Lugares de Memória dos Trabalhadores #55: Fábrica de Chapéus Souza Pereira, Sorocaba (SP) – Carlos Carvalho Cavalheiro



Carlos Carvalho Cavalheiro
Professor da Rede Pública Municipal de Porto Feliz (SP)



A partir das primeiras décadas do século XX, a cidade de Sorocaba passou a ser conhecida como a “Manchester Paulista”. Esse processo foi iniciado em 1882, quando a paisagem local ganhou um adereço até então inexistente: uma fábrica de tecidos de grande porte, com arquitetura inglesa, iniciando alterações que transformariam a antiga cidade rural em um dos mais importantes polos fabris do estado de São Paulo. Essa fábrica foi denominada de Nossa Senhora da Ponte (o nome da padroeira de Sorocaba), mas ficou também conhecida por Fábrica Fonseca, pois seu proprietário era o português Manoel José da Fonseca. Logo, a cidade se viu semeada por prédios do mesmo porte e estilo arquitetônico, com a fundação de novas fábricas têxtis, como as Fábricas Votorantim e Santa Rosália, fundadas em 1890, a Fábrica Santa Maria em 1896 e a Fábrica Santo Antônio em 1914.

Embora de menor porte, a Fábrica de Chapéus Souza Pereira foi especialmente importante não apenas na construção do imaginário da “Manchester Paulista”, como na história do movimento operário de Sorocaba. Localizada defronte à Praça Arthur Fajardo, conhecida também como Praça dos Canhões, o edifício da antiga fábrica de chapéus foi construído pelo então proprietário, o inglês John Adams, em 1885. Em 1898, o português Francisco de Souza Pereira, associado ao empresário Coats Vilela adquiriu a empresa.

Além de ser um lugar de memória da indústria, a Fábrica de Chapéus Souza Pereira também guarda importantes lembranças das lutas operárias. Ainda no século XIX, em 21 de novembro de 1890, os operários dessa fábrica declararam greve por melhores condições de trabalho. Foi uma das primeiras mobilizações ocorridas entre o operariado sorocabano. Também foram os chapeleiros que constituíram a primeira associação anarquista de Sorocaba: a Liga de Resistência, fundada em 6 de abril de 1902. Os chapeleiros já haviam fundado uma das primeiras associações mutualistas da cidade, a Sociedade Beneficente Protetora dos Chapeleiros.

A classe operária que se formava em Sorocaba, assim como em outras regiões do país, era bastante diversificada em termos étnicos e de origens nacionais. Antônio Francisco Gaspar trabalhou na Fábrica de Chapéus entre 1905 e 1908 e em seu livro “Minhas Memórias” registrou muitos sobrenomes de origem portuguesa entre os operários o que pode indicar uma maioria de nacionais e lusitanos, além de sobrenomes de origem italiana. Gaspar relacionou apenas nomes de homens, provavelmente porque as atividades da fábrica eram separadas por gênero e o contato dele com as operárias talvez tenha sido limitado. Mas elas existiam: estão registradas em fotografias, como uma de 1908, numa reunião operária em comemoração ao 1º de Maio, além de notícias de jornais durante a greve de 1917.

As mulheres que trabalhavam na fábrica de chapéus eram, em sua maioria, costureiras. Já os homens realizam as demais tarefas inerentes à produção, dependendo da matéria-prima utilizada, como, nos casos de feltro e lã, a lavagem, a cardagem, o processo de enformação, esmursação, a fula. A fábrica contava com vasto e diversificado maquinário, o que indica a complexidade da produção de chapéus. Segundo o Almanach Illustrado de Sorocaba de 1914, a Fábrica Souza Pereira empregava  216 chapeleiros, responsáveis pela impressionante produção de 36 mil chapéus por mês.


O episódio mais marcante que registra a memória desse prédio foi a participação dos seus operários na greve geral de 1917, a grande paralisação generalizada que se iniciou em São Paulo e, depois, se espalhou pelo interior no mês de julho daquele ano.


Em Sorocaba, a greve iniciou-se na Fábrica de Tecidos Nossa Senhora da Ponte e logo se espalhou para diversas categorias de trabalhadores. Os grevistas, no intuito de conseguir a adesão de seus companheiros chapeleiros, arrombaram os portões da Souza Pereira e negociaram a liberação dos trabalhadores junto à gerência do estabelecimento. Tanto as costureiras quanto os operários homens participaram ativamente do movimento. Ao todo, estima-se que entre 8 a 10 mil trabalhadores participaram da greve que durou três dias, conquistando muitas de suas reivindicações.

Em 1932, a Fábrica de Chapéus Souza  Pereira fechou as portas. Possivelmente ficou fechada por algum tempo, até que se iniciou a demolição interna, sobrando apenas a fachada. Em 1984 o interesse pela preservação da fachada da antiga fábrica já aparecia num Inventário dos Prédios Históricos da Área Central de Sorocaba, elaborado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico de Sorocaba (CONDEPHISO). No entanto, somente em 1998 abriu-se o processo de tombamento, ainda não concluído.   

A fachada de Fábrica de Chapéus é um caso interessante de lugar de memória oculto, um marco que ainda existe na paisagem, mas que tem a sua memória ocultada por obstáculos físicos ou pela falta de referências (por exemplo, uma placa indicativa). Se, de um lado, é um reminiscência do poder da burguesia local da “Manchester Paulista”, por outro, ela também representa a existência e a resistência da classe trabalhadora, a principal responsável pelo crescimento industrial de Sorocaba. A fachada da Fábrica de Chapéus Souza Pereira nos remete a uma outra memória que se contrapõe àquela produzida pelos grupos detentores do poder.

Fachada da antiga Fábrica de Chapéus Souza Pereira, 2016.
Foto: Carlos Carvalho Cavalheiro.


Para saber mais:

  • ALMEIDA, Aluísio de. Sorocaba 3 séculos de História. Itu: Ottoni, 2002.
  • BONADIO, Geraldo. Sorocaba a cidade industrial. Sorocaba: LINC, 2004.
  • CARVALHO, Rogério Lopes Pinheiro de. Fisionomia da cidade – Cotidiano e transformações urbanas (1890 – 1943). São Paulo: Biblioteca 24 horas, 2010.
  • CAVALHEIRO, Carlos Carvalho. Memória Operária. Sorocaba: Crearte, 2009.
  • CAVALHEIRO, Carlos Carvalho. “’Tá vendo aquele edifício, moço?”: Lugares de Memória, Produção de invisibilidade e processos educativos na cidade de Sorocaba. Maringá: A R Publisher Editora, 2018.

Crédito da imagem de capa: Fábrica de Chapéus, 1913. Imagem da internet. Disponível em: http://www.brasilbook.com.br/exibir.asp?imagem=6275


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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Lugares de Memória dos Trabalhadores #54: Fábrica e Vila Operária do Biribiri, Diamantina (MG) – Kátia Franciele Corrêa Borges



Kátia Franciele Corrêa Borges
Doutora em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora


Nos arredores de Diamantina, em Minas Gerais, situa-se a Vila do Biribiri, onde sobrevivem antigas instalações de uma fábrica de tecidos que funcionou entre 1877 e 1973. A Fábrica do Biribiri foi fundada pelo bispo Dom João Antônio Felício dos Santos e seus familiares. Dom João pertencia a uma família do Serro, cujo patrimônio provinha de negócios minerários. Os tecidos produzidos, em sua maioria de algodão grosso, eram vendidos na região e no Rio de Janeiro.

Do alto da estrada, avista-se o conjunto arquitetônico da vila composto pela Capela do Sagrado Coração de Jesus, galpões da antiga fábrica, um casarão que, no passado, era o dormitório feminino (chamado de convento) e 33 casas. O nome “Biribiri” tem origem tupi e significa “buraco fundo”. O maquinário foi adquirido nos Estados Unidos e ao chegar ao Rio de Janeiro seguiu longa viagem até finalmente ser conduzido em carros de boi e tropas até Biribiri.

A posição geográfica da fábrica, isolada e distante do centro urbano, tornava difícil o acesso ao local do trabalho e exigiu a construção de uma vila para moradia dos(as) trabalhadores(as). Um armazém também foi erguido, inclusive com o propósito de gerar laços de dependência e controle. Os operários moravam na vila e seguiam normas rígidas de disciplina, sobretudo, as mulheres.

A fábrica começou a funcionar com 63 operários(as), sendo 36 mulheres, 18 meninos e 9 homens. Este quadro de emprego majoritariamente feminino manteve-se ao longo da existência de Biribiri e as ocupações e hierarquias eram claramente definidas pelo gênero. As mulheres ocupavam funções de fiadoras, tecelãs, copeiras, cozinheiras e auxiliares de escritórios, enquanto os homens eram carpinteiros, mecânicos, ferreiros, motoristas, e ocupavam os lugares de supervisão e chefias. No ápice de sua produção, na primeira metade do século XX, a empresa contou com 300 trabalhadores(as).

A maioria deles era arregimentada na própria região de Diamantina e seu entorno. No início, as trabalhadoras eram denominadas de “pobres órfãs-operárias”, pois parte delas provinha de obras assistenciais, como o Colégio e Orfanato Nossa Senhora das Dores. Um jornal da época conta que Dona Mariana Valadares Fernandes dos Santos, cunhada do bispo, se responsabilizava por cuidar das moças que ali trabalhavam. Produziu-se a ideia de que tais meninas “infelizes”, por serem muito pobres, precisariam ser amparadas por meio do emprego na fábrica ou de um casamento.


A religiosidade foi um fenômeno marcante em Biribiri, sobretudo para as mulheres. Associações católicas como Filhas de Maria e o Apostolado da Oração incentivavam as operárias a seguirem regras de idoneidade moral, autovigilância e submissão.


Ao ingressarem na associação Filhas de Maria, por exemplo, as mulheres recebiam fitas que indicavam o nível de pertencimento na ordem. A cor azul indicava que aquela devota havia sido penitente, praticado boas ações, não tinha dançado e desrespeitado seus pais ou superiores. O ritual de troca das fitas era assinalado por momentos de grandes festividades religiosas.

As associações católicas femininas disseminavam a ideia de que uma “boa operária” teria que ser virtuosa e ter boa moral e tiveram forte impacto na identidade daquelas mulheres. O pertencimento a uma associação católica chegava a ser um pré-requisito para ingresso na fábrica. Mas, para além de um espaço de controle e resignação, as atividades das associações possibilitavam a difusão de informações e a inserção das mulheres no mundo das leituras. Espaços de alguma autonomia no interior dessas associações também foram construídos pelas operárias e não eram incomuns as burlas e desobediências às regras.

Em 1908, o Banco Hipotecário do Brasil assumiu o controle da fábrica, que em 1921, passou às mãos dos irmãos Algemiro Pompoloni Duarte e João Gerundino Duarte. Em junho de 1943, quando entrou em vigor a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), o gerente da fábrica contratou o fotógrafo Assis Horta para fazer os retratos de 300 operários(as) para as carteiras profissionais. Para a imensa maioria delas, aquele seria seu primeiro documento. Não à toa, o fotógrafo relatou o esmero com que as moças se preparavam para serem fotografadas, arrumando seus cabelos e vestindo suas melhores roupas.

O empresário Alexandre Mascarenhas, em 1954, tornou-se acionista majoritário da Biribiri. Em 1973, mesmo diante dos protestos do ex-presidente Juscelino Kubitschek, natural de Diamantina, e do prefeito da cidade, o industrial optou pelo fechamento da fábrica argumentando que empreendimento havia se tornado obsoleto e dispendioso. Parte dos(as) operários(as) foi realocada em unidades fabris de propriedade do empresário em Diamantina, Gouveia e Contagem.

Em 1994, um movimento organizado por moradores de Diamantina resultou no tombamento do conjunto arquitetônico e paisagístico da Vila do Biribiri pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais. E o lugar que outrora foi movimentado pelo apito da chaminé, agora é ressignificado como espaço turístico. Mas Biribiri também é um fundamental lugar de memória do trabalho e dos operários e operárias que ali construíram suas vidas.

Fábrica de Tecidos do Biribiri (1943).
Fonte: Acervo do Museu Alexandre Mascarenhas. Estamparia S/A – Contagem/MG.


Para saber mais:

  • BORGES, Kátia Franciele Corrêa. Fiar, tecer e rezar: a história das mulheres na Fábrica de Tecidos do Biribiri (1918-1959). Tese de doutorado. Universidade Federal de Juiz de Fora, 2019.
  • FERNANDES, Antônio Carlos. O turíbulo e a chaminé: a ação do bispado no processo de constituição da modernidade em Diamantina, 1864-1917. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Minas Gerais, 2005.
  • MARTINS, Marcos Lobato. Breviário de Diamantina: uma história do garimpo de diamantes em Minas Gerais (Século XIX). Belo Horizonte: Fino Traço, 2014.

Crédito da imagem de capa: Fotos das operárias do Biribiri para carteira de trabalho feitas por Assis Horta (1943). Fonte: HORTA, Guilherme. Assis Horta: a democratização do Retrato Fotográfico através da CLT. Catálogo digital da Exposição. Ouro Preto: Funarte e Minc, 2012. Disponível em https://issuu.com/studioanta/docs/catalogo_democratizacao


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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Lugares de Memória dos Trabalhadores #53: Igreja e Largo de São Domingos de Gusmão, Rio de Janeiro (RJ) – Patricia Pamplona



Patricia Pamplona
Pesquisadora de imagem e mestranda na Escola de Comunicações da UFRJ



No início do século XVIII, os clérigos da igreja de São Sebastião, no morro do Castelo, no Rio de Janeiro, começaram a contestar a permanência em suas instalações da imagem de São Domingos de Gusmão, santo bastante venerado pelos negros. Em 1706, a Câmara atendeu a um pedido da irmandade de São Domingos e concedeu um terreno para a construção de uma igreja. O espaço ficava fora dos limites da cidade, em um descampado pantanoso, na atual confluência das avenidas Presidente Vargas e Passos.

Durante algumas décadas, a igreja de São Domingos sediou pelo menos três irmandades além da dominicana: a de Santana, a do Menino Jesus e a de Santo Elesbão e Santa Efigênia, estes últimos, santos africanos venerados em conjunto. Essas agremiações religiosas, reunidas em torno da devoção a um santo católico, funcionavam como uma sociedade de ajuda mútua, cujos agregados, muitas vezes escravos e negros libertos, contribuíam com taxas anuais em troca de assistência.

As informações sobre a igreja de São Domingos durante o século XVIII são escassas, mas sabemos que se encontrava em precário estado de conservação em meados do século XIX. Nesse período, a cidade se expandia em direção ao norte, e, aos poucos, a igreja, antes solitária na paisagem, foi sendo incorporada ao centro urbano. No largo em frente, que levou o seu nome, foi instalado um pequeno chafariz de ferro, que atraía moradores, vendedores ambulantes e lavadeiras.

Sem manutenção, a igreja entrou no século XX a ponto de desabar, enquanto o largo reunia trabalhadores, um pequeno comércio e moradias populares. A praça tinha gafieira, botequim, casa de pasto, restaurantes, alfaiataria, casa de banho, fábrica de fogões, casa de charutos e cigarros, loja de roupas, e casas de cômodos.

Nesse mesmo período, o largo de São Domingos foi se configurando como um dos principais espaços para um novo tipo de organização operária, as sociedades de resistência. Essas associações de trabalhadores tinham um caráter eminentemente sindical, pleiteando salários, jornada e condição de trabalho mais dignos, ainda que mantivessem algumas características das sociedades de ajuda mútua populares no século anterior. As duas primeiras décadas da República foram de intensa mobilização popular. Entre 1890 e 1920, mais de trezentas greves foram realizadas no Rio de Janeiro e explosões sociais, como a Revolta da Vacina, em 1904, foram relativamente comuns.


Naquele contexto, o largo de São Domingos tornou-se um lugar de frequentes encontros e assembleias de trabalhadores. As associações de sapateiros, canteiros, pintores e costureiras, por exemplo, convocavam reuniões periódicas no largo. Comícios e comemorações do Dia Primeiro de Maio lotavam a praça.


No início do século XX, a cidade era um grande canteiro de obras graças às reformas urbanas do prefeito Pereira Passos. Em 1904, o “Bota-Abaixo” derrubou parte das construções do largo. O projeto do prefeito previa a abertura de uma nova avenida ligando a rua Larga de São Joaquim (avenida Marechal Floriano) ao Rocio (praça Tiradentes). A avenida, cuja construção pôs abaixo espaços importantes na luta operária, recebeu o nome do prefeito e foi a primeira via inaugurada no governo de Pereira Passos a rasgar o tecido urbano da cidade.

Em 1905, a prefeitura retirou o antigo chafariz do centro do largo de São Domingos, e em seu lugar colocou a estátua em bronze do jurista Teixeira de Freitas, obra de Rodolfo Bernardelli. A prefeitura alterou, inutilmente, o nome do largo para praça Teixeira de Freitas. Mas a estátua servia apenas de descanso para os pombos e palanque para os comícios. Teixeira de Freitas nunca foi um nome usado pela população, e quatro anos depois, em 1909, a escultura foi retirada e o largo voltou a ter oficialmente o seu nome original.

Uma nota no Jornal do Brasil, em 1919, nos dá medida da importância do largo de São Domingos para a luta operária. Em frente à fábrica de tecidos Aliança, em Laranjeiras, um comício “promovido por elementos agitadores” foi impedido de ser realizado “conforme resolução do dr. chefe de polícia de só permitir tais reuniões no largo de São Domingos”. Enquanto o largo continuava local de reuniões políticas, a igrejinha encontrava-se em estado calamitoso.

No final dos anos 1920, a sorte da igreja de São Domingos mudou. Foi reformada na prefeitura de Prado Júnior (1926-1930) e retomou as suas atividades religiosas com missas, batizados e catecismo.

Em 1941, o projeto de abertura da avenida Presidente Vargas derrubou os primeiros sobrados próximos à praça Onze. O largo e a igreja de São Domingos também ficavam no traçado da avenida, e logo as desapropriações chegaram até ali. A última festa na igreja de São Domingos foi realizada em 2 de agosto de 1942, já que, ironicamente, as chaves deveriam ser entregues à prefeitura no dia 4, dia do padroeiro. Depois de arrasados largo e igrejinha, as obras para construção da rede pluvial localizaram diversas ossadas humanas, que hoje sabemos ser daqueles que integravam a irmandade de São Domingos. Em 1970, a nova e definitiva paróquia de São Domingos de Gusmão foi inaugurada na rua José Higino, 120, no bairro da Tijuca.

Largo de São Domingos. Augusto Malta, 1913.
Coleção Augusto Malta. Museu da Imagem e do Som – RJ.


Para saber mais:

  • ABREU, Maurício de Almeida. Evolução urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, IPP, 2008.
  • ANDREATTA, Verena. Cidades quadradas, paraísos circulares. Rio de Janeiro: Mauad X, 2006.
  • BATALHA, Claudio. Dicionário do movimento operário – Rio de Janeiro do século XIX aos anos 1920, militantes e organizações. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2009.
  • MOTA, Isabela e PAMPLONA, Patricia. Vestígios da paisagem carioca: 50 lugares desaparecidos do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Mauad X, 2019.

Crédito da imagem de capa: Comício operário no largo de São Domingos. O Malho, 9 de maio de 1908. Divisão de Periódicos, Fundação Biblioteca Nacional.


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Lugares de Memória dos Trabalhadores #52: Estádio do Pacaembu, São Paulo (SP) – Plínio Labriola Negreiros



Plínio Labriola Negreiros
Doutor em História em História Social pela PUC-SP



Entre fins dos anos 1910 e o início da década seguinte, a cidade de São Paulo desenhou a sua definitiva ligação com as práticas físicas e com os esportes. O aumento vertiginoso da população associado à produção industrial, trazia novos necessidades à capital paulista. Os estádios esportivos não comportavam mais as multidões apaixonadas, em essência, pelo futebol. Não era possível acomodar mais do que 30 mil torcedores. E, em condições, bem precárias.

Nesse contexto, a ideia de construção de um grande estádio em São Paulo ganhava corpo, especialmente com a doação, por parte da Cia. City, uma grande empresa urbanizadora, de um terreno no vale do Pacaembu. Concebido como um grande complexo esportivo, o estádio teve projeto arquitetônico do escritório Ramos de Azevedo, sendo considerado um exemplo do estilo art déco. A simetria e monumentalidade remetiam às edificações fascistas do período. A construção teve início em 1936 e foi concluída em 1940, na conjuntura política do Estado Novo.

O estádio fazia parte de uma estratégia mais ampla, que visava incorporar os trabalhadores urbanos às atividades físicas e artísticas, devidamente “organizadas e dirigidas”. Além disso, deveria abrir espaço para as grandes manifestações políticas, com “sentido cívico”. As atividades físicas seriam parte da construção do “novo brasileiro” que precisaria ser forte para defender a nação, mas também para compreender porque era necessário defender o Brasil. Atividades físicas e práticas cívicas eram assim articuladas na lógica do nacionalismo do Estado Novo.

Já na inauguração do Pacaembu, no dia 27 de abril de 1940, foi organizado um grande espetáculo político, com a presença de todas as esferas de poder, inclusive do Presidente Getúlio Vargas. Não demorou muito tempo, porém, para que o estádio do Pacaembu se tornasse principalmente um templo do futebol. A paixão dos torcedores de São Paulo, em grande parte trabalhadores, subverteu, mas não anulou, os projetos de monumentalidade cívica do novo estádio.

Em maio de 1944, o estádio do Pacaembu recebeu as comemorações do Dia do Trabalhador. Foi a primeira vez que os trabalhadores paulistas receberam a presença de Vargas para esse evento, já frequente no Rio de Janeiro, em particular no Estádio de São Januário. Em plena Segunda Guerra Mundial, o ditador pretendia passar uma imagem de unidade nacional, paz social e apoio popular a seu governo. Submetidos aos decretos do esforço de guerra, trabalhadores e trabalhadoras ouviram o presidente exaltar seu “esforço patriótico” e exaltar uma suposta ausência de greves e perturbações. Vargas também anunciou estarem adiantados os estudos para uma lei definidora dos direitos dos trabalhadores rurais. Desde o início do Estado Novo, Getúlio Vargas usava as celebrações de Primeiro de Maio para fazer anúncios de novos direitos.

No ano seguinte, 1945, com o fim da Guerra e uma entusiasmada conjuntura de redemocratização do país, o Pacaembu voltaria a ser palco de manifestações políticas dos trabalhadores de São Paulo. Em 15 de julho, uma multidão recebia o líder comunista, Luís Carlos Prestes, recém-libertado, após 9 anos de prisão. O Partido Comunista do Brasil (PCB), legalizado há poucos meses, mostrava sua força em São Paulo, com um impressionante comício que contou com a presença de emergentes lideranças operárias, intelectuais e políticas, como Jorge Amado, Caio Prado Jr. e Carlos Marighella. O renomado poeta chileno Pablo Neruda leu um poema em homenagem ao partido, logo antes do aclamado discurso final de Prestes.


Meses depois, os comunistas dariam nova demonstração de apoio político e social. Em 13 de outubro, Corinthians e Palmeiras realizavam, em um Pacaembu lotado, uma partida beneficente com o intuito de arrecadar recursos para o Movimento Unificador dos Trabalhadores (MUT), articulação de sindicatos ligada ao PCB.


Nas décadas seguintes, a vocação política do Pacaembu ficaria relativamente adormecida. Ainda assim, o estádio foi um dos principais palcos das celebrações do IV Centenário de São Paulo em 1954 e voltaria a ser amplamente utilizado para manifestações cívicas durante a ditadura militar de 1964. De qualquer forma, continuaria a ser um dos principais espaços de lazer dos trabalhadores paulistanos. Durante a redemocratização manifestações políticas voltariam fortes às portas do Pacaembu. Em 27 de novembro de 1983, na praça Charles Miller, em frente ao estádio, um ato público, convocado por partidos de oposição, como PT, PMDB, PDT, além dos, à época clandestinos, PCB e PCdoB, exigia eleições diretas para a escolha do novo presidente do Brasil e reuniu cerca de 15 mil participantes. Era o pontapé inicial para o Movimento Diretas Já, que, no ano seguinte, mobilizaria milhões de brasileiros em todo o país.

Mais recentemente, a histórica relação dos trabalhadores com o Pacaembu voltou a ser lembrada. Em abril de 2010, as centrais sindicais CUT, Força Sindical, CTB, Nova Central e CGTB, reuniram, no estádio, cerca de 22 mil sindicalistas e ativistas e aprovaram o documento “Agenda da Classe Trabalhadora”, uma pauta de propostas que foi entregue aos candidatos à presidência da República naquele ano.            

O estádio municipal do Pacaembu possui um lugar especial na memória afetiva dos paulistanos. Cenário de grandes eventos esportivos, artísticos e políticos, sede, desde de 2008, do popular Museu do Futebol, é também um fundamental lugar de memória dos trabalhadores e trabalhadoras de São Paulo e do país.

Comício São Paulo a Luis Carlos Prestes no Estádio do Pacaembu, 15 de julho de 1945.
Acervo Memorial da Resistência, São Paulo.



Para saber mais:


Crédito da imagem de capa: Ato público em 27 de novembro de 1983, na praça Charles Miller, em frente ao estádio do Pacaembu exigindo eleições diretas para presidente. Acervo da Fundação Perseu Abramo.


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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Lugares de Memória dos Trabalhadores #51: Companhia de Fiação e Tecidos Piauiense, Teresina (PI) – Felipe Ribeiro



Felipe Ribeiro
Professor de História da UESPI e Pesquisador do LEHMT-UFRJ



“Vejo-a [Teresina] sem o alarido das pipiras tentadoras – as mocinhas pobres, empregadas na Companhia de Fiação e Tecidos Piauiense, ruído de máquinas o dia todo”, relembrou o cronista José de Arimathéa Tito Filho, em 1973, ao registrar suas memórias sobre a capital do Piauí. Ele fazia alusão à “fábrica das pipiras”, por conta da quantidade expressiva de mulheres operárias na Companhia Piauiense. Em 1946, por exemplo, a fábrica possuía 310 operários, sendo 216 mulheres, ou seja, quase 70% de sua força de trabalho.

Nas memórias do cronista, as “pipiras” eram garotas com “vestidinhos de chita, merendavam banana, daí o apelido que a crônica registra”. Era uma referência à ave pipira, bastante comum na Amazônia e na região Meio Norte, entre o Piauí e Maranhão. Outras memórias indicam que o apelido surgiu com o “vozeiro das tecelãs” de manhã cedo, indo para o trabalho na fábrica, semelhante ao canto estridente da ave. Outros registros dão conta que, ao serem inseridas no trabalho industrial, essas operárias conquistavam um certo status diante das demais profissões femininas, adquirindo maior liberdade social, daí a analogia com o “bater de asas” das pipiras.

Porém, este apelido apresentou conotações pejorativas para muitas operárias, vistas sob a ótica machista como mulheres disponíveis a variadas formas de importunação. O próprio Tito Filho descreveu as pipiras como “tentadoras”. Este aspecto, aliás, é reiterado em outros relatos sobre a cidade, indicando casos de assédio e romances vivenciados por operárias da fábrica. Alguns deles ocorriam nos “pipirais”, bailes populares que eram frequentados por essas trabalhadoras. No próprio cancioneiro popular brasileiro há indicações desse duplo sentido, como a canção “Pipira” do compositor maranhense João do Vale: “O que é menina? / (…) Fica o povo comentando / Mais um que a pipira biliscou / E tu também tá engordando / Mais uma que a pipira biliscou”.

A Companhia Piauiense foi um dos símbolos de modernização da capital no início do século XX, inserida em um projeto de desenvolvimento econômico e urbano, especialmente na região central de Teresina, às margens do rio Parnaíba, onde estava a fábrica, na atual Avenida Maranhão. Tendo como sócios influentes comerciantes e proprietários das cidades de Teresina e Parnaíba, a empresa foi organizada em 1889 com o nome de Companhia de Fiação e Tecidos Piauhyense e no mesmo ano foi iniciada a construção do edifício. A unidade fabril foi solenemente inaugurada no dia 1º de janeiro de 1893, mas já vinha funcionando de forma experimental há meses, inclusive com oficinas de aprendizagem para mulheres operárias.

Um dos seus fundadores, Antônio Gonçalves Pedreira Portelada, chegou a ocupar o cargo de Intendente Municipal de Teresina (1897-1900). Em 1926, a fábrica teve seu prédio inundado por conta das fortes chuvas que transbordaram o rio Parnaíba, acarretando um enorme prejuízo, situação que ainda foi agravada pelos efeitos da crise econômica mundial de 1929. A fábrica chegou a fechar, contando com o apoio  do governo estadual no retorno de suas atividades. Esta relação estreita parece ter sido intensificada durante o longo governo de Leônidas de Castro Melo (1935-1945), quando a fábrica lançou os brins das marcas “Governador”, “Interventor” e “Estadista”.


Funcionando até a década de 1950, a Companhia Piauiense era a única fábrica têxtil do Piauí, considerada um dos maiores estabelecimentos industriais do estado, ao lado de fábricas de cigarros, bebidas, laticínios e óleos vegetais.


Junto à Companhia formou-se um bairro operário improvisado, com casebres de palha construídos pelos próprios trabalhadores da fábrica. Ao final da década de 1920, a prefeitura, com apoio da direção fabril, demoliu as casas dessas famílias operárias, visando afastar a pobreza da área mais urbanizada da cidade. Na ocasião, foram cedidos terrenos para que diversos trabalhadores, não somente têxteis, construíssem suas casas em uma área periférica, localizada após a linha férrea, a dois quilômetros da fábrica de tecidos. O bairro logo passou a ser chamado de Vila Operária e permanece até hoje.

Durante o Estado Novo (1937-1945), manifestações em comemoração ao 1º de Maio ocorreram em frente à fábrica, como missas campais e concentrações para desfiles cívicos e passeatas. A associação profissional dos trabalhadores têxteis de Teresina foi organizada neste período, sendo reconhecida como sindicato em 1948. Foi no contexto de organização sindical que conflitos trabalhistas na fábrica ganharam maior visibilidade, com reivindicações de aumento salarial, denúncias de atrasos nos pagamentos e demissões sem a devida indenização.

Em 1953, a Companhia Piauiense entrou em concordata e encerrou suas atividades pouco depois, desempregando centenas de pessoas. Na década seguinte, o edifício que abrigava a antiga  fábrica foi adquirido pelo Grupo Claudino, que administrava o Armazém Paraíba, que ali inaugurou sua filial, em 1968. O prédio histórico da fábrica foi tombado pela prefeitura em 1986. Recentemente, a empresa proprietária promoveu uma reforma, conservando parte do estilo arquitetônico original.

Em sua trajetória, a Companhia Piauiense evocou múltiplas representações na história de Teresina: modernidade, trabalho, urbanização, desigualdades sociais e de gênero, além de lutas por direitos. Reunir vários desses “fios soltos” e entrelaçá-los na “urdidura” de novas tramas é a tarefa contra o esquecimento e pelo reconhecimento deste lugar de memória dos trabalhadores e das trabalhadoras do Piauí.

Fachada do prédio que abrigou a Companhia de Fiação e Tecidos Piauiense (1910-2016).
Montagem: Felipe Ribeiro. Acervos: Armazém Paraíba – Grupo Claudino e Notícias Acadêmicas. Informativo da Academia Piauiense de Letra. n.28, 1988. p.7. Periódico gentilmente cedido pelas pesquisadoras Gislane Torres e Iara Guerra.


Para saber mais:

  • CASTELO BRANCO, Pedro Vilarinho. Mulheres Plurais. Teresina: Edições Bagaço, 2005.
  • FERREIRA, Jordan Bruno Oliveira. Literatura, história e memória nas crônicas de A. Tito Filho. Teresina: dissertação de mestrado em História do Brasil, UFPI, 2014.
  • NASCIMENTO, Francisco Alcides do. A Cidade sob o Fogo: Modernização e Violência Policial em Teresina (1937-1945). Teresina: EDUFPI, 2015.
  • RIBEIRO, Felipe. ‘Uma grande organização fabril do Piauí’: a Companhia de Fiação e Tecidos Piauiense no contexto da Segunda Guerra Mundial. In: SOUZA NETO, Marcelo de; ALVARENGA, Antônia Valtéria Melo; FONTINELES FILHO, Pedro Pio [orgs.]. A História sob Múltiplos Ângulos: Trajetórias de pesquisa e escrita. Teresina: EdUESPI, 2020. v.2.
  • TEIXEIRA, Marina Lages Gonçalves. Teresina (1890-1920): arquitetura, indústria e ferrovia. São Carlos: dissertação de mestrado em Arquitetura e Urbanismo, USP, 2019

Crédito da imagem de capa: Registro da Companhia de Fiação e Tecidos Piauiense (provavelmente 1918/1919). Acervo: Fundação Municipal de Cultura Monsenhor Chaves.


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Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

Lugares de Memória dos Trabalhadores #50: Fábrica de Ferro de Ipanema, Iperó (SP) – Jaime Rodrigues e Karina Oliveira Morais dos Santos



Jaime Rodrigues
Professor do Departamento de História e do PPGH da Unifesp

Karina Oliveira Morais dos Santos
Mestranda no PPGH da Unifesp



A Fábrica de Ferro São João de Ipanema operou oficialmente entre 1810 e 1895, sendo pioneira na produção siderúrgica no Brasil. Foi um empreendimento de capital misto, associando as Coroas portuguesa e brasileira a capitais particulares. Edificada na época colonial, atravessou todo o Império e encerrou sua atividade poucos anos depois da proclamação da República. Localizava-se na atual Floresta Nacional de Ipanema, entre os municípios de Iperó, Araçoiaba da Serra e Capela do Alto, próxima de Sorocaba. O local foi escolhido pela constatação de que ali havia jazidas de ferro, algo que já era sabido desde o final do século XVI.

A Fábrica de Ipanema está inserida em um esforço mais amplo da colonização portuguesa, iniciado na época pombalina, que aliava o estímulo às manufaturas e a exploração dos produtos de base, como foi também o caso da Fábrica de Ferro de Nova Oeiras, erigida na década de 1770 no território hoje incorporado a Angola. Além da expectativa de que a siderúrgica abastecesse o Brasil com um produto de base como o ferro, havia também a intenção de que a Fábrica se tornasse uma espécie de escola de treinamento de trabalhadores, diminuindo assim a dependência de mão de obra estrangeira especializada.

O trabalho na siderúrgica se organizava a partir de oito ofícios principais: carpinteiro, torneiro, fundidor, refinador, moldador, espingardeiro, serralheiro e ferreiro. Uma pluralidade de perfis compunha o conjunto dos trabalhadores de Ipanema: negros livres e escravizados, europeus assalariados, indígenas, sentenciados e os chamados “nacionais”, que eram livres e pobres, brancos ou mestiços. Na Fábrica, engendraram-se as histórias de homens, mulheres, crianças, católicos, protestantes e pessoas que professavam religiões de matrizes africanas, entre outros agentes. Todos eles exerciam funções na fundição e, sobretudo mulheres e crianças, no corte e transporte da lenha e no abastecimento dos fornos. A população do entorno de Ipanema dedicava-se ao cultivo e à produção de alimentos voltados também para o abastecimento da Fábrica.

O número de trabalhadores variou ao longo do tempo. Houve momentos em que os escravizados chegaram a representar 80% da força de trabalho na Fábrica. Em 1827, por exemplo, havia 73 empregados nos serviços da siderúrgica, sendo 10 europeus (portugueses, suecos e alemães), 7 brasileiros livres e 56 escravizados. Já entre 1835 e 1842, 51 alemães estavam empregados na Fábrica, além de 144 africanos libertos e 174 escravizados.

Os primeiros trabalhadores assalariados eram majoritariamente suecos e, mais tarde, alemães. Esses homens eram afamados na Europa pelo fabrico do ferro fundido. Chegavam sob contratos, para ocupar cargos especializados. No entanto, trabalhadores escravizados também se tornaram mestres fundidores, cargo reservado quase que exclusivamente a oficiais brancos especializados. Muitos adquiriram conhecimentos no próprio trabalho exercido na Fábrica ou em experiências anteriores de metalurgia. Diversos povos de etnias banto ou da África Ocidental tinham habilidades reconhecidas na mineração, na fundição e no artesanato em ferro.


Embora não haja relatos de revoltas ou levantes de trabalhadores que tenham abalado o empreendimento de Ipanema de modo agudo, o temor de motins era recorrente.


As fugas eram frequentes, organizadas de diversas formas, e não envolviam apenas africanos livres ou escravizados. Fugir era uma prática comum também entre os sentenciados e os europeus assalariados. Outras formas de resistência dos trabalhadores também podem ser constatadas. Em 1849, por exemplo, africanos livres que trabalhavam em Ipanema escreveram um raro requerimento de próprio punho a um juiz de Sorocaba. Nele exigiam a liberdade que só era sua nominalmente, pois na prática exerciam o trabalho compulsório. Isso motivou forte repressão e a prisão de um grupo desses homens na cadeia pública da capital paulista.

Em 1860, em função da instabilidade produtiva e de dificuldades no gerenciamento administrativo, a Fábrica foi desmontada e seu patrimônio, compreendendo maquinaria e escravos, foi enviado ao Mato Grosso, onde se iniciava a
construção de uma nova siderúrgica. Com a eclosão da Guerra do Paraguai, Ipanema foi reativada em 1865, a fim de fornecer insumos à guerra.

Com o definitivo encerramento da Fábrica, em 1895, o local tornou-se palco de outras atividades, em um processo de esquecimento enquanto lugar de memória. As instalações da antiga Fábrica se tornaram quartel do Exército, depósito, local de exploração de fosfato e de calcário para o fabrico de cimento e espaço de pesquisas nucleares. No final do século XX, em 1992, houve uma ocupação pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Até hoje existe o Assentamento Ipanema na região. Naquele ano, o governo federal criou a Floresta Nacional de Ipanema, uma área de proteção ambiental onde hoje é possível visitar os remanescentes das edificações da Fábrica e um pequeno museu, além de percorrer trilhas no Morro de Araçoiaba, onde se situava a jazida de ferro. 

Pioneira na fundição de ferro no país, espaço de encontros e dissonâncias, a Fábrica de Ferro São João de Ipanema é um fundamental lugar de memória do trabalho e dos trabalhadores. Experiência excepcional na história do trabalho, da siderurgia e da industrialização brasileira, sua trajetória permite conhecer e melhor compreender as múltiplas dinâmicas, diversidades e complexidades dos mundos do trabalho no Brasil escravista.

Remanescentes dos fornos de fundição da Fábrica de Ferro São João de Ipanema.
Fotografia de Karina Santos, 2014.


Para saber mais:

  • NETO, Mario Danieli. Escravidão e indústria: um estudo sobre a Fábrica de Ferro São João de Ipanema – Sorocaba (SP) – 1765-1895. Campinas: UNICAMP, 2006.
  • RODRIGUES, Jaime. No mar e em terra: história e cultura de trabalhadores escravos e livres. São Paulo: Alameda, 2016.
  • RIBEIRO, Mariana Alice Pereira Schatzer. Entre a fábrica e a senzala: um estudo sobre o cotidiano dos africanos livres na Real Fábrica de Ferro São João de Ipanema – Sorocaba – São Paulo (1840-1870). São Paulo: Alameda, 2017.
  • SANTOS, Karina Oliveira Morais dos. “Mão de obra na Fábrica de Ferro de São João de Ipanema: um catálogo de documentos do Arquivo Público do Estado de São Paulo (1810-1842)”. Revista de Fontes, v. 1, p. 35-136, 2017.

Crédito da imagem de capa: Vista das instalações de produção da Fábrica de Ferro de Ipanema em 1882. Fonte: Jesuíno Felicíssimo Jr., História da Siderurgia de São Paulo. São Paulo: ABM, 1969.


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Lugares de Memória dos Trabalhadores #49: Ginásio da FENAC, Novo Hamburgo (RS) – Evandro Machado Luciano



Evandro Machado Luciano
Mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul



O Ginásio de Esportes Alberto Mossmann ficou conhecido entre os trabalhadores e trabalhadoras de Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul, apenas como “Ginásio da FENAC”. O prédio, inaugurado em 1972, foi construído para abrigar competições esportivas. Localizava-se junto ao parque de exposições da Feira Nacional de Calçados (FENAC), onde era realizado o mais importante evento das indústrias do Vale do Sinos, na Região Metropolitana de Porto Alegre. O nome oficial do Ginásio faz referência a um antigo empresário calçadista, pai do prefeito em exercício no período de sua construção.

Novo Hamburgo, desde a primeira década do século XX, foi um importante polo industrial com base na produção de couro e calçado. A região é conhecida pela imigração alemã e empresários e trabalhadores teuto-brasileiros protagonizaram o processo de industrialização local. A partir dos anos 1960, no entanto, o crescimento fabril atraiu mão-de-obra de outras regiões do país, alterando as características étnicas e raciais de sua população. Já na década de 1970, mais de 70% dos trabalhadores do setor coureiro-calçadista provinham do interior do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. Nesse mesmo período, as mulheres ocupavam 40% dos postos de trabalho do setor. A produção de couro era massivamente delegada aos homens negros, por ser considerada um trabalho “sujo” e “pesado” demais para ser executado por operários brancos.

Ainda na década de 1960, o Serviço Social da Indústria (SESI) começou a organizar um campeonato que regulamentava os jogos de futebol e futsal de fábrica. Em Novo Hamburgo, ele ficou conhecido como “Campeonato do SESI” e tornou-se bastante popular. Em várias fábricas, ex-jogadores profissionais eram admitidos e muitos trabalhadores só eram contratados porque eram bons jogadores.

O Ginásio Alberto Mossmann era o mais importante espaço do campeonato, abrigando as grandes decisões, como na final do certame de 1977 em que os times das fábricas Calçados Kilate e Curtume Jaeger se enfrentaram com um público de mais de mil pessoas. Durante as décadas de 1970 e 1980 o Ginásio da FENAC recebeu jogos de futebol de salão (masculino), voleibol (masculino e feminino), shows e apresentações artísticas diversas. Se, de um lado, essas atividades reforçavam mecanismos paternalistas de dominação empresarial, por outro permitiam o compartilhamento de experiências comuns entre trabalhadores e trabalhadoras de diferentes lugares e fábricas de toda região. Assim, o que parecia ser apenas um local de diversão e sociabilidade, também foi um importante espaço para o movimento operário.

Ao final do ano de 1979, em um contexto de efervescência política e mobilização dos trabalhadores em todo o país, o Ginásio da FENAC foi palco de um movimento grevista de proporções inéditas naquele período. Apesar de mobilizações e formas de resistência operária terem existido em Novo Hamburgo durante a ditadura, a organização de trabalhadoras/es em larga escala só eclodiria no dia 4 de setembro daquele ano. Cerca de quinhentas pessoas que trabalhavam na fábrica de calçados Ciro S.A., em sua maioria mulheres, paralisaram suas atividades de forma espontânea e marcharam em direção à sede do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria do Calçado de Novo Hamburgo.


No dia seguinte, já eram mais de três mil grevistas que se dirigiram ao Ginásio da FENAC, onde realizaram uma histórica assembleia com o apoio do sindicato e demarcaram aquele espaço como um lugar onde também era possível debater política abertamente. Naquele dia, além do aumento salarial e melhores condições de trabalho, as trabalhadoras também exigiram creches nas fábricas e estabilidade para as gestantes, entre outras demandas.


O  Ginásio servia duplamente aos interesses dos trabalhadores. Em primeiro lugar, era um local amplo, necessário para a reunião de milhares de pessoas. Por outro lado, ocupar o ginásio possuía uma carga simbólica. O ato de dirigir-se ao ginásio naquele dia pode ser compreendido como a síntese de uma relação entre o trabalho, o esporte operário e a política durante a ditadura.

A assembléia do dia 5 de setembro de 1979 no Ginásio da FENAC teve forte impacto na dinâmica política e social da cidade. Ainda que a greve não tenha sido inteiramente vitoriosa, a paralisação impulsionou um grande crescimento da mobilização e organização dos/as trabalhadoras e de sua presença na esfera pública local. A greve gerou mudanças significativas na cúpula do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria do Calçado de Novo Hamburgo e nas relações intersindicais do Rio Grande do Sul ao longo da década de 1980, tendo impactos na construção da Central Única dos Trabalhadores e em forças políticas como o Partido dos Trabalhadores, entre outros.

As políticas econômicas neoliberais nos anos 1990 afetaram intensamente a indústria calçadista da região, gerando fechamento de fábricas e desemprego. O Ginásio de Esportes Alberto Mossmann também sofreu com a crise e descaso. Sem manutenção, suas instalações deterioraram-se. Nos anos 2000, deixou de abrigar jogos oficiais e em 2015 foi fechado para eventos esportivos e de lazer. Em 2018, foram retomadas obras de reforma, que ainda não resultaram em sua reabertura. Espaço de diversão e luta, no Ginásio de Esportes Alberto Mossmann, o “Ginásio da FENAC”, estão presentes as lembranças de das trabalhadoras e trabalhadores de Novo Hamburgo que resistiram aos despotismos dos industriais locais e do regime ditatorial que os apoiavam.

Assembleia dos trabalhadores do calçado de Novo Hamburgo no Ginásio da FENAC em 5 de setembro de 1979.
Acervo do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria de Calçado de Novo Hamburgo.


Para saber mais:

  • CIOCCARI, M.R. “Mina de jogadores: o futebol operário e a construção da “pequena honra”. Cadernos AEL, v.16, n.28, 2010.
  • CORRÊA, L. R. ; FONTES, P. “As falas de Jerônimo: Trabalhadores, sindicatos e a historiografia da ditadura militar brasileira.” Anos 90, Porto Alegre, v. 23, 2016.
  • LUCIANO, E. M. O nascimento dos “velhos”: sindicalismos, sociabilidades e a agência de sapateiros/as na ditadura civil-militar (Novo Hamburgo/RS, 1974-1979). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2019.
  • MARTINS, R. P. A produção calçadista em Novo Hamburgo e no Vale do Rio dos Sinos na Industrialização Brasileira: exportação, inserção comercial e política externa – 1969-1979. Tese (Doutorado em História) – Pontifícia Universidade Católica,  Porto Alegre, 2011.
  • PRODANOV, C. C. ; MARONEZE, L. A. G.  “Primeiro tempo: futebol, sociabilidade e as tensões da modernidade em Novo Hamburgo”. Recorde: Revista de História do Esporte , v. 8, 2015.

Crédito da imagem de capa: Assembleia dos trabalhadores do calçado de Novo Hamburgo no Ginásio da FENAC em 5 de setembro de 1979. Acervo do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria de Calçado de Novo Hamburgo.


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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Lugares de Memória dos Trabalhadores #48: Vilas Operárias do Horto, Rio de Janeiro (RJ) – Mariana Costa



Mariana Costa
Doutora em História pela PUC-Rio e pesquisadora do LEHMT/UFRJ



Nas décadas finais do Império, a área onde atualmente estão situados os bairros do Jardim Botânico e do Horto, no Rio de Janeiro, era parte do território que compreendia a Freguesia da Gávea. Desde meados da década de 1880, a região passaria a receber alguns dos principais investimentos industriais realizados na cidade, como o da Companhia de Fiação e Tecelagem Carioca, instalada à Estrada Dona Castorina (atual Rua Pacheco Leão), e a Fábrica de Fiação e Tecelagem Corcovado, localizada na Rua Jardim Botânico. Aquele território foi marcado pela história fabril que constituiu elemento fundamental da experiência de muitos dos trabalhadores e trabalhadoras da cidade entre o final do século XIX e início do XX.

Em 1890, quando já se encontrava instalada a Fábrica Carioca e apenas um ano após a inauguração da Fábrica Corcovado, os operários na Freguesia contavam 856 indivíduos. Já em 1906, eram 3.305 os trabalhadores nas indústrias. Se comparados os dados do censo de 1890 e 1906, nota-se um sensível acréscimo de 2.448 pessoas, evidenciando que as fábricas de tecidos instaladas na região durante o período passaram a atrair esses trabalhadores para o bairro.


Já no final do século XIX começaram a ser construídas vilas operárias por empresas privadas e pelas próprias companhias têxteis com a finalidade de abrigar a crescente mão de obra industrial.


Em 1889, a Companhia de Saneamento do Rio de Janeiro construiu a Vila Bocayuva à Estrada Dona Castorina, destinada a 800 operários. Por iniciativa da mesma companhia, a Vila Arthur Sauer começou a ser construída em 1891 também à Estrada Dona Castorina. Poucos anos depois, a Companhia de Fiação e Tecelagem Carioca construiu uma vila operária destinada à moradia de seus empregados, instalada à Estrada Dona Castorina, além de diversos outros pequenos núcleos de moradias naquela via e na Rua Lopes Quintas. Muitas das casas de vilas operárias e de outros núcleos de moradias erguidos no final do século XIX e início do século XX ainda encontram-se no bairro. Alguns logradouros menores da área que abrigavam esses conjuntos residenciais, como a Rua Estella e Rua Faro, ainda hoje conservam as suas denominações originais daquele período.

Outra pequena via que concentrava diversas moradias dos trabalhadores fabris no Horto é atualmente denominada Rua Mestre Joviniano. Trata-se de uma homenagem ao operário da Fábrica Carioca chamado Joviniano de Paula Bohemia, que exerceu a prestigiada função de mestre da banda de música do Clube Musical Recreativo Carioca durante as duas primeiras décadas do século XX. Na Estrada Dona Castorina, encontrava-se a sede da associação de lazer fundada ali em 1895 por empregados da própria companhia. Mestre Joviniano também foi membro do Carioca Foot-ball Clube, associação esportiva formada em 1907 pelos mesmos trabalhadores fabris. Desde a sua inauguração, a sede da agremiação se mantém na Rua Jardim Botânico, onde atualmente divide espaço com uma empresa de academia no mesmo endereço.

A partir da década de 1940, a crescente especulação imobiliária na região foi acompanhada por uma transformação significativa das atividades econômicas no bairro, que começava a perder a sua marca fabril. No início da década de 1930 uma crise financeira levou ao fechamento da fábrica Corcovado. Nos anos seguintes, a empresa loteou suas propriedades situadas no Jardim Botânico, destinando o empreendimento para as camadas médias ascendentes e a elite carioca. No início dos anos 1960, a Fábrica Carioca fechou definitivamente as suas portas. Demolida, seus terrenos no bairro foram loteados, sendo adquiridos, entre outros, pela Rede Globo.

Na década de 1980, o conjunto de imóveis que formava uma das vilas operárias que abrigavam os empregados têxteis, e que ainda hoje encontra-se no Horto, se tornou patrimônio tombado do município. Tratava-se da vila operária conhecida como Chácara do Algodão, construída em 1889 para moradia dos operários da Fábrica Carioca, que abrange parte da Rua Estella, Rua Caminhoá (antiga rua D. Laura), Rua Abreu Fialho (antiga rua Henrique), Rua Alberto Ribeiro, Rua Mestre Joviniano (marco do portão de acesso à Cia. de Fiação e Tecelagem Carioca), Rua Pacheco Leão, Rua Fernando Magalhães (rua Dona Emma), e partes da Rua Faro.

A consolidação de um bairro fabril no Jardim Botânico durante o final do século XIX e primeiras décadas do século XX, quando diversos operários e operárias se estabeleceram nas vilas operárias ali edificadas e vivenciaram seus momentos de lazer e trabalho, é parte da história do Rio de Janeiro. Os vestígios materiais e simbólicos dessa história são encontrados ainda hoje no bairro, convertendo-se em um testemunho eloquente das experiências e desafios enfrentados por esses trabalhadores.

Incrustadas em uma das regiões mais valorizadas do Rio, as vilas operárias do Horto evidenciam a marca popular ainda presente na região, –  tanto pela presença de antigos/as operários/as e seus descendentes que ali ainda moram, quanto pela vizinhança da centenária Comunidade do Horto, constituída inicialmente por trabalhadores do Jardim Botânico, e que hoje é palco de lutas contra remoções do bairro que têm passado por um forte processo de gentrificação nas últimas décadas. Em um emaranhado de lembranças e esquecimentos, enraízam-se naquele espaço histórias e memórias que as elites cariocas insistem em negar aos descendentes desses operários ainda nos dias de hoje.

Casas da antiga Vila Operária do Horto no início do século XIX.
Fotografia de Julio Dias.



PAra saber mais
  • COSTA, Cássio. Gávea: História dos subúrbios. Rio de Janeiro: Departamento de História e Documentação Estado da Guanabara, 1950.
  • COSTA, Mariana B. C. Entre o Lazer e a Luta: o associativismo recreativo entre os trabalhadores fabris do Jardim Botânico (1895-1917). (Dissertação de Mestrado) Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. 2014.
  • PIMENTA, Ricardo Medeiros. Retalhos de memórias: trabalho e identidade nas falas de operários têxteis no Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado apresentada no programa de Pós –Graduação da UFRJ. Rio de Janeiro, 2006.
  • WERD, Elizabeth Von; BASTOS, Ana Rodrigues. O Fio da Meada: estratégia de expansão de uma indústria têxtil. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, Confederação Nacional da Indústria, 1986.
  • Site do Museu do Horto

Crédito da imagem de capa: Entrada da Fábrica Carioca no início do século XX. Revista da Semana, 4 de março de 1901.


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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Lugares de Memória dos Trabalhadores #47: Empresa Brasileira de Aeronáutica (Embraer), São José dos Campos (SP) – Richard Martins



Richard Martins
Doutorando em História Social pela UNICAMP



Fundada em agosto de 1969, no auge da ditadura empresarial-militar, a Empresa Brasileira de Aeronáutica (Embraer) foi a expressão mais bem-acabada do projeto de construção de uma indústria aeroespacial e bélica no país, amadurecido a partir de 1950 no Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) e no Centro de Tecnologia da Aeronáutica (CTA), sediados em São José dos Campos. Até então, as experiências brasileiras no ramo da aviação haviam sido bastante limitadas, e somente uma empresa, a Neiva (mais tarde, adquirida pela Embraer), produzia um avião nacional em série, o Paulistinha. A partir de 1966, engenheiros e oficiais da Aeronáutica desenvolveram o projeto do Bandeirante, aeronave que convenceu o governo ditatorial a assumir a construção de uma empresa de aviação majoritariamente estatal.

Instalada às margens da Via Dutra, a fábrica joseense começou a operar em janeiro de 1970. Ter a gigante General Motors como vizinha favoreceu a Embraer, que recrutou seus primeiros operários junto à indústria automobilística local. No fim daquela década, a empresa aeronáutica já empregava mais de dez mil pessoas, em grande parte, vindas do interior de São Paulo, de Minas Gerais e do sul fluminense. Nas metalúrgicas do Vale do Paraíba, era comum que jovens operários aprendessem seu ofício nas próprias fábricas, embora a formação técnica e experiências prévias no ramo também fossem valorizadas, facilitando a contratação de trabalhadores com esse perfil. Até os anos 1990, a força de trabalho empregada no setor produtivo da Embraer era quase exclusivamente masculina, e mesmo na área administrativa, o número de mulheres era reduzido.

Para seus trabalhadores, ser operário da Embraer era razão de orgulho: poucos produtos representavam tão bem as ideias de progresso tecnológico e desenvolvimento nacional quanto um avião. A estatal pagava salários acima da média regional, mas impunha forte disciplina. Os mecanismos típicos da lógica da suspeição vigente durante a ditadura também se faziam notar, ainda mais em uma fábrica considerada estratégica para os interesses nacionais. Assim como ocorria em outras empresas e repartições públicas, a Embraer possuía uma Assessoria de Segurança e Informações (ASI), subordinada ao Ministério da Aeronáutica e integrada ao Serviço Nacional de Informações, responsável por monitorar o ambiente fabril. O Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica (CISA) também acompanhava a estatal e o movimento sindical local.

No fim dos anos 1970, em um momento de fortalecimento do movimento operário em todo o país, a luta contra o arrocho salarial levou trabalhadores(as) de diversas categorias a se chocarem contra o despotismo fabril, a legislação de exceção, as políticas ditatoriais e as burocracias sindicais. Nesse contexto, o Sindicato dos Metalúrgicos da região, dirigido desde sua fundação pelo “pelego” José Domingues, foi incapaz de conter a disposição de luta dos operários.


Em 13 de março de 1979, os trabalhadores da Embraer organizaram a primeira greve na estatal, numa campanha que envolveu piquetes em diversas fábricas e nos principais corredores de ônibus da cidade, duramente reprimidos pela polícia. Após a mobilização, formou-se uma oposição, que assumiu o Sindicato em 1981. Com os “novos sindicalistas” à frente da entidade, as greves – e a retaliação patronal – se tornariam comuns na região.


Em julho de 1983, depois de uma greve geral, quatro funcionários da estatal foram demitidos por justa causa como “agitadores”. Entre eles, estava Antonio Donizete Ferreira, mais tarde, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos. Em agosto de 1984, uma greve com ocupação foi reprimida pela Polícia da Aeronáutica, que expulsou os operários da planta industrial sob a mira dos fuzis. 126 trabalhadores, incluídos dois dirigentes sindicais, João Pires e Francisco de Souza, foram demitidos. Na ocasião, houve interrogatórios ilegais de grevistas, realizados dentro da Embraer por agentes da Polícia Civil e do SNI. A estatal cancelou a eleição de uma Comissão de Fábrica que ocorreria em seguida.

A repressão não impediu que os operários seguissem mobilizados nos anos seguintes, marcados pela crise do setor aeronáutico, em um cenário de inflação desenfreada e ascensão da agenda neoliberal. Durante o governo Collor, começaram os preparativos para a privatização da Embraer, que envolveram mais de 7.000 demissões. O movimento sindical lutou contra a venda da companhia, mas sua resistência não bastou para conter a sanha privatista. Com o leilão da estatal, em 1994, especuladores que dispunham de informações privilegiadas graças a seus vínculos com o governo lucraram fartamente. Consideradas as injeções prévias de recursos e as facilidades oferecidas na negociação, argumenta-se que o prejuízo para os cofres públicos foi sete vezes maior que a arrecadação com a venda da Embraer.            

Depois da privatização, radicalizou-se a chamada “reestruturação produtiva”, com terceirização de atividades, redução de salários e intensificação do trabalho. Apesar disso, a importância econômica, política e simbólica da empresa para a região de São José dos Campos, a “Capital do Avião”, segue sendo inquestionável. A história de organização e luta de seus operários, e sua resistência aos projetos ditatoriais e neoliberais consolidaram a Embraer como um fundamental lugar de memória da classe trabalhadora do Vale do Paraíba

Operários ocupam a fábrica da EMBRAER durante greve em 1984.
Foto: Luiz Roberto/Acervo do Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos e Região.



Para saber mais:

  • GODEIRO, Nazareno; SILVA, Cristiano M.; SILVA; Edmir M (Orgs.). A Embraer é Nossa: Desnacionalização e reestatização da Empresa Brasileira de Aeronáutica. São Paulo: Sundermann, 2009.
  • MARTINS, Richard de Oliveira. “A vigilância sobre o movimento operário nos arquivos da polícia política paulista: autoritarismo e suspeição na ‘transição democrática’ (1984-1985)”. Revista de Fontes. Unifesp – Guarulhos. vol. 4, nº 7, 2017.
  • MORAES, Lívia de Cássia Godoi. Pulverização de capital e intensificação do trabalho: o caso da EMBRAER. Tese (Doutorado em Sociologia). Campinas: IFCH/Unicamp, 2013.
  • RODENGEN, Jeffrey L. A História da Embraer. Fort Lauderdale: Write Stuff Enterprises Inc, 2009.
  • Filme documentário: SINDICATO DOS METALÚRGICOS DE SÃO JOSÉ DOS CAMPOS E REGIÃO. ARQUIVO: Dossiê Embraer. 24 min. 2011. Disponível em: <<https://www.youtube.com/watch?v=NKTk5zfBGDI&t=609s>>.

Crédito da imagem de capa: O Tucano era um dos modelos produzidos nos hangares da Embraer no começo da década de 1980. Foto: Acervo Histórico EMBRAER/Divulgação.


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Lugares de Memória dos Trabalhadores #46: Mina do Cauê, Itabira (MG) – Cristiane Maria Magalhães



Cristiane Maria Magalhães
Doutora em História pela UNICAMP



Vista do alto, como num voo de pássaro, a cidade de Itabira parece estar dentro da mineração a céu aberto. A Mina do Cauê, durante anos a principal da cidade, foi o local de origem da Companhia Vale do Rio Doce em 1942. Nos últimos anos, a Vale tornou-se mundialmente conhecida pelos criminosos desastres ambientais e humanos provocados pelo rompimento de duas de suas barragens de rejeitos de minérios localizadas em jazidas nas cidades de Mariana e de Brumadinho. Todavia, a trajetória da empresa, muito antes de se espalhar pelo Brasil e pelo mundo, se amalgamou à história de Itabira, transformando a localidade numa “cidade operária”. As minas a céu aberto que circundam Itabira transmutaram a paisagem e impregnaram de minério de ferro o seu povo e as suas memórias.

O Pico do Cauê, desenhado na bandeira do município, marcou o destino de Itabira. O Pico, que alçava os céus nos seus 1.600 metros de altitude, era um gigante que continha o mais puro minério de ferro. Entre 1911 e 1940, passou a ser explorado pela empresa inglesa Itabira Iron Ore Company. No entanto, em 1942, em meio à Segunda Guerra Mundial, as minas de Itabira, vistas como estratégicas para os interesses nacionais, foram encampadas pelo governo de Getulio Vargas. O mesmo decreto que nacionalizou as minas criou a Companhia Vale do Rio Doce S.A., empresa estatal responsável pela exploração das jazidas e pela exportação do minério de ferro.

Na Mina do Cauê pelo menos três gerações de trabalhadores retiraram dali o seu sustento. Com as mãos, empunhando no ar as picaretas contra as paredes duras de minério de ferro, para depois encher balaios tecidos com bambus, durante anos os mineiros levavam nas costas o pesado mineral até os vagões das locomotivas.


Quase todos negros, chegavam a Itabira vindos das adjacências e de outras regiões de Minas Gerais e do país atraídos pela carteira assinada e pelos direitos a ela associados. No ano de 1944 há registros de que 6 mil operários trabalhavam na Companhia em Itabira.


Desde suas origens a Cia. Vale do Rio Doce implementou um modelo paternalista de relações de trabalho, articulado ao discurso corporativistas e às políticas nacional-desenvolvimentistas do governo. Os trabalhadores eram chamados, treinados e disciplinados para produzir em nome dos interesses da nação. A “Vale é mãe” sempre foi um jargão repetido à exaustão na cidade. De um lado, havia um controle e vigilância que ultrapassavam os muros da empresa, chegando às famílias e dominando a própria cidade. Por outro, havia grande estabilidade no emprego e a Companhia era vista como portando objetivos sociais em nome da própria nação.

Apesar da força desse discurso paternalista e da identificação entre empregados e empresa, tensões e conflitos não estavam ausentes do cotidiano de trabalho. Poucas vezes, no entanto, eclodiram no cenário público. Em 1946, uma greve articulada por militantes do Partido Comunista do Brasil (PCB) paralisou a Mina do Cauê e foi intensamente reprimida pelas forças policiais. De toda forma, o Sindicato Metabase, criado em 1945, consolidou-se na vida política e associativa de Itabira. Apenas em 1989, uma greve de grandes proporções ocorreria novamente. Liderada pelo Metabase,  agora filiado à CUT, a paralisação duraria 5 dias, com importante impacto no cotidiano da cidade.

No início da década de 1980 não existia mais o Pico do Cauê.  No seu lugar se formou um platô e, depois, uma enorme cratera reluzente. O impacto ambiental e simbólico foram enormes e são sentidos até os dias de hoje. Ao redor da cidade, mantém-se a mineração a céu aberto, formando grandes crateras. Há décadas, o pó do minério de ferro, levado pelo vento, brilha em cada superfície de Itabira e em seus habitantes. Nos famosos versos do poeta Carlos Drummond de Andrade, os itabiranos foram transformados em “homens de ferro: noventa por cento de ferro nas calçadas/ oitenta por cento de ferro nas almas”.

Em 1997 a Companhia Vale do Rio Doce foi privatizada e renomeada apenas como “Vale”. Atualmente, é uma das maiores empresas do mundo no setor de mineração. As antigas relações de trabalho paternalistas foram abolidas, a mecanização da exploração do minério intensificou-se e boa parte da mão de obra foi terceirizada. No entanto, ainda é considerado um “privilégio” ser funcionário da Vale. Em Itabira, modernas escavadeiras e gigantescos caminhões Caterpillar de 7,6 metros de altura retiram e transportam dia e noite o minério das crateras do entorno da cidade.

A cor do uniforme dos trabalhadores da antiga Vale do Rio Doce, que era marrom semelhante à  terra das entranhas de Itabira, foi substituída, com a privatização, pelo verde, como sinal de uma mudança lenta que se precipita há algumas décadas. Há muitos anos Itabira vive a expectativa do que virá após a mineradora abandonar suas instalações e deixar o legado ambientalmente danoso. Haverá de vir uma “terceira Itabira”, como previu Drummond em Vila de Utopia? Talvez, mas será uma cidade sem a Mina do Cauê que tanto marcou a vida de milhares de trabalhadores, suas famílias e a própria identidade local.

Cratera que atualmente ocupa o local onde existia o Pico do Cauê em Itabira (MG).
Fotografia de Cristiane Magalhães, 2007.


Para saber mais:

  • ANDRADE, Carlos Drummond. Confissões de Minas. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
  • CRUZ, Carlos. Braços cruzados, máquinas paradas. O dia que a Vale parou fez 30 anos. Vila de Utopia, 3 de abril de 2019. Disponível em: http://www.viladeutopia.com.br/bracos-cruzados-maquinas-paradas-o-dia-que-a-vale-parou-faz-30-anos/.
  • MAGALHÃES, Cristiane Maria. Mundos do Capital e do Trabalho: a construção da paisagem fabril itabirana (1874- 1930). Dissertação (Mestrado em História). FAFICH/UFMG, 2006.
  • MINAYO, Maria Cecília de Souza. Os homens de ferro: estudo sobre os trabalhadores da Vale do Rio Doce em Itabira. Rio de Janeiro: Dois Pontos, 1986.
  • WISNIK, José Miguel. Maquinação do Mundo. Drummond e a Mineração. São Paulo: Cia. das Letras, 2018.

Crédito da imagem de capa: Trabalhadores da Companhia Vale do Rio Doce transportando carvão vegetal, em Itabira, em cestos de vime. Foto: Vale/Divulgação.


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