Olá, Professora Iraneide Soares, é uma alegria lhe receber no Chão de Escola. Você é professora–pesquisadora e ativista do movimento negro desde o final da década de 1980, tendo iniciado sua atuação docente em projetos voluntários de alfabetização. Poderia nos contar sobre essas experiências em sua trajetória e como se deu essa relação entre docência, ativismo e ensino de História?
Sim, minha trajetória laboral se pauta na educação popular, com experiências muito singulares com alfabetização para jovens e adultos agricultores que trabalhavam com hortaliças. Isso porque eu sempre gostei de trabalhar com educação daquelas pessoas menos favorecidas pelo sistema, desde a creche e educação infantil, perpassando pela educação especial, até a alfabetização de jovens e adultos. Essas predileções e/ou escolhas se deram, primeiramente, pelos desafios que se apresentavam, depois por ver nesses espaços possibilidades não somente de ensinar, mas sobretudo de aprender, crescer com aquelas pessoas. Então meu ativismo se concretiza desde sempre, pois não concebo a história e o ensino de história dissociado das experiências dos sujeitos, do concreto, do vivido. Em 2003, após a publicação da Lei 10.639, você foi convidada pelo Ministério da Educação para atuar na implementação dessas políticas educacionais de ações afirmativas, tendo organizado fóruns permanentes em diversos estados brasileiros. Quais foram os principais desafios encontrados para implementar essa nova legislação lá no seu início?
Em 2003, após a publicação da Lei 10.639, você foi convidada pelo Ministério da Educação para atuar na implementação dessas políticas educacionais de ações afirmativas, tendo organizado fóruns permanentes em diversos estados brasileiros. Quais foram os principais desafios encontrados para implementar essa nova legislação lá no seu início?
O que conhecemos como Lei 10.639/03 hoje, uma lei que já nasce com o poder de alterar a Lei de Diretrizes e Bases na Educação Nacional em dois Artigos (26A e 79B), é fruto de muitas lutas e embates do Movimento Negro e eu cresci intelectualmente no seio dessas lutas. Quando, em 1999, ocorreu o I Fórum Social Mundial na Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre, eu lembro de ter participado de importantes reuniões, com grupos do movimento negro da área de educação, como o NEN, Núcleo de Estudos Negros, de Santa Catarina, dentre outros. Naqueles espaços, eu, uma jovem na casa dos 20 anos, compreendia e defendia aquela bandeira, dada a lacuna historiográfica que já percebia na minha vida acadêmica ainda em construção para a formação de historiadora. Passados alguns anos, após participar de todos os processos preparatórios da III Conferência Mundial contra o Racismo, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, em Durban, na África do Sul, que aconteceu em 2001, eu, jovem pesquisadora e ativista, percebia com mais profundidade que a educação abre portas, mas que o fortalecimento da identidade e autoimagem negra perpassa por um reconhecimento histórico e social positivo, o que ainda se apresentava como problema na história do Brasil, quando a história e cultura dos povos negros e indígenas não eram evidenciadas de modo valorizado. Então, quando em 2003 eu sou convidada pelo Ministério da Educação para atuar na pasta da Secretaria de Educação e Alfabetização (SEA), que logo viria a ser Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD), eu já tinha um certo amadurecimento político sobre os temas de que tratava a Lei 10.639, recém-promulgada, e conhecia os agentes de diálogo sobre o tema nacionalmente, o que me permitiu compreender os desafios e buscar caminhos conjuntos. Naqueles anos, os principais desafios perpassavam pelo “como fazer?”, alinhado a incipiência de material didático e pedagógico para dar suporte, bem como a formação inicial e continuada de professores.
Na sua tese de doutorado, intitulada “É preta, é preto em todo canto da cidade: história e imprensa na São Luís/MA (1820-1850)”,e nos vários livros sobre ensino de história que organizou, a escravidão, o pós-abolição e os mundos do trabalho são analisados de forma articulada. Como você percebe o avanço dessas discussões no debate público e na Educação Básica?
Na esfera pública, apresenta-se as narrativas de uma história oficial a partir de uma academia calcada no eurocentrismo, quando a historiografia dos anos de 1980/1990, que desponta como progressista, está em cheque, pois outros sujeitos entram em cena, quer seja por um certo amadurecimento político impulsionado pelas ações dos movimentos sociais, ou mesmo por força de lei, a exemplo das leis 10.639, ou mesmo a lei de cotas, juntamente a um conjunto de politicas afirmativas, o que, de certo modo, provoca os sistemas de ensino e, por conseguinte, o chão da escola. Nesse sentido, verifica-se uma certa mudança que reverbera na educação básica.
Neste ano de 2023, celebramos duas décadas de vigência da Lei 10.639/03. Como você avalia a importância dessa legislação na renovação do ensino em História e das práticas pedagógicas no chão da escola de Educação Básica?
Penso que a lei já está velha, cumpra-se! Também, que não se trata de renovação, mas de uma revisão historiográfica necessária. O Brasil precisa acordar e perceber que é necessário se desvencilhar das amarras do colonizador. Precisamos contar nossa história e, dessa vez, com a participação de todos os sujeitos dessa história. Percebe-se que conseguimos avanços e mudanças nos currículos da educação básica e no ensino superior. Ainda que incipientes, temos avanços.
Você preside a Associação Brasileira de Pesquisadorxs Negrxs (ABPN) e atua diretamente na articulação entre pesquisa e ensino. Em sua visão, quais os principais desafios em relação à Lei 10.639/03 para os próximos anos?
Penso que temos como desafio o “cumpra-se”, aliado ao acompanhamento e monitoramento das ações junto aos sistemas de ensino.
Iraneide Soares da Silva é professora adjunta de História da Universidade Estadual do Piauí (UESPI), tanto na graduação, quanto no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Sociedade e Cultura (PPGSC-UESPI). É Doutora em História Social pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e Mestra em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Atua na formação de professores e no fomento a educação continuada de docentes. Seus temas de pesquisa se concentram no estudo histórico de relações étnico-raciais, no ensino de história e cultura afro-brasileira e africana e no fomento de políticas de ação afirmativa. Atualmente é presidente da Associação Brasileira de Pesquisadorxs Negrxs (ABPN) e membro titular da Comissão Nacional de Políticas em Educação e Direitos Humanos do Ministério da Educação.
Crédito da imagem de capa: Primeira Marcha Zumbi – Foto: Geledés Instituto da Mulher Negra /Rede de Historiadores Negros /Acervo Cultne.
Chão de Escola
Nos últimos anos, novos estudos acadêmicos têm ampliado significativamente o escopo e interesses da História Social do Trabalho. De um lado, temas clássicos desse campo de estudos como sindicatos, greves e a relação dos trabalhadores com a política e o Estado ganharam novos olhares e perspectivas. De outro, os novos estudos alargaram as temáticas, a cronologia e a geografia da história do trabalho, incorporando questões de gênero, raça, trabalho não remunerado, trabalhadores e trabalhadoras de diferentes categorias e até mesmo desempregados no centro da análise e discussão sobre a trajetória dos mundos do trabalho no Brasil. Esses avanços de pesquisa, no entanto, raramente têm sido incorporados aos livros didáticos e à rotina das professoras e professores em sala de aula. A proposta da seção Chão de Escola é justamente aproximar as pesquisas acadêmicas do campo da história social do trabalho com as práticas e discussões do ensino de História. A cada nova edição, publicaremos uma proposta de atividade didática tendo como eixo norteador algum tema relacionado às novas pesquisas da História Social do Trabalho para ser desenvolvida com estudantes da educação básica. Junto a cada atividade, indicaremos textos, vídeos, imagens e links que aprofundem o tema e auxiliem ao docente a programar a sua aula. Além disso, a seção trará divulgação de artigos, entrevistas, teses e outros materiais que dialoguem com o ensino de história e mundos do trabalho.
Manoela Rossinetti Rufinoni Professora do Departamento de História da Arte da Unifesp Valter dos Santos Lameirinha Mestre em História da Arte pela Unifesp
A história dos transportes coletivos e de seus trabalhadores na cidade de São Paulo está intimamente relacionada ao processo de expansão urbana. O transporte coletivo urbano, inicialmente movido à tração animal, foi concedido à iniciativa privada por volta de 1870. Ainda que fiscalizada pelo estado, a concessão se baseava na chamada “zona de privilégio”, uma espécie de reserva de mercado que garantia às concessionárias a exploração do serviço e a expansão das linhas para determinadas regiões.
Várias companhias operavam o serviço entre o final do século XIX e início do século XX. A partir de 1890, o estado passou a intervir de modo mais incisivo na operação do transporte coletivo, concedendo o monopólio do serviço à Companhia Viação Paulista (CVP), em 1899. A CVP encampou as empresas preexistentes e operou os bondes a burro até o início do século XX. Apresentando dificuldades para atender à demanda, a CVP foi liquidada e arrematada em leilão pela São Paulo Tramway Light and Power em 1901, empresa de capital majoritário canadense que implementou os bondes movidos a energia elétrica e promoveu adaptações nas antigas instalações da CVP, de modo a atender ao novo sistema.
Em 1911, a Companhia Light, como ficou conhecida, adquiriu um grande terreno na Avenida Celso Garcia e iniciou a construção da atual garagem do Brás, que começou a ser utilizada em 1913. Outras estações da mesma natureza, como a Estação de Bondes da Alameda Glete, construída em 1909, e a da Vila Mariana, construída em 1912, foram demolidas na década de 1970. A garagem de bondes do Brás, portanto, é o último remanescente desta tipologia na cidade de São Paulo.
Como concessionária de serviços públicos, a Light foi protagonista no fornecimento de energia elétrica na primeira metade do século XX. Nesse período, a companhia edificou o principal sistema de indústria elétrica na cidade de São Paulo, com retificação de rios, construção de represas hidrelétricas, usinas de transformação e instalação de linhas de transmissão de energia. Juntamente com essa infraestrutura, a empresa alocou subestações em diferentes bairros para distribuição de energia, com o propósito de atender à demanda de iluminação pública e privada, bem como de eletrificação do sistema de transporte coletivo por meio de bondes.
Para cada área de atuação, a empresa empregou mão de obra brasileira e estrangeira. No ano de 1928, a Light já empregava 6750 trabalhadores no município, chegando a 8421 no início dos anos 1940. No departamento de tráfego, em 1900 a Light possuía 15 bondes movidos à energia elétrica com 40 condutores e 32 motorneiros. Em 1939, já eram 567 carros, 1.333 condutores e 1045 motorneiros.
Com o intuito de controlar os vínculos dos trabalhadores com a empresa, reduzir custos e impedir aumentos salariais, a Light utilizava a rotatividade da força de trabalho, contratando os empregados por cerca de um ano e realizando o desligamento após esse período. Esta e outras medidas arbitrárias e humilhantes, a exemplo de punições e multas, foram motivos de protestos e greves de funcionários da companhia. Tais manifestações de insatisfação foram controladas com a influência política e de polícia que a Cia. Light mantinha com o poder público, por meio de intimidação, prisão e dispersão de qualquer movimento grevista. Essa situação de enfrentamento ficou ainda mais acirrada quando, em meados de 1910, os operários fundaram a União Defensora dos Empregados da Light and Power.
Em outra frente, a companhia mantinha uma posição paternalista para controlar e atrair a simpatia de seus operários, com a construção de casas para locação, criação de fundo de pensão por meio de desconto de um dia de trabalho na folha de pagamento, escola para seus filhos e clube atlético, equipamentos alocados próximos às garagens. Apesar dessas medidas, a insatisfação com as condições de trabalho aumentava a cada ano, desencadeando ações coletivas e abrindo caminho para o fortalecimento do movimento operário.Na década de 1930, com a criação da União dos Trabalhadores da Light (UTL)ena esteira das novas legislações que garantiram direitos aos trabalhadores, o movimento sindical se organizou como entidade legal para defesa dos direitos dos empregados da Light.
O contrato de concessão da Light para prestação de serviços de transportes urbanos perdurou até meados da década de 1940; a partir de então, a empresa se desinteressou pela continuidade do serviço frente à acirrada competição com os ônibus. Nesse contexto, foi criada a empresa pública Companhia Metropolitana de Transportes Coletivos (CMTC), que encampou o acervo da Light e operou os bondes até 1968, quando as linhas foram totalmente extintas. Em 1949, a CMTC colocou em circulação os primeiros ônibus elétricos, os trólebus, que também utilizavam a antiga estação de bondes do Brás para serviços de manutenção e garagem.
Dessas garagens, os carros partiam no início do dia e retornavam no final do expediente, reunindo cotidianamente diversos motorneiros e condutores, além de profissionais encarregados de tarefas diversas de manutenção e limpeza. Em um contexto de lutas e conquistas trabalhistas, as antigas estações de bondes desempenharam papel significativo como local de reunião de trabalhadores, ponto de piquetes e palco de reivindicações por melhores condições de trabalho, testemunhando também ações de repressão por parte de agentes policiais. Durante décadas, esses espaços abrigaram tanto as tarefas laborais cotidianas quanto as relações sociais e as lutas trabalhistas. Desse modo, a estação de bondes do Brás, tombada como patrimônio cultural pelo CONDEPHAAT em 2008 e pelo CONPRESP em 2014, configura hoje um relevante lugar de memória dos trabalhadores em São Paulo.
Vista dos antigos edifícios da garagem de bondes, a partir da rua Dr. João Alves de Lima, 2022. Foto de Valter dos Santos Lameirinha.
Para saber mais:
LAMEIRINHA, Valter dos Santos. Subestações de Energia da Light na Cidade de São Paulo (1899-1956): um estudo no campo do patrimônio arquitetônico industrial. Dissertação de Mestrado em História da Arte. Guarulhos: Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, UNIFESP, 2022.
LOPES, Miriam B. P. Oelsner. Pequena história dos transportes públicos de São Paulo. São Paulo: Museu CMTC, 1985.
SANTOS, João Marcelo Pereira dos. Os trabalhadores da Light São Paulo, 1900-1935. Tese de Doutorado em História. Campinas, SP: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, UNICAMP, 2009.
SÃO PAULO (Estado). CONDEPHAAT. Processo nº. 28682/91. Estação de Bondes do Brás (São Paulo). Parecer técnico de Marly Rodrigues, p. 45-68.
TORRES, Maria Celestina Teixeira Mendes. O bairro do Brás. São Paulo: Departamento do Patrimônio Histórico, Divisão do Arquivo Histórico, 1985.
Crédito da imagem de capa: Trabalhador executando a limpeza de um carro na garagem do Brás, 1928. Fonte: Acervo Fundação Energia e Saneamento.
MAPA INTERATIVO
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Lugares de Memória dos Trabalhadores
As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.
A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.
Você é professora da UFRJ, mas durante muito tempo atuou no ensino básico. E por isso, gostaríamos de saber, como podemos mensurar a distância entre a pesquisa feita nas universidades e aquilo que, efetivamente, chega ao Chão de Escola e é ensinado pelos professores?
A distância entre a pesquisa que é realizada nas universidades e o ensino nas escolas de Educação Básica continua grande – ainda que tenha sido reduzida nas últimas décadas. Iniciativas partindo das universidades e dos docentes da Educação Básica têm contribuído para aproximar estes campos e produzir espaços de diálogo. Porém, o desconhecimento dos profissionais do chamado magistério superior sobre a produção de conhecimento nas salas de aula e as dificuldades dos professores da Educação Básica em obter condições adequadas para desenvolver, aprofundar e compartilhar o seu trabalho e suas reflexões sobre o mesmo, não foram superadas.
A medida desta distância pode ser sentida pela existência de um preconceito relativo à opção pela docência na Educação Básica, que é vista como se fosse um caminho de menor importância e menos exigência de estudo e talento, em comparação com a escolha por atuar no ensino universitário, em geral considerada indicada para estudantes com melhor desempenho acadêmico. Esta visão equivocada não apenas desconhece a sofisticação e exigência do trabalho de professores de ensino fundamental e médio, como reforça um olhar despectivo (depreciativo), que em muito contribui para reforçar o descaso do Estado com relação ao trabalho dos profissionais envolvidos com a escola básica.
Muitas pesquisas acadêmicas acabam circulando num universo restrito de pessoas, sendo pouco divulgadas e com difícil acesso por parte de um público mais amplo e diversificado. Os canais de divulgação científica em diferentes campos não recebem o investimento profissional e institucional adequado e, ao mesmo tempo, muitos pesquisadores não se preocupam em divulgar mais amplamente sua produção, preferindo permanecer numa conversa entre pares.
Além disso, a ausência de uma política educacional que proporcione a docentes da Educação Básica as condições e o estímulo para continuar estudando e produzindo sobre sua prática, também aumenta a distância e o desconhecimento do ensino universitário e da sociedade sobre as diferentes dimensões deste trabalho.
Você tem uma ampla e consistente produção sobre o Cais do Valongo que, em 2017, foi declarado Patrimônio da Humanidade, graças, entre outros tantos esforços, a sua participação no grupo técnico que redigiu o dossiê de candidatura desse importante espaço da nossa história. Atualmente, quais os projetos educacionais e de pesquisa você tem na região?
Estou desenvolvendo um projeto de pesquisa com estudantes de Graduação que participam do Laboratório de Estudos Africanos, o LEÁFRICA, sobre a região do Cais do Valongo. Há dois anos pesquisamos sobre logradouros nesta área, com foco em especial sobre a presença africana ao longo do tempo no local. Estamos produzindo um guia, com fontes e indicações de leitura, para quem estiver interessado em conhecer mais sobre estas histórias, com especial direcionamento para professoras e professores que queiram preparar aulas de campo na área.
Paralelamente, coordeno um projeto de pesquisa sobre ensino de História da África e dos africanos no Brasil, que se realiza fundamentalmente a partir de estudos e pesquisas de estudantes em suas monografias de conclusão do curso de Graduação em História e mestrandos do Programa de Pós-graduação Profissional em Ensino de História – ProfHistória, cujos trabalhos estão sob minha orientação. Estas iniciativas dialogam, por meio de encontros do LEÁFRICA e atividades externas, e estes grupos podem compartilhar os resultados de seus trabalhos e suas reflexões.
Em 2022, o Comitê Gestor do Cais do Valongo foi reativado e você participa dele como representante do Arquivo Nacional. Como tem sido o trabalho desse grupo e a importância do mesmo?
A retomada do Comitê Gestor do Cais do Valongo foi resultado de uma articulação entre pessoas individualmente engajadas, representantes de entidades governamentais e movimentos sociais, marcada pela resistência e espírito de coletividade. E tem uma história.
Ao longo do ano de 2022, foi criado, com a crescente demanda por providências relativas ao cuidado com o Cais do Valongo e seu entorno, e sob o estímulo da Coordenadoria Executiva de Promoção da Igualdade Racial (CEPIR) do município do Rio de Janeiro, o Círculo do Valongo, formado por diferentes pessoas e instituições interessadas em discutir e lutar pela preservação daquele território. Com reuniões mensais, em que diferentes demandas e mobilizações eram discutidas, integrantes deste grupo foram fortalecendo seu vínculo com o lugar e desenvolvendo iniciativas para valorizá-lo. Muitas vezes, órgãos do poder público eram convidados a vir a estes encontros, apresentar suas entregas e planos, discutindo com o grupo presente.
Foi o Círculo do Valongo que gestou as bases para que pudesse ser reconstituído o Comitê Gestor, e esta experiência de um ano de debates e mobilização permitiu a sobrevivência em tempos difíceis. Ao final, este grupo, que não tinha nenhuma nomeação oficial, produziu as condições para que a demanda pela recriação do Comitê Gestor pudesse ser fortalecida. O Comitê Gestor do Cais do Valongo é uma instância fundamental para que um Patrimônio Mundial como o Cais do Valongo possa ser reconhecido, preservado e conservado. É órgão de acompanhamento, consultivo e formulador de propostas para o bem patrimonializado – que inclui, por definição, a região que o cerca e que a ele (o Cais) dá significado.
O trabalho do Comitê Gestor do Cais do Valongo tem sido intenso, desde sua nomeação, tratando no primeiro momento da criação de sua estrutura, formada pelo Grupo Executivo e as comissões assessoras, e no segundo momento, da elaboração de seu regimento, para que possa funcionar com bases legais estabelecidas. Todo este processo foi de intensa (muito intensa) discussão, e de tomada de decisões que mobilizaram propostas e visões muitas vezes distintas, em que a prática democrática e a experiência política encaminhava os resultados. Ao mesmo tempo, o Comitê seguiu com uma tarefa que já havia sido responsabilidade do Círculo do Valongo, que foi revisar e corrigir a proposta de sinalização do Cais do Valongo, incluindo o conteúdo/texto de placas – projeto encaminhado pela Prefeitura do Rio de Janeiro a partir de recursos recebidos de organismos estrangeiros e que foram destinados a este fim.
É trabalhoso e estimulante fazer parte de uma instância como o Comitê Gestor do Cais do Valongo. Aprende-se muito com o diálogo entre representantes de movimentos sociais, líderes comunitários, mobilizadores de instituições de cultura popular, e pessoas que estão ocupando cargos no governo (federal, estadual e municipal) que muitas vezes também tem trajetória de militância política. O Comitê é um ambiente de constante mobilização na defesa do Cais do Valongo e sua região do entorno.
Se pensarmos numa perspectiva de utilização do Cais do Valongo para a produção de conhecimento voltado especificamente para a educação básica, como você vê os diferentes tipos de projetos que vêm sendo realizados ali? E qual o lugar do debate sobre os mundos do trabalho na localidade?
Sempre que vou ao Cais do Valongo, e faço isso há um bom tempo – pelo menos há seis anos, com regularidade -, encontro grupos de visitantes, e entre estes, em especial nos dias de semana, muitos estudantes e seus professores da Educação Básica. É emocionante ver e perceber que, mesmo sem estímulo da maioria dos responsáveis pelas redes de ensino, os docentes se organizam e levam suas turmas a visitarem o local. Muitos são de escolas públicas, e mesmo das séries iniciais do Ensino Fundamental.
Muitos professores e professoras, por sua conta própria, frequentam os cursos e oficinas oferecidos pelo Instituto de Pretos Novos (IPN), que por algum tempo tinham baixo custo e que hoje são oferecidos gratuitamente, em parte em formato online. Estes cursos e oficinas tratam sobretudo de temas sobre a história e cultura da região. A partir destes cursos, muitos se preparam e passam a disseminar este conhecimento. Este é um lado da história. O outro lado, e talvez seja o mais interessante a meu ver, é que docentes da Educação Básica criam seus próprios roteiros de visita/aula de campo no Valongo. E, ao montar estes percursos, desenham leituras sobre esta História, criam maneiras de contar e destacar aspectos, produzindo trilhas e rumos na região do Cais do Valongo conduzidas por seu plano e as questões de seus estudantes.
O mundo do trabalho marca a região do Cais do Valongo de forma incontornável. Em primeiro lugar, pela presença histórica do trabalho de pessoas escravizadas, em sua maioria trazidas do continente africano pelo tráfico transatlântico. Estas pessoas não apenas eram trazidas e desembarcadas ali, como povoavam toda a região, realizando todo tipo de serviço e intervindo, apesar de toda a desumanização de que eram alvo, sobre as formas pelas quais o trabalho se realizava – em técnica, tecnologia e organização. Em segundo lugar, porque as experiências de liberdade desta população negra e africana naquele território fizeram do local um cenário na cidade em que se deu a formação de associações pioneiras na luta por melhores condições de vida e de trabalho, como a União de Operários Estivadores e o Sindicato Resistência, presentes nas primeiras greves e mobilizações proletárias da cidade do Rio de Janeiro.
Você já foi consultora do projeto Museu do Território na Pequena África. E recentemente a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) noticiou que o BNDES vai apoiar a construção do Museu da Escravidão, no Rio de Janeiro (Disponível em: Agência Brasil. Acesso em 10 fevereiro de 2023). Para além de reconhecermos a importância da criação desse Museu, fica sempre a expectativa sobre o tipo de abordagem/linguagem museológica que será utilizada nesse caso. Na sua opinião, qual seria uma forma interessante de explorar esse equipamento pensando no trabalho dos professores e alunos da educação básica?
Um projeto para um museu desta natureza, e neste local, não pode prescindir de uma escuta qualificada de professores, professoras e estudantes da Educação Básica que ensinam/aprendem em visitas e aulas de campo na região do Valongo. Conforme comentei em resposta anterior, estas experiências pedagógicas produzem diferentes interpretações e referências sobre a história local e o significado dos logradouros. Um museu de território deve levar em conta, e não apenas superficialmente, estas narrativas produzidas pelo trabalho docente no local, porque será sempre, e primordialmente, uma sala de aula pública, a céu aberto.
O território deveria, a meu ver, ser sinalizado, e diferentes tempos e personagens da história local conviverem nos diferentes espaços, destacando trajetórias desde os espaços de sofrimento na escravidão, até a existência dos zungus como lugares de resistência e afirmação, os cantos de trabalho nas esquinas e os recantos dos capoeiras, os terreiros e as casas de batuques e das giras, os sindicatos e as praças de encontro e de enfrentamento, chegando às rodas de samba e os espaços patrimonializados e musealizados nos últimos quarenta anos. Estudantes e professores devem podem encontrar com estas histórias ao caminhar em sua aprendizagem pela região do Valongo.
Lembro que neste caso, estou me referindo a museu de território, sobre uma história em que se destaca a presença africana e negra – sobretudo. E evidentemente, nenhuma proposta desta natureza pode dispensar a participação da população local – entendendo esta comunidade como aqueles não apenas residentes, mas comprometidos com o território. Um museu de território deve viabilizar encontros da população que mora e atua no Valongo com os visitantes. Esta comunidade deve ser também guia nos lugares, e interligar sua musealidade viva ao espaço.
Esse ano fazem 20 anos da promulgação da Lei 10.639/03, você poderia fazer um breve balanço da importância dessa lei para o ensino de História? E falar um pouco sobre os avanços que ela proporcionou e os entraves e limites que ainda são enfrentados?
Um dos grandes avanços produzidos nos últimos tempos no nosso país foi a alteração da LDB nº 9.394/1996 pela Lei nº 10.639/2003, que tornou obrigatório o ensino da história e cultura africana e afro-brasileira em toda a Educação Básica. No entanto, sabemos que sua efetivação demanda compromisso institucional e político, no âmbito das unidades escolares e dos sistemas de educação. Resultante de longa história de luta do movimento negro, principalmente, e de seus aliados, esta legislação foi uma conquista relevante da sociedade brasileira na sua luta pelo direito à história. Um de seus mais importantes desdobramentos foi fortalecer a luta de outros sujeitos históricos invisibilizados, como os povos indígenas, que por meio da lei 11.645/2008, também tiveram seu espaço reconhecido na legislação que rege a educação brasileira.
A lei 10639 deflagrou uma série de transformações, como por exemplo no ensino universitário, que teve que abrir espaços para a história da África e da cultura afro-brasileira dentro de sua estrutura eurocêntrica. Surgiram concursos específicos em instituições em todo o país, foram criadas áreas de África nos departamentos, faculdades e institutos de História, bem como de Educação para as Relações Étnico-raciais, em cursos de Pedagogia e unidades universitárias da área de Educação. Muitos cursos de pós-graduação lato sensu surgiram, fundamentalmente para atender demandas de professores que não tinham tido contato com estas temáticas na sua formação inicial. Toda uma produção bibliográfica cresceu, direcionada a estes temas e questões. O campo da literatura infantil foi especialmente fértil, e as estantes e livrarias – para quem pode ter acesso – se diversificaram, e trouxeram formas, cores e personagens da história e culturas negras. Todos estes avanços não foram capazes, no entanto, de alterar substancialmente o conteúdo e a estrutura de cursos e referências de estudo. E não atingiram todos os espaços de formação de professores. E, nem de longe, revolucionaram a formação escolar… Mas, caminhos foram abertos – inegavelmente.
Muito mais além do direito expresso e estabelecido pela legislação, que sempre pode funcionar como uma justificativa e um argumento de força, o que veio junto com a medida legal foi um reconhecimento público – mesmo que não aceito por todos – da importância da história africana e negra. E este é um fato político, a partir do qual se pode mobilizar novas frentes de luta em direção a uma efetiva implementação da legislação que, para ser inteira e completa, exige uma mudança profunda nos currículos escolares, e na própria escola. O que a lei sinaliza, se a interpretarmos radicalmente (sim!), é o reconhecimento de outros saberes e formas de ensino/aprendizagem juntamente com o contato com os conteúdos relativos à história e cultura afro-brasileira e africana. A 10.639 nos ajuda a trazer estas discussões, e a problematizar muito daquilo que exclui e afasta crianças e jovens da possibilidade de se verem e se encantarem com o conhecimento que a escola, como local de encontros, pode proporcionar.
Mônica Lima é Professora de História da África, do Programa de Pós-graduação em História Social (PPGHIS) e do Programa de Pós-graduação em Ensino de História (PPGEH) do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IH-UFRJ). Coordenadora do Laboratório de Estudos Africanos(LEÁFRICA) no IH-UFRJ. Tem longa experiência docente, atuando desde 1992 com ensino de história da África, da diáspora africana e dos africanos no Brasil, em cursos de graduação e pós-graduação.
Crédito da imagem de capa: Primeira Marcha Zumbi – Foto: Geledés Instituto da Mulher Negra /Rede de Historiadores Negros /Acervo Cultne.
Chão de Escola
Nos últimos anos, novos estudos acadêmicos têm ampliado significativamente o escopo e interesses da História Social do Trabalho. De um lado, temas clássicos desse campo de estudos como sindicatos, greves e a relação dos trabalhadores com a política e o Estado ganharam novos olhares e perspectivas. De outro, os novos estudos alargaram as temáticas, a cronologia e a geografia da história do trabalho, incorporando questões de gênero, raça, trabalho não remunerado, trabalhadores e trabalhadoras de diferentes categorias e até mesmo desempregados no centro da análise e discussão sobre a trajetória dos mundos do trabalho no Brasil. Esses avanços de pesquisa, no entanto, raramente têm sido incorporados aos livros didáticos e à rotina das professoras e professores em sala de aula. A proposta da seção Chão de Escola é justamente aproximar as pesquisas acadêmicas do campo da história social do trabalho com as práticas e discussões do ensino de História. A cada nova edição, publicaremos uma proposta de atividade didática tendo como eixo norteador algum tema relacionado às novas pesquisas da História Social do Trabalho para ser desenvolvida com estudantes da educação básica. Junto a cada atividade, indicaremos textos, vídeos, imagens e links que aprofundem o tema e auxiliem ao docente a programar a sua aula. Além disso, a seção trará divulgação de artigos, entrevistas, teses e outros materiais que dialoguem com o ensino de história e mundos do trabalho.
Nesta sétima edição da série “Vale a Dica”, João Christovão, doutor em história pelo CPDOC/FGV e pesquisador do LEHMT/UFRJ, comenta a exposição “Entre montes brancos e espelhos d’água”. Sob a curadoria de Julia Baker, a exposição ocorreu no Sesc Niterói (RJ) entres os dias 22 de julho e 21 de outubro de 2023, e reuniu diversas fotografias da artista Bea Martins e do fotógrafo Wolney Teixeira. A exposição nos permite reflexões sobre o trabalho e a vida na Região dos Lagos (RJ), mostrando aspectos do processo de produção e os diferentes trabalhadores da cadeia produtiva do sal das salinas fluminenses, como salineiros, remadores lacustres, estivadores e arrumadores; e sobre a desindustrialização iniciada na década de 1990 e que atingiu centenas de trabalhadores e moradores locais.
Projeto e execução: Alexandra Veras, Isabelle Pires, Larissa Farias, Victória Cunha e Yasmin Getirana
Vale Mais #32: Breve dicionário analítico sobre a obra de Edward Palmer Thompson, por César Queirós e Marcos Braga –
Vale Mais
Está no ar o quinto episódio da nova temporada do podcast Vale Mais, do LEHMT-UFRJ!
Nesta temporada, convidamos pesquisadoras e pesquisadores para discutir projetos, livros e teses recentes que aprofundam debates interdisciplinares sobre os mundos do trabalho.
Neste quinto episódio, conversamos com César Queiroz, professor da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), e Marcos Braga, professor da rede pública estadual de educação do Amazonas e doutorando do programa de pós-graduação em História da UFAM. Os convidados são organizadores do livro Breve dicionário analítico sobre a obra de Edward Palmer Thompson. A obra é produto da disciplina “Trabalho e movimentos sociais na Amazônia”, oferecida no PPGH/UFAM, em 2024, em homenagem ao centenário de Edward Thompson, sendo o foco do curso debater as contribuições thompsonianas e as polêmicas que o envolveram ao longo de sua vida. Os/as alunos/as da disciplina elaboraram verbetes que fazem parte da composição desta breve dicionário.
Não deixe também de compartilhar e acompanhar os próximos episódios!
Entrevistadores: Ana Clara Tavares, Isabelle Pires, Josemberg Araújo, Larissa Farias e Thompson Clímaco
Roteiro: Ana Clara Tavares, Isabelle Pires, Larissa Farias e Thompson Clímaco
Produção: Ana Clara Tavares e Larissa Farias
Edição: Josemberg Araújo e Thompson Clímaco
Diretor da série: Thompson Clímaco
Coordenadora geral do Vale Mais: Larissa Farias
No último episódio da temporada de 2023, Regina Horta, professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), apresenta o livro “Cantores do rádio: A trajetória de Nora Ney e Jorge Goulart e o meio artístico de seu tempo”, de Alcir Lenharo. Publicada em 1995, a obra analisa de maneira pioneira as relações entre a cultura popular e a indústria cultural nos anos 1940 e 50, além de explorar os mundos do trabalho dos artistas durante a “era do rádio” brasileira.
Livros de Classe
Os estudantes de graduação são desafiados constantemente a elaborar uma percepção analítica sobre os diversos campos da história. Nossa série Livros de Classe procura refletir justamente sobre esse processo de formação, trazendo obras que são emblemáticas para professores/as, pesquisadores/as e atores sociais ligados à história do trabalho. Em cada episódio, um/a especialista apresenta um livro de impacto em sua trajetória, assim como a importância da obra para a história social do trabalho. Em um formato dinâmico, com vídeos de curtíssima duração, procuramos conectar estudantes a pessoas que hoje são referências nos mais diversos temas, períodos e locais nos mundos do trabalho, construindo, junto com os convidados, um mosaico de clássicos do campo.
Rosana Falcão Lessa (Doutora em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e Professora da Educação Básica da rede pública)
Apresentação da atividade
Segmento: Ensino Fundamental II (9o ano)
Unidade temática: O nascimento da República no Brasil e os processos históricos até a metade do século XX.
Objetivos gerais:
– Entender as possibilidades de inserção social das mulheres negras no pós- abolição.
– Conhecer e refletir sobre o protagonismo das mulheres negras, frente aos desafios interseccionais (gênero, classe, raça) no contexto da primeira a Primeira República.
– Discutir sobre a importância da presença feminina na construção do operariado brasileiro, bem como sua centralidade nas ações de resistência à sistemática negação e violação de direitos, e humanidade.
Habilidades a serem desenvolvidas (de acordo com a BNCC):
(EF09HI01) Descrever e contextualizar os principais aspectos sociais, culturais, econômicos e políticos da emergência da República no Brasil.
(EF09HI03) Identificar os mecanismos de inserção dos negros na sociedade brasileira pós-abolição e avaliar os seus resultados.
(EF09HI04) Discutir a importância da participação da população negra na formação econômica, política e social do Brasil.
(EF09HI05) Identificar os processos de urbanização e modernização da sociedade brasileira e avaliar suas contradições e impactos na região em que vive.
(EF09HI06) Identificar e discutir o papel do trabalhismo como força política, social e cultural no Brasil, em diferentes escalas (nacional, regional, cidade, comunidade).
(EF09HI07) Identificar e explicar, em meio a lógicas de inclusão e exclusão, as pautas dos povos indígenas, no contexto republicano (até 1964), e das populações afrodescendentes.
Duração da atividade:
Aulas
Planejamento
1
Etapa 1
2 e 3
Etapa 2
4
Etapa 3
5 e 6
Etapa 4
Conhecimentos prévios:
– Conhecer as hierarquias sociais no Brasil escravista. – Compreender os conceitos de República e Cidadania. – Conhecer o conceito/característica de uma Sociedade Patriarcal. – Identificar situações que evidenciem o racismo, sexismo e importância do gênero como categoria análise.
Atividade
Recursos: Jornais, fotografias, livro didático, entrevistas, internet, música, data show, amplificador, cópias impressas.
Etapa 1: Sensibilização
O/a professor/a deverá projetar no data show ou distribuir em cópias impressas o conjunto de fontes abaixo:
Fonte 1. Trabalho feminino na Cia. de Charutos Dannemann, São Félix, década de 1930.Fonte:Arquivo Público de São Félix.
Fonte 2. Fichas de registro de meninas empregadas. Arquivo Público de São Félix.
Fonte 3. Jornal A Classe Operária, 30 de maio de 1925. Disponível em: http://bndigital.bn.gov.br/artigos/a-classe-operaria/. Acesso em: 20 jul. 2021.
TRANSCRIÇÃO DA MATÉRIA: “UNIÃO DOS TRABALHADORES EM FÁBRICAS DE FUMO”
O jornal A classe Operária, de 30 de maio de 1925, traz um apelo das charuteiras da Bahia:
A classe operária, 30 de maio de 1925. As operária Charureiras da Bahia apellam para “A Classe Operária”. São Félix, 12 de maio. Levamos ao conhecimento do proletariado industrial e agrícola os horrores que sofremos. Somos tratadas como seres inferiores. Por dia podemos fazer no máximo 300 charutos “a pau”, isto é, comuns. Sendo a mão as companheiras mais ligeiras conseguem fazer de 100 a 140. Os patrões pagam por um cento de charutos 1$500, 1$, $800, $ 700, $ 640, $ 620, $ 600 e até $ 500. Os charutos a mão são pagos a 2$ o cento. Quando fazemos mais de cem os patrões descontam alegando que há alguns charutos com defeito. E então, perdemos o feito. Nosso salário regula entre 15$ e 20$ semanais. Em cada cento, deixamos um charuto para o patrão. Havendo 600 operários e operárias só na Costa Ferreira e Penna, podemos calcular que esses senhores ficam diariamente com 1200 charutos grátis. São, portanto no fim do ano 360 mil charutos grátis. Deixamos a mais dois dias de trabalho. Esses dois dias só são recebidos de seis em seis meses. Imagine o proletariado do Rio o que valem dois dias arrancados a 600 operários e operárias que ganham 2$ a 3$ por dia, isso mesmo só quando acham aviamentos. Somos empreiteiras. Ganhamos pelo que fazemos. Os diaristas deste trabalho são poucos; trabalham em outra seção como a banca de capas que apronta os aviamentos. Bebemos água em uma caneca. A caneca é uma lata de creolina que adaptamos. O depósito d’agua são duas jarras. Há pouco com a greve, os burgueses daqui argumentaram 40 e 60 réis em um cento de charutos, fazendo de nós mendigas. As companheiras grávidas continuam sentar-se com os mesmo tamboretes de pau tosco. Os que nas grandes cidades, nas casas elegantes fumam os charutos finos de São Félix, mal sabem a exploração inominével a que vivemos submetidas. Nossas aspirações são as seguintes: (A) Econômicas
Salário fixo de 4$ diários por 250 charutos a pau ou cem charutos a mão;
Nenhum desconto quando a conta passar de cem charutos;
Nem um só charuto de quebra;
Pagamento semanal de todos os dias de trabalho;
Extinção de empreitadas;
Licença de 15 dias para as companheiras no parto e pagamento integral
(B) Higiênicos
Água pura e Copos
Bancos especiais para companheiras grávidas
(C) Políticas
Direito a livre associação;
Não sermos despedidas quando comemorar o 1º de maio.
Tais são as nossas aspirações imediatas. O primeiro de maio é feriado por lei, em todo país menos em São Félix. Este ano os senhores da Costa Ferreira e Penna proibiram que comemorássemos nosso dia sob ameaça de irmos para rua. Operárias charuteiras de São Félix.
Fonte 4. Jornal A Vanguarda, 1925. Fonte: Arquivo Público de São Félix.(Um grupo de senhorinhas da elite de São Félix Que serviram na festa da Igreja Católica)
A partir das fontes apresentadas, os/as estudantes deverão refletir sobre as seguintes questões: 1) O que podemos observar a respeito do mercado de trabalho destinado às mulheres na Primeira República, em São Félix-BA? 2) Quais eram as reivindicações das operárias das fábricas de fumo em São Félix-BA? Elas estavam apenas voltadas para o espaço de trabalho ou extrapolavam o chão de fábrica? Justifique. 3) Vocês consideram que trabalhar fora de casa era uma opção ou uma necessidade para as mulheres na Primeira República? Pensando a partir de um recorte racial, quais mulheres, majoritariamente, viam-se impelidas à ingressar no mercado de trabalho?
Como tarefa de casa, os/as estudantes, devem ser estimulados a observar como o racismo estrutural e as suas raízes históricas impactam, ainda hoje, a sociedade brasileira. 1) As mulheres brancas e negras possuem as mesmas oportunidades no mercado de trabalho? 2)Quais os lugares são naturalizados no mercado de trabalho para mulheres brancas? E as mulheres negras? 3)Quais as possibilidades de resistência da população negra na atualidade?
Etapa 2: Contextualização e aprofundamento
Após ouvir e debater as informações trazidas pelos/as estudantes que foram solicitadas na aula anterior, o/a professor/a deverá construir uma aula expositiva com base no livro didático, e refletir sobre temas como: a construção da cidadania nos primórdios da República, a invisibilidade da população negra e as diferenças interseccionais na construção feminilidade. Para subsidiar as discussões, sugerimos dois recursos como forma de aprofundar as discussões: o primeiro é a reprodução do discurso de Sojourner Truth2, de 1851; o segundo, o vídeo da série “Coisa mais linda” que mostra assimetrias entre as demandas das mulheres negras e brancas, o que diferencia o feminismo negro e branco.
2 Sojourner Truth foi o nome adotado por Isabella Baumfree, mulher negra feminista, abolicionista e defensora dos direitos das mulheres. Com o discurso, Truth iniciava a crítica à invisibilidade da mulher negra até mesmo dentro do movimento feminista. Apesar de mais de quase 200 anos terem se passado desde o discurso de Truth, ainda é bastante dura a realidade enfrentada pelas mulheres negras. São elas as maiores vítimas do feminicídio e das agressões e também são as que recebem os menores salários. Truth nasceu em 1797 no cativeiro em Swartekill, Nova York, e faleceu em 1883, em Battle Creek, Michigan.
Recurso 1: “Não sou uma mulher”, de Sojourner Truth. Discurso proferido na Convenção pelos Direitos das Mulheres em Akron, Ohio, em 1851. O discurso deverá ser distribuído em folha impressa para a turma.
“Não sou uma mulher?
Aquele homem ali diz que é preciso ajudar as mulheres a subir numa carruagem, é preciso carregar elas quando atravessam um lamaçal e elas devem ocupar sempre os melhores lugares. Nunca ninguém me ajuda a subir numa carruagem, a passar por cima da lama ou me cede o melhor lugar! E não sou uma mulher? Olhem para mim! Olhem para meu braço! Eu capinei, eu plantei juntei palha nos celeiros e homem nenhum conseguiu me superar! E não sou uma mulher? Eu consegui trabalhar e comer tanto quanto um homem – quando tinha o que comer – e também aguentei as chicotadas! E não sou mulher? Pari cinco filhos e a maioria deles foi vendida como escravos. Quando manifestei minha dor de mãe, ninguém, a não ser Jesus, me ouviu! E não sou uma mulher? E daí eles falam sobre aquela coisa que tem na cabeça, como é mesmo que chamam? (uma pessoa da platéia murmura: “intelecto”). É isto aí, meu bem. O que é que isto tem a ver com os direitos das mulheres ou os direitos dos negros? Se minha caneca não está cheia nem pela metade e se sua caneca está quase toda cheia, não seria mesquinho de sua parte não completar minha medida? Então aquele homenzinho vestido de preto diz que as mulheres não podem ter tantos direitos quanto os homens porque Cristo não era mulher! Mas de onde é que vem seu Cristo? De onde foi que Cristo veio? De Deus e de uma mulher! O homem não teve nada a ver com Ele. Se a primeira mulher que Deus criou foi suficientemente forte para, sozinha, virar o mundo de cabeça para baixo, então todas as mulheres, juntas, conseguirão mudar a situação e pôr novamente o mundo de cabeça para cima! E agora elas estão pedindo para fazer isto. É melhor que os homens não se metam. Obrigada por me ouvir e agora a velha Sojourner não tem muito mais coisas para dizer.”.
Recurso 2: Exibição do trecho da série “Coisa mais linda” (2019)
Ao final da atividade, em uma roda de conversa, os/as alunos deverão dialogar sobre questões abaixo: 1) Quais as possibilidades de trabalho das mulheres negras fora âmbito doméstico? 2) Como explicar a centralidade das mulheres negras nas famílias pobres? 3) Estamos humanizando ou desumanizando as mulheres negras quando as naturalizamos como fortes e resistentes? 4) No decorrer da sua vida escolar, como vocês percebem que as mulheres negras aparecem no livro didático? Ou não aparecem? 5) Em quais momentos da sua vida escolar e da sua vida cotidiana as mulheres negras são vistas como agentes da sua história e essenciais para preservação, sustentação e perpetuação cultural, econômica e intelectual da população negra?
Etapa 3: Problematização
A partir desses conhecimentos, o/a professor/a deverá problematizar como os ex- escravizados, livres e libertos foram inseridos na sociedade brasileira no contexto do pós- abolição e da recém-instalada República. A proposta aqui é discutir como o racismo moldou as relações sociais no Brasil, a partir da identificação das formas estruturais de marginalização e invisibilização da população negra naquele período, bem como as estratégias de organização e resistência da população negra. Propomos algumas fontes/ recursos abaixo para subsidiar as discussões:
Recurso 1: Distribuir a letra da canção e ouvir a música “14 de maio”, de Lazzo Matumbi (nome artístico de Lázaro Jerônimo Ferreira, cantor, compositor e ativista brasileiro. Um dos expoentes da música negra baiana, oriundos do bloco afro Ilê Aiyê).
Música
14 de Maio Canção de Lazzo Matumbi
No dia 14 de maio, eu saí por aí Não tinha trabalho, nem casa, nem pra onde ir Levando a senzala na alma, subi a favela Pensando em um dia descer, mas eu nunca desci Zanzei zonzo em todas as zonas da grande agonia Um dia com fome, no outro sem o que comer Sem nome, sem identidade, sem fotografia O mundo me olhava, mas ninguém queria me ver No dia 14 de maio, ninguém me deu bola Eu tive que ser bom de bola pra sobreviver Nenhuma lição, não havia lugar na escola Pensaram que poderiam me fazer perder Mas minha alma resiste, o meu corpo é de luta Eu sei o que é bom, e o que é bom também deve ser meu A coisa mais certa tem que ser a coisa mais justa Eu sou o que sou, pois agora eu sei quem sou eu Será que deu pra entender a mensagem? Se ligue no Ilê Aiyê Se ligue no Ilê Aiyê, agora que você me vê Repare como é belo, vê nosso povo lindo Repare que é o maior prazer Bom pra mim, bom pra você Estou de olho aberto Olha, moço, fique esperto, que eu não sou menino Será que deu pra entender a mensagem? Se ligue no Ilê Aiyê Se ligue no Ilê Aiyê, agora que você me vê Repare como é belo, vê nosso povo lindo Repare que é o maior prazer Bom pra mim, bom pra você Estou de olho aberto Olha, moço, fique esperto, que eu não sou menino Olha, moço, fique esperto, que eu não sou menino Olha, moço, fique esperto, que eu não sou menino Olha, moço, fique esperto, que eu não sou menino Olha, moço, fique esperto, que eu não sou menino Diz aí! E aí, mano!
Recurso 2: Jornal O Campesino, 1921, São Gonçalo dos Campos/BA, que fala sobre a abertura de uma escola noturna por um membro dogrupo familiar Cazumbá3 Esse documento ilustra uma das estratégias resistência da população negra, através da educação, bem como seu protagonismo no processo luta por dignidade e humanização.
Transcrição:
Escola Noturna gratuita, sob os aupícios do nosso dedicado amigo e illustre conterrâneo Luiz Cardozo Cazumbá, fundou-se nesta cidade, no dia 4 do corrente, uma aula noturna gratuita, com o fim elevado e patriótico de combater o analfabetismo tão elevado em nosso meio. As aulas estão sendo dadas provisoriamente em sua residência, estão começando de 7 às 9 horas da noite com já adeantado número de alunnos. Levando um abraço sincero de parabéns ao nosso amigo Cazumbá pela sua brilhante ideia, fazemos votos para veja coroado de refulgentes êxito os seus imensos esforços, arrancando das trevas da ignorância muitos sangonçalenses, que poderão talvez amanhã, bebendo nas fontes do saber, vir a ser o futuro de glória desta terra.
3 Conforme os estudos do professor José Bento Rosa da Silva, a família Cazumbá é composta por descendentes de escravizados. Na documentação existente nos arquivos públicos e privados, bem como narrativas orais acerca da trajetória do grupo Cazumbá, apontaram para a excepcionalidade da trajetória deste grupo familiar, quando comparados com a trajetória de outros descendentes de africanos na região do Recôncavo, sobretudo na cidade de São Gonçalo dos Campos. Através da oralidade, são vistos como “negros altivos” e inteligentes; pertencentes à uma família negra “mas com dignidade”. Para mais, ver: SILVA, José Bento Rosa da. Prosopografia da família Cazumbá desde São Gonçalo dos Campos. [Recôncavo da Bahia, 1879- 2015]. https://sudeste2017.historiaoral.org.br/resources/anais/8/1501767416_ARQUIVO_ProsopografiadafamiliaCazumbadesdeSaoGoncalodosCampos.pdf
Após a apresentação dos recursos/ fontes, os/as estudantes deverão se reunir em grupos e recriar o seguinte trecho da música de Matumbi, procurando identificar ações de resistência da população negra à marginalização (como a que foi exemplificada na fonte apresentada), bem como outras que possam vir a ser apresentadas pelo/a professor/a.
“No dia 14 de maio, eu saí por aí (…) Não tinha trabalho, nem casa, nem pra onde ir Levando a senzala na alma, subi a favela Pensando em um dia descer, mas eu nunca desci Zanzei zonzo em todas as zonasda grande agonia Um dia com fome, no outro sem o que comer Sem nome, sem identidade, sem fotografia O mundo me olhava, mas ninguém queria me ver”.
Etapa 4
Diante do panorama explorado, os/as estudantes deverão se organizar em grupos e elaborar uma exposição na escola com imagens sobre a o papel das mulheres negras na história do trabalho/econômica no contexto em que estão inseridos. e os lugares que essas mulheres predominam socialmente na atualidade, pensando sempre na relação passado e presente. É importante trazer para a atividade a influência cultural e religiosa das mulheres negras, bem como fotografias delas ou dos grupos que representam irmandades, sindicatos, manifestações culturais. O objetivo da exposição é descontruir estereótipos e trazer para centralidade do debate histórico, a importância das mulheres negras enquanto sujeitos históricos. Sugestão: Trazer para o trabalho uma pesquisa de imagens e referências sobre intelectuais como Audre Lord, Patrícia Hills, Sueli Carneiro, Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, dentre outras, cujo objetivo é popularizar e reconhecer as obras de intelectuais negras.
Bibliografia e Material de apoio:
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.
FONTES, José Raimundo. Manifestações operárias na Bahia: o movimento grevista, 1888-1930. 1982. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1982.
LESSA, Rosana Falcão. Mulheres, trabalho e memória na Bahia: o caso da indústria fumageira de São Gonçalo dos Campos, 1950-1980. Salvador: Editora Devires, 2020.
NAS MALHAS DO FUMO: cotidiano, família e trabalho feminino no Recôncavo Fumageiro, 1870-1920 / ROSANA FALCÃO LESSA. — Rio de Janeiro, 2022. Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em História.
NASCIMENTO, Álvaro Pereira. Trabalhadores negros e o “paradigma da ausência”: 1 contribuições à História Social do Trabalho no Brasil. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 29, n. 59, p. 607-626, set./dez. 2016.
Créditos da imagem de capa: Fichas de registro de meninas empregadas,1923. Fonte: Arquivo Público de São Félix.
Chão de Escola
Nos últimos anos, novos estudos acadêmicos têm ampliado significativamente o escopo e interesses da História Social do Trabalho. De um lado, temas clássicos desse campo de estudos como sindicatos, greves e a relação dos trabalhadores com a política e o Estado ganharam novos olhares e perspectivas. De outro, os novos estudos alargaram as temáticas, a cronologia e a geografia da história do trabalho, incorporando questões de gênero, raça, trabalho não remunerado, trabalhadores e trabalhadoras de diferentes categorias e até mesmo desempregados no centro da análise e discussão sobre a trajetória dos mundos do trabalho no Brasil. Esses avanços de pesquisa, no entanto, raramente têm sido incorporados aos livros didáticos e à rotina das professoras e professores em sala de aula. A proposta da seção Chão de Escola é justamente aproximar as pesquisas acadêmicas do campo da história social do trabalho com as práticas e discussões do ensino de História. A cada nova edição, publicaremos uma proposta de atividade didática tendo como eixo norteador algum tema relacionado às novas pesquisas da História Social do Trabalho para ser desenvolvida com estudantes da educação básica. Junto a cada atividade, indicaremos textos, vídeos, imagens e links que aprofundem o tema e auxiliem ao docente a programar a sua aula. Além disso, a seção trará divulgação de artigos, entrevistas, teses e outros materiais que dialoguem com o ensino de história e mundos do trabalho.
Yuri Simonini Doutor em História pela UFMG e Professor do Centro Universitário do Rio Grande do Norte
Em 1927, durante o processo de melhoramento do porto da capital do estado do Rio Grande do Norte foram capturadas diversas fotografias com o propósito de documentar o dia a dia das atividades em curso. Destaca-se, entre elas, uma imagem, na qual os operários se posicionam em fileiras sobre a locomotiva destinada ao transporte das pedras destinadas à construção da guia-corrente da entrada do porto. Nessa composição visual, trabalhadores e máquina interagem de forma confluente, fundindo-se em uma coesão quase indistinguível.
A mão de obra utilizada nas atividades de melhoramento do porto de Natal consistiu principalmente em sertanejos retirantes devido às condições pluviométricas irregulares da região. O “flagelo das secas”, termo comum adotado após a Grande Seca de 1877, forçou milhares de nordestinos a migrarem para as grandes cidades em busca de auxílios em diversos momentos ao longo do século XX.
Entre os anos de 1904 a 1907, período que coincide com o estabelecimento da Comissão de Melhoramentos do Porto de Natal, a capital experimentou significativo influxo de migrantes afetados pela seca de 1905. Em 1906, o governador Tavares de Lyra observou a presença aproximada de milhares desses migrantes, resultando em uma série de desafios relacionados à ordem pública e às condições sanitárias, em uma cidade que contava com população de 23.121 habitantes. As cenas, registradas em jornais, crônicas e nos relatórios da chefatura de polícia, enfatizavam “espetáculo de horrores”, como saques à estabelecimentos comerciais, fome, disseminação de doenças e mortes.
Para evitar maiores convulsões sociais, era comum o poder público organizar comissões para recrutamento de parte desse grupo de flagelados para trabalhar em diversas frentes, mediante pagamento ao dia de serviço.
As formas de recrutamento, os valores pagos e o montante de pessoas envolvidas eram vagos e imprecisos. As tarefas incluíam atividades como pavimentação de ruas, limpeza de avenidas, construção de edifícios residenciais e instalações portuárias. Além disso, foram designados para participar na construção de ferrovias, cultivo agrícola e uma variedade de outros serviços, incluindo a atuação na pedreira Macahyba.
A pedreira se situava à margem esquerda do Rio Potengi – que seguia até Natal –, próxima à cidade de Macaíba, distante cerca de 20 quilômetros do porto e conectada por rede ferroviária destinada ao transporte do material extraído. A pedreira havia sido criada quase que exclusivamente para o melhoramento portuário. Da mesma maneira que as frentes de trabalho que ocorriam na capital potiguar do início do século XX, os registros documentais sobre esses trabalhadores são muito raros.
O trabalho era predominantemente de natureza manual, contando apenas com uma estrutura mínima para a extração das pedras destinadas à construção das guias e ao aterramento das áreas destinadas à infraestrutura terrestre do porto. Além do guindaste, utilizado para o içamento das pedras a serem transportadas, a pedreira dispunha de barracão equipado com as máquinas essenciais para o funcionamento do sistema de ar comprimido, empregado para acionar as ferramentas de extração. Esta estrutura, impulsionada por força a vapor e operada por uma equipe de dois trabalhadores, foi inaugurada em 20 de agosto de 1927.
Diferentemente dos engenheiros e de outros profissionais com qualificações técnicas, esses operários, incluindo todo o ciclo de serviços relacionados ao aprimoramento do porto, careciam de registros profissionais ou de qualquer outro dado oficial, sendo rotineiramente remunerados em uma genérica categoria de diárias de serviço, conforme evidenciado pelos relatórios orçamentários. O que restou destes trabalhadores foram suas presenças quase sem rostos nas fotografias. A única exceção a essa condição de invisibilidade era representada por Manuel Gaya, cuja natureza do trabalho de mergulho com auxílio do escafandro lhe conferiu certo destaque nas publicações jornalísticas locais naquele período.
A relevância da pedreira para as operações portuárias da cidade, no entanto, não encontra paralelo nas documentações relativas ao processo de aprimoramento do porto. Macaíba, anteriormente um centro comercial e ponto de destino para mercadorias provenientes do interior do norte do Rio Grande do Norte e direcionadas à capital, possui atualmente diversas pedreiras em atividade nas suas proximidades. Historicamente, a região forneceu rochas graníticas utilizadas para uma variedade de propósitos na cidade, mas inexiste informações sobre outras pedreiras em atividade naquele período. A região fornecia material para os trabalhos de cantaria e pavimentação de ruas nas primeiras décadas do século XX, particularmente se considerarmos a finalização das extensas obras de pavimentação urbana em 1929, durante o mandato do prefeito Omar O’Grady.
A pedreira Macahyba, apesar de sua relevância no processo de melhoramento portuário da capital potiguar, possui uma história tão imprecisa quanto aqueles trabalhadores oriundos das secas, impedindo a reconstrução de suas histórias individuais e do seu papel nas obras de infraestrutura portuária de Natal. Assim, tanto os operários anônimos quanto a pedreira permanecem como testemunhos silenciosos de um período importante para o Rio Grande do Norte, cuja força de trabalho e as rochas extraídas contribuíram para o desenvolvimento e transformação da cidade, sem deixar rastro visível de suas jornadas e de suas próprias vidas.
Extração e transporte das rochas graníticas na Pedreira Macahyba, 1927. Fonte: Centro de Documentação Norte-rio-grandense/RJ; Acervo digital do HCUrb/UFRN.
Para saber mais:
Cascudo, Luís da Câmara. História da Cidade de Natal. Natal: IHGRN, 1999.
Silva, Matheus Lisboa Nobre et al. As Rochas Contam Sua História: Programa de Divulgação da Geodiversidade no Centro Histórico de Natal. In: XXVI SIMPÓSIO DE GEOLOGIA DO NORDESTE, 24., 2015, Natal. Anais […]. Natal: UFRN, 2015
Simonini, Yuri. Porto das Secas: os anônimos trabalhadores do porto de Natal (1861-1932). Revista Mundos do Trabalho, v.12, p.1 – 17, 2020.
Crédito da imagem de capa: Os construtores da guia-corrente no trem de apoio aos serviços, 1927. Fonte: Centro de Documentação Norte-rio-grandense/RJ; Acervo digital do HCUrb/UFRN.
MAPA INTERATIVO
Navegue pela geolocalização dos Lugares de Memória dos Trabalhadores e leia os outros artigos:
Lugares de Memória dos Trabalhadores
As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.
A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.
Nesta sexta edição da série “Vale a Dica”, Victória Cunha, mestranda em história pela UFRJ e pesquisadora do LEHMT/UFRJ, sugere uma visita ao Museu de Artes de Ofícios, em Belo Horizonte, Minas Gerais. Localizado nos prédios que comportavam as antigas estações de trem da capital mineira, o MAO é a morada do único museu que se dedica integralmente ao tema do trabalho, das artes e dos ofícios no Brasil. Seu acervo é resultado do trabalho do engenheiro Flávio Gutierrez e de sua filha Angela Gutierrez, que colecionaram mais de 2.500 peças relacionadas aos ofícios do período pré-industrial no Brasil. De acordo com a instituição, “O museu é um convite para que o trabalhador se encontre consigo mesmo, com sua história e com seu tempo”. O acervo material presente na exposição nos permite refletir sobre as configurações dos mundos do trabalho no Brasil e nas suas transformações ao longo do tempo.
Projeto e execução: Alexandra Veras, Isabelle Pires, Larissa Farias, Victória Cunha e Yasmin Getirana
Vale Mais #32: Breve dicionário analítico sobre a obra de Edward Palmer Thompson, por César Queirós e Marcos Braga –
Vale Mais
Está no ar o quinto episódio da nova temporada do podcast Vale Mais, do LEHMT-UFRJ!
Nesta temporada, convidamos pesquisadoras e pesquisadores para discutir projetos, livros e teses recentes que aprofundam debates interdisciplinares sobre os mundos do trabalho.
Neste quinto episódio, conversamos com César Queiroz, professor da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), e Marcos Braga, professor da rede pública estadual de educação do Amazonas e doutorando do programa de pós-graduação em História da UFAM. Os convidados são organizadores do livro Breve dicionário analítico sobre a obra de Edward Palmer Thompson. A obra é produto da disciplina “Trabalho e movimentos sociais na Amazônia”, oferecida no PPGH/UFAM, em 2024, em homenagem ao centenário de Edward Thompson, sendo o foco do curso debater as contribuições thompsonianas e as polêmicas que o envolveram ao longo de sua vida. Os/as alunos/as da disciplina elaboraram verbetes que fazem parte da composição desta breve dicionário.
Não deixe também de compartilhar e acompanhar os próximos episódios!
Entrevistadores: Ana Clara Tavares, Isabelle Pires, Josemberg Araújo, Larissa Farias e Thompson Clímaco
Roteiro: Ana Clara Tavares, Isabelle Pires, Larissa Farias e Thompson Clímaco
Produção: Ana Clara Tavares e Larissa Farias
Edição: Josemberg Araújo e Thompson Clímaco
Diretor da série: Thompson Clímaco
Coordenadora geral do Vale Mais: Larissa Farias
Este workshop de um dia explorará como, na historiografia alemã, os debates sobre desindustrialização têm impactado a história social e suas variadas temáticas, como. identidades regionais e culturais, patrimônio industrial, história do trabalho, história ambiental, gênero e os efeitos da desindustrialização no tecido social e na vida política. Essa atividade integra o Projeto PROBRAL “Desindustrialização e História Social” da UFRJ, UFBA, FGV-SP e Ruhr-University Bochum e apoiado pela CAPES e DAAD. Haverá tradução simultânea inglês-português-inglês.
9h30- Abertura: Paulo Fontes (IH/UFRJ)
10h – 12h30 – Mesa 1: Experiências de desindustrialização e o debate internacional
Comentários: Rodrigo Santos (IFCS/UFRJ) • Stefan Berger (Institute for Social Movements, Ruhr-University Bochum) Desindustrialização: a construção de um campo de estudos internacional e o lugar da história social • Constantin Goscher (Ruhr-University Bochum) O debate sobre a desindustrialização da Alemanha Oriental após a reunificação alemã. • Leonie Karwath (Ruhr-University Bochum) Histórias conectadas: desindustrialização na Alemanha e no Brasil
14h – 17h – Mesa 2: História da desindustrialização na Alemanha: vida social e política
Comentários: Lise Sedrez (IH/UFRJ) • Hans-Heiner Holtappels Desindustrialização, desemprego e relações de trabalho no leste alemão • Sophia Friedel (Ruhr-University Bochum) Co-determinação alemã – Um modelo de mudança e continuidade • Alicia Gorny Gênero e desindustrialização: a experiência da indústria têxtil e de vestuário na região do Ruhr
Neste episódio, Fernando Pureza, Professor do Departamento de História da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), apresenta o livro “Nós do quarto distrito: a classe trabalhadora porto-alegrense e a Era Vargas”, de Alexandre Fortes. Fruto de sua tese de doutorado defendida na Unicamp, “Nós do quarto distrito”, ao articular os processos de formação de classe e de identidades étnicas, analisa de forma inovadora a história dos bairros operários de Porto Alegre entre o início do século XX e os anos 1950. Além disso, o livro tornou-se uma referência fundamental para os estudos das relações políticas entre classe trabalhadora, empresariado e Estado, desafiando as abordagens tradicionais sobre o populismo e o trabalhismo.
Livros de Classe
Os estudantes de graduação são desafiados constantemente a elaborar uma percepção analítica sobre os diversos campos da história. Nossa série Livros de Classe procura refletir justamente sobre esse processo de formação, trazendo obras que são emblemáticas para professores/as, pesquisadores/as e atores sociais ligados à história do trabalho. Em cada episódio, um/a especialista apresenta um livro de impacto em sua trajetória, assim como a importância da obra para a história social do trabalho. Em um formato dinâmico, com vídeos de curtíssima duração, procuramos conectar estudantes a pessoas que hoje são referências nos mais diversos temas, períodos e locais nos mundos do trabalho, construindo, junto com os convidados, um mosaico de clássicos do campo.