LMT#85: Imperial Companhia Seropédica Fluminense, Seropédica (RJ) – Vinícius Andrade Brito



Vinícius Andrade Brito
Mestrando em História Social pela UNIRIO



“A amoreira vegeta neste município maravilhosamente e torna aproveitável o terreno que a deu e que não dá vantajosamente o café”. Assim os vereadores da câmara de Itaguaí descreviam as etapas da produção da seda desenvolvida na região, em ofício ao presidente da Província do Rio de Janeiro datado de 1849. Referiam-se a uma fábrica de seda localizada na freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Bananal, distrito do município de Itaguaí. Construída em finais dos anos 1830 por José Pereira Tavares, a fábrica foi incorporada em uma sociedade anônima em 1854, sob a alcunha de Imperial Companhia Seropédica Fluminense, tendo como primeiro acionista e protetor o imperador D. Pedro II.

A fábrica reunia em torno de si todo o necessário para produzir a seda: do espaço para plantação da amoreira, que servia de alimento ao bicho da seda, às instalações equipadas com o material necessário para a extração dos fios dos casulos, além de alojamentos destinado aos trabalhadores. Devido a estrutura física da propriedade, que contava com os edifícios apropriados, e as expectativas de sucesso da indústria da seda em solo nacional, Tavares assinou contrato com a província recebendo verba pública para manutenção e desenvolvimento do estabelecimento. Após a incorporação em sociedade anônima, contou com a presença de importantes personalidades da época entre seus acionistas como Irineu Evangelista da Silva, o barão de Mauá, que atuou junto ao governo na criação de medidas favoráveis às fábricas em meados do século XIX.


Ao longo de sua trajetória, a Imperial Companhia Seropédica Fluminense abrigou um quadro de trabalhadores de variados perfis chegando a contar com 108 pessoas no ano de 1858. Homens, mulheres e crianças, livres e escravizados, nacionais e estrangeiros foram empregados.


Esses sujeitos foram dispostos em diferentes modalidades e arranjos de trabalho. Assim, conviviam na empresa, trabalhadores livres estrangeiros (portugueses em sua maioria) contratados sob as leis de locação de serviço por tempo determinado em vigência no período;  nacionais e estrangeiros que recebiam por jornada de trabalho; menores desvalidos (órfãos enviados ao estabelecimento pelo chefe da polícia da corte) cujo soldo era depositado mensalmente na Caixa Econômica em seus nomes, escravizados alugados para obras que recebiam por jornada e escravizados do próprio estabelecimento.

Os estrangeiros contratados e os escravizados da Imperial Companhia, em particular, viviam nas dependências da Imperial Companhia Seropédica Fluminense. Os primeiros se mantinham no estabelecimento até a finalização dos seus contratos de 15 meses. A diretoria da companhia estimulava a substituição dos escravizados por trabalhadores estrangeiros livres. A ideia de que o trabalhador europeu livre seria mais apto ao serviço, cara à elite da época, não se traduzia, no entanto, em condições de trabalho dignas. As leis que regulavam os contratos de locação de serviço da época possuíam mecanismos de coerção ao trabalho que, em muitas ocasiões, amarravam o trabalhador a dívidas e instituíam a prisão em casos de abandono dos contratos. Não obstante, diante de um regime de trabalho compulsório, diferentes formas de resistência foram postas em prática pelos trabalhadores — livres e escravizados.

A Imperial Companhia Seropédica Fluminense foi palco de variados conflitos. Em 1861, por exemplo, portugueses naturais do Porto, recém chegados à empresa, logo ficaram descontentes com as condições de trabalho existentes. Nove dos quinze homens do grupo fugiram, mas rapidamente foram localizados pelas autoridades policiais da região, e depois de encarcerados por alguns dias foram enviados de volta aos postos de trabalho. Meses depois, no entanto, parte desse grupo voltou a fugir. “Crápulas, imprudentes e bandidos” foram alguns dos adjetivos utilizados pelo presidente da companhia para caracterizá-los. Em agosto de 1861, a diretoria pôs fim ao que chamou de “incessantes lutas contra a má vontade e imprudência de tais perversos”, rescindindo o contrato de todos os portugueses que permaneceram no estabelecimento, até daqueles que não haviam fugido. Diferentemente dos livres, os escravizados ali ficaram durante todo o período de funcionamento da fábrica. Esses homens e mulheres escravizados criaram laços, constituíram famílias, tiveram filhos e construíram uma rede de sociabilidade sólida na região, o que certamente contribuiu para a permanência. Por vezes, eram eles que instruíam os trabalhadores livres estrangeiros contratados, uma vez que, frequentemente, tinham maior experiência nos processos de produção.

A Imperial Companhia Seropédica Fluminense entrou em processo de liquidação em 1862. A queda do número de acionistas e as dificuldades em gerir os trabalhadores tornaram impossível o prosseguimento da produção. Em 1866, a propriedade foi vendida ao capitão Luiz Riberio de Souza Resende, que chegou a aproveitar a estrutura para produção da seda, mas se dedicou prioritariamente à produção de cana. A estrutura física que impressionara as autoridades políticas oitocentistas já não existe mais. Desde 2013, os terrenos onde a fábrica de seda esteve localizada pertencem a uma empresa do ramo da mineração. As ruínas já não existem, mas a memória da empresa sobreviveu de alguma forma. O município hoje é nomeado de Seropédica, cujo significado é “lugar onde se trata ou se fabrica seda”, e é conhecido por ter abrigado a primeira grande fábrica de seda do Brasil.

 Nota assinada pelo secretário da Imperial Companhia Seropédica Fluminense, José Júlio de Freitas Coutinho, publicada no Correio Mercantil, chamando os acionistas a darem entrada de parte do valor das ações.
Fonte: Correio Mercantil, 20 de fevereiro de 1855, p. 3.

Relação dos escravizados da Imperial Companhia Seropédica Fluminense elaborado pela comissão formada pelo presidente da província do Rio de Janeiro em 1862. 
Fonte: Relatório de Presidente da Província do Rio de Janeiro, 1862.


Para saber mais:

  • FROÉS, José Nazareth de Souza. O Brasil na rota da seda: uma contribuição para a recuperação, o enriquecimento e a divulgação da memória de Seropédica, Itaguaí e do Estado do Rio de Janeiro. Seropédica: EDUR, 2000.
  • MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Leis para “os que se irão buscar” – imigrantes e relações de trabalho no século XIX brasileiro. In: História: Questões & Debates, Curitiba, n. 56, p. 63-85, jan/jun 2012.
  • OLIVEIRA, Geraldo Beauclair Mendes de. Raízes da Indústria no Brasil: a pré-indústria fluminense 1808-1860. Rio de Janeiro: Studio F&S ed., 1992.
  • SOARES, Luiz Carlos. A manufatura na formação econômica e social do Sudeste: um estudo das atividades manufatureiras na região fluminense (1840-1880). Dissertação (Mestrado). Universidade Federal Fluminense. Niterói, 1995.
  • TAVARES, José Pereira. Memoria sobre a sericultura no Imperio do Brazil. Rio de Janeiro: Typografia Imp. e Const. de J. Villeneuve E C, 1860.

Crédito da imagem de capa: Panorama da Imperial Companhia Seropédica Fluminense,  estabelecimento de José Pereira Tavares, em 1854.Fonte:  FRÓES, José Nazareth de Souza. O Brasil na rota da seda: uma contribuição para a recuperação, o enriquecimento e a divulgação da memória de Seropédica, Itaguaí e do Estado do Rio de Janeiro. Seropédica: EDUR, 2000. p. 34.


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

LMT#84: Indústrias Wallig, Porto Alegre (RS)- Fernando Pureza



Fernando Pureza
Professor do Departamento de História da UFPB



Quem anda pela Zona Norte de Porto Alegre nos dias de hoje deve conhecer o shopping Bourbon Wallig, localizado na avenida Assis Brasil. Não obstante carregue o sobrenome do proprietário das indústrias Wallig, a estrutura do shopping em nada lembra aquela que foi uma das maiores metalúrgicas do Rio Grande do Sul.

A trajetória da Wallig confunde-se em grande medida com a própria história da classe trabalhadora porto-alegrense. Indústria metalúrgica importante, reconhecida em especial pela produção de fogões, foi fundada em 1904 por Pedro Wallig, imigrante alemão que destinara o empreendimento para a construção de camas de ferro. Foram seus filhos, Guilherme e, em especial, João, que deram o rosto “moderno” da empresa. Em 1921 transferiram a Wallig para o bairro Navegantes, onde foi convertida na maior fábrica de fogões do Brasil, mantendo um modelo paternalista de gestão empresarial, tão comum ao empresariado teuto-brasileiro de Porto Alegre. Desta forma, criaram sistemas de socorro mútuo e cooperativas de crédito e consumo que permitiam aos patrões controlar a vida dos operariado, majoritariamente masculino, para além das fábricas.

Nos antecedentes da Segunda Guerra Mundial, a Wallig seria referência não apenas pelos fogões, mas por desenvolver cozinhas industriais inteiras sob demanda – sendo efetivamente favorecida pela legislação trabalhista da época, que instituiu a obrigatoriedade de que empresas com mais de 500 funcionários tivessem refeitórios instalados. Na década de 1940, como muitas outras indústrias, ela deixa Navegantes, fugindo das grandes enchentes, como a de 1941. Instalou-se no bairro do Cristo Redentor, na Zona Norte de Porto Alegre, no famoso Quarto Distrito. Foi ali, na rua Francisco Trein, que a empresa expandiu ainda mais seus negócios. O sucesso da Wallig foi tanto que ela patrocinou um dos primeiros programas de TV no Rio Grande do Sul, o “Grande Show Wallig”, exibido pela extinta “TV Piratini” em 1961.

Talvez não por acaso, o Sindicato dos Metalúrgicos de Porto Alegre se instalou na mesma rua da metalúrgica. A sede sindical, inaugurada em 1953, segundo relato do antigo presidente do sindicato, José Cézar de Mesquita, dava de frente para os portões da Wallig. Na memória extraoficial do sindicato, Mesquita é lembrado como um de seus maiores nomes, o principal organizador das atividades sindicais dos metalúrgicos e um dos principais líderes sindicais do Estado. Nas décadas de 1950 e 60, para além da mobilização e das greves, o sindicato promovia atividades de teatro, cinema, esporte, arte-coral, Centro de Tradições Gaúchas, o jornal Folha Metalúrgica, a colônia de férias e o Instituto Educacional – que posteriormente se tornaria a escola técnica José Cézar de Mesquita.


A Wallig tornou-se uma das principais bases do Sindicato. Ao atravessar a rua, o operário fabril que se sentisse injustiçado ou simplesmente quisesse se organizar, encontrava um dos sindicatos mais fortes do Rio Grande do Sul até a intervenção dos militares em 1964.


Mesmo depois do golpe, a adesão dos operários daquela fábrica à entidade continuou relativamente alta. Em 1968, dos 1.556 funcionários da Wallig, 537 ainda eram associados ao sindicato. Contudo, o período da ditadura não foi propriamente próspero para a empresa. Em 1964 o patrono João Wallig faleceu e seu filho Werner Pedro recebeu a incumbência de instalar uma filial da Wallig em Campina Grande, na Paraíba. Alegando que o volume de investimento era excessivo e que faltava mão de obra especializada, a Wallig passou a perder parte significativa de seu capital. Em 1981, após inúmeras perdas, a empresa desativou suas funções em Porto Alegre.

Entre idas e vindas, nos despojos da empresa, duas cooperativas, com o apoio do Sindicato dos Metalúrgicos, passaram a ocupar o espaço da fábrica: a Coomec (Cooperativa Industrial Mecânica dos Trabalhadores na Wallig Sul Ltda) e a Coofund (Cooperativa Industrial de Fundidos dos Trabalhadores na Wallig Sul Ltda). Elas mantiveram a empresa funcionando por meio de uma autogestão operária que perduraria até 1991.  A Coofund ainda permaneceria até o ano de 1997, mas sem exercer produção direta na fábrica, fechada por ordem judicial em 1993.

As cooperativas foram o último sopro de vida e de luta que a Wallig conheceu. Com a empresa obrigada pela Justiça a vender sua massa falida e com os antigos donos bloqueando as ações das cooperativas, ocorreu o canto de cisne da fábrica. O terreno abandonado, de frente para o Sindicato dos Metalúrgicos, virou uma espécie de ruína arquitetônica na Zona Norte de Porto Alegre e assim foi até maio de 2012, quando o grupo Zaffari comprou o espaço e lá instalou o shopping Bourbon Wallig, o seu maior empreendimento, alterando profundamente a paisagem da região.

Em 2019 o Sindicato dos Metalúrgicos deixou sua antiga sede e instalou-se na escola José Cézar de Mesquita, algumas quadras mais distante do shopping. O espaço urbano de Porto Alegre modificou-se completamente. O local onde antes as lutas de classes ocorriam no atravessar das ruas era agora ocupado pelo templo do consumo. Mas recuperar a memória dessas lutas e desses trabalhadores pode, quem sabe, inspirar a nova classe trabalhadora que percorre o antigo terreno da Wallig.

IV Congresso dos Trabalhadores Gaúchos em 10 de abril de 1960.
Foto do acervo do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Metalúrgica da Grande Porto Alegre.


Para saber mais:

  • FORTES, Alexandre. Nós do quarto distrito: a classe trabalhadora porto-alegrense e a Era Vargas. Caxias do Sul: EDUCS, 2004.
  • HOLZMANN, Lorena. Operários sem patrão: gestão cooperativa e dilemas da democracia. São Caetano: EDUFSCAR, 2001.
  • JAKOBY, Marcos André. A organização sindical dos trabalhadores metalúrgicos de Porto Alegre no período de 1960 a 1964. Dissertação de Mestrado. Niterói: PPG-História UFF, 2008.
  • SILVA, Nauber Gavski. O “mínimo” em disputa: Salário mínimo, política, alimentação e gênero na cidade de Porto Alegre (c. 1940 – c. 1968). Tese de Doutorado. Porto Alegre: UFRGS, 2014.
  • PUREZA, Fernando Cauduro. “Isso não vai mudar o preço do feijão”: as disputas em torno da carestia em Porto Alegre (1945 a 1964). Tese de Doutorado. Porto Alegre: UFRGS, 2016.

Crédito da imagem de capa: Fachada da Wallig da janela da antiga sede do Sindicato dos Metalúrgicos de Porto Alegre. Abril de 2008. Foto de Fernando Pureza.


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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LMT#83: Largo de São Francisco da Prainha e Pedra do Sal, Rio de Janeiro (RJ) – Erika Arantes



Erika Arantes
Professora de Ensino de História da UFF – Campos dos Goytacazes



Em 14 de novembro de 1883, o subdelegado da freguesia de Santa Rita, na cidade do Rio de Janeiro, efetuou uma prisão em massa em uma casa de cômodos no Largo da Prainha, alegando que ali se encontrava um zungú. Os zungús, muito comuns no século XIX, eram pontos de encontro de trabalhadores negros escravizados ou libertos, que se reuniam para comer, batucar ou praticar sua religião, sendo de grande importância para a sobrevivência cultural e religiosa dos negros. No entanto, aquele zungú também era formado por homens brancos, incluindo estrangeiros, revelando o papel desses espaços coletivos nas trocas culturais que ocorriam na cidade entre o final do século XIX e o início do XX, principalmente entre imigrantes portugueses e a população negra. Quase todos os 33 homens presos nesse dia trabalhavam no porto.

Nessa época, o Largo de São Francisco da Prainha era conhecido como ponto de encontro dos portuários. Esses trabalhadores, que no início do século XX se organizariam em sindicatos fortes e combativos como a União Operária dos Estivadores e a Sociedade de Resistência dos Trabalhadores em Trapiche e Café, eram em sua maioria negros. Frequentemente enfrentavam a ação repressiva da truculenta polícia republicana, que não raro os prendia por vadiagem enquanto esperavam uma chamada para o trabalho na estiva.

Localizado no bairro da Saúde, na zona portuária, e mais especificamente na Rua Sacadura Cabral, onde também está a Praça Mauá, o Largo de São Francisco da Prainha recebe esse nome pela proximidade com a Igreja de São Francisco da Prainha. Até fins do século XIX, havia ali uma pequena praia – a Prainha – que começa a ser aterrada nesse momento e também sofre transformações com a modernização do porto, entre 1904 e 1910. Toda região da Prainha tinham “má fama”.

O medo que despertava associava-se, principalmente, à forte presença negra na região. Foi também nessa mesma área que, no século XVIII, encontravam-se o mercado de escravos do Valongo e a Cadeia do Aljube, onde eram aprisionados os escravizados acusados de crimes e os quilombolas. No início do século XX esta memória e a imagem negativa da região ainda eram muito fortes. O temor que o local despertava nas elites foi expresso nas crônicas de João do Rio, que se referiu à Saúde como “o bairro onde o assassinato é natural” e apontou que a Prainha, à noite, “causava uma impressão de susto”.

Contigua ao Largo da Prainha, está a Pedra do Sal. Local de descarregamento de sal, entre outros gêneros, desde o século XVI, a Pedra do Sal ficou conhecida como reduto de músicos negros, que entraram para história como precursores do samba e dos ranchos carnavalescos. Foi o caso de Hilário Jovino, que morou nos arredores da Pedra do Sal e fundou, no final do XIX, o primeiro rancho carnavalesco que se tem notícia: o Rei de Ouros. O Lalau de Ouro, como era conhecido, trabalhou no cais do porto ao lado de sambistas famosos como João da Baiana e Elói Antero Dias – o Mano Elói. Estes, além das atividades carnavalescas, participaram ativamente nos sindicatos portuários. 


Em fins de século XIX e início do XX, trabalho, atuação política e diversão se encontravam na zona portuária e era bastante comum que trabalhadores sindicalizados, muitas vezes dirigentes sindicais, estivessem também à frente das associações carnavalescas, como nos casos de Cypriano José de Oliveira, Antenor dos Santos, Horácio de Souza Moreira e o próprio Mano Elói – que mais tarde fundaria a Escola de Samba Império Serrano.


O rancho Recreio das Flores se ligava diretamente à Sociedade de Resistência dos Trabalhadores em Trapiche e Café e à União dos Operários Estivadores. Muitos outros trabalhadores do porto, mas também das mais variadas profissões – sindicalizados ou não – certamente frequentavam ranchos como o Rosa Branca, Prazer da Prainha, Filhos da Prainha, Rancho Pedra do Sal, entre outros.

A Pedra do Sal foi constantemente associada à história do samba carioca. Tia Ciata, cuja casa ficou conhecida como reduto de sambistas, referia-se à Pedra do Sal como ponto de referência para os negros que deixavam a Bahia rumo ao Rio no pós-abolição. O ambiente festeiro e religioso do lugar marcou a experiência daqueles que frequentavam o local. O sambista Heitor dos Prazeres deu à região uma definição que ficou na memória da cidade: “Era a Pequena África no Rio de Janeiro”. O apelido, embora não dê conta da diversidade étnico-racial e cultural da região, resiste nos dias de hoje. No Rio de Janeiro, a Pedra do Sal é o coração da Pequena África e a memória ligada às manifestações culturais e religiosas dos negros permanece viva.

Em 1984, a Pedra do Sal foi tombada pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico do Rio de Janeiro. Em 2004, o projeto cultural “Sal do Samba”, criado por moradores da região, associou-se a Associação dos Moradores da Saúde (AMAS-RJ) para resistirem às constantes desapropriações que estavam ocorrendo, frutos da crescente especulação imobiliária na região. Desse encontro surgiu a Associação de Resistência Quilombola da Pedra do Sal (ARQPEDRA), da qual faziam parte moradores ameaçados de despejo – entre eles, trabalhadores do porto – e comprometidos com a preservação da memória negra. Reconhecendo-se e reivindicando-se uma comunidade remanescente de quilombo, a luta dos moradores resultou, em 2005, na emissão, pela Fundação Cultural Palmares, da certidão de autorreconhecimento da região que engloba a Pedra do Sal e o Largo de São Francisco Prainha como um quilombo urbano: o Quilombo da Pedra do Sal.

João da Baiana na Pedra do Sal.
Acervo casa do Choro
(https://acervo.casadochoro.com.br/Images/index)
s/data
Placa localizada na Pedra do Sal.
Fonte: http://visit.rio/que_fazer/pedra-do-sal/


Para saber mais:

  • ARANTES, Erika B. O Porto Negro: cultura e associativismo dos trabalhadores portuários no Rio de Janeiro na virada do XIX para o XX. Tese de Doutorado: UFF, 2010.
  • CUNHA, Maria Clementina Pereira, Ecos da Folia: uma história social do Carnaval carioca entre 1880 e 1920. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
  • MATTOS, Hebe; ABREU, Regina. Relatório histórico-antropológico sobre o quilombo Pedra do Sal em torno do samba, do santo e do porto. Relatório Técnico de identificação e delimitação da comunidade remanescente de quilombo Pedra do Sal. Rio de Janeiro: MDA/Incra, 2007.
  • DO RIO, João do. A Alma Encantadora das Ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
  • SOARES, Carlos Eugênio Líbano. Zungú: rumor de muitas vozes. Rio de Janeiro: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 1998.

Crédito da imagem de capa: “Largo da Prainha”. Foto de Augusto Malta, c.1900. Fonte “A Praça Mauá na memória do Rio de Janeiro”, de Paulo Bastos Cezar e Ana Rosa Viveiros de Castro. 


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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LMT#82: Fábrica de Tecidos de Marzagão, Sabará (MG) – Andréa Casa Nova Maia



Andréa Casa Nova Maia
Professora do Instituto de História da UFRJ



Instalada em 1878, numa antiga fazenda local, a Fábrica de Tecidos de Marzagão em Sabará foi uma das primeiras a se dedicar à atividade industrial têxtil em Minas Gerais. Para se ter uma ideia da grandiosidade do empreendimento, a fábrica já tinha, em 1885, uma das maiores produções anuais em metros de tecidos e consumo de algodão da província. Sua vila operária chegou a contar com cerca de 2.000 moradores. Além de casas, a vila contava com uma escola primária, correio, cartório, açougue, padaria, posto médico, pensionato para moças e rapazes, além da Igreja Sagrado Coração de Jesus. Para o lazer dos operários, foi formada uma banda de música, um time de futebol, um grupo de escoteiros e mesmo um cinema. As origens rurais da fábrica, em uma das principais regiões escravistas do país, marcou fortemente a composição do operariado local, formado em grande medida por negros e negras.

O cotidiano dos trabalhadores e a estrutura da vila operária de Marzagão foi matéria da revista Belo Horizonte em 1933. Vale a pena destacar como o controle e fiscalização das atividades de trabalho eram exercidas pelo empresário e político do Partido Republicano Mineiro, Manoel Carvalho de Brito, que adquiriu a tecelagem em 1915. Brito implementou um modelo de gestão com intenso controle e intervenção dos patrões na vida cotidiana de seus empregados e forte disciplina dentro e fora da fábrica. Segundo a revista, os moradores eram gente “simples, ordeira e trabalhadora” e a rotina do lugar era como a de outras vilas do interior, com o movimento dos trens de subúrbio, das missas, do cinema mudo e do footing.

Os cerca de mil operários e operárias de Marzagão trabalhavam das cinco da manhã, “quando um apito forte os acordavam, até que o outro apito mandava parar à tardinha”. Ainda de acordo com a reportagem, os trabalhadores locais “gozavam de todas as regalias possíveis”, todos “com ótimos salários”, mesmo antes das leis trabalhistas e criação da estrutura corporativista da Era Vargas. Além do trabalho na fábrica, havia uma escola de tecelagem anexa onde trabalhavam 50 aprendizes e cerca de 150 casas “confortáveis e espaçosas” para as famílias de trabalhadores. Havia ainda uma pensão para moças solteiras onde as operárias moravam e faziam suas refeições. Como em outras empresas têxteis do período, o trabalho de mulheres e crianças era disseminado, sendo comuns os relatos de emprego de meninas de até 10 anos. Em 1946, a população da Vila de Marzagão era de cerca de 2.400 pessoas, praticamente todos trabalhadores/as da fábrica e suas famílias.

Apesar de todo o controle empresarial, os operários e operárias de Marzagão tornaram-se um dos grupos que mais lutaram por direitos em Minas Gerais, particularmente entre o final da década de 1950 e o início dos anos 60.  O movimento operário local teve forte influência da Igreja Católica, em particular nas comissões de fábrica que se formaram na empresa de forma independente do sindicato oficial e de partidos políticos como o PCB ou o PTB.


Um exemplo  de mobilização ainda forte na memória local foi a famosa greve de mais de 30 dias realizada pelos trabalhadores, após meses sem receberem seus salários, entre dezembro de 1960 e janeiro de 1961. A “Passeata da Panela Vazia” que reuniu milhares de operários e seus familiares, que contou com um vasto apoio político e sindical, foi um dos momentos marcantes daquele movimento, tendo ampla repercussão nacional.


A vila operária e as condições de vida dos(as) trabalhadores(as) da fábrica de Marzagão não passaram despercebidas aos olhos atentos de Guimarães Rosa. A vila é cenário de “Sinhá Secada”, um dos contos do livro Tutaméia, Terceiras Estórias, de 1967. O narrador do conto leva Sinhá para “aquele intato lugar.” Empregados na fábrica, ambos moravam “numa daquelas miúdas casas pintadas, pegada uma a outra, que nem degraus da rua em ladeira, que a Sinhá descia e subia, às horas certas, devidamente, sendo a operária exemplar que houve, comparável às máquinas, polias e teares, ou com o enxuto tecido que ali se produz.”

Desde 1950, a produção de tecidos, o principal produto oferecido ao mercado pela fábrica do Marzagão, foi sendo substituída pela fabricação de lonas e cordonéis para a Indústria de Pneus Brasil, localizada no Rio de Janeiro, também de propriedade da família Carvalho de Brito. Neste momento, o empreendimento em Sabará não era mais o principal negócio do grupo empresarial e uma longa crise se abateu sobre o empreendimento. Em 1972, a indústria estava em uma situação irrecuperável e a fábrica foi vendida para o grupo Paraopeba Industrial S/A. A família Carvalho de Brito, através da empresa União Rio Empreendimentos manteve a propriedade das casas da vila operária, das quais continuava a cobrar aluguéis .

A Tecelagem, no entanto, continuou em decadência. Em 1983 os galpões da antiga fábrica foram ocupados pelas confecções Marcel Phillipe, mas cerca de 80% se encontravam vazios, sem utilização. A comunidade de moradores da vila, formada por antigos trabalhadores/as da fábrica e seus descendente sofreu, desde então um acelerado processo de empobrecimento. A Vila do Marzagão se encontra bastante descaracterizada, mas os moradores mantêm viva a memória da vida operária de tempos atrás.

O tombamento estadual do Conjunto Arquitetônico e Paisagístico da Vila Elisa, Vila Operária e Antiga Fábrica de Tecidos de Marzagão foi aprovado pelo Conselho Curador do IEPHA/MG em 2004 e colocou definitivamente toda aquela paisagem, fincada entre as montanhas de Minas, como um lugar de memória de trabalhadores e do trabalho no Brasil. Mesmo em ruínas, Marzagânia, como era chamada, continuará reverberando suas histórias de vida e de luta por direitos.

Vista do setor de teares em meados da década de 1920
Fonte: Associação dos Amigos e Moradores de Marzagão – ACAMM


Para saber mais:

  • ÁVILA, Rodrigo Pletikoszits de. “A Centralidade Do Trabalho Na Formação Social Da Vila De Marzagão“. Revista Mundos do Trabalho, vol.1, n. 1, janeiro-junho de 2009.
  • DELGADO, Lucília de Almeida Neves. LE VEN. Michel Marie. “Marzagânia: Fábrica operária e movimento sindical”. Revista Brasileira de Estudos Políticos. Belo Horizonte: UFMG, Nº 73, 1991.
  • MATEUS, Adalberto Andrade. & GUIMARAES, Silvio Tadeu. “Conjunto Arquitetônico da Vila Elise, Vila Operária e Antiga Fábrica de Tecidos de Marzagão” Guia dos Bens Tombados pelo IEPHA-MG. Volume 2. Disponível em http://www.iepha.mg.gov.br/index.php/publicacoes/guia-dos-bens-tombados/Publication/7-Guia-dos-Bens-Tombados-Volume-2
  • REVISTA BELLO HORIZONTE. “O parque industrial do Marzagão, uma grande uzina de trabalho”. Belo Horizonte, ano1, nº 6, 30 set. 1933.
  • Manoel Tomás De Carvalho Brito II – Fábrica De Tecidos Marzagão (Sabará-mg) – Sua História, Curiosidades, Fotos E Depoimentos . http://euamoipatinga.com.br/personagens/noticias.asp?codigo=847 .

Crédito da imagem de capa: Vista do Conjunto Arquitetônico nos anos 80. Fonte: IEPHA-MG.



Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

LMT#81: Fábrica de Tecidos Rio Tinto, Rio Tinto (PB) – Eltern Campina Vale



Eltern Campina Vale
Professor do Curso de História da UFAL (Campus do Sertão – Delmiro Gouveia)



Edificada entre 1917 e 1924, a Fábrica de Tecidos Rio Tinto no litoral norte da Paraíba, era filial da Companhia de Tecidos Paulista, sua matriz em Pernambuco. Fazia parte do projeto de ampliação dos negócios têxteis da família Lundgren, impulsionado por incentivos fiscais do governo paraibano. Desde sua fundação, um  intenso processo migratório e de recrutamento de mão-de-obra transformou milhares de famílias de agricultores, de variadas regiões da Paraíba e estados vizinhos, em operários e operárias regidos pela disciplina e tempo fabril. Imigrantes alemães também foram contratados como técnicos ou chefes de seções. Frederico João Lundgren capitaneava todo o processo de contratação.

A estrutura da fábrica era distribuída entre cargos e seções internas ou subsidiárias, com um corpo heterogêneo de trabalhadores e trabalhadoras, chegando a 12 mil no fim dos anos 1950. Assim como em sua matriz em Pernambuco, a fábrica exerceu enorme poder político e simbólico sobre a comunidade operária em seu entorno. Uma ampla infraestrutura urbana e equipamentos assistências foram construídos pela empresa em Rio Tinto, incluindo, entre outros escolas, hospital, um porto e uma estrada de ferro próprios e até um hipódromo.


Se a dominação empresarial extrapolava os muros da fábrica, o cotidiano da vila operária, com 2.500 casas, praças, clubes de lazer, cinema e botequins, tornou-se um espaço crucial nas relações de sociabilidade, que também forjava um forte processo de construção de uma identidade e cultura operária.


No contexto dos primeiros decretos trabalhistas do governo Getúlio Vargas, foi criado em 1932, o Sindicato dos Trabalhadores Têxteis de Rio Tinto. Seria o marco de uma tradição de lutas sindicais que duraria décadas. Na vibrante cena trabalhista no estado do início da década de 1930, o sindicato logo articulou-se com a Federação dos Trabalhadores da Paraíba e a  União Geral dos Trabalhadores da Parahyba do Norte. A imprensa sindical local, com o Jornal dos Operários, foi decisiva na consolidação da organização e identidade operária, além de denunciar os desmandos patronais. O Partido Comunista do Brasil (PCB) teve um papel fundamental neste processo. A “Célula Rio Tinto”, criada em fins de 1932 era uma das maiores do partido na Paraíba. Em 1933, no entanto, uma intensa repressão comandada pelo DOPS abateu-se sobre Rio Tinto, resultando no fechamento do sindicato, prisões e fugas.

Em 1943, o sindicato foi recriado, ficando, no entanto, sob estrito controle da direção da fábrica. João Batista Fernandes, presidente da entidade, era funcionário de inteira confiança dos Lundgren. A contenção do sindicato não significou, no entanto, ausência de lutas por direitos. No final da Segunda Guerra Mundial, as tensões entre os trabalhadores e os técnicos alemães explodiram num “quebra-quebra”, quando as casas dos chefes de seção germânicos foram depredadas. A Justiça do Trabalho foi outro meio importante usado pelos trabalhadores para reivindicar reajustes salariais, férias remuneradas, melhores condições de trabalho e a reintegração e manutenção de posse das casas da vila operária.

A vitória da chapa presidida por Antônio Fernandes nas eleições sindicais de 1960 marcaria um novo período de incremento das lutas operárias e presença dos trabalhadores no cenário público. Logo, o sindicato articulou-se à Confederação dos Trabalhadores da Paraíba e, a partir de 1962, ao Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) em nível nacional. Em abril de 1962, Rio Tinto foi a sede do Congresso Paraibano dos Trabalhadores Urbanos e Rurais. Todo esse ativismo e mobilização levaram à eleição de Antônio Fernandes (numa aliança entre o PSB, PCB e PTB) à prefeitura de Rio Tinto em 1963, desbancando o histórico  domínio empresarial na municipalidade.

O golpe militar foi bravamente enfrentado em Rio Tinto com uma greve geral decretada no dia 1 de abril de 1964. A resistência, no entanto, foi brutalmente reprimida e o  sindicato sofreu intervenção governamental. O período ditatorial, no entanto, também significou um progressivo declínio econômico, político e simbólico da fábrica e do poder dos Lundgren.

Ao longo das década de 1970 e 1980, crises externas e contendas familiares abalaram a produção da fábrica até o encerramento de suas atividades em 1990. Desde então, parte importante da resistência e luta do trabalhadores consistiu na demanda pelo pagamento de indenizações e pela permanência de moradia na vila operária. Recentemente, parte das antigas dependências da tecelagem foi  alugada à Universidade Federal da Paraíba.

No centenário do início da construção da fábrica em 2017, Nilson Lundgren, herdeiro dos fundadores, capitaneou a reativação de uma linha de produção, renomeando a tecelagem como “Rio Tinto Têxtil S/A”. A empresa ainda é proprietária de grande parte do patrimônio imobiliário da cidade e são constantes as reivindicações e lutas de ex-trabalhadores pela posse das casas da antiga vila operária. Muitos moram há mais de 60 anos nas mesmas residências. Se, mesmo passados tantos anos, um certo sentimento de “medo” da Companhia ainda persiste em Rio Tinto, também é possível perceber na memória local as “saudades do tempo do trabalho” ao lado da “saudade de convivência dos companheiros” como exemplos da solidariedade que marcou decisivamente a história dos trabalhadores e trabalhadoras de Rio Tinto.

Parte interna da tecelagem da Fábrica de Tecidos Rio Tinto em 2018.
Fonte: Acervo de Eltern Campina Vale.


Para saber mais:

  • FERNANDES, João Batista. O extinto Rio Tinto. Recife: Imprensa Universitária, 1971.
  • GÓES, Raul de. Herman Lundgren: Pioneiro do Progresso Industrial do Nordeste. Rio de Janeiro: A Noite, 1949.
  • MACÊDO, Maria Bernadete Ferreira de. Inovações Tecnológicas e Vivência Operária –O caso de Rio Tinto 1950-1970. Dissertação (Mestrado). Departamento de Economia da UFPB. João Pessoa, 1986.
  • PANET, Amélia et al. Rio Tinto: estrutura urbana, trabalho e cotidiano. João Pessoa: UNIPÊ, 2002.
  • VALE, Eltern Campina. “Operários! Uni-vos!”: experiência e formação de classe na Fábrica de Tecidos Rio Tinto (Paraíba, 1924-1945). Tese (doutorado). Universidade Federal de Pernambuco, CFCH. Programa de Pós-Graduação em História, Recife, 2018.

Crédito da imagem de capa: Tecelã em manuseio de máquina da Fábrica de Tecidos Rio Tinto na década de 1940.  Acervo Antônio Luiz, Rio Tinto.


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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LMT#80: Centro Municipal de Educação Adamastor, Guarulhos (SP) – Roger Camacho



Roger Camacho
Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul



A chaminé da Casimiras Adamastor se destaca na paisagem do bairro do Macedo em Guarulhos, na região metropolitana de São Paulo, podendo ser vista tanto do centro da cidade quanto da rodovia Presidente Dutra. Aquela edificação, contudo, não foi somente um local de produção, mas também um espaço de convivência, conflito e construção de laços sociais, deixando marcas não apenas no ambiente urbano, mas também na memória coletiva local.

Guarulhos se expandia no começo do século XX devido à chegada de trabalhadores estrangeiros e ao crescimento da demanda por tijolos e materiais de construção para atender às obras de urbanização de São Paulo. A cidade já contava com olarias, mas surgiam agora indústrias mecanizadas, como a Cerâmica Remy (1913), no bairro da Vila Galvão, e a Cerâmica Brasil (1923), no Macedo. Esta última foi construída onde antes havia um pomar e muito próxima ao centro, atraída, assim como a Remy, pelo Ramal Guarulhos do Trem da Cantareira, inaugurado em 1915 para agilizar o transporte de pessoas e produtos com São Paulo.

Parte expressiva dos trabalhadores da Cerâmica Brasil provavelmente era de migrantes italianos, japoneses e sírio-libaneses (bem como seus descendentes), moradores do seu entorno ou do centro da cidade (ali próximo). Tal composição étnica foi sofrendo modificações, já que Guarulhos passou de 8 mil habitantes em 1914, para cerca de 30 mil em 1945. A partir dos anos 1940 chegavam também trabalhadores nordestinos, muitos dos quais atraídos pelo incentivo à contratação de brasileiros, pelas barreiras à entrada de estrangeiros durante a Segunda Guerra Mundial.


O perfil industrial da cidade também vinha mudando, fazendo com que os setores metalúrgicos, químicos, entre outros, passassem a predominar, transformando Guarulhos em um dos principais polos industriais do país na década de 1950.


Se as indústrias têxteis e alimentícias predominavam nas décadas de 1910 e 1920 (4 edificações de 6 abertas no período), a metal-mecânica passou a ser a maioria das novas instalações (5 de 8 entre 1930 e 1945). A inauguração da Cidade Satélite Industrial de Cumbica (1945) e a abertura da Rodovia Presidente Dutra (1951) contribuíram para essa transformação. Em meio a esse processo, a Cerâmica Brasil foi desativada e transformada numa tecelagem: a Casimiras Adamastor (1946), iniciando suas atividades com cerca de 400 trabalhadores (as). O trabalho feminino, expressivo na nova indústria, permanece na memória local: “Não tinha menina desempregada, todas trabalhavam no Adamastor! ” relembra Eva dos Santos ao programa “Relatos da Memória”, da Prefeitura Municipal de Guarulhos.

No entorno da Casimiras Adamastor havia lojas, uma igreja (a Capela Bom Jesus) e um conjunto de casas destinadas a abrigar seus operários, o que se manteve nas lembranças de quem conviveu com a fábrica. Nadir Aparecida da Silva, por exemplo, fala que sua casa ficava dentro do terreno da tecelagem e que passou sua infância brincando naquele salão, pois seu pai trabalhava ali. As moradias erguidas pela fábrica foram demolidas para a construção de uma ponte estaiada em 2006.

Guarulhos contava com mais de 500 mil habitantes quando a Adamastor foi desativada em 1980. O encerramento de suas atividades foi decorrente de um processo de êxodo fabril iniciado nos anos 1970 com a supressão de incentivos fiscais e a inauguração da Zona Franca de Manaus (1967). A tecelagem acabou sendo transformada em uma loja de estofados e depois numa pista de kart. Desgastada e abandonada, ela foi tombada por decreto municipal (2000), desapropriada (2001) e se tornou um Centro Cultural em 2003. Um dos motivos para a sua preservação foi o fato de ser a última fábrica com uma chaminé de tijolos nos arredores do centro. Havia também a preocupação da gestão Elói Pietá (PT) em fomentar a cultura e a memória operárias guarulhenses.

Algumas pessoas (em sua maioria mulheres) acompanharam as obras daquilo que viria a ser o Centro Municipal de Educação e falaram bastante do contramestre e dos chefes, lembrados como autoritários, pois proibiam as conversas durante o expediente e vira e mexe descumpriam a promessa de recompensas pelo excedente de trabalho. Lucília Rita de Sá chegou a dizer que o espaço parecia uma prisão. Maria Falabela recordou que se escondia em caixotes posicionados perto das máquinas para contrariar a vontade de seus patrões, reduzindo propositalmente a produção do dia. Ela disse também que havia poucos homens dentre os trabalhadores e que aqueles presentes eram mais velhos, fazendo com que a busca por namorados fosse uma tarefa hercúlea.

O Centro Cultural ainda passou por uma ampliação e atualmente abriga o Arquivo Histórico Municipal, um teatro, uma biblioteca e um centro de convenções. O Adamastor é o principal espaço de cultura da cidade, pois, dentre os demais, é aquele que reúne o maior número de eventos e atividades, além de sediar a Secretaria Municipal de Cultura em um anexo. Ao olhar para a chaminé da antiga cerâmica/tecelagem remetemos a um passado operário, além das lembranças compartilhadas entre aquelas (es) que trabalharam, riram e choraram naquele local.

Casimiras Adamastor , década de 1950.
Fotografia de  Massami Kishi, Arquivo Histórico Municipal de Guarulhos SP.


Para saber mais:

  • AZEVEDO, Mikael. “Adamastor: fábrica de casimiras se transformou em centro cultural.” Patrimônio Cultural – Associação Amigos do Patrimônio e Arquivo Histórico (AAPAH), Arquivo Histórico Municipal de Guarulhos. nº 1, 2016.
  • BARRERO JUNIOR, Roger Camacho; LANZELLOTTI, Tuanny Folieni Antunes; SANTANA, Alessandra Silva de; SILVA, Giorgia Burattini Saad Medeiros; SILVA, Wagner Pereira. “Em torno da ferrovia e da rodovia: o processo de industrialização de Guarulhos e seu patrimônio industrial (1910-1960).” In: BORGES, Augusto César Maurício; OMAR, Elmi El Hage (orgs.). Signos e significados em Guarulhos: identidade, urbanização e exclusão. São Paulo: Navegar, 2014.
  • SALES, Telma Bessa. Patrimônio industrial: palavras, imagens e práticas. Historiar, vol. 7, n. 13, 2015.
  • TOLEDO, Edilene Teresinha. “Guarulhos, cidade industrial: aspectos da história e do patrimônio da industrialização num município da Grande São Paulo.” Revista Mundos do Trabalho, vol. 3, n. 5, 2011.
  • PREFEITURA de Guarulhos. Relatos da memória. Youtube. Canal Guarulhos Tem. Teatro Adamastor (9 m 57 s). Postagem: 28 de maio de 2007. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=HzOKDVdveAc  

Crédito da imagem de capa: Centro de Educação Municipal Adamastror. Fotografia de Roger Camacho, 14/12/2020.


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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LMT#79: Armação da Piedade, Governador Celso Ramos (SC)- Beatriz Mamigonian



Beatriz Mamigonian
Professora do Departamento de História da UFSC



A capela dedicada a Nossa Senhora da Piedade é a única construção remanescente do que foi o primeiro e mais importante complexo fabril voltado para o processamento do óleo e de outros derivados de baleia no litoral de Santa Catarina, no período colonial. Localizado no atual município de Governador Celso Ramos, hoje o espaço da antiga Armação da Piedade é ocupado por famílias de trabalhadores do mar e casas de veraneio, além de uma marina para embarcações de luxo. Não há qualquer placa ou indicação de que lá trabalharam e viveram centenas de africanos e africanas escravizados, assim como dezenas de pessoas livres, administrados pelos detentores do monopólio da pesca de baleias. 

A Armação da Piedade foi instalada em 1746, no contexto do projeto da coroa portuguesa de ocupação do litoral de Santa Catarina. Ele envolveu a elevação desse território a capitania, a construção de fortificações que protegessem a Ilha de Santa Catarina de invasões estrangeiras, o incentivo à fixação de colonos, com a promoção do transporte de casais vindos das ilhas dos Açores e da Madeira e a concessão de um contrato para exploração da atividade baleeira. Das baleias eram extraídos sobretudo o óleo e o espermacete, que tinham valor comercial. O primeiro, como combustível para iluminação, fundamental até a difusão do querosene; e o segundo, um líquido ceroso com muitas aplicações como lubrificante e fármaco. Nas localidades, aproveitava-se também a carne, como fonte de proteína.

A Armação da Piedade foi a pioneira das unidades baleeiras do litoral sul. Até então, a pesca e o beneficiamento das baleias ocorriam na Bahia, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Estabelecida e administrada por meio de sucessivos contratos de concessão de monopólio sobre a pesca das baleias, a Piedade serviu de “matriz” para a fundação de outras: a Armação da Lagoinha (situada na Ilha de Santa Catarina), em 1772; a Armação de Itapocorói  (1778); a Armação de Garopaba (1794),  de Imbituba (1795) e a Armação da Ilha da Graça, próxima a São Francisco do Sul, em 1807. Elas funcionaram sob a administração dos contratantes particulares até o fim do monopólio sobre a pesca das baleias em 1801; depois passaram à Fazenda Real e foram desativadas após a independência, incorporadas aos “próprios nacionais” e vendidas. Apenas o terreno da Armação da Piedade manteve-se como propriedade do Estado, e serviu como colônia de imigrantes alemães na década de 1840. Tudo indica que as pessoas escravizadas acompanharam os bens das armações quando foram vendidos; mais pesquisa, no entanto, poderá responder se algumas foram alforriadas, se permaneceram na mesma região ou se tiveram a chance de tornar-se pequenos produtores agrícolas, ou pescadores autônomos.

O complexo da Armação da Piedade englobava as atividades fabris e as de reprodução da vida cotidiana, como a produção de alimentos. O espaço era situado em uma ponta de difícil acesso por terra e relativamente protegido pela Fortaleza de Santa Cruz de Anhatomirim para quem chegasse pelo mar. Contava com uma casa grande para o administrador, uma “casa da fábrica” onde era derretido o óleo das baleias, três casas de tanques, uma casa para o capelão, uma ferraria, uma “casa do hospital e botica”, residência para os feitores e pescadores livres e duas senzalas em quadra para os escravos solteiros, além de outra com divisórias de tijolos destinada aos escravos casados e suas famílias. Havia também um sítio com roças, pomar e engenho, onde era produzida parte da farinha de mandioca que alimentava os trabalhadores. Na capela dedicada à Nossa Senhora da Piedade foram batizados africanos trazidos jovens e adultos, e depois seus filhos e netos. No cemitério adjacente, foram enterrados os trabalhadores e trabalhadoras falecidos, acometidos por doenças traumáticas, fisiológicas ou infecciosas.


Os trabalhadores livres e escravizados partilhavam tarefas no mar e em terra, caçando as baleias, encalhando-as na praia para cortá-las e fritando os nacos de carne para extrair o óleo. Uma parte deles – possivelmente as mulheres, os idosos e as crianças escravizados – ocupavam-se da produção e preparação de alimentos.


Um inventário da Armação da Piedade de 1816 registra que nela trabalhavam 137 homens, 14 mulheres e 16 menores escravizados, dentre os quais 92 homens e 3 mulheres eram africanos. Entre eles estavam Vicente Angola, de 62 anos e aleijado de uma perna, Miguel Benguela, que havia sido gancheiro mas estava “decrépito” aos 58 anos e Domingos Benguela, pescador, de 79 anos, também inativo. Haviam sido trazidos à Piedade ainda na segunda metade do século XVIII. Entre os ativos havia Domingos Mina, de 57 anos, cortador de praia, e Domingos Magumbe, de 63 anos, que exercia talvez a mais importante das profissões da armação: era mestre de azeite. A hierarquia das ocupações e a distribuição de sexo e idade leva a comparar a comunidade de trabalhadores da Armação da Piedade com a das plantations de açúcar ou café de outras regiões escravistas, que tinham trabalhadores escravizados especializados e reuniam gerações na senzala.

A Armação da Piedade é mais um importante exemplo da presença de africanos e africanas na história de Santa Catarina. Esse lugar de memória desafia a narrativa racista que exalta a exclusividade da origem europeia da população do estado. Ele nos faz refletir sobre a fundamental importância dos negros e da diversidade étnica nos processos de formação da classe trabalhadora em Santa Catarina e no Brasil.

Não foram localizados registros de imagens da Armação de Piedade nos séculos XVIII e XIX, mas essa aquarela da Armação de Garopaba também no litoral de Santa Catarina, pintada por J.B. Debret em 1828, nos dá uma noção da paisagem das armações baleeiras.
Reprodução da aquarela de Debret fotografadas por Horst Merkel a partir do original localizado no Museu Raymundo Ottoni de Castro Maya no Rio de Janeiro.


Para saber mais:

  • Arquivo Nacional (RJ). Junta do Comércio, Real Administração da Pesca das Baleias. Caixa 360. Inventário da Armação da Piedade, 1816-1820.
  • Arquivo Histórico Eclesiástico de Santa Catarina, Livro de Batizados de São Miguel (Armação da Piedade) – 1815-1826; Livro de Óbitos, São Miguel – 1815-1826;
  • ELLIS, Myriam. A baleia no Brasil colonial. São Paulo: Melhoramentos/Edusp, 1969.
  • ZIMMERMANN, Fernanda. De armação baleeira a engenhos de farinha: fortuna e escravidão em São Miguel da Terra Firme, SC (1800-1860), Dissertação de Mestrado em História, Universidade Federal de Santa Catarina, 2011.

Crédito da imagem de capa: Igreja da Nossa Senhora da Piedade em Governador Celso Ramos. Acervo repositório institucional da UFSC. Fotografia de Eduardo Marques (2006)


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LMT#78: Companhia Hidrelétrica do São Francisco, Paulo Afonso (BA) – Jamile Silveira



Jamile Silveira
Doutoranda em História Contemporânea pela Universidade de Coimbra



“Morreu muita gente. Tudo bruto, caía no rio quem era que achava. Tinha uns cabos de aço balançando, o cabra escapolia, e sem entender de nada ia embora.” Relata João Felinto, operário por 20 anos da primeira grande empresa pública brasileira de geração e distribuição de energia elétrica: a Companhia Hidrelétrica do São Francisco (CHESF). A memória da formação de Paulo Afonso, na Bahia, se confunde com a história da Companhia.

Getúlio Vargas aprovou o projeto CHESF em 1945. Três anos depois, o cenário da comunidade de Forquilha, às margens da cachoeira de Paulo Afonso, local se modificaria para sempre com a chegada de toneladas de materiais importados, para a construção da Usina Paulo Afonso I. O início das obras foi marcado pelo discurso de progresso e modernização, possíveis frutos da inovadora produção de energia que proporcionaria o desenvolvimento do Nordeste.

A Companhia era a consolidação de um projeto elaborado aos moldes da Tennessee Valley Authority (TVA), uma das iniciativas mais simbólicas das políticas do New Deal promovidas pelo presidente Roosevelt nos Estados Unidos nos anos de 1930. O Ministro da Agricultura do governo Vargas, Apolônio Sales, visitou algumas vezes a TVA, e as missões estadunidenses no Brasil, em especial a Missão Cooke, indicavam a possibilidade da intervenção federal direta na região do São Francisco.

Simultaneamente à instalação da Companhia foi criada uma company town em Paulo Afonso. Os trabalhadores mais graduados, como os engenheiros, residiam no equipado bairro General Dutra, na Vila Residencial. Na Vila Operária, a distribuição urbana das moradias era definida de acordo com a função exercida por cada trabalhador na empresa. Assim como em outras company towns o controle disciplinar sobre os trabalhadores e suas famílias era rígido e interferia sobre vários aspectos da vida cotidiana dos moradores. A empresa difundia um discurso paternalista que enfatizava o caráter nacionalista da obra e os supostos benefícios de fazer parte da “família chesfiana”.


A grande maioria dos milhares de operários da obra da Usina foi arregimentada entre trabalhadores rurais, comerciantes e artesãos, do sertão, do agreste e de algumas capitais do Nordeste. Em geral, os homens se instalavam, começavam a trabalhar e posteriormente buscavam suas mulheres e famílias.


Entre eles, estavam os cassacos, que faziam parte da linha de frente da obra, abrindo caminho quebrando pedras e barrando a força das águas do Rio São Francisco, em condições de trabalho bastante precárias e perigosas. Apenas décadas depois, em 1978, seria criada uma Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (CIPA) que implantaria as primeiras normas de segurança para os trabalhadores.

Com a concentração de pessoas cada vez maior na região, o acesso a company town, conhecida como “Acampamento CHESF”, ficou cada vez mais restrito. Muitos que chegaram na esperança de trabalhar na CHESF, contratados ou não, começaram a morar fora do acampamento. Sem recursos para a construção de casas, utilizavam o que encontravam, inclusive os sacos de papel do cimento Poty, descartados durante as construções das barragens. Esse novo bairro, ficou conhecido como Vila Poty.

Em 1958, 3.000 trabalhadores residiam no “Acampamento CHESF”, enquanto na Vila Poty amontoavam-se 13.000 pessoas em condições extremamente precárias. Mas, ali os trabalhadores criaram formas alternativas de sociabilidades, como cabarés, bares e terreiros de Candomblé também frequentados por muitos operários moradores do acampamento.

Em 1958, o município de Paulo Afonso foi emancipado. A maioria dos cassacos, moradores da Vila Poty, não permaneceram na empresa após a conclusão das obras. O domínio empresarial da CHESF e os conflitos urbanos desta cidade dividida, marcariam o cenário de Paulo Afonso nos anos seguintes. Em 1968, no contexto da ditadura militar, o município foi declarado Área de Segurança Nacional. O Complexo Hidrelétrico de Paulo Afonso se expandiu na década de 1970, com obras em vários Estados do Nordeste. Em 1982, a CHESF era responsável por 15% da produção nacional de energia elétrica, com 3.300 operários localizados em Paulo Afonso. Nesse período, o muro que isolava a company town foi derrubado e as guaritas desativadas, apesar da CHESF continuar administrando toda a área até 2002, quando a prefeitura assumiu a responsabilidade pelo antigo acampamento.

Durante a redemocratização do país, conflitos trabalhistas e um forte movimento sindical emergiram em Paulo Afonso. Liderados pelo Sindicato dos Eletricitários (SINERGIA), os trabalhadores da CHESF realizaram duas grandes greves, em 1979 e 1982, com enorme impacto político e simbólico na região. Os setores progressistas da Igreja Católica tiveram papel destacado naquelas mobilizações e na formação de entidades que se opuseram aos projetos de desenvolvimento regional da CHESF.

A história oficial da Companhia em Paulo Afonso, presente no Memorial da empresa, omite conflitos, discursos e protagonistas anônimos, que participaram ativamente deste processo. Atualmente, outras iniciativas, em particular nas universidades da região, procuram problematizar essas lacunas. A CHESF impactou a vida de milhares de famílias, inclusive de povos e comunidades tradicionais do Vale do São Francisco. Apesar de todo investimento, as promessas de modernidade, progresso e melhorias sociais não se concretizaram, gerando resistências e conflitos que marcaram a vida social local e tornaram Paulo Afonso um importante lugar de memória dos trabalhadores em nosso país.

Operários da CHESF (1950).
Acervo do Memorial CHESF

Para saber mais:

  • AZEVEDO, Sérgio Luís Malta de; MUCCINI, Sandra. “Período Pioneiro da Hidrelétrica de Paulo Afonso-Ba: Uma contribuição a historiografia de base local e regional.” Revista Rios, Revista Científica da FASETE, ano 1, n. 1, agosto 2007..
  • JUCÁ, Joselice. CHESF: 35 Anos de História. Recife: Comunicarte, 1982.
  • LIMA, João de Sousa. Paulo Afonso e a Vila Poty: A história não contada. Paulo Afonso: Fonte Viva, 2017.
  • OLIVEIRA, Antônio Marcos Lima de. A Cidade de Paulo Afonso, 1948-1985: As espacializações do trabalho, do controle e das lutas. Salvador: Dissertação de Mestrado em Arquitetura e Urbanismo da UFBA, 2016.
  • SILVEIRA, Jamile Silva. “Trabalhadores, conflitos e sociabilidades: a Companhia Hidroelétrica do São Francisco, em Paulo Afonso (Bahia, Brasil, 1945-1983)”. In: VARELA, Raquel; CABREIRA, Pamela Peres. História do Movimento Operário e Conflitos Sociais em Portugal. Lisboa: Instituto de História Contemporânea, 2020. Disponível em: https://ihc.fcsh.unl.pt/historia-movimento-operario-2020/

Crédito da imagem de capa:  Acesso à área da CHESF em 1952. Acervo do Memorial da CHESF.


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Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

LMT #77: Rua do Ouvidor – Renata Figueiredo Moraes



Renata Figueiredo Moraes
Professora do Departamento de História da UERJ e pesquisadora do LEHMT/UFRJ


A rua que leva o nome de um ofício, “do ouvidor”, surgiu pequena e cresceu a medida em que a cidade colonial se expandia. Passou assim a ser chamada por volta de 1780 com a chegada do Ouvidor português que ali se instalou. No Império, a longa via ficou próxima ao centro político dos arredores do Largo do Paço, ligando também os alunos da Escola Politécnica (atual UFRJ-IFCS, onde termina a rua) aos mais variados tipos de pessoas que nela circulava: os que vendiam e compravam peixe na Rua do Mercado (início da rua), os frequentadores do comércio, os que iam às portas das redações para ver os jornais e os trabalhadores das tipografias, muitas com sede na Ouvidor. Com prédios que dispunham de uma sacada, tipicamente colonial, cronistas e jornalistas observavam sua movimentação e de seus trabalhadores. Entre eles estavam também inúmeros escravizados que ocupavam as calçadas para vender mercadorias ou esperar para carregar algum objeto, atividades típicas dos escravos ganhadores, e muitas mulheres que vendiam seus produtos em tabuleiros, alguns levados à cabeça. A rua do Ouvidor, no centro do Rio de Janeiro, é carregada de memórias dos mundos do trabalho.

A Ouvidor foi tema de diversos cronistas da cidade. Joaquim Manoel de Macedo, Machado de Assis, Coelho Neto, Artur Azevedo, entre outros, a usaram como cenário privilegiado para retratar o cotidiano do Rio de Janeiro do século XIX e do início do XX. Para muitos deles, a Ouvidor era um espaço muito familiar já que a atravessavam frequentemente para exercerem suas atividades como trabalhadores nos diversos jornais cujas sedes ficavam nessa rua.

Durante boa parte do Império, a rua do Ouvidor foi o lugar de concentração de variados jornais existentes na Corte, reunindo grande número de editores, noticiaristas e tipógrafos, que, muitas vezes, também produziam seus próprios jornais. A Gazeta dos Operários, (1875), por exemplo, era publicada pela Tipografia Fluminense, com sede na Ouvidor. Essa rua também era o endereço do aristocrático Jornal do Comércio, próximo ao jornal de José do Patrocínio, Cidade do Rio, além de outros periódicos importantes do período, como a Gazeta de notícias, O Paiz, Diário de Notícias, dentre outros. Não por acaso, a rua também foi um espaço de mobilização dos tipógrafos, como no caso da famosa greve por eles realizada em 1858.  Mas, para além dos tipógrafos e cronistas que atuavam nos jornais, a Ouvidor era um importante lugar de trabalho para aqueles que atuavam no comércio, como os caixeiros e guarda-livros.

A Ouvidor era do trabalho e das festas. Os desfiles de carnaval no Império eram realizados na estreita rua e que tinha nos seus sobrados os camarotes para aqueles que não quisessem se misturar a alegria do povo. No início de maio de 1888, com a crescente expectativa pela aprovação da lei da abolição, a Ouvidor foi o epicentro das celebrações, que eram organizadas pela imprensa. Muitos dos que buscavam notícias nas redações dos jornais se juntaram aos festejos. No 13 de maio de 1888, muitos populares se reuniram nessa área a fim de esperar a chegada da Princesa ao Paço, a poucos metros daquela região, onde ocorreria a assinatura da lei que acabaria com a escravidão.


Naquele dia, a rua foi ocupada por uma multidão, que incluía os funcionários da Câmara Municipal que saudaram os jornais, assim como o fizeram os empregados da Estrada de Ferro, dos Correios e os da classe artística.


Da sede da Associação dos Empregados do Comércio, na Ouvidor, saiu um grupo que participou dos desfiles que ocorreram pelas ruas do centro da cidade no dia 20 de maio de 1888. Naqueles dias de maio, a região era o ponto de encontro para celebrar a abolição e pegar as poesias jogadas por literatos para os festeiros, sem pensar muito nos dias seguintes e o futuro do trabalho. 

Nessa rua ocorreram também os festejos não oficiais, celebrações feitas por homens e mulheres, muitos negros, que festejaram o fim da escravidão de forma própria. As notícias sobre essa festa são dadas pela Gazeta de Notícias, que criticou aquela movimentação por lhe parecer estranha, apesar de serem apenas homens e mulheres dançando um batuque em roda. Possivelmente os que celebravam daquele jeito eram trabalhadores que só tinham a noite para comemorar a abolição por não terem tido folga durante o dia, como os do comércio e tantos outros. Outros talvez não se identificassem com as bandas que tocavam nos bailes públicos nas ruas e pretendiam ter a liberdade de promoverem seus próprios festejos no mesmo local onde já se celebrava o carnaval.

Nos anos seguintes, a rua do Ouvidor continuaria a ser um importante local de passagem e de manifestações populares, como a que ocorreu por ocasião da proclamação da República. Desde então, a rua ganhou mais requintes aristocráticos, novas lojas, muitas internacionais, perdeu o carnaval e as redações dos jornais que migraram para a Avenida Central, inaugurada em 1904. Considerada um símbolo de refinamento e elegância da belle époque carioca, a Ouvidor foi perdendo seu glamour aristocrático ao longo do século XX. Mas nunca deixou de ser um espaço fundamental de trabalho no centro do Rio. Nos últimos anos, a rua havia voltado a ser um local das festas, com sambas frequentes e bailes que reuniam trabalhadores em happy hour. A pandemia do Coronavírus trouxe um esvaziamento à região. Mas, a Ouvidor continuará sendo a rua das festas e dos trabalhadores, que voltarão a ocupá-la, para uma manifestação política, um samba, ou uma cerveja após a cansativa jornada. 

Redação do jornal O Paiz (Rua do Ouvidor – 1888)
Créditos:  “Abolição no Brasil”, Antonio Luiz Ferreira, Lago, Pedro e Lago, Bia Corrêa. Coleção Princesa Isabel. Fotografia do século XIX. Rio de Janeiro: Capivara Editora Ltda; 2008, p. 303

Para saber mais:

  • BRASIL, Eric. A corte em festa. Experiências negras em carnavais do Rio de Janeiro (1879-1888). Curitiba: Editora Prisma, 2016
  • MORAES, Renata Figueiredo. “Festas e resistência negra no Rio de Janeiro: batuques escravos e as comemorações pela abolição em maio de 1888”. Revista do Arquivo Geral da cidade do Rio de Janeiro, n. 15, 2018,.
  • PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. O Carnaval das letras. Literatura e folia no Rio de Janeiro do século XIX. 2ª ed. rev. Campinas: Editora da Unicamp, 2004.

Crédito da imagem de capa:  “Abolição no Brasil”, Antonio Luiz Ferreira, Lago, Pedro e Lago, Bia Corrêa. Coleção Princesa Isabel. Fotografia do século XIX. Rio de Janeiro: Capivara Editora Ltda; 2008, p. 301




LMT #76: Usina Wigg, Miguel Burnier, Ouro Preto (MG) – Luana Campos Akinruli



Luana Campos Akinruli
Doutora em Antropologia pela Universidade Federal de Minas Gerais



A importante presença dos trabalhadores na história de Miguel Burnier, distrito de Ouro Preto, Minas Gerais, quase nunca é evidenciada e divulgada. Dispersos na paisagem local existem sítios de vilas operárias, de conjuntos ferroviários e um patrimônio arquitetônico e religioso de grande envergadura. A Usina Wigg, por exemplo, foi a primeira no país a explorar manganês. Posteriormente, dedicou-se ao ferro. Ali também se desenvolveu a Usina Barra Mansa, que depois passou a fazer parte do Grupo Votorantim e, atualmente, ao grupo Gerdau.

A Usina Wigg foi fundada em 1893, pelo empresário anglo-brasileiro Carlos Wigg. Situava-se num local privilegiado para as atividades da indústria siderúrgica, com grande quantidade de jazidas de minério de ferro e de manganês de boa qualidade a pouca distância do local de beneficiamento. Também possuía abundância de reservas vegetais para a produção de carvão, água em fartura para a movimentação de maquinário de forças hidráulicas e proximidade da malha ferroviária para o escoamento da produção, além de depósitos de calcário, material indispensável ao funcionamento dos altos-fornos.

Atuando em todas as fases de produção – extração, beneficiamento, transporte e exportação do minério –, a Usina Wigg contava já no ano de 1905 com 373 casas destinadas a seus trabalhadores, onde residiam 334 famílias. As condições de moradia, no entanto, eram bastante precárias. A maioria era de pau a pique com cobertura de zinco. Em 1913, residiam cerca de 2.000 pessoas nessa vila operária.

Assim como em diversas outras vilas operárias criadas no país entre o final do século XIX e início do XX, a empresa procurava moldar diversos aspectos do cotidiano de seus trabalhadores. O controle social era rigoroso, com interferências na vida religiosa, escolar e no lazer dos funcionários. Na vila também havia serviços médicos, farmácia e um armazém de alimentos. Em geral, era permitido que os operários mantivessem pequenas plantações nos quintais de suas casas ou em glebas pertencentes à empresa nas imediações. A manutenção dessas áreas se dava rotineiramente pelas mulheres e esporadicamente pelos homens em horários de folga. Nas proximidades da sede existiam as melhores casas, moradias dos encarregados feitas de tijolos, coberturas de telhas e pisos de peroba rosa.

O trabalho na empresa, majoritariamente masculino, era realizado em turnos de 24 horas incluindo os fins de semana e feriados, com exceção da Sexta-feira da Paixão. Do total de 413 operários distribuídos em 28 seções da Mineração e Usina Wigg, em 1958, havia apenas 10 mulheres por exemplo. Cada seção tinha um encarregado, que era responsável por uma equipe de trabalho e a quem cabia realizar os pagamentos e definir as acomodações, entre outros assuntos.


As políticas assistências e o rígido controle e disciplina imposto pela empresa dificultaram a organização sindical e o protesto operário. Mas, eles também ocorreram. Em 1919, por exemplo, uma greve generalizada por melhores salários e condições de trabalho paralisou a mina e a Usina. O padre italiano Marcelino Braglia, responsável pela Igreja da Usina (Nossa Senhora Auxiliadora de Calastróis), procurou mediar, sem sucesso, o conflito. Outros conflitos e insatisfações, abertas ou veladas, eclodiriam ao longo da história da empresa.


Com a morte de Wigg em 1931 e, sem descendentes, sua esposa Alice da Silveira Wigg  assumiu provisoriamente os negócios. Em 1940, a empresa foi adquirida por uma nova organização acionária e teve seu nome alterado para Mineração e Usina Wigg S. A. A partir da década de 1950, o controle acionário passou à Siderúrgica Barra Mansa S. A. e nos anos 1970 para as Indústrias Votorantim, ambas de propriedade da família Ermírio de Moraes. As atividades minerárias nas áreas do patrimônio da Wigg continuaram sob novas titularidades, o que ainda hoje tem gerado a expulsão de famílias moradoras na localidade há gerações e mesmo violentas situações de conflitos socioambientais.

Embora quase nunca lembrada nos roteiros turísticos da “barroca” Ouro Preto, a Usina Wigg é um lugar de memória fundamental na história da cidade. As lembranças de seus antigos trabalhadores ainda hoje combinam recordações da violência e autoritarismo que marcaram aquelas relações de trabalho com as saudades, muitas vezes idealizadas, da vida comunitária e da solidariedade local. Na experiência da Wigg, continuada em grande medida pela Siderúrgica Barra Mansa, o mundo do trabalho era articulado de modo desigual e combinado, conjugando manutenção e superação na maneira de se trabalhar de outros tempos. Em sua vida cotidiana e na conjugação entre interiorização e resistência às formas de dominação da empresa, os trabalhadores e suas famílias apropriaram-se daquele espaço, forjaram laços e identidades, e transformaram Miguel Burnier numa vigorosa comunidade operária.

Vestígios arqueológicos da Usina Wigg em 2018.
Fotografia de Luana Campos Akinruli.


Para saber mais:

  • AKINRULI, Luana Carla Martins Campos. A desconstrução do esquecimento em contexto de conflito ambiental: arqueologia e etnografia da comunidade de Miguel Burnier, Ouro Preto, Minas Gerais. Tese de Doutorado em Antropologia, UFMG, 2018. Disponível em: http://hdl.handle.net/1843/BUBD-BCDH4A.
  • AKINRULI, Samuel Ayobami. Geoprocessamento para a análise das dinâmicas geoespaciais e temporais do patrimônio cultural do distrito de Miguel Burnier, Ouro Preto, Minas Gerais. Monografia, Especialização em Geoprocessamento, UFMG, 2017. Disponível em: http://hdl.handle.net/1843/IGCM-AX9MUT.
  • ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Fundo Gerdau Açominas S. A. (1891-2007).
  • LLOYD, Reginald. Impressões do Brazil no Século Vinte. Londres: Lloyd’s Greater Britain Publishing Company Ltd., 1913.

Crédito da imagem de capa:  Vista das minas de manganês e Miguel Burner, tendo ao centro da boca da mina o proprietário Carlos Wigg. Fonte: LLOYD, 1913, p. 324.



Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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