Contribuição Especial #30: O Massacre de Ipatinga: 60 anos


Marcelo Freitas
Jornalista, com atuação no Diário do Comércio, O Tempo e Estado de Minas


7 de outubro é um dia como outro qualquer para os brasileiros. Porém, para os que moram no município mineiro de Ipatinga, essa é uma data de triste lembrança, pois remete a uma tragédia – o Massacre de Ipatinga – que até hoje permeia a memória dos que presenciaram aquele dramático acontecimento.

O Massacre de Ipatinga foi um conflito entre trabalhadores da usina siderúrgica Usiminas e soldados da Polícia Militar de Minas Gerais. Começou na noite do dia 6 de outubro, estendeu-se pela madrugada do dia 7 e somente terminou no final da manhã daquele dia, quando os policiais abriram fogo contra os trabalhadores que estavam aglomerados em frente a um dos portões de entrada da usina. O resultado foram 103 vítimas – oito mortos, 92 feridos e três desaparecidos. No dia 7, o Massacre de Ipatinga completa seis décadas e ainda é um episódio da história desconhecido para a esmagadora maioria dos brasileiros.

A construção da Usiminas fazia parte do plano de metas “cinquenta anos em cinco”, do governo de Juscelino Kubitschek. A usina foi implantada a toque de caixa ao lado de um povoado – Ipatinga – que possuía não mais que 500 habitantes. No ritmo acelerado em que se deu a construção da Usiminas, ocorreram falhas em relação à implantação da infraestrutura de apoio aos trabalhadores das empreiteiras que ficaram responsáveis pelas obras de construção, bem como pelos metalúrgicos que passaram a operar a fábrica.

Assim, em outubro de 1963, quando a siderúrgica já estava em funcionamento, o clima era tenso devido a uma série de reclamações que se acumularam em relação aos alojamentos, à alimentação, ao transporte e, principalmente, em relação à truculência dos vigilantes da companhia no trato com os trabalhadores. A tensão não dizia respeito a salários. Inclusive, alguns dias antes, os trabalhadores e a empresa haviam fechado um acordo para a concessão de reajuste salarial.

O estopim dos acontecimentos ocorreu na troca de turno das 22h do dia 6, quando um dos trabalhadores, Rodir Rodrigues, operador do laminador da companhia, teve seu documento de identidade retido pelos vigilantes sem maiores explicações. No momento, passavam pelo local quatro policiais, a quem os vigilantes queriam entregar Rodir, que foge, porque não havia cometido crime algum, é perseguido pelos policiais e alcançado um quilômetro dali. No local, é espancado e, em seguida, transferido para o escritório do Serviço de Vigilância.

Na mesma noite, a notícia do que havia ocorrido com Rodir Rodrigues chega aos alojamentos e deixa os trabalhadores exaltados. Uma aglomeração se formou na rua. A PM envia ao local dois policiais da cavalaria, que são recebidos a pedradas. A polícia envia reforços. Cerca de 300 trabalhadores são detidos e colocados deitados no chão e com as mãos na nuca.

Os presos são enviados para o quartel da PM, onde ficam até o final da madrugada, quando são soltos. Os operários decidem não retornar aos alojamentos. Concentram-se em frente a um dos portões da entrada da companhia, localizado às margens da rodovia MG-4, hoje BR-381, e não entram para o trabalho. Para o local, a PM envia policiais. Um deles controlava uma metralhadora montada na carroceria de um caminhão, que ficou estacionado no mesmo local da aglomeração.

No escritório da companhia, próximo dali, estavam reunidos o diretor de Relações Institucionais da Usiminas, Gil Guatimosim, e os integrantes de uma comissão formada na manhã daquele dia para encontrar uma solução para os problemas apontados pelos trabalhadores. Um dos membros da comissão é o vigário de Ipatinga, Padre Avelino, que, antes de entrar na usina, passa pelos policiais e pede que se retirem do local para evitar maiores problemas. O comandante da operação se nega a atender o pedido. Alega que precisaria de ordem superior.

No escritório central, a reunião avança. O problema era sua lentidão, uma vez que tudo o que era dito precisava ser traduzido para que o representante dos sócios japoneses na empresa pudesse compreender o que estava sendo dito. A despeito da lentidão, chegou-se a um acordo. A empresa iria determinar a retirada dos policiais e acatar as reivindicações dos trabalhadores. Porém, não houve tempo para que a ordem de saída chegasse ao comandante dos policiais que estavam no local. Policiais e trabalhadores se desentendem. A polícia alega que em determinado momento, foram agredidos com pedras retiradas do leito da Estrada de Ferro de Vitória a Minas (EFVM), que passa pelo local. E decide abrir fogo contra eles.

O resultado foram oito mortos. Um deles foi o metalúrgico José Isabel do Nascimento, que acompanhava a movimentação atentamente. Só que, além de metalúrgico, José Isabel era fotógrafo. E foi responsável pelas únicas imagens da aglomeração antes do início dos tiros. Uma das fotos mostra a metralhadora em cima do caminhão com um policial ao seu lado. José Isabel foi ferido no estômago e levado para o hospital de Ipatinga, onde faleceu 11 dias depois.

Jose Isabel Nascimento/O Cruzeiro – 07/10/1963 – Chacina em Ipatinga – O Soldado da Policia Militar, na carroceria do caminhao, metralhadora descansando no joelho, iniciou a chacina, ajudado por 16 outros soldados armados de fuzis. A foto foi feita segundos antes do massacre, por Jose Isabel Nascimento, que tambem acabou tombando ferido.

Devido à gravidade dos acontecimentos, o governo de Minas envia para Ipatinga, na tarde do mesmo dia, suas duas principais autoridades na área de segurança: o Comandante Geral da Polícia Militar, José Geraldo de Oliveira; e o secretário de Segurança, Caio Mário da Silva Pereira. O objetivo era restabelecer a autoridade do governo do Estado na região. Assim, o que se seguiu aos acontecimentos daquele 7 de outubro foi a prisão dos policiais, que foram levados para Belo Horizonte, e a abertura de um Inquérito Policial Militar (IPM) e seu posterior envio à Justiça. Em Ipatinga, José Geraldo de Oliveira prometeu que o caso seria apurado com rigor.

Só que nos 795 dias transcorridos entre o 7 de outubro e a data do julgamento final dos policiais – 10 de dezembro de 1965 – ocorreu um golpe militar, que destituiu o presidente da República, João Goulart, e transformou os trabalhadores de Ipatinga em réus; e os policiais em vítimas. Assim, foram todos absolvidos pela Justiça. Para isso, algumas mentiras foram anexadas ao processo. A primeira delas era que os trabalhadores tinham um plano de paralisar a Usiminas e, ao mesmo tempo, derrubar a ponte sobre o Rio Doce, de onde viriam os reforços do 6º Batalhão da Polícia Militar, sediado em Governador Valadares. O plano incluía explodir o gasômetro da Usiminas, ato que geraria uma reação em cadeia que iria destruir a cidade de Ipatinga e, por tabela, a usina da outra siderúrgica instalada na região, a Acesita, hoje Aperam, cujo gasômetro também explodiria.

Uma terceira mentira era que os trabalhadores estavam, na noite do dia 6 e na madrugada e manhã do dia 7, insuflados por lideranças sindicais de fora que haviam se deslocado para Ipatinga com o objetivo de criar um clima de animosidade entre a direção da empresa e os trabalhadores. Na verdade, o acordo salarial firmado poucos dias antes dos acontecimentos de 7 de outubro foi conduzido apenas por lideranças dos Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos de Timóteo e Coronel Fabriciano. As primeiras lideranças nacionais dos trabalhadores chegaram a Ipatinga somente na tarde do dia 7 de outubro.

A absolvição dos policiais se deu durante o regime militar. Com o golpe, ocorreu também o silenciamento das lideranças trabalhistas na região. O resultado foi que sobre o Massacre de Ipatinga instalou-se um pacto de silêncio, que somente foi quebrado nos anos de 1980, com a fundação do PT que, entre 1989 e 2001, esteve à frente da Prefeitura de Ipatinga por quatro mandatos, dos quais três por intermédio de Chico Ferramenta, um ex-metalúrgico da Usiminas, recentemente falecido.

Porém, a despeito da quebra do pacto de silêncio, permaneciam muitas dúvidas em relação ao que teria ocorrido no 7 de outubro de 1963. A principal delas dizia respeito ao número de mortos. Havia a crença de que o número de vítimas fatais era muito maior do que o que apontavam os registros oficiais. Mas nunca foram apresentadas provas nesse sentido.

Em 2004, na gestão de Luiz Inácio Lula da Silva na Presidência da República, abriu-se uma possiblidade de que esse mistério pudesse ter fim. Lula enviou ao Congresso uma medida provisória que permitia que familiares de pessoas que perderam a vida em função do regime militar pudessem solicitar uma indenização. Era uma reedição de medida semelhante apresentada anos antes pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. A diferença era que a MP de Lula permitia que fossem indenizados familiares de pessoas que perderam a vida durante protestos de rua. No governo de Fernando Henrique somente puderam ser indenizados familiares de pessoas que morreram em dependências públicas, ou seja, delegacias e instituições semelhantes.

A MP de Lula abria caminho para que pela primeira vez, o Estado brasileiro indenizasse os familiares das pessoas que morreram no dia 7 de outubro. A expectativa era que familiares de mais pessoas, além das oito que constam nos documentos oficiais, entrassem com o pedido, o que não ocorreu. Sendo assim, o número oficial de mortos permanece como sendo de oito.

Porém, não entram na contabilidade oficial três desaparecidos, cuja existência chegou até mim quando eu era repórter do jornal “Estado de Minas”. Após a publicação de reportagem sobre o Massacre de Ipatinga, em 2004, fui procurado por uma pessoa, Aloísio Salgado que estava em busca do pai, Gesulino França de Souza. Na peregrinação, a última informação que havia obtido era de que o pai estava, junto com o amigo Fábio França de Souza, na aglomeração que se formou em frente a um dos portões de entrada da empresa no dia 7 de outubro de 1963. A partir daí, nenhuma informação a mais sobre ele foi possível obter. Presumivelmente, Gesulino e Fábio estão mortos. Porém, como não havia os corpos, o correto é dizer que eles estão desaparecidos.

Um terceiro desaparecido é João Flávio Neto, cuja irmã afirma que ele sumiu na mesma época, embora não haja testemunhas de que estivesse no local em 7 de outubro. Assim, na conta das vítimas do Massacre de Ipatinga é preciso acrescentar, além dos oito mortos, a existência de três desaparecidos.

Havia dúvidas quanto ao número de feridos.  No IPM aberto em 7 de outubro, constam 47 vítimas que foram atendidas os hospitais da região após os disparos. Porém, do IPM não fez parte uma outra lista de feridos: a dos que foram atendidos no ambulatório da Usiminas em consequência dos acontecimentos da noite do dia 6 e madrugada do dia 7. O cruzamento das duas listas resulta em um número total de 92 feridos. Esse cruzamento revelou algo bizarro: houve pessoas foram feridas duas vezes, nos acontecimentos da noite e madrugada de 6 e 7 e, novamente, no desfecho trágico do final da manhã do dia 7.

Esse número final foi obtido por mim durante o trabalho de consultoria que prestei à Comissão Estadual da Verdade em Minas Gerais (Covemg), em 2016 e 2017. Além de trazer à luz novos fatos, como o total de vítimas, no relatório final propus a revisão da ideia do que foi o Massacre de Ipatinga que, até então, levava em conta apenas os acontecimentos da manhã de 7 de outubro. A bem da verdade, o Massacre de Ipatinga deve ser considerado como um processo único, com duração de aproximadamente 12 horas, que se iniciou na troca de turno das 22h do dia 6, adentrou a madrugada do dia 7 – com a prisão de aproximadamente 300 trabalhadores nos alojamentos de Santa Mônica – e terminou pela manhã do mesmo dia, com a concentração operária em frente ao portão de entrada da empresa, que foi dissolvida a tiros pelos policiais militares.

O número final de atingidos pela repressão nos dias 6 e 7 caracteriza o Massacre de Ipatinga como o conflito operário mais sangrento e com maior número de vítimas na história do Brasil. Relembrar e compartilhar aqueles acontecimentos é fundamental para a construção de uma cultura histórica em nosso país e para que nunca mais massacres ocorram.

Antônio Concenza/Estado de Minas – 09/10/1963 – Chacina em Ipatinga – Operarios da Usiminas observam o cadaver de um companheiro assassinado durante o massacre realizado em Ipatinga por soldados da Policia Militar.

PARA SABER MAIS:

Freitas, Marcelo. Não foi por acaso: a história dos trabalhadores que construíram a Usiminas e morreram no Massacre de Ipatinga. Belo Horizonte: Comunicação de Fato Editora. Disponível em www.comunicacaodefato.com.br

Soares, Daniel Miranda. “O Massacre de Ipatinga”.Cadernos do CET nº 17, Petrópolis: Editora Vozes, 1982

Sampaio, Aparecida Pires «A produção social do espaço urbano de Ipatinga-MG: da luta sindical à luta urbana» Universidade Candido Mendes (UCAM), 2008.

Documentário: Silêncio 63 de Fábio Nascimento, 2011.


Crédito da imagem de capa: O corpo de José Isabel do Nascimento, em reportagem da revista ‘O Cruzeiro’

O Nascimento da CUT #02 | com Zica Oliveira.



Há 40 anos nascia a maior e mais duradoura central sindical da história do Brasil. A fundação da Central Única dos Trabalhadores (CUT) em 28 de agosto de 1983, na cidade de São Bernardo era fruto direto de uma efervescente conjuntura iniciada com uma onda de greves e mobilizações sociais que tomou conta do país a partir de 1978. A luta dos trabalhadores impactou os rumos da redemocratização e colocou o movimento sindical no centro da arena política.
Para refletir sobre aquela conjuntura, o “Vale Mais”, podcast do LEHMT/UFRJ, lança “O nascimento da CUT”, uma série de cinco programas em que contamos as histórias de cinco sindicalistas que estavam em São Bernardo naquele 28 de agosto de 1983. No segundo episódio, Zica Oliveira, trabalhadora doméstica do Rio de Janeiro, fala das lutas das domésticas para terem seus direitos reconhecidos como trabalhadoras e da participação da categoria no processo de fundação da CUT.

Projeto e execução: Deivison Amaral, Inghrid Masullo, Larissa Farias, Paulo Fontes e Yasmin Getirana | Assessoria: João Marcelo Pereira dos Santos | Roteiro: Yasmin Getirana | Edição: Deivison Amaral | Apresentação: Larissa Farias | Entrevista: Deivison Amaral e Yasmin Getirana

Livros de Classe #36: A greve no masculino e no feminino, de Marta Rovai, por Paula Elise Soares

Neste episódio de Livros de Classe, Paula Elise Soares, professora do Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG), apresenta o livro “A greve no masculino e no feminino [Osasco, 1968]”, de Marta Gouveia Rovai. Fruto de sua tese de doutorado, a obra tece uma análise das relações de gênero a partir da memória coletiva sobre a greve de Osasco de 1968. O denso trabalho de história oral realizado pela autora deu centralidade à experiência feminina no movimento operário e na resistência à ditadura naquele contexto.

Livros de Classe

Os estudantes de graduação são desafiados constantemente a elaborar uma percepção analítica sobre os diversos campos da história. Nossa série Livros de Classe procura refletir justamente sobre esse processo de formação, trazendo obras que são emblemáticas para professores/as, pesquisadores/as e atores sociais ligados à história do trabalho. Em cada episódio, um/a especialista apresenta um livro de impacto em sua trajetória, assim como a importância da obra para a história social do trabalho. Em um formato dinâmico, com vídeos de curtíssima duração, procuramos conectar estudantes a pessoas que hoje são referências nos mais diversos temas, períodos e locais nos mundos do trabalho, construindo, junto com os convidados, um mosaico de clássicos do campo.

A seção Livros de Classe é coordenada por Ana Clara Tavares.

O Nascimento da CUT #01 | com Almerico Lima.


Há 40 anos nascia a maior e mais duradoura central sindical da história do Brasil. A fundação da Central Única dos Trabalhadores (CUT) em 28 de agosto de 1983, na cidade de São Bernardo era fruto direto de uma efervescente conjuntura iniciada com uma onda de greves e mobilizações sociais que tomou conta do país a partir de 1978. A luta dos trabalhadores impactou os rumos da redemocratização e colocou o movimento sindical no centro da arena política.


Para refletir sobre aquela conjuntura tão especial, o “Vale Mais”, podcast do LEHMT/UFRJ, lança “O nascimento da CUT”, uma série de cinco programas em que contamos as histórias de cinco sindicalistas que estavam em São Bernardo naquele 28 de agosto de 1983. No nosso primeiro episódio, Almerico Lima, petroquímico da Bahia, relata sobre sua história de militância sindical durante a redemocratização do país e conta suas experiências no Congresso de Fundação da CUT.

Projeto e execução: Deivison Amaral, Inghrid Masullo, Larissa Farias, Paulo Fontes e Yasmin Getirana | Assessoria: João Marcelo Pereira dos Santos | Roteiro: Deivison Amaral | Edição: Deivison Amaral | Apresentação: Larissa Farias | Entrevista: Deivison Amaral e Larissa Farias

Vale a Dica #05: Dois dias, uma noite, de Jean-Pierre Dardenne e Luc Dardenne


Nesta quinta edição da série “Vale a Dica”, Alexandra Veras, doutoranda em história pela UFRJ e pesquisadora do LEHMT/UFRJ, indica o filme “Dois dias, uma noite”, dirigido por Jean-Pierre Dardenne e Luc Dardenne. Lançado em 2014 e protagonizado por Marion Cotillard, o filme retrata a história de Sandra, operária, mãe e esposa. Devido a um quadro de depressão, precisa ser afastada de seu trabalho e quando retorna descobre que os funcionários da fábrica optaram por um bônus no lugar do seu emprego. Sandra, em dois dias, uma noite, tenta então convencer seus colegas a não aceitarem o bônus e assim retomar seu emprego. O filme nos permite reflexões acerca das transformações em curso nos mundos do trabalho e de seus impactos na saúde mental de trabalhadores e trabalhadoras.

Projeto e execução: Alexandra Veras, Isabelle Pires, Larissa Farias, Victória Cunha e Yasmin Getirana

Chão de Escola #34: professora Ynaê Lopes fala sobre os 20 anos da Lei 10.639/03



Olá, Ynaê, é um prazer receber você na seção Chão de Escola do LEHTM-UFRJ, em nossa série de discussões sobre a Lei 10.639/03. Você tem feito um esforço de letramento étnico-racial para além da academia em várias ações como professora da UFF, articulista de uma coluna na Deutsche Welle (DW) e na Rede de Historidoras e Historiadores Negros. . Como que você vê a temática étnico-racial na acadêmica e sua relação com a educação básica e o trabalho docente?

Eu vejo a temática étnico-racial na Academia em duas perspectivas. Uma delas é a perspectiva que diz respeito aos pesquisadores, professores e professoras que se dedicam ao tema. Então a gente tem há muito tempo e em diferentes áreas uma expertise muito grande no que diz respeito ao trabalho com as questões étnico-raciais. Na historiografia, eu ressalto  as análises da história da escravidão no Brasil e também do pós-abolição. Temos também pesquisas na área da sociologia, da antropologia e da educação, então, sem sombra de dúvida, há uma qualidade indiscutível no trabalho feito por pesquisadores brasileiros no campo da questão étnico-racial, embora ainda falte um diálogo mais aprofundado com outras áreas, na medida em que eu defendo que a temática étnico-racial não é exatamente um objeto de pesquisa, mas ela guarda uma centralidade na organização da história brasileira e das Américas também. Então, acredito cada vez mais na impossibilidade de pensar temas que são temas constitutivos da história do Brasil, pra ficar aqui na nossa perspectiva, sem um diálogo mínimo com as questões étnico-raciais.

A historiografia dita mais clássica, a história política por exemplo, muitas vezes esteve distante desse debate. É algo que precisa começar a ser repensado. Eu faço parte do grupo de historiadores e intelectuais que defendem a impossibilidade de uma perspectiva brasileira em qualquer momento da nossa história que não passe pelo debate étnico-racial.

Mas, para aqueles que estão travando esse debate como tema de pesquisa, a relação com a educação básica e com o trabalho feito pelos professores é fundamental, porque o que a gente está propondo é o que tem se convencionado chamar de letramento racial. Existe uma constatação principal nos estudos da área étnico-racial no Brasil  de que a manutenção racista do Brasil se dá a partir de uma série de silenciamentos. É fundamental que esses silenciamentos sejam rompidos tanto na Academia, mas sobretudo nas escolas que infelizmente foram, ao longo da História do Brasil, espaços de perpetuação de uma lógica racista e silenciosa brasileira.

Então, o trabalho com a Educação Básica é fundamental, indissociável das pesquisas étnico-raciais e isso ficou ainda mais evidente com a promulgação da Lei 10.639 e depois com a 11.645 que são leis fomentadas, pensadas, articuladas por movimentos sociais negros e indígenas e que exigem, efetivamente, uma entrada dessas temáticas nos currículos brasileiros, algo que durante muito tempo não foi feito ou foi feito de maneira muito torta, de maneira que mantivesse indígenas e africanos e seus descendentes como uma espécie de anedota da História do Brasil e não como construtores reais desse país.

Eu acho que inclusive essa perspectiva desse diálogo constante e praticamente incontornável com o universo escolar brasileiro, com o Chão da Escola, é outra marca positiva de quem tem se aventurado a ter a questão étnico-racial como tema de pesquisa e que em última instância também nos leva para o que a gente chama de História Pública na área de História, para um debate mais amplo pra outros setores da sociedade que não sejam só a Academia ou só o espaço escolar, mas que estejam pensando uma produção crítica do saber histórico veiculado de forma adaptada para que mais pessoas possam ter acesso.

Acreditamos que dois episódios recentes de nossa história amarram a questão de letramento racial e de classe à temática do Patrimônio. Em 2017, o Cais do Valongo foi declarado Patrimônio da Humanidade e em 2021 tivemos a estátua de Borba Gato incendiada em São Paulo. Como você percebe esses dois episódios atrelados a um letramento étnico-racial e ao questionamento de memória?

Sobre a segunda questão que vocês me colocam, eu acho que, em primeira instância, é preciso lembrar que esses dois episódios demonstram como que a escravidão e o racismo, mas sobretudo a escravidão, num primeiro momento, é um passado presente. Obviamente a instituição escravista não existe a 135 anos no Brasil, mas a gente tem uma série de amarras que foram construídas durante o período da escravidão e, sobretudo, depois da abolição da escravidão, já na vigência de um regime republicano, que organizaram o Brasil de uma maneira absolutamente desigual, e combinada, e essa desigualdade estava pautada na ausência da presença negra nesse lugar de trabalhador livre, trabalhador brasileiro, uma perspectiva positiva de brasilidade. Essa aí é uma aposta de sucesso da República brasileira, em pelo menos nos seus [primeiros?] 70/80 anos de existência. Então, esses dois episódios, tanto o incêndio da estátua do Borba Gato quanto à declaração do Valongo como Patrimônio da Humanidade, demonstram que por mais que tenha havido um esforço político muito significativo no sentido de manter essas histórias e sobretudo as memórias em relação a escravidão, e a tudo que ela construiu, a ordenação racial que ela sustenta em silêncio, esses silêncios estão sendo rasgados. Estão sendo rasgados pela própria condição e estrutura material do Rio de Janeiro, que foi a maior cidade escravista do mundo, então, a História do Valongo não é só uma história do Rio de Janeiro nem só do Brasil, é uma história que conta muito do que foi esse espaço Atlântico e, o incêndio da estátua do Borba Gato também está atrelado a um debate e a um reposicionamento político mais amplo, também numa escala Atlântica, que aconteceu nesses últimos anos. Ainda bem que tem-se questionado como que essas figuras que foram monumentalizadas e passaram por esse processo sem uma leitura minimamente crítica das suas biografias, sem entender na verdade quem foram esses sujeitos. Como Borba Gato, que é um dos muitos bandeirantes que existiram na história brasileira, e nós sabemos quais eram as funções dos bandeirantes, a serviço da escravização indígena, da destruição de Quilombos e assim por diante. Então, o que eu vejo é que nós temos agora, nestes últimos anos, em grande medida por conta também de uma facilitação do acesso a informação por conta das Redes Sociais, o que é, a meu ver, a parte positiva do uso das Redes, a possibilidade mais democrática de acesso a informação, por mais que nem sempre essa informação seja correta, a gente tem o problema das fake news, é sempre fundamental lembrar disso, mas há um uso positivado dessas redes no sentido de fazer circular informações que estiveram durante muito tempo restritas ao universo acadêmico.

Os historiadores que trabalham com a história da escravidão no Brasil, já sabiam há muito tempo aonde ficava o Valongo, assim como parte significativa dos movimentos sociais que vivem em volta ali da região da Gamboa e da Saúde que são descendentes de pessoas que moram ali, de famílias que moram ali há décadas. São pessoas que salvaguardam a memória desse lugar e, sobretudo, a memória negra desse lugar. Então, pra quem trabalha nessa perspectiva não havia uma novidade, mas a sociedade brasileira, na sua escala maior, desconhece essa história. Nós fomos ensinados a entender figuras como Borba Gato como heróis da Nação. Então, o que a gente tem é uma perspectiva crítica em questionar esses lugares sociais, esses marcadores sociais que foram feitos, que determinam quem deve ser monumentalizado, sobre quem nós contamos na história. E existe uma radicalidade que, em muitos casos é muito bem vinda, de se negar a manter essa percepção de brasilidade, sobretudo essa estruturação de poder que organiza essa percepção de brasilidade. Então, a Memória é um espaço de disputa muito importante, todo mundo quer saber o que é e da onde veio, é algo que transcende possíveis escolhas profissionais. A identidade, a construção da identidade é um atributo da humanidade, então as disputas das memórias é algo fundamental para que a gente comece a mudar justamente o que a gente entende como sendo Brasil. Então, esses dois episódios são episódios muito interessantes para se pensar numa transformação que imagino ser muito positiva no sentido de questionar essa ordenação que silenciou o Cais do Valongo, que aterrou o Cais do Valongo durante séculos e que ao mesmo tempo constrói estátuas enormes de um homem que foi, sem sombra de dúvidas, um genocida.

Na construção histórica que tivemos no país, classe e raça são elementos nada desprezíveis. Pensando nos Mundos do Trabalho e nas pesquisas atuais, quais construções, conceitos ou linhas de pesquisa, você considera que avançaram nessa relação entre classe e raça à brasileira?

Bom, sobre a terceira pergunta, pensando mais especificamente nos Mundos do Trabalho. Nós temos avanços importantíssimos, sem sombra de dúvida, em relação a essa intersecção de classe e raça para entender a sociedade brasileira. Nós temos trabalhos muito interessantes e importantes que, inclusive, tem revisitado uma ideia que foi construída desse Mundo do Trabalho que, num primeiro momento, é um Mundo do Trabalho Livre e um Mundo do Trabalho Livre Branco. Então isso tem sido questionado, a própria ideia subjacente aos Mundos do Trabalho, que durante muito tempo excluiu a presença e a ação dos escravizados, que foram os construtores primeiros da sociedade brasileira, e também que durante muito tempo pareceu colocar trabalhadores negros e brancos num mesmo lugar. Em um lugar que muitas vezes silenciava as opressões raciais as quais os trabalhadores negros livres estavam sujeitos e isso, ainda bem, tem se transformado, tem se modificado em grande medida decorrente da presença de intelectuais e professores negros que estão trabalhando nesse universo dos Mundos do Trabalho e que estão trazendo questionamentos novos.

A própria racialização desse Mundo do Trabalho é um grande avanço que nós tivemos, na medida em que ele permite entender que esse Mundo do Trabalho é organizado não só por questões de classe mas, também, por questões de raça. Mas eu acredito que ainda precisamos caminhar numa perspectiva que permita, sobretudo em análises mais de síntese, porque nós temos muitos trabalhos monográficos, teses, dissertações, fundamentais que estão trabalhando em diferentes partes do Brasil, em diferentes momentos da História brasileira, com os mundos do trabalho nas suas especificidades. Mundos do trabalho na região norte, como é que as questões raciais e de classe se organizam, no sudeste é diferente, assim como no sul. Então essas diferenças regionais também devem ser pontuadas e nós temos uma quantidade muito significativa de trabalhos muito sérios e competentes feitos nesse sentido, mas acredito que ainda faltam análises de síntese mais contundentes que de fato, em alguma medida, reinaugurem a própria ideia de trabalho no Brasil, sobretudo na área da história.

Como é que ainda existe por conta, obviamente, do racismo que nos ordena, isso é muito evidente, nos livros didáticos no Brasil, por exemplo, uma ideia de que o negro brasileiro se circunscreve a experiência da escravidão. Não que a experiência da escravidão não seja fundamental e seja experimentada sobretudo pela população negra e ameríndia, é importante enfatizar isso, mas nós temos uma série de experiências de trabalhadores e trabalhadoras negros em liberdade ainda na vigência da escravidão e sobretudo após o 13 de maio de 1888. E isso ainda está muito circunscrito ao mundo acadêmico.

Acho que falta um esforço nosso aqui, de pensar em sínteses mais críticas e contundentes que permitam uma revisitação inclusive da maneira como a história brasileira vem sendo contada nos últimos anos e acredito que um caminho muito importante pra isso seria uma aproximação maior dos estudos feitos do Mundo do Trabalho com os estudos feitos no pós-abolição que em grande medida trazem biografias e estratégias de sobrevivência da população negra durante a vigência da República, mas também nos anos finais do Império do Brasil e que mostram justamente uma série de articulações feitas por esses sujeitos que muitas vezes ficaram silenciadas nos estudos do Mundo do Trabalho ou nos estudos sobre a história política do Brasil.

Acho que nós temos avanços significativos, acho que a própria consciência de que não se pode pensar no trabalho no Brasil sem os condicionantes de classe e raça e eu adicionaria também, de gênero, porque nós temos um país em que o serviço doméstico é fundamental para o funcionamento do Brasil hoje. Isso, obviamente, é resultado de um acúmulo de experiências brasileiras e esse serviço doméstico ele é feito majoritariamente por mulheres negras que por sua vez são a maior parte da população brasileira. Então nós também precisamos pensar em gênero no universo do Mundo do Trabalho pra que a gente possa ter uma percepção mais precisa e também mais crítica do que são esses mundos e de como eles são organizados a partir dessas camadas raciais, de classe, de gênero, sexuais também. Então acho que a gente pode ampliar o debate nesse sentido.

Tendo em vista os 20 anos da promulgação da Lei 10.639/03, você poderia fazer um breve balanço da importância dessa lei para o ensino de História? Falar um pouco sobre os avanços que ela proporcionou e os entraves e limites que ainda são enfrentados?

E por fim, pensando aqui sobre a lei 10.639 que em 2023 comemora os seus 20 anos, é uma lei que eu considero fundamental por dois aspectos. O primeiro é pela sua origem, é uma lei que ela é decorrente de um processo histórico e longo dos movimentos sociais negros brasileiros, é uma exigência feita pelo movimento negro de uma nova forma de entender a história brasileira, uma maneira que traga as experiências negras e africanas para o debate. Então, foi uma medida que a primeira vez que ela aparece é na Constituição de 1988,  acaba não sendo aprovada, essa demanda acaba não sendo absorvida na Constituição, mas como o debate sobre o racismo não parou por conta, justamente, das ações dos movimentos negros brasileiros, essa lei foi implementada há vinte anos atrás. Então, reconhecer as origens dessa lei é fundamental porque a gente muitas vezes naturaliza que as leis existem e não entende o que está por trás ou quem são as pessoas que estão formulando as leis no Brasil ou pelo menos pressionando para que as leis sejam formuladas. E, obviamente, o que nós temos também como grande ganho é o conteúdo dessa lei, a exigência de se pensar o processo educacional brasileiro a partir, também, das presenças africanas e negras em meio a esse processo. Isso significa falar mais sobre o continente africano do qual nós somos herdeiros diretos, sobretudo das regiões africanas das quais vieram africanos escravizados pra cá, então, obviamente a gente não pode perder a dimensão continental da África, embora isso ainda seja um problema no Brasil, reconhecer a diversidade africana e entender que para o Brasil faz muito mais sentido conhecer sociedades africanas das quais nós somos diretamente herdeiros do que, por exemplo, ficar, enfim, vagando por histórias da antiguidade ou do medievo que pouco falam sobre nossa constituição nacional. Não que elas não sejam interessantes e fundamentais para pensar a experiência humana, mas elas não são as únicas maneiras. Então, acho que esses são os dois principais avanços.

Nós temos, como eu disse no começo dessa entrevista, a escola como um espaço privilegiado de manutenção do racismo no Brasil e, qualquer criança, qualquer pessoa negra, provavelmente terá uma história de racismo pra contar nas escolas. Inclusive, muitas crianças negras foram apresentadas oficialmente ao racismo na sua experiência escolar, fosse pelas brincadeiras, as ditas brincadeiras de mau gosto, que são na verdade práticas racistas dos colegas, fosse pelo olhar de inferioridade dos professores que achavam que esses alunos e alunas negras seriam inferiores intelectualmente, fosse pelos livros didáticos, e aí acho que nós temos que ter muito cuidado com isso porque somos historiadores. Os livros didáticos na área de História no qual a presença negra, praticamente, a figura, as figuras negras não são apresentadas e quando são, são sempre lugares sociais de subalternidade. Então essa lei permite que a gente, também, de certa maneira, proponha uma espécie de redenção a essa estrutura racista no universo escolar para a maior parte da população brasileira.

É sobre isso, também, que estamos falando. A maior parte dos alunos brasileiros e brasileiras nas escolas são meninos e meninas negras que têm a sua construção identitária pautada por uma série de ausências, silêncios e lugares socialmente demarcados. Isso constrói a identidade dos brasileiros e brasileiras negros e negras. Então nós temos uma responsabilidade em transformar isso e a lei 10.639 foi pensada justamente no sentido de quebrar essa lógica racista que obviamente organiza as escolas, mas que tem uma dimensão muito mais ampla. Se você é uma criança que nunca se vê de maneira positiva, seja nos livros, qualquer livro, seja o livro de História ou nos livros de Literatura, seja no que é considerado arte, naquilo que é considerado belo e de quem pode fazer arte, isso obviamente determina como você está enxergando o mundo e como você está se enxergando no mundo. Então a lei 10.639, na minha perspectiva, tem um caráter quase revolucionário de romper com essas amarras e estruturas do racismo, sobretudo no espaço escolar, porque é ali que as crianças são ensinadas a como o racismo organiza suas vidas, sejam elas as crianças negras, sobretudo, que são as que sofrem com o racismo, mas as crianças brancas que passam a perpetuar esse lugar de racistas, é importante também dizer isso. Numa sociedade organizada pelo racismo, como eu defendo que é a sociedade brasileira, a gente não tem muitas possibilidades. Ou você é uma pessoa racista ou você é uma pessoa contra o racismo. E como o racismo no Brasil é uma estrutura, se não há um movimento contrário ao racismo a única opção que nós temos é a manutenção do racismo. Isso a gente vê de forma muito latente na experiência escolar, infelizmente e ainda. Então acho que esses são os principais avanços dessa lei.

Nós temos uma série de entraves e limites que ainda são enfrentados. Primeiro na própria execução da lei. Em muitas escolas, pra que essa lei seja executada é preciso que haja algum tipo de supervisão, por um lado, e de acompanhamento para entender se a lei está sendo cumprida e como ela está sendo cumprida. Infelizmente em muitos casos a gente vê que o cumprimento da lei se dá geralmente no 20 de novembro quando as escolas se organizam e falam um pouco do que foi Palmares e pensam 2 ou 3 outros importantes personagens negros da história brasileira, mas aí durante todo o restante do ano escolar a gente continua vendo a ausência negra nessas histórias que são contadas. Então, eu acho que a lei ela é fundamental na medida em que ela promove ou proporciona a possibilidade de uma revisitação contundente ao nosso currículo.

O que eu acho mais interessante da lei 10.639 é que quando ela nos obriga a pensar o Brasil a partir da sua negritude e da sua afro-existência, ela tá pensando uma outra maneira de contar história. É uma lei que não é só uma lei de novos conteúdos a serem abordados nas escolas, é de uma nova forma de ensinar as ideias de Brasil, seja na área da História, na área das Artes, na Literatura, que geralmente são as áreas que mais abordam essas questões.

Nós vivemos num país que é abertamente racista e conservador, então nós temos uma série de limites e entraves, a primeira delas é o fato que durante muito tempo, sobretudo os professores e professoras das redes municipais e estaduais não tiveram formação pra poder dar esses conteúdos, então a gente ainda precisa retomar algo que foi feito durante os primeiros anos da implementação da lei, que é a formação continuada desses professores e professoras. É preciso que haja uma vontade política tanto no âmbito federal, quanto estadual, quanto municipal e também das instituições escolares para que essa lei seja realmente implementada e o enfrentamento real com uma série de posições conservadoras, tanto políticas como também religiosas, que mantém uma ideia que foi construída no Brasil propositadamente de que as populações negras são inferiores ou que as religiões de matrizes africanas são religiões do demônio ou coisas que o valha. Então, a gente tem entraves tanto no cotidiano escolar quanto, também, nas esferas políticas, nas esferas públicas do Brasil e obviamente os últimos anos do governo Bolsonaro essa dificuldade só aumentou porque o espaço do conservadorismo brasileiro também se ampliou consideravelmente.

Imagino que nós precisemos ampliar os esforços em todas essas escalas para que a gente tenha uma transformação efetiva, que a gente possa galgar aquilo que a lei traz de mais poderoso, de mais transformador, que é repensar o Brasil a partir da presença e das ações efetivas das populações negras e africanas ao longo dos nossos cinco séculos de existência. E, obviamente, atrelar essa discussão à discussão indígena que foi também uma demanda que foi absorvida alguns anos depois pela lei 11.645 que fala sobre os povos indígenas no Brasil e que encontra dificuldades muito parecidas com a 10.639 na medida em que a gente mantém esse olhar  profundamente racista e segregador para as populações indígenas no país.


Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (2012), Mestre em História Social pela Universidade de São Paulo (2007), bacharel e licenciada em História pela USP (2002). Atualmente é Professora Adjunta no Instituto de História da Universidade Federal Fluminense – UFF. Realiza Pesquisa na aérea de História da América, com ênfase em Escravidão Moderna e Relações Étnico-Raciais nas Américas, atuando principalmente nos seguintes temas: escravidão, América ibérica, formação dos Estados Nacionais, cidades escravistas , relações étnico raciais e ensino de história.


Crédito da imagem de capa: Primeira Marcha Zumbi – Foto: Geledés Instituto da Mulher Negra /Rede de Historiadores Negros /Acervo Cultne.


Chão de Escola

Nos últimos anos, novos estudos acadêmicos têm ampliado significativamente o escopo e interesses da História Social do Trabalho. De um lado, temas clássicos desse campo de estudos como sindicatos, greves e a relação dos trabalhadores com a política e o Estado ganharam novos olhares e perspectivas. De outro, os novos estudos alargaram as temáticas, a cronologia e a geografia da história do trabalho, incorporando questões de gênero, raça, trabalho não remunerado, trabalhadores e trabalhadoras de diferentes categorias e até mesmo desempregados no centro da análise e discussão sobre a trajetória dos mundos do trabalho no Brasil.
Esses avanços de pesquisa, no entanto, raramente têm sido incorporados aos livros didáticos e à rotina das professoras e professores em sala de aula. A proposta da seção Chão de Escola é justamente aproximar as pesquisas acadêmicas do campo da história social do trabalho com as práticas e discussões do ensino de História. A cada nova edição, publicaremos uma proposta de atividade didática tendo como eixo norteador algum tema relacionado às novas pesquisas da História Social do Trabalho para ser desenvolvida com estudantes da educação básica. Junto a cada atividade, indicaremos textos, vídeos, imagens e links que aprofundem o tema e auxiliem ao docente a programar a sua aula. Além disso, a seção trará divulgação de artigos, entrevistas, teses e outros materiais que dialoguem com o ensino de história e mundos do trabalho.

A seção Chão de Escola é coordenada por Claudiane Torres da Silva, Luciana Pucu Wollmann do Amaral e Samuel Oliveira.

Apresentação e Debate: Desindustrialização, gênero e memória em Bilbao (1975-2000) – David Beorlegui (Udima)

Desde o final do século XIX, Bilbao consolidou-se como a grande cidade industrial da Espanha. A palestra abordará o vertiginoso processo de desindustrialização que a metrópole basca viveu nas últimas décadas, com ênfase em suas consequências sociais e ambientais.

David Beorlegui é professor da UDIMA em Madrid, Espanha, e pesquisador do grupo Experiência Moderna (Universidade do País Basco). Atualmente é o presidente da International Oral History Association.

Essa atividade integra o Projeto PROBRAL “Desindustrialização e História Social”, apoiado pela CAPES e DAAD e é promovida conjuntamente pelos grupos de pesquisa e laboratórios IMAN, LabHeN, LEHMT e DTA.

Dia 28 de setembro (quinta-feira) às 14h30
Auditório Evaristo de Morais Filho – IFCS

Contribuição Especial #29: Chile 1973: um golpe contra os trabalhadores e trabalhadoras


Ángela Vergara
Professora do Departamento de História da California State University Los Angeles


O golpe de Estado de 11 de setembro de 1973 foi um golpe contra os trabalhadores e seus sonhos de construir uma sociedade mais justa e democrática. Uma contrarrevolução, liderada pelas Forças Armadas e apoiada por amplos setores da sociedade civil e pelo governo dos EUA, que buscava, entre outras coisas, eliminar as conquistas sociais e desmobilizar o movimento sindical e camponês que, nos últimos três anos, havia tomado as fábricas e fazendas e “marchado pelas grandes Alamedas” para apoiar o governo do “companheiro Presidente.”

As trajetórias políticas dos líderes sindicais refletem como o golpe pôs fim ao processo de mobilização social e radicalização da década de 1960. Em setembro de 1973, Héctor Olivares Solís era membro do parlamento e militante do Partido Socialista. Olivares havia iniciado sua carreira política como líder sindical na mina de cobre El Teniente na década de 1940, na época da Kennecott Corporation. Junto com outros líderes sindicais, ele participou da fundação da Confederação dos Trabalhadores do Cobre e lutou incansavelmente pela nacionalização do cobre e pela expansão dos direitos trabalhistas. Olivares estava familiarizado com a repressão estatal e havia sido preso e mantido incomunicável por convocar uma greve geral em meados da década de 1960. Do sindicato, ele foi para a Câmara dos Deputados em 1965, representando seu distrito de mineração, Machalí, onde lutou por melhores condições de trabalho para todos os chilenos e apoiou Salvador Allende.

Quando os militares tomaram o poder, os políticos e líderes sociais foram instados a se apresentar “voluntariamente” às novas autoridades. Aqueles que o fizeram não tinham ideia da violência que os aguardava. Olivares se apresentou e seguiu o caminho de muitos prisioneiros políticos: escola militar, campo de concentração da Ilha Dawson, no sul da Patagônia, e exílio. Em junho de 1992, de volta ao Chile e mais uma vez eleito deputado, o ex-líder sindical lembrou-se de Allende como “um homem que, apesar de não ser filho de um trabalhador, apesar da classe a que pertencia, durante sua carreira como militante do Partido Socialista, foi coerente não apenas com um ideal político, mas com os trabalhadores, com os despossuídos deste país e também com o povo do Chile, para quem sempre quis o melhor”.

Assim como Olivares, a grande maioria dos líderes sindicais tinha uma forte lealdade a Allende e sofreram na própria carne o golpe de Estado. Trabalhadores, líderes camponeses e funcionários públicos foram presos, executados ou desapareceram de seus locais de trabalho, bairros ou casas. Em muitos casos, houve cumplicidade por parte dos empregadores, que não apenas denunciaram seus funcionários, mas também colaboraram com a detenção, transferência e até mesmo  com o assassinato de líderes sindicais, camponeses e trabalhadores.

O impacto do golpe no mundo sindical e nas condições de trabalho pode ser lido nas ordens militares e nos decretos-lei emitidos pela junta militar nos dias e meses que se seguiram ao golpe. Para o historiador Danny Monsálvez, esses instrumentos legais foram usados pela ditadura para institucionalizar e legitimar a repressão, bem como para controlar a população e impor um clima de medo e terror. Embora em seu primeiro comunicado a junta tenha prometido aos trabalhadores “que as conquistas econômicas e sociais obtidas até o momento permaneceriam fundamentalmente inalteradas”, na prática isso não aconteceu. Com o passar dos dias, ficou claro que as fábricas se tornariam um laboratório para a imposição do modelo neoconservador dos militares e de seus aliados civis e empresariais.

Uma das primeiras ações contra os trabalhadores foi a suspensão da negociação coletiva e dos reajustes salariais e previdenciários. Por um lado, essa foi uma medida econômica destinada a controlar a inflação; por outro lado, teve um caráter político e antissindical que corroeu o poder dos trabalhadores e as formas tradicionais de luta. As Forças Armadas também acreditavam que o marxismo havia se “infiltrado” no movimento sindical, por isso decidiram suspender as eleições sindicais e vigiar de perto suas reuniões, estabelecendo também que os sindicatos, “suas direções e seus líderes devem se abster de qualquer atividade de natureza política no exercício de suas funções”.  Na prática, o decreto foi ainda mais abrangente, destruindo os espaços de participação e os vínculos que existiam entre os trabalhadores e seus líderes e os partidos políticos.

Passeata de trabalhadores em apoio ao Presidente Salvador Allende durante o governo da Unidade Popular. Referência: https://teoriaedebate.org.br/2018/06/20/%EF%BB%BFreflexoes-sobre-a-experiencia-do-governo-da-unidade-popular-chileno-1970-1973/

O caso da repressão contra a Central Única dos Trabalhadores, a principal confederação de trabalhadores do país, foi particularmente severo. Durante o governo da Unidade Popular, a CUT não só havia obtido reconhecimento legal, como também desempenhava um papel importante no governo e no processo de participação popular. Para os golpistas, a CUT era sinônimo de radicalização e politização do movimento dos trabalhadores e foi duramente reprimida. Em 24 de setembro de 1973, a CUT perdeu seu status legal e todos os seus bens foram confiscados.

A  repressão assumiu muitas formas, sendo uma delas a demissão, que afetou não apenas aqueles que haviam desempenhado um papel de liderança durante os anos da Unidade Popular, mas também aqueles que simpatizavam com Salvador Allende. O simples fato de ter participado de uma assembleia ou de uma manifestação popular poderia ser usado como motivo para demissão. Um decreto permitiu que os empregadores demitissem por motivos que supostamente prejudicassem a ordem pública, ao mesmo tempo em que o governo militar declarou quase todo o pessoal da administração pública como “interino”. Ao eliminar as regras de proteção ao emprego, os empregadores e os interventores militares usaram a demissão como uma forma de represália que também lhes permitiu eliminar qualquer resistência aos processos de reestruturação produtiva. Na prática, a repressão política e sindical estava sempre ligada às reformas econômicas, e as demissões eram uma arma eficaz de controle em um contexto econômico precário de alto desemprego e incerteza quanto ao futuro.

As medidas econômicas, primeiro de estabilização e depois de refundação e implementação de um modelo neoliberal, tiveram um forte impacto sobre a classe trabalhadora. Por exemplo, a decisão de abrir a economia nacional para o mercado internacional afetou o setor industrial e deu início a um processo acelerado de desindustrialização. O setor têxtil, um ícone das lutas dos trabalhadores durante o governo da Unidade Popular, foi um dos mais afetados pelas políticas de liberalização econômica, e muitas das fábricas reduziram o quadro de funcionários e acabaram fechando as portas.

No final da década de 1970, a ditadura começou a realizar uma série de reformas neoliberais que afetaram o código trabalhista, o sistema de pensões, a assistência médica e a educação pública. Quando a economia chilena entrou em colapso em 1982, os trabalhadores tiveram que sobreviver à crise com direitos trabalhistas mínimos e sem proteção social. 

Nesse contexto de repressão política e econômica, a reconstrução do movimento sindical e a busca de alianças políticas foram extremamente difíceis. As primeiras reuniões de líderes no país foram organizadas sob os auspícios da Igreja Católica, enquanto os exilados procuraram restabelecer contato com líderes políticos. Dez anos após o golpe de Estado e em meio a uma profunda crise econômica, foi criado o Comando Nacional dos Trabalhadores, reunindo diferentes grupos sindicais e desempenhando um papel fundamental na luta pelo retorno à democracia.

No entanto, o movimento social dos trabalhadores não foi reconstruído apenas a partir de formas tradicionais de organização, mas também a partir de e em conjunto com uma ampla gama de organizações sociais e comunitárias que surgiram em bairros da classe trabalhadora. Organizações de direitos humanos, grupos de mulheres, refeitórios e oficinas comunitárias  são alguns exemplos. Esses lugares desempenharam um papel fundamental na reconstrução de um tecido social atingido pela ditadura e pela crise econômica, contribuíram para a criação de espaços de resistência e incorporaram setores que haviam sido historicamente marginalizados do mundo sindical.

Em suma, para os trabalhadores, o golpe significou a perda de direitos trabalhistas e sociais, desemprego e repressão. Foram anos de profunda incerteza econômica e medo, silêncio e abandono. As formas de trabalho também mudaram à medida que a economia se recuperava e o modelo neoliberal se consolidava: os contratos eram menos estáveis e seguros, as jornadas de trabalho foram alongadas sob o pretexto de flexibilidade e os novos empregos não eram mais gerados pela indústria, mas pelo setor de serviços e pelas atividades agroexportadoras. Com o fim da ditadura, um dos grandes desafios era como rearticular a atividade sindical nesse cenário político, econômico, trabalhista e jurídico. Cinquenta anos após o golpe, muitas dessas questões ainda estão pendentes.

Visita de Salvador Allende a uma fábrica na periferia  de  Santiago em janeiro de 1972. Fonte: Arquivo Nacional, Fundo Correio da Manhã. BR_RJANRIO_PH_0_FOT_07847_006


PARA SABER MAIS:

Araya Gómez, Rodrigo. Organizaciones Sindicales En Chile: De La Resistencia a La Política de Los Consensos: 1983-1994. Ediciones Universidad Finis Terrae, 2015.

Bravo Vargas, Viviana. Piedras, barricadas y cacerolas: las jornadas nacionales de protesta: Chile 1983-1986. Ediciones Universidad Alberto Hurtado, 2017.

Garcés, Mario e Leiva, Sebastián. El golpe en la Legua: Los caminos del golpe y la memoria. LOM, 2014

Winn, Peter (org.). Victims of the Chilean Miracle: Workers and Neoliberalism in the Pinochet Era, 1973-2002. Duke University Press, 2004.

Filme “Chicago Boys” (2015) de Carola Fuentes y Rafael Valdeavellano, https://ondamedia.cl/show/chicago-boys


Crédito da imagem de capa: Presidente Salvador Allende nas celebrações  de Primeiro de Maio de 1971 promovida pela CUT em Santiago. Crédito: Associated Press / Alamy Stock Photo

O nascimento da CUT #00 – A nova série do Vale Mais

Há 40 anos nascia a maior e mais duradoura central sindical da história do Brasil. A fundação da Central Única dos Trabalhadores (CUT) em 28 de agosto de 1983, na cidade de São Bernardo era fruto direto de uma efervescente conjuntura iniciada com uma onda de greves e mobilizações sociais que tomou conta do país a partir de 1978. A luta dos trabalhadores impactou os rumos da redemocratização e colocou o movimento sindical no centro da arena política.

Para refletir sobre aquela conjuntura tão especial, o “Vale Mais”, podcast do LEHMT/UFRJ, lança “O nascimento da CUT” uma série de cinco programas em que contamos as histórias de cinco sindicalistas que estavam em São Bernardo naquele 28 de agosto de 1983. Zé Ferreira, metalúrgico de São Bernardo, Almerico Lima, petroquímico da Bahia, Zica Oliveira, trabalhadora doméstica do Rio, Ranulfo Peloso, trabalhador rural do Pará e Nilza Port, química de São Paulo, vão nos falar de suas trajetórias e contar suas esperanças e detalhes do congresso sindical que mudou a história do país.

Não percam! Toda segunda-feira às 17h, a partir de 18 de setembro. Acesse o portal lehmt.org ou o Vale Mais no tocador de podcast de sua preferência.

Vale a Dica #04: Heitor dos Prazeres é meu nome, de Pablo León de la Barra, Raquel Barreto e Haroldo Costa


Nesta quarta edição da série “Vale a Dica” do LEHMT/UFRJ, Ana Luiza Fernandes (IPPUR/UFRJ) e Thompson Clímaco (PPHR/UFRRJ) comentam a exposição “Heitor dos Prazeres é meu nome”. Com curadoria de Pablo Léon de la Barra, Raquel Barreto e Haroldo Costa, a exposição pode ser vista no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, de 28 de junho a 18 de setembro de 2023.
Pintor, sambista, compositor e artista negro, Heitor dos Prazeres nasceu no Rio de Janeiro em 1898, vindo a falecer em 1966. Sua trajetória está diretamente ligada aos mundos do trabalho. Filho de trabalhadores migrantes, sendo seu pai marceneiro e músico, e sua mãe costureira e trabalhadora doméstica, essa experiência está fortemente presente em suas expressões artísticas, compondo particularidades que articulam debates caros à história social do trabalho. Em suas pinturas, evidente é o destaque dado ao cotidiano e variadas experiências da população negra trabalhadora carioca.

Projeto e execução: Alexandra Veras, Isabelle Pires, Larissa Farias, Victória Cunha e Yasmin Getirana