicas e hinos políticos, assim como viu perfilarem-se os grupos em disputa, nos aplausos efusivos, nas vaias furiosas e nas votações tensas. As performances das correntes, com palavras de ordem e gestos sincronizados, lembravam torcidas de futebol. Ao final, as teses da Articulação Sindical foram vitoriosas e Jair Meneguelli (metalúrgico do ABC Paulista) foi eleito presidente com 60,4% dos votos.

O III CONCUT fechou um ciclo para o sindicalismo brasileiro e para a CUT, quando viveu-se no país um momento excepcional de greves, mobilizações e congressos massivos. Foi assim que o Mineirinho entrou para a história do sindicalismo brasileiro.

Ginásio do Mineirinho, Belo Horizonte (MG), 2019.
Foto: Reprodução/TV Globo.


Para saber mais:

  • CENTRAL ÚNICA DOS TRABALHADORES. CUT 20 anos. São Paulo: Escola São Paulo-CUT/SMABC, 2001.
  • OLIVEIRA, Roberto Véras. Sindicalismo e democracia no Brasil: do novo sindicalismo ao sindicato cidadão. São Paulo: Annablume, 2011.
  • RODRIGUES, Iram Jácome. Sindicalismo e política — a trajetória da CUT. São Paulo, Scritta/FAPESP, 1997.
  • RODRIGUES, Leôncio Martins. CUT: os militantes e a ideologia. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1999.
  • SADER, Eder. Quando novos personagens entram em cena: experiências e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo, 1970-1980. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

Crédito da imagem de capa: III Congresso da Central única dos Trabalhadores, Ginásio do Mineirinho, Belo Horizonte (MG). Fotografia de Roberto Parizotti. Acervo CEDOC CUT.



Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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Lugares de Memória dos Trabalhadores #61: Fábrica Todos os Santos, Valença (BA) – Silvana Andrade dos Santos



Silvana Andrade dos Santos
Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense



“A mais bela fábrica do Brasil – e talvez da América do Sul”. Assim os missionários estadunidenses Daniel Kidder e James Fletcher descreveram a Todos os Santos, em meados da década de 1850. Edificada na vila de Valença, na Bahia, entre os anos de 1845 e 1847, ela foi o maior estabelecimento têxtil do Brasil até a década de 1870, e chegou a empregar 300 indivíduos, de ambos os sexos, livres e escravizados.

O crescimento econômico da região, entre as décadas de 1830 e 1840, em virtude dos desembarques do tráfico transatlântico ilegal de escravizados foi essencial para a escolha de Valença como local da edificação da Todos os Santos. Além disso, a vila tinha grande potencial para a geração de energia hidráulica e era parte das rotas de navegação marítimas e fluviais.

A fábrica foi fundada pela sociedade Lacerda e Cia, empresa privada, formada por três negociantes que atuavam na Bahia: o português, naturalizado brasileiro, Antonio Francisco de Lacerda; o estadunidense John Smith Gillmer; e o brasileiro Antonio Pedrozo de Albuquerque. Além da sua projeção econômica naquela província, eles tinham em comum a participação no contrabando negreiro para o Brasil, e devem ter visto na criação do empreendimento a possibilidade de reinvestir os capitais provenientes de sua atuação no crime e de abrir nova frente de obtenção de lucros.

A Bahia já contava com outras duas fábricas têxteis, ambas em Salvador: a Santo Antônio do Queimado, fundada em 1834, e a Nossa Senhora da Conceição, em 1835. Além de ser a primeira instalada no interior da província, a Todos os Santos teria dimensões muito maiores.

As obras de edificação da fábrica de Valença tiveram início em 1845, com um projeto, de responsabilidade do engenheiro estadunidense John Monteiro Carson, fortemente influenciado pelos padrões arquitetônicos e técnicos da indústria têxtil da Inglaterra e dos Estados Unidos. Todo o maquinário foi importado daqueles países e a fábrica foi instalada em um edifício de quatro andares, seguindo a tendência de verticalização então vigente. Também foram trazidos dos Estados Unidos operárias e operários têxteis para atuar como mestras e mestres dos trabalhadores arregimentados no Brasil.

A Todos os Santos foi inaugurada em novembro de 1847 e permaneceu em atividade até agosto de 1876. Inicialmente, a fábrica contava com 80 operários, de ambos os sexos. Em 1861, no entanto, o estabelecimento já possuía 250 trabalhadoras e trabalhadores ditos livres e 50 escravizadas e escravizados. A utilização conjunta de mão de obra livre e escravizada era uma prática relativamente comum na produção fabril no Brasil durante o século XIX, e também foi verificada, por exemplo, na Fábrica de Ferro Ipanema, na província da São Paulo.


Embora o número de indivíduos legalmente livres empregados na Todos os Santos tenha se mantido sempre superior ao de escravizados, a forma como a mão de obra era alistada, assim como a rotina imposta àqueles, se assemelhavam às práticas vigentes no sistema escravista.


A maioria das trabalhadoras e dos trabalhadores ditos livres era órfã, com idades a partir de 10 anos, muitos deles provenientes da Casa Pia e Colégio de Órfãos de São Joaquim. Os órfãos eram adotados por Antonio Francisco de Lacerda e deveriam trabalhar na fábrica como aprendizes por cinco anos. Neste ínterim, não recebiam qualquer pagamento, apenas vestimenta e assistência médica. Só posteriormente eram admitidos como assalariados, devendo permanecer no local até completarem 21 anos. 

Além da exploração de mão de obra não remunerada até o término do período de experiência, a rotina imposta era extremamente restritiva. O trabalho ia do nascer do sol até as sete e meia da noite (o que no verão significava mais de 14 horas diárias), com vinte minutos para almoço, meia hora para o jantar e meia hora para a ceia. As operárias e os operários também eram submetidos a um conjunto de atividades extras. Nos dias de trabalho, após as 22h, como parte dos arranjos firmados entre a fábrica e as instituições fornecedoras de mão de obra, eles recebiam aulas de leitura, escrita, música e dança. Contribuía ainda para o exercício de controle sobre os trabalhadores, a residência em alojamentos no entorno da fábrica e a promoção de casamentos internamente.

Enquanto esteve em funcionamento, o estabelecimento produziu diferentes tipos de tecidos (indicados principalmente para a confecção de sacaria, roupa para a população escravizada e velas para embarcações) e fios. Suas mercadorias eram comercializadas tanto na Bahia, quanto em outras províncias, como Ceará, Pernambuco, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.

Considerada um símbolo de modernidade para a elite provincial, a Todos os Santos recebeu a visita do Imperador D. Pedro II, em 1859. Além disso, foi premiada com medalha de ouro nas Exposições Nacionais de 1861 e 1866; e participou das Exposições Internacionais de Londres, Paris e Filadélfia. Em 1876, após um período de crise, foi fechada e, posteriormente, vendida. Esta transação deu início à constituição da Companhia Valença Industrial, empresa têxtil que ainda hoje opera na cidade.

Embora a Companhia Valença Industrial não funcione no mesmo edifício em que a Todos os Santos esteve instalada, ela postula o seu legado e se afirma como continuidade da Todos os Santos.  Em seus quase dois séculos de existência, a indústria têxtil em Valença moldou, em grande medida, a identidade dos moradores da zona urbana e é constantemente reivindicada como um importante lugar de memória das trabalhadoras e dos trabalhadores locais.

Gravura da fábrica Todos os Santos, século XIX.
OLIVEIRA, Edgar Otacílio da Silva. Valença: Dos primórdios a contemporaneidade. 2. ed. Valença/ Ba: FACE, 2009. p. 79.


Para saber mais:

  • FELÍCIO, Nilceanne Nogueira Lima. As fábricas têxteis do rio Una: história sobre trabalho e indústria em Valença-Bahia (1844-1887). Dissertação (Mestrado em História). FFCH-UFBA, Salvador, 2018.
  • KIDDER, Daniel Parish. FLETCHER, James Cooley. O Brasil e os brasileiros: Esboço histórico e descritivo. 7. ed. São Paulo; Rio de Janeiro; Recife; Porto Alegre: Companhia Editora Nacional, 1941. v. 2.
  • OLIVEIRA, Waldir Freitas. A Industrial Cidade de Valença: Um surto de industrialização na Bahia no Século XIX. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 1985.
  • PAIXÃO, Neli Ramos. Ao soar do apito da fábrica: idas e vindas de operárias(os) têxteis em Valença-Bahia (1950-1980). Dissertação (Mestrado em História). FFCH-UFBA, Salvador, 2006.
  • SANTOS, Silvana Andrade dos. Escravidão, tráfico e indústria na Bahia oitocentista: a sociedade Lacerda e Cia e a fábrica têxtil Todos os Santos. Tese (Doutorado em História). IH-UFF, Niterói, 2020.

Crédito da imagem de capa: Fábrica Todos os Santos, meados da década de 1850. Referência: KIDDER, Daniel Parish. FLETCHER, James Cooley. Brazil and the brazilians: portrayed in historical and descriptive sketches. 9. ed. Boston: Little, Brown, and Company, 1879. p. 499.



Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

Lugares de Memória dos Trabalhadores #60: Clube Palmares, Volta Redonda (RJ) – Leonardo Ângelo e Thompson Clímaco



Leonardo Ângelo
Doutor em História pela UFRRJ e Pesquisador do LEHMT-UFRJ

Thompson Clímaco
Graduando em História na UFRJ e Pesquisador do LEHMT-UFRJ



O Clube Palmares, fundado em 1965, em Volta Redonda, tem sido uma organização fundamental da classe trabalhadora negra na cidade sede da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN). Entre as décadas de 1940 e 70, os clubes associativos tornaram-se uma referência de lazer e status social na cidade e disseminaram-se com a fundação do Clube dos Funcionários, Aero clube, Umuarama, Náutico e Comercial, entre outros. O Palmares, no entanto, foi além de um local de diversão e se transformou em um espaço político, educacional e difusor da cultura afro-brasileira em Volta Redonda. Além de bailes e rodas de samba, o clube promovia debates sobre relações raciais, concursos de beleza negra e a prática da capoeira, chegando a estabelecer contatos e intercâmbios com outros clubes majoritariamente negros, como o Renascença, na cidade do Rio de Janeiro.  

A CSN alterou profundamente o perfil de Volta Redonda. Maior empreendimento industrial da era Vargas, a fábrica recrutou milhares de migrantes, em particular de Minas Gerais e do interior do estado do Rio. Volta Redonda saltou de 3 mil habitantes em 1941, início da construção da Siderúrgica Nacional, para mais de 50 mil habitantes na década de 1950. Entre 1941 e 1946, nos primeiros anos de funcionamento da empresa, aproximadamente 70% dos funcionários eram negros, ocupando, em geral, postos de trabalho considerados pouco qualificados. Embora não haja dados disponíveis para os períodos posteriores, todos os indícios apontam que os negros continuaram a ser amplamente majoritários no chão da fábrica.

Empresa modelo do nacional-desenvolvimentismo, a CSN adotou um discurso paternalista em suas relações de trabalho. A empresa estatal seria uma “família siderúrgica” e Volta Redonda o símbolo da modernidade industrial do Brasil. Proprietária de grande parte do território da cidade, foi prática da direção da CSN a doação de terrenos para a construção de clubes associativos. Foram os casos, por exemplo, das glebas destinadas para o Aero Clube, frequentado por técnicos especializados da indústria e para a construção do clube de engenheiros Umuarama. Espaços de lazer voltados para as hierarquias superiores da empresa, esses clubes não incluíam os trabalhadores braçais, a grande maioria deles, negros. Muitas vezes, negros e negras chegaram a ser formalmente proibidos de adentrar aos clubes, através de diversos mecanismos de exclusão.

A restrição de acesso aos clubes, no entanto, não impedia o lazer da população negra de Volta Redonda que se reunia e se divertia em suas residências e a partir da segunda metade da década de 1940, em um galpão de madeira não utilizado pela CSN. Tempos depois, o galpão foi cedido para os funcionários do escritório da Siderúrgica formarem um clube recreativo. Após a fundação do Clube Náutico em 1948,  um gradativo processo de exclusão de negros e negras também ocorreu. Argumentos torpes, como participar de uma Escola de Samba ou tocar tamborim eram utilizados para excluir os/as afrodescendentes.  Dizer que o Náutico não era um “clube de gafieira” era outra afirmação racista comum.

A segregação ocorrida no Náutico foi o estopim para a constituição do Palmares. Sob a liderança da professora Maria da Glória, do operário da CSN, João Laureano, e do estudante-operário, Nazário Santos Dias, o clube foi pensado como um espaço de lazer, mas também de liberdade para a sociabilidade da população negra da “cidade do aço”. O número de associados cresceu rapidamente. Em menos de três meses já eram cem associados(as) e, dois anos depois, quase mil.

A escolha do nome do clube, realizada de forma unânime entre os fundadores foi um ato político de impacto. No entanto, ao longo dos anos, disputas e contradições dividiram as lideranças do clube. Uma ala acreditava que deveria ser seguido o modelo dos demais clubes associativos da cidade, com foco nas atividades recreativas e festivas. Já outra tendência defendia a construção de uma instituição cultural e política articulada com o movimento negro e engajada na luta contra o racismo. Este segundo grupo assumiu a direção na década de 1980, quando o clube ampliou sua ação política e se aproximou da juventude negra da cidade, realizando diversos projetos educacionais e culturais.


A localização do clube também expressava de maneira prática e simbólica as contradições vividas pelos trabalhadores negros de Volta Redonda.


Localizada no Jardim Europa, entre as ruas Roma e Paris, a sede do clube era motivo de controvérsia para muitos moradores do bairro, que alegavam que o Palmares não teria a propriedade regular do terreno. Em 1985, o muro do clube chegou a ser demolido pela prefeitura, a pedido de um grupo de moradores. Os dirigentes do Palmares, no entanto, conseguiram comprovar judicialmente a aquisição legal de sua sede e a prefeitura de Volta Redonda foi obrigada a reconstruir o muro no ano seguinte.  

Nos últimos anos, o Palmares tem passado por um processo de reestruturação e de valorização de sua importância política e social para a comunidade afrodescendente e para a sociedade de Volta Redonda. Em 2016 a instituição recebeu o prêmio de Cultura Afro Fluminense do governo do Estado do Rio de Janeiro. O Clube Palmares é um lugar de memória fundamental na construção da negritude entre os trabalhadores do Sul Fluminense. Como espaço de lazer, de debates sobre a cultura afro-brasileira e de articulação política de negros e negras, o clube tem sido um local decisivo na luta contra o racismo na cidade. Não lhe caberia um nome melhor.

Muro do Clube Palmares reconstruído.
Crédito: Acervo do Clube Palmares.


Para saber mais:

  • DINIUS, Oliver. “Work in Brazil’s Steel City: A History of Industrial Relations in Volta Redonda, 1941–1968.”. 2004. PhD dissertetion in History, Harvard University.
  • MOREL, Regina Lúcia de Moraes.  Ferro e Fogo — Construção e Crise da Família Siderúrgica: O Caso de Volta Redonda (1941-1968). Tese de Doutoramento. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1989.
  • MUNANGA, Kabenguele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. — 3.ed.  — Belo Horizonte: Autêntica, 2008.   
  • SILVA, Leonardo Ângelo. Volta Redonda em Preto e Branco: Trabalho, desenvolvimentismo e Relações Raciais. 2019. Tese (Doutorado em História Social) — Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.   
  • Site do Clube do Palmares: https://www.clubepalmares.org.br/

Crédito da imagem de capa: Noite de samba no Clube Palmares em 1967. Crédito: Acervo do Clube Palmares.



Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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Lugares de Memória dos Trabalhadores #59: Sede do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, São Bernardo do Campo (SP) – Cinthia Fanin



Cinthia Fanin
Jornalista do Centro de Memória do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC



A categoria metalúrgica na região do ABC paulista tem uma longa história que remonta ao final do século XIX. Seria, no entanto, a instalação da indústria automobilística em São Bernardo do Campo no final dos anos 1950, que definitivamente marcaria a região como o principal polo industrial do país. São Bernardo, município emancipado de Santo André em 1957, ficaria conhecido como a “Capital do Automóvel”, reunindo algumas das maiores unidades fabris do país e uma crescente população operária.

Em 1959, era fundado o Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema. No início dos anos 60, o Sindicato se fortalecia e mobilizava os trabalhadores na luta por direitos e pelas reformas de base que empolgavam  os setores populares no país. Com o golpe de 1964, o Sindicato sofreu intervenção governamental. Em 1965, uma eleição sindical foi autorizada e Afonso Monteiro da Cruz foi eleito presidente. Cruz foi sucedido por Paulo Vidal em 1969, que permaneceria como presidente até 1975, quando Lula assumiria o cargo.

No final dos anos 1960 e início dos 1970, o setor metalúrgico do ABC ganhou novo impulso. O “milagre econômico” brasileiro ancorava-se no apoio governamental às indústrias multinacionais, que tiravam vantagem do clima de repressão e do arrocho salarial proporcionado pela ditadura. Num contexto de privação das liberdades e superexploração do trabalho, mas também de crescimento do emprego, sindicatos como o dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo, viam o número de trabalhadores em suas bases multiplicarem-se. Uma Sede própria, que atendesse às demandas da categoria e fosse uma demonstração da força dos metalúrgicos, era agora uma necessidade e uma real possibilidade.

A Sede era sonho antigo. Já em 1962, a direção sindical havia aprovado a compra de um terreno na rua João Basso, número 121 (hoje 231). O local era estratégico, próximo à Via Anchieta, onde se concentravam as principais indústrias metalúrgicas. A obra durou 33 meses entre 1971 e 1973. Finalmente, em 6 de outubro de 1973, era inaugurada a Casa de Tiradentes, como a Sede foi batizada. Mais de dez mil pessoas estiveram presentes, com o hasteamento de bandeiras, visitação às dependências do prédio, sessão solene e comemoração no Clube dos Funcionários na Brastemp. O presidente do Sindicato, Paulo Vidal, recepcionou diversas figuras políticas, como o governador do Estado, Laudo Natel, dentre outras autoridades e dirigentes sindicais. 

Logo, a Sede abrigaria reuniões e congressos que começariam a desenhar as linhas gerais do que viria a ser conhecido como o “novo sindicalismo”. O pioneiro I Congresso da Mulher Metalúrgica, em janeiro de 1978, foi um destes eventos e teria papel decisivo na denúncia das desigualdades salariais e dos assédios sofridos nas empresas.


A Sede também foi um importante espaço de sociabilidade da categoria. As festas de carnaval dos metalúrgicos, por exemplo, eram as mais famosas da região. O Sindicato tornou-se ponto de encontro de amigos e uma extensão da fábrica. Era comum, após o expediente, os trabalhadores reunirem-se na Sede para debater política, falar de futebol ou da vida em geral, entre goles de bebida no bar do sindicato ou nas imediações.


Foi, igualmente, espaço de atividades culturais e esportivas. Shows e exibição de filmes ocorriam com frequência. O Grupo de Teatro Forja, fundado por Tin Urbinatti em 1978, marcou época. Composto por metalúrgicos e metalúrgicas, o grupo ensaiava no terceiro andar da Sede, e suas peças relatavam de forma única o cotidiano, as agruras e as lutas dos trabalhadores.

O prédio da rua João Basso foi um dos epicentros das grandes greves dos metalúrgicos do ABC no final dos anos 1970 e início dos 1980. O chamado “novo sindicalismo” foi forjado dentre aquelas paredes, assim como o Partido dos Trabalhadores. Durante as greves, o salão social da Sede ficava pequeno a cada ato e as assembleias passaram a ser realizadas em frente à Igreja Matriz, no Paço Municipal e no Estádio da Vila Euclides.

Neste prédio, o Sindicato sofreu intervenção governamental em 1979, 1980 e 1983 e a Sede foi cercada por forças policiais. Os retornos das diretorias legitimamente eleitas, após as intervenções, foram sempre emocionantes e tiveram grande impacto político e simbólico. 

Nas últimas décadas, a Sede dos metalúrgicos manteve-se como o “quartel-general” da categoria e espaço de grande projeção nacional e internacional. Tem sido ponto de encontro dos trabalhadores para assembleias, local de formação sindical, vigílias em defesa de direitos e atividades culturais, entre outras. 

Dois grandes eventos políticos também marcaram recentemente a Sede dos Metalúrgicos do ABC. Foi para lá que Lula se dirigiu quando sua prisão foi decretada em abril de 2018. Uma multidão ocupou as dependências da Sede em defesa do ex-presidente e protestou contra a injustiça. A emocionante missa em homenagem à esposa de Lula, Marisa Letícia (que falecera exatamente um ano antes) transformou-se num ato público em frente ao Sindicato, reunindo algumas das mais importantes lideranças políticas do país, com enorme repercussão em todo o mundo.

Quinhentos e oitenta dias depois, foi para a Sede, seu berço político, que um Lula livre se encaminhou ao deixar a prisão em Curitiba. Novamente uma multidão, agora em festa, celebrava a liberdade do ex-presidente. Mais uma vez, a Sede dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo, estava no centro da vida política e social da nação. Como em outros momentos, não apenas como um lugar de memória, mas também como um lugar de esperança dos trabalhadores. 

Imagem 1: Fachada da Sede do Sindicato no dia de sua inauguração em 6 de outubro de 1973 (Crédito: Acervo SMABC).
Imagem 2: Sede do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC em São Bernardo do Campo, 2020. O prédio passou por ampla reforma em 2012. (Foto: Adonis Guerra).


Para saber mais:

  • NEGRO, Antonio Luigi.  Linhas de montagem: o industrialismo nacional-desenvolvimentista e a sindicalização dos trabalhadores. São Paulo: Boitempo, 2004.
  • OLIVA, Aloízio Mercadante (org.). Imagens da luta: 1905-1985. São Bernardo do Campo: Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Metalúrgicas, Mecânicas e de Material Elétrico, 1987.
  • PARANHOS, Kátia Rodrigues. Era uma vez em São Bernardo: o discurso sindical dos metalúrgicos (1971/1982). Editora da Unicamp/Centro de Memória-Unicamp, 1999.
  • RAINHO, Luís Flavio & BARGAS, Osvaldo Martines. As lutas operárias e sindicais dos metalúrgicos em São Bernardo do Campo – 1977/1979. Volume 1. São Bernardo do Campo: Associação Beneficente e Cultural dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema, 1983.
  • Filme – documentário: ABC da Greve. Direção de Leon Hirszman. 1979. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=2hhFk0cml6Y

Crédito da imagem de capa: Lula é carregado pela multidão em frente à Sede do Sindicato após saída da prisão em novembro de 2019 (Foto: Adonis Guerra).


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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Lugares de Memória dos Trabalhadores #58: Rio Capibaribe, Recife (PE) – Felipe Azevedo e Souza



Felipe Azevedo e Souza
Pesquisador CAPES/PNPD no PPGH da Universidade Federal da Bahia



Por muito tempo os caminhos do Recife foram essencialmente os cursos dos rios que lhe cortam, principalmente o Capibaribe. Tudo se transportava em canoas: açúcar, tijolos, água potável e as pessoas que ali viviam. Até metade do século XIX, esse era um mercado de trabalho dominado pelos escravos canoeiros, posteriormente integrado também por libertos e livres, geralmente negros. Documentos registram a queixa de senhores que acusavam esses trabalhadores de colaborar para a fuga de escravizados. Mas, foi só entre 1884 e 1888, que esse expediente se tornou sistêmico. Nesse período, cerca de três mil homens e mulheres escaparam do cativeiro com a ajuda dos trabalhadores fluviais.

Em 25 de março de 1884 foi abolida a escravidão no Ceará. Cerca de 600 quilômetros ao sul, em Pernambuco, esse marco representou oportunidade para os abolicionistas. Eles fundaram no Recife o Clube do Cupim. Miravam-se no exemplo dos abolicionistas norte-americanos que criaram uma complexa rota de fugas clandestinas para franquear a passagem dos escravizados para terras onde não existia mais a escravidão legal. O Rio Capibaribe transformado em underground railroad, levava canoas e jangadas ao mar. Pelas águas salgadas tinham por destino frequente Fortaleza, Aracati e Mossoró, perto da fronteira com o Ceará.

O Clube do Cupim era uma associação secreta, ilegal, subterrânea. Não possuía estatutos, tinha um mote apenas: “a libertação do escravo por todos os meios”. Os cupins eram volantes, tinham pseudônimos, uma linguagem codificada própria, possuíam perfil social diverso e estavam infiltrados em várias repartições públicas. A silenciosa rede de espionagem e comunicação do Clube estava sempre dois passos à frente dos agentes de repressão. O telegrafista Júlio Falcão, por exemplo, era um cupim na linha do telégrafo, repassando informações trocadas entre os agentes das forças públicas. Como ele, outros estavam infiltrados nos quartéis antecipando os planos de batidas policiais. Nas muitas ações do grupo, poucos foram os casos de interceptação da polícia. Quando a força pública conseguia capturar os fugidos, membros do Cupim bem relacionados impetravam habeas corpus e geralmente conseguiam libertar os presos.

O Clube chegou a ter uma rede que envolvia cerca de trezentas pessoas entre membros e colaboradores eventuais. Sua diretoria era formada predominantemente por homens brancos e com influência social. Abrigavam os escravizados em suas propriedades, bancavam operações, mobilizavam conexões e eventualmente eles próprios se envolviam nos embarques dos fugidos. Cada membro desse círculo filiava seus auxiliares, chamados de capitães.


Esses homens, geralmente negros e alguns deles libertos, eram canoeiros, cocheiros, catraieiros, trabalhadores pobres da cidade. Eles eram propriamente os executores dos planos de fuga, os agentes de conexão entre o Clube e os trabalhadores escravizados.


As primeiras operações não envolveram mais que meia dúzia de escravizados. Mas, tempos depois, passaram a esvaziar senzalas inteiras. O capitão Lino Falcão visitava engenhos na Zona da Mata sob o disfarce de vendedor de fumo, pernoitava nas propriedades e, quando a casa-grande dormia, coordenava fugas coletivas. A polícia montava postos secretos de observação em vários pontos do Capibaribe, mas era inútil. Às centenas, homens, mulheres e crianças deixavam para trás o cativeiro. Camuflados embaixo de cobertas de capim, nas jangadas e canoas, pela rota fluvial placidamente passavam na frente da chefatura de polícia. Assim sucedeu, em 23 de abril de 1888 com o último embarque, quando 119 pessoas seguiram pelo rio, do Poço da Panela até os arrecifes, de onde tomaram um iate fretado pelo Clube.

Os membros do Cupim eram chamados de aliciadores ou ladrões de escravos, mas os trabalhadores escravizados estavam longe de ser passivamente seduzidos. Eles eram agentes de sua própria ventura. O embarque nas jangadas era início de jornada e ao mesmo tempo desfecho. Antes de chegar ao Capibaribe, o deslocamento a passos mudos nas ruas da cidade. Antes ainda, dias acoitados nas chamadas “panelas”. Antes disso, o planejamento, a negociação sussurrada entre os cativos e os cupins, a conspiração noturna das senzalas. Existem registros de que os escravizados custeavam parcialmente as despesas das fugas e há todo um anedotário sobre os diferentes expedientes utilizados pelos escravizados para desaparecer. Alguns sumiram na agitação dos dias de carnaval, uma outra embebedou seu senhor. Os disfarces também eram comuns – Miquelina, mucama de um casarão na Madalena, saiu de sinhá, com vestido à francesa, chapéu, sapatos lustrados e pó de arroz, caminhando à luz do dia pelas ruas de Recife até o porto.

A jangada tornou-se símbolo de resistência e liberdade. O Jornal do Recife de 13 de maio de 1890 publicava que nas celebrações daquele dia, “marcharão os cidadãos emancipados pela áurea lei, guarnecendo a legendária jangada do Clube do Cupim”. Na mesma data nos anos seguintes, a miniatura da jangada em madeira continuou a ser desfilada pelas ruas da cidade.

Atualmente, pertinho do curso do rio, existem duas estátuas de bronze, uma no bairro de Santo Antônio e outra no Poço da Panela, celebram famosos abolicionistas nascidos em casas-grandes. Mas, nas margens do Capibaribe, também resistem inabaláveis baobás centenários, são monumentos da diáspora africana. Árvores sagradas que representam a morada da ancestralidade e simbolizam o Rio Capibaribe como um lugar de memória dos trabalhadores e trabalhadoras escravizados e suas lutas por liberdade.

Os capitães do Cupim posam com a miniatura da jangada que era usada nas celebrações da Abolição.
Jornal Pequeno, 12 de maio de 1914 (a foto foi tirada anos antes).


Para saber mais:

  • BRAGA, Flavia. “Roendo a madeira da escravidão: O Club do Cupim como espaço de luta política (Pernambuco, 1884-1888)”. Anais da Caravana 25 anos da ANPUH Pernambuco: dálogos entre a pesquisa e o ensino. Recife: Editora UFPE, 2016.
  • CASTILHO, Celso Thomas. Slave Emancipation and Transformations in Brazilian Political Citizenship. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 2016.
  • VILELA, Carneiro. “O Club do Cupim”. In: SILVA, Leonardo Dantas (Org.). A abolição em Pernambuco. Recife: Fundaj, Ed. Massangana, 1988.
  • SANTOS, Maria Emília Vasconcelos dos. “Antes do 13 de maio: O 25 de março no Ceará e o Movimento Abolicionista em Pernambuco”. Revista Afro-Ásia n. 53, 2016.

Crédito da imagem de capa: Rio Capibaribe na década de 1860.Crédito: Villela, João Ferreira, circa 1865. Acervo Instituto Moreira Sales.


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

Lugares de Memória dos Trabalhadores #57: Fábrica Sylvania, São Paulo (SP) – Anaclara Volpi Antonini



Anaclara Volpi Antonini
Mestre em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo



O pedestre que caminha hoje pela pequena rua Quararibeia, na zona sul de São Paulo, pode se surpreender ao notar a tinta vermelha que marca o asfalto com os dizeres “Aqui foi assassinado o operário Santo Dias da Silva no dia 30-10-1979 pela polícia militar”. Apesar do desgaste provocado pelos carros que passam diariamente, a mensagem carregada com a tinta provoca reflexão. Quem foi esse operário? Por que foi assassinado? Em que contexto?

O terreno onde hoje há um conjunto de edifícios residenciais era ocupado por uma fábrica de tubos para televisores e lâmpadas de capital estadunidense chamada Sylvania. A fábrica, parte do eixo industrial que se desenvolveu na região sul da cidade, foi inaugurada em 1961 e funcionou na mesma localidade até 2007. Nesse período, a zona sul de São Paulo concentrou grandes contingentes de trabalhadores e se tornou um importante polo da mobilização operária.

Em 1964, com o golpe militar, a diretoria do sindicato dos metalúrgicos de São Paulo, assim como de outros sindicatos por todo o Brasil, sofreu intervenção do Ministério do Trabalho. Com a perseguição e banimento de militantes e sindicalistas comunistas e trabalhistas, o grupo político ligado aos interventores controlou o sindicato por todo o período ditatorial. Nesse contexto, a organização dos trabalhadores para resistir às perdas de direitos, à compressão dos salários e às condições precárias de trabalho se desenvolveu principalmente por meio das oposições sindicais.

Santo Dias da Silva foi um dos líderes da Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo (OSMSP), a mais famosa oposição sindical do país. Ainda adolescente, envolveu-se nas lutas por melhores condições de trabalho e salários para os trabalhadores rurais em Terra Roxa, município paulista onde nasceu. Sua família acabou expulsa da colônia em que morava. Migrante na cidade de São Paulo, Santo Dias empregou-se na Metal Leve, fábrica de equipamentos automobilísticos. Católico, foi bastante influenciado pela Teologia da Libertação e tornou-se um líder muito importante nas comunidades eclesiais de base da Igreja Católica e nos movimentos populares atuantes nos bairros periféricos da zona sul de São Paulo.

Em 1978, paralelamente à onda grevista nas indústrias automobilísticas da região do ABC paulista, uma grande mobilização se espalhou pelo parque industrial da capital paulista graças ao forte trabalho de base realizado pelos militantes da OSMSP nas comissões de fábrica que emergiram nesse período. Na campanha salarial do ano seguinte, a força dessa mobilização levou o Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo a decretar greve. Logo no início da paralisação, em outubro de 1979, houve forte repressão policial e dezenas de prisões. Nas ruas dos bairros industriais da zona sul, viaturas policiais mantinham a vigilância e a perseguição aos grevistas. No dia 30 de outubro, às 14h, Santo Dias e mais alguns operários estavam em frente à fábrica Sylvania no horário da troca de turno dos trabalhadores para convencê-los a parar e participar da assembleia que ocorreria mais tarde. Subitamente, viaturas chegaram causando tumulto e o líder metalúrgico foi assassinado por um policial militar com um tiro a queima roupa.

O assassinato de Santo Dias provocou uma grande revolta popular e um cortejo fúnebre com milhares de pessoas acompanhou o corpo do operário da Igreja da Consolação à Catedral da Sé, onde uma comovente missa foi celebrada pelo Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns.


Naquele dia, o espaço público da cidade foi reocupado pelos trabalhadores em sua denúncia contra a violência policial e a defesa do direito de greve. Desde então, Santo Dias tornou-se um poderoso símbolo da luta operária e da oposição à ditadura.


A mobilização por justiça em relação ao crime de Estado representado pelo assassinato de Santo Dias, a defesa de sua luta e de sua memória impulsionaram a formação do Comitê Santo Dias. Ao longo dos anos, diferentes ações foram realizadas pelo Comitê, como atividades políticas e culturais, publicações, nomeações de ruas, praças, escolas, entre outras. Uma dessas atividades se mantém todos os anos desde 1980. No dia e horário de seu assassinato, familiares, amigos e companheiros se encontram para um ato em frente à antiga fábrica da Sylvania, que depois segue em passeata até o Cemitério do Campo Grande onde o operário está enterrado. A denúncia do assassinato é feita em tinta vermelha no asfalto. Nos alto falantes, se rememora a luta de Santo Dias e se denunciam as violações que os trabalhadores continuam enfrentando nos dias atuais.

É possível dizer que a fábrica Sylvania e a rua onde ela se situava são lugares transformados pela memória e pela ação dos trabalhadores e trabalhadoras de São Paulo. A carga simbólica motiva o ato e coloca o lugar do assassinato como um marco importante para os sujeitos dessa ação que se repete todos os anos, contrariando o apagamento simbólico e físico das violações e dos lugares relacionados à ditadura militar. Por isso, podemos nos referir a ele como um lugar de memória. Ao mesmo tempo, a sinalização e o ato periódico abrem uma nova camada de sentido nesse lugar, que pode ser apropriada por pessoas e grupos que não viveram diretamente aquelas violações, mas que podem dar novos sentidos a elas.

Foto1: Primeira sinalização do lugar onde o operário Santo Dias da Silva foi assassinado, em 1980. Crédito: Autor desconhecido. Acervo: Luigi Giuliani (acervo pessoal).
Foto 2: Ato em frente ao local onde se localizava a fábrica Sylvania pelo 40º aniversário de morte de Santo Dias, em 30 de outubro de 2019. Crédito: José Ignacio Aliaga García.



Para saber mais:

  • ANTONINI, Anaclara Volpi. Lugares de memória da ditadura militar em São Paulo e as homenagens ao operário Santo Dias da Silva. 2016. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016.
  • DIAS, Luciana; AZEVEDO, Jô; BENEDICTO, Nair. Santo Dias: quando o passado se transforma em história. 2. ed. Fundação Perseu Abramo e Expressão Popular: São Paulo, 2019.
  • NETO, Sebastião. Investigação Operária: Empresários, Militares e Pelegos Contra os Trabalhadores. IIEP: São Paulo, 2015.
  • PROGRAMA Lugares da Memória. Fábrica Sylvania. Memorial da Resistência de São Paulo, São Paulo, 2015.
  • Documentário: Braços cruzados, máquinas paradas. Dir.: Roberto Gervitz, Sérgio Toledo. São Paulo: Cooperativa Cinematográfica Brasileira, 1979. 76 min.

Crédito da imagem de capa: Trabalhadores mobilizados durante a missa de sétimo dia de Santo Dias em frente à Catedral da Sé, em novembro de 1979. Crédito: Nair Benedicto. Acervo: Fundo Santo Dias – CEDEM/UNESP.


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Lugares de Memória dos Trabalhadores #56: Memorial das Ligas e Lutas Camponesas, Sapé (PB) – Tiago Bernardon de Oliveira



Tiago Bernardon de Oliveira
Professor do Departamento de História da Universidade Federal da Paraíba



Na altura do km 70 da BR-230, no início da rodovia Transamazônica, uma das pretendidas obras-símbolo da ditadura militar, chega-se ao acesso à PB-073. As proximidades deste entroncamento, no município de Sobrado, são conhecidas por Café do Vento. Ali o líder camponês João Pedro Teixeira foi assassinado em 2 de abril de 1962.

Ele voltava de João Pessoa com livros e material escolar para alguns de seus 11 filhos. Após desembarcar do ônibus, foi alvejado por 2 policiais e 1 vaqueiro. Apesar da instauração do inquérito pelo próprio governador, das pressões populares e da repercussão na imprensa, os atiradores foram condenados e, em 1965, absolvidos; já os mandantes, integrantes do Grupo da Várzea – latifundiários da região da várzea do Rio Paraíba –, passaram ilesos. O principal acusado, Aguinaldo Veloso Borges, recebeu imunidade parlamentar após o titular e outros 5 suplentes estarem licenciados ou renunciarem a seus cargos para que tomasse assento pela UDN como deputado estadual.

João Pedro Teixeira, camponês de 44 anos, negro, batista, sabia que era homem visado. Depois de conhecer a vida sindical quando trabalhava em uma pedreira em Pernambuco, voltou à Paraíba. A exemplo da experiência do Engenho Galileia, ajudou a erguer em 1958 a Associação dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas de Sapé, a Liga Camponesa de Sapé, que viria a se constituir a maior do Brasil. Diferentes estimativas apontam entre 7.000 e 13.000 seu número de filiados.

Na década de 1950, com o aumento do preço do açúcar, trabalhadores começaram a perder, sem indenização, seus roçados e outras benfeitorias erigidas até então sob tradicionais acordos com os proprietários nas beiras dos canaviais. Macaxeira, inhame, feijão, batata-doce davam lugar à cana a ser moída pelas insaciáveis usinas. Em sintonia com seus companheiros de Pernambuco, os paraibanos organizaram-se contra o cambão (dia de trabalho não remunerado nas terras do proprietário) e o aumento do foro (aluguel pelo uso da terra) e em defesa de direitos sociais e da Reforma Agrária. As mobilizações ultrapassaram as cercas dos municípios e chamaram a atenção de políticos e intelectuais do Brasil e do exterior.

Ao contrário do que esperavam os autores da emboscada, o assassinato de João Pedro não calou o campo. A Liga de Sapé cresceu, agora com a liderança da viúva Elizabeth. As lutas pela Reforma Agrária ocuparam debates nacionais e a questão integrou a proposta das Reformas de Base do governo João Goulart. Ameaças e episódios sangrentos persistiam, como em janeiro de 1964, quando 11 pessoas, entre capangas e camponeses, morreram em um conflito no município vizinho de Mari.

Sapé tornou-se um forte símbolo da luta pela Reforma Agrária. No início de 1964, o jovem cineasta carioca Eduardo Coutinho deslocou-se para o Engenho Galiléia, em Pernambuco, a fim de gravar um filme sobre as organizações e reivindicações camponesas, com Elizabeth Teixeira e sua família como atores e personagens do drama.


O golpe interrompeu as filmagens. Retomado 17 anos depois, Cabra Marcado para Morrer tornou-se documentário, o principal da história do cinema brasileiro, ao tratar da vida de Elizabeth e as disputas de memória em torno da Liga de Sapé.


O golpe de 1964, arquitetado em grande medida para destruir as lutas por direitos e pela Reforma Agrária no país, reprimiu fortemente as Ligas Camponesas. Enquanto Elizabeth foi jogada à clandestinidade longe de seus filhos, centenas de militantes foram perseguidos e silenciados. Pedro Inácio de Araújo, o Pedro Fazendeiro, e João Alfredo Dias, o Nêgo Fuba, também fundadores da Liga de Sapé, foram desaparecidos após serem torturados pelo Exército.

A ditadura procurou apagar qualquer vestígio de memória da resistência camponesa. No entanto, as causas da luta pela terra não foram eliminadas. A modernização conservadora do campo intensificou ainda mais a concentração fundiária, a pobreza e o êxodo rural. No início dos anos 1980, os trabalhadores rurais da Paraíba, com o apoio de setores progressistas da Igreja Católica, voltaram a se mobilizar pela conquista de direitos e da Reforma Agrária em meio a esforços e expectativas pela construção de um país democrático. As memórias das experiências do passado foram retomadas. Mas o sangue provocado pela violência do latifúndio continuava a verter: em agosto de 1983, Margarida Maria Alves, do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alagoa Grande (a 70 km de Sapé), foi assassinada na porta de sua casa. Este crime não abalou a organização em sindicatos e em novos movimentos sociais do campo, como a Comissão Pastoral da Terra e o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra.

Em 2006, militantes da região formaram a ONG Memorial das Ligas Camponesas. Fruto das mobilizações populares das décadas anteriores, o governo do estado da Paraíba, eleito em 2010, atendeu a demanda de desapropriar a área ao redor da casa onde João Pedro e Elizabeth viveram, nas imediações do povoado de Barra das Antas, zona rural de Sapé.

A partir de 2012, a casa tornou-se o Memorial das Ligas e Lutas Camponesas. Suas paredes abrigam painéis expostos com fotos e recortes de jornais da época, em esforço ainda incipiente, porém fundamental. O Memorial também procura criar vínculos entre a história das lutas sociais na região com as do presente. Assim, a antiga casa tornou-se um lugar de memória das lutas da classe trabalhadora, que insiste em não esquecer de seu passado para não esmorecer na luta do presente por um mundo diferente no futuro.

Aspecto da casa de João Pedro Teixeira, Elizabeth e seus filho, onde hoje abriga o Memorial das Ligas e Lutas Camponesas em Barra das Antas, zona rural de Sapé.
Créditos: Weverton Elias Santos Rodrigues.


Para saber mais:

  • ALVES, Janicleide Martins de Morais. Memorial das Ligas Camponesas: preservação da memória e promoção dos direitos humanos. João Pessoa: Dissertação de Mestrado em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas – Universidade Federal da Paraíba, 2014.
  • BANDEIRA, Lourdes Maria; MIELE, Neide; SILVEIRA, Rosa Maria Godoy. Eu marcharei na tua luta! – A vida de Elizabeth Teixeira. 2.ed. Campina Grande: EDUEPB, 2012.
  • RANGEL, Maria do Socorro. Medo da morte e esperança de vida: uma história das Ligas Camponesas. Campinas: Dissertação de Mestrado em História – Universidade Estadual de Campinas, 2000.
  • Website do Memorial das Ligas e Lutas Camponesas: https://www.ligascamponesas.org.br/
  • Documentário: Cabra marcado para morrer. Dir. Eduardo Coutinho. Brasil, 1984.

Crédito da imagem de capa: Comício da Liga Camponesa de Sapé pela reforma agrária. Reprodução de Correio da Manhã, 27 de maio de 1962.


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