Lugares de Memória dos Trabalhadores #45: Sede da Sociedade Perseverança e Auxílio dos Caixeiros de Maceió (AL) – Osvaldo Maciel



Osvaldo Maciel
Professor do instituto de ciências humanas da Universidade Federal de Alagoas



A Sociedade Auxílio e Perseverança dos Caixeiros de Maceió, criada em 1879, foi uma das primeiras entidades organizadas pelos trabalhadores em Alagoas, numa época em que a escravidão ainda existia. Conhecida como Sociedade Perseverança, era composta pelos trabalhadores do comércio, denominados de caixeiros até as primeiras décadas do século XX. Como outras organizações similares naquele período, a Sociedade procurava auxiliar os caixeiros em caso de doenças e dificuldades financeiras, além de colaborar com sua formação profissional e intelectual. A associação foi fundamental para a elaboração de uma identidade coletiva para a categoria e na defesa dos interesses de seus associados no mercado de trabalho local.

Antes de ter sua sede definitiva, a Sociedade Perseverança abrigou-se em várias outras moradas provisórias no centro de Maceió, ao longo das duas últimas décadas do século XIX e primeiros anos do século XX. A Perseverança participou ativamente da luta republicana e abolicionista. Grande parte dos caixeiros maceioenses era adepta de uma espécie de florianismo popular de matriz positivista, baseada no imaginário construído em torno da liderança do Marechal Floriano Peixoto, alagoano de nascimento.


Também nessa época, os caixeiros se engajaram fortemente nas campanhas pelo “Fechamento das Portas”, lutando pelo encerramento diário do comércio no começo da noite e para que feriados, domingos e dias santos fossem reservados para descanso e lazer de toda categoria.


Essas campanhas envolviam intenso período de mobilização, com reuniões de caixeiros nos salões da Sociedade para definir táticas de ação, debates públicos na impressa escrita e desfiles cívicos pelas principais ruas da cidade. Elas remontavam ao período imperial, porém tiveram maior destaque em Maceió no período entre 1891 e 1894, no ano de 1905 e entre 1911 e 1913, quando finalmente uma lei municipal regulamentou a jornada de trabalho, o que significou uma importante vitória da Perseverança e dos trabalhadores do comércio em geral.

Com uma organização fortalecida e um quadro de sócios ampliado que chegou a ter mais de 150 associados efetivos, a necessidade de uma sede própria tornou-se uma questão premente para a Sociedade Perseverança. A ausência de espaço apropriado para as várias reuniões, solenidades, cursos, palestras, festas cívicas e outras atividades promovidas pela Sociedade era um problema evidente. Ademais, a Perseverança era dona de uma das maiores bibliotecas da cidade e possuía um museu desde o início do século XX. Bibliotecas e museus eram propostas comuns de várias entidades mutuais e beneficentes, mas nem sempre elas conseguiam concretizar esse intento, como no caso da Perseverança. Além de importante acervo que foi sendo adquirido ao longo dos anos, a sociedade dos caixeiros expôs e guardou em seu museu os artefatos, objetos e a cultura material recolhidos no violento Quebra de 1912, perseguição político-religiosa que destruiu vários terreiros de matriz afrodescendentes em Maceió.

O desejo de uma nova sede não era, no entanto, apenas uma questão de falta de espaço. Uma sede própria era patrimônio almejado por entidades associativas. Além do simbolismo de perenidade, ela fornecia uma importante imagem de respeitabilidade para a categoria. Assim, os caixeiros se esforçaram por adquirir sua sede. Em 1913 compraram um terreno na então Rua 15 de Novembro (atual Rua do Sol) e conseguiram a ajuda do governo do Estado para isenção de impostos. O projeto arquitetônico do prédio foi elaborado pelo prestigiado artista italiano radicado em Alagoas, Luiz Lucarini. O edifício foi inaugurado em 15 de novembro de 1917, não por acaso na data de comemoração da Proclamação da República.

A suntuosidade da sede da entidade também representava uma busca de reconhecimento dos caixeiros como parte das camadas médias de Maceió e a consolidação de alianças políticas com setores da oligarquia local. Ao longo das primeiras décadas do século XX, apesar de não deixar de presenciar importantes debates para a categoria, o espaço da Perseverança foi frequentemente usado para palestras públicas e sessões cívicas de celebração de efemérides tradicionais (por exemplo, a Emancipação Política de Alagoas) e homenagem a personalidades consideradas importantes pela elite local (como no caso do Marechal Deodoro da Fonseca). O culto de um beletrismo empolado, com tintas conservadoras, era comum entre os dirigentes da sociedade. Além disso, com a criação da Academia de Ciências Comerciais, a Perseverança voltou sua atuação para a formação técnica dos comerciários para o pequeno mercado de trabalho local.

Com a consolidação da estrutura sindical corporativa a partir dos anos 1930, a Sociedade Perseverança entrou em decadência, mas ainda funcionou até a década de 1950. Com sua extinção, seu pomposo prédio transformou-se na sede do Sindicato dos Empregados do Comércio de Maceió, quando também abrigou a Escola Técnica de Contabilidade de Alagoas (ETCAL). Em 2014, a partir de uma negociação envolvendo o Governo do Estado e a direção do sindicato, o prédio foi doado ao Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas. Restaurado, passou a funcionar como espaço de exposição de parte do acervo museológico e guarda do acervo documental dessa instituição. Apesar de seus novos usos, as paredes e os salões daquele prédio antigo guardam as lembranças da importante história dos trabalhadores do comércio de Maceió.

Réplica em madeira do “Monumento Guarda à Bandeira”, leitura positivista do florianismo existente na antiga sede da Sociedade Perseverança.
Acervo pessoal de Osvaldo Maciel. Foto do autor, 2006.


Para saber mais:

  • LIMA JR., Félix. Maceió de outrora- vol 1 . Maceió: DAC-MEC/APA-SENEC, 1976.
  • MACIEL, Osvaldo. A Perseverança dos caixeiros: o mutualismo dos trabalhadores do comércio em Maceió (1879-1917). Recife: EDUFPE, 2011.
  • POPINIGIS, Fabiane. Proletários de casaca: trabalhadores do comércio carioca (1850-1911). Campinas: Edunicamp, 2007.

Crédito da imagem de capa: Sede da Perseverança e Auxílio, inaugurada em 1917. Acervo fotográfico do Arquivo Público de Alagoas.


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Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

Lugares de Memória dos Trabalhadores #44: Hospedaria Tapanã, Belém (PA) – Lara de Castro



Lara de Castro
Professora da Universidade Federal do Amapá



A fome, as doenças e a morte eram as companheiras permanentes das famílias migrantes que foram abrigadas na Hospedaria Tapanã, na periferia de Belém do Pará. Construída em 1942 pelo Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para Amazônia (SEMTA) para servir como “pouso de imigrantes” da Batalha da Borracha durante a Segunda Guerra Mundial, a também chamada Hospedaria do Diabo ou Hospedaria do Inferno foi o lugar por onde passaram milhares de trabalhadoras e trabalhadores, especialmente nordestinos. Enquanto aguardavam para ocupar postos de serviços nas cidades ou no interior da floresta amazônica, os migrantes sobreviviam a um cotidiano de agruras, permanecendo isolados, enfrentando condições degradantes, sob vigilância constante da polícia.

A entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial e a supressão do fornecimento de borracha asiática aos países Aliados estimularam a assinatura dos “acordos de Washington” em 1942, pelos quais o Brasil se comprometia a garantir o suprimento daquela matéria-prima essencial ao esforço de guerra norte-americano. Assim, o governo brasileiro criou o programa Batalha da Borracha, que arregimentou milhares de trabalhadores para a lida nos seringais amazônicos. O contexto de seca foi a justificativa ideal para o envio de nordestinos pobres à região amazônica naqueles anos. A presença de nordestinos na Amazônia não era uma novidade, já que milhares de migrantes daquela região também haviam trabalhado nos seringais durante o boom da borracha no final do século XIX e início do século XX.

Por meio do SEMTA foi implantado um projeto que visava selecionar trabalhadores homens, assistir suas famílias, garantir alojamentos por meio da construção de pousos, assistência médica e alimentação até o momento da alocação nos seringais. Os chamados “soldados da borracha” eram alistados em barracões do SEMTA espalhados pelo Nordeste, que tinha um escritório central em Fortaleza (CE). A promessa, difundida em intensa propaganda, era garantir uma experiência laboral decente aos migrantes desde as partidas de seus estados de origem. Conforme os contratos de encaminhamento, ao chegar à Amazônia, os trabalhadores teriam direito ao cultivo de um hectare de terra, coleta de castanhas, pele de animais abatidos, extração de madeira de seringueiras e castanheiras. A borracha extraída era permutada em produtos para consumo próprio e familiar nos barracões dos seringais. Não havia pagamento em dinheiro.

Alistados ao SEMTA, os trabalhadores, muitas vezes acompanhados de suas famílias, partiam em vapores, especialmente do Ceará, rumo a Belém. Durante o trajeto, em virtude das precárias condições de viagem, era comum a rápida propagação de doenças e mortes. Chegando à hospedaria, aguardavam a oportunidade de serem encaminhados aos seringais do Pará, Rondônia, Acre e Amazonas.


Na hospedaria Tapanã, os trabalhadores e suas famílias dividiam barracos insalubres em espaços aglomerados, em péssimas condições. Gastroenterites e malária, além de tifo, tuberculose, entre outras doenças eram frequentes.


Além disso, as centenas dos “soldados da borracha” doentes que retornavam dos seringais à hospedaria, ampliava a reincidência dos surtos epidêmicos. A alimentação na Tapanã era de péssima qualidade e insuficiente. Em função disso, trabalhadoras e trabalhadores buscavam pequenos serviços na cidade para garantir meios de contornar a fome. Frequentemente, mulheres e crianças fugiam da hospedaria, burlando a vigilância da segurança armada. Essas condições aviltantes resultaram em grande número de mortos, apesar do serviço médico e de assistência social mantidos pelo SEMTA.

Nos seringais, os trabalhadores vivenciavam condições de trabalho altamente degradantes. As garantias firmadas em contrato com o Estado eram totalmente desrespeitadas. Doentes, mal nutridos, explorados e vigiados pelos patrões e seus guardas, presos ao aviamento – sistema marcado pelas dívidas exorbitantes dos seringueiros aos donos de barracões no isolamento da floresta -, as relações de trabalho eram análogas à escravidão. Em resposta a essas agruras, os trabalhadores resistiram de variadas formas. As fugas eram frequentes, bem como a organização em redes de apoio informais com outros migrantes e ribeirinhos, na luta pelo controle de seu tempo e formas de trabalho.

A situação de pousos como Tapanã e as condições de trabalho nos seringais provocavam indignação em setores da sociedade da região amazônica. Religiosos, entidades de caridade e parte da imprensa frequentemente denunciavam a exploração dos trabalhadores seringueiros. Em 1946 uma CPI sobre o tema chegou a ser instalada no Congresso Nacional. Os “soldados da borracha”, no entanto, teriam que esperar décadas por algum reconhecimento e reparação, só alcançada com a Constituição de 1988, quando passaram a receber uma pensão por parte do Estado.

Após a Batalha da Borracha, a “Hospedaria do Diabo” continuou a receber, até meados dos anos 1950, migrantes que tinham como destino a Amazônia. Conforme o jornal cearense Gazeta de Notícias, cerca de 63.000 nordestinos passaram por este alojamento entre 1942 e 1953. Ao redor do antigo “pouso”, a ocupação de antigo núcleo habitacional se intensificou, transformando-se no bairro Tapanã. Lugar marcado por uma memória catastrófica de surtos epidêmicos, fome e corajosa lida de trabalhadores e trabalhadoras pela sobrevivência, o bairro da periferia de Belém ainda guarda profundas marcas da pobreza, exclusão e desigualdades sociais.

Estrutura de pouso para trabalhadores migrantes da “Batalha da Borracha”.
Fonte: COSTA, Pedro Eymar Barbosa; GONÇALVES, Adelaide (Orgs.). Mais borracha para a vitória. Fortaleza: MAUC/NUDOC; Brasília: Ideal Gráfica, 2008.


Para saber mais:

  • GONÇALVES, Adelaide; COSTA, Pedro Eymar Barbosa. (Org.) Mais Borracha para a vitória. Fortaleza: MAUC/NUDOC; Brasília: Ideal Gráfica, 2008.
  • SECRETO, María Verónica. Soldados da borracha: Trabalhadores entre o sertão e a Amazônia no governo Vargas. São Paulo: Editora da Fundação Perseu Abramo, 2006.
  • GOIS, Sarah Campelo Cruz. As linhas tortas da migração: estado e família nos deslocamentos para a Amazônia (1942-1944). 2013. Dissertação (Mestrado), Universidade Federal do Ceará, Programa de Pós-graduação em História, Fortaleza, 2013.

Crédito da imagem de capa: Trabalhadores nordestinos rumo a Amazônia durante a “Batalha da Borracha”, 1943. Fonte: COSTA, Pedro Eymar Barbosa; GONÇALVES, Adelaide (org.s). Mais borracha para a Vitória. Fortaleza: MAUC/NUDOC; Brasília: Ideal Gráfica, 2008.


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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Lugares de Memória dos Trabalhadores #43: Conjunto Residencial do IAPI de Realengo, Rio de Janeiro (RJ) – Andrej Slivnik



Andrej Slivnik
Doutorando em História Social na Unicamp



“Nasceu uma cidade, com praças e jardins, onde há três anos só havia pântanos e desertos”. Assim o jornal O Radical anunciava a inauguração do ambicioso projeto do Conjunto Residencial do Realengo, bairro da zona oeste carioca, em junho de 1943. “Antecipando para o Brasil de nossos dias as conquistas sociais do mundo de amanhã!”

As 1.400 casas iniciais, assim como as primeiras obras de urbanismo, foram edificadas segundo projeto de Carlos Frederico Ferreira, engenheiro-arquiteto que ajudaria a instituir a equipe de profissionais do Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários (IAPI), órgão responsável pela obra. O IAPI era o maior dos institutos previdenciários criados nos anos de 1930, que tinham como finalidade oferecer aposentadorias, pensões e assistência médica, além de facilitar o acesso de trabalhadores à habitação.    

O conjunto contava com residências para trabalhadores da indústria e fora construído na região de Realengo, em terreno próximo à linha férrea que ligava o centro do Rio de Janeiro à parte oeste da cidade. O local facilitava o acesso de seus moradores à importante zona industrial de Bangu. Às casas entregues na primeira inauguração se juntariam outros edifícios, além de centros comerciais, clubes recreativos, postos de assistência médica e uma escola, nomeada segundo o espírito do período: “Presidente Roosevelt”. 

A questão da habitação esteve desde cedo no centro das demandas e expectativas de trabalhadores com a Previdência Social. Não à toa, sua memória está materializada em construções e bairros inteiros, que ainda hoje reconhecemos pelo nome dos IAPs e que seguem povoando lembranças afetivas de seus novos e antigos habitantes. É o caso, por exemplo, dos “Bancários”, na Praça São Salvador, no Rio de Janeiro, da “Vila do IAPI”, bairro da capital gaúcha, e do “Condomínio Conjunto do IAPI”, na Várzea do Carmo, região central de São Paulo.

Evidentemente, o potencial das ações habitacionais dos IAPs na mobilização de apoio popular foi desde sempre percebido por lideranças de variados campos políticos. Inaugurações de conjuntos habitacionais por presidentes da República foram parte fundamental da propaganda política de lideranças à direita e à esquerda. A inauguração da segunda expansão do IAPI do Realengo, em outubro de 1948, contou com a presença do Presidente Eurico Dutra, em evento que demonstra, como poucos, o papel mobilizador de entregas públicas de benefícios concretos aos “trabalhadores brasileiros”.


No entanto, tão logo se encerravam as celebrações, os problemas surgiam e se avolumavam as reivindicações. Na imprensa, as queixas dos moradores pipocavam. O preço da carne no único açougue do bairro: “uma fortuna”. A creche prometida no anúncio do governo: “jamais construída”. Além das viúvas de operários que eram despejadas com seus filhos.


Muitas vezes apareciam em forma de galhofa. Foi o caso da nota publicada em março de 1953, no jornal Última Hora: “Gozado para sopa de vesgo tá mesmo é no conjunto do IAPI. Iluminação tipo disco-voador, invisível. Polícia tipo água, ausente! Com isso sai cada uma. Ih!. De noite tudo muito escuro, sabem? Um ele vai entrando e esbarra numa ela e pergunta: Você é minha mulher? E ela: Sei lá! Não tô vendo nada!”.

Episódios do quotidiano familiar e comunitário, vividos entre as ruas e paredes do conjunto, que iam se materializando em demandas concretas, encaminhadas ou entregues pessoalmente a autoridades. Ou, então, que ensejavam a organização de grupos políticos, como o Centro Cultural Feminino, o Centro Cultural do Realengo, além de células locais do Partido Comunista do Brasil (PCB), que chegou a lançar uma moradora do conjunto como candidata à Constituinte, em 1945. A efervescência de organizações de trabalhadores e seus familiares chegou a ser tão significativa que o conjunto ficou conhecido como “Moscouzinho” e recebeu a visita do líder comunista Luiz Carlos Prestes.

Não foram poucos os encontros dos trabalhadores-moradores do IAPI do Realengo com figuras políticas de maior relevo na história brasileira. Aplaudiam e agradeciam a construção de novas casas, mas também reivindicavam melhores condições, reclamavam contra a subtração de serviços que atendiam a suas necessidades e lutavam para se apropriar daquele espaço, tão marcado pela presença de um Estado que procurava impor seus próprios ideais, enquanto deixava para um futuro cada vez mais distante, as “conquistas sociais do mundo de amanhã”.

Com o golpe militar de 1964 e a unificação dos IAPs, a política habitacional foi separada da previdenciária, passando a ser coordenada pelo Banco Nacional da Habitação (BNH), com recursos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). Os precários conjuntos residenciais financiados nesse modelo foram uma das marcas da política social da ditadura, enquanto os antigos conjuntos construídos pelos IAPs seguiam destinos variados. No caso de Realengo, inserido num contexto local de crescente pobreza e violência, as características arquitetônicas e urbanísticas foram diluídas pelo crescimento desordenado das comunidades vizinhas. Mas o conjunto ainda mantém sua marca proletária e as memórias das lutas sociais ainda estão vivas em seu cotidiano.

Faixa celebra a visita do presidente Eurico Gaspar Dutra ao Conjunto do IAPI no Realengo em outubro de 1948.
Arquivo Nacional, Sistema de Informações do Arquivo Nacional (SIAN).
Código de referência: BR RJANRIO EH.0.FOT, PRP.4280.


Para saber mais:

  • ARAVECCHIA-BOTAS, Nilce. Estado, Arquitetura e Desenvolvimento: a ação habitacional do IAPI. São Paulo, Editora Unifesp: 2016.
  • MANGABEIRA, Wilma. “Lembranças de Moscouzinho (1943-1964): Estudo de um conjunto residencial operário”. In: Revista de Ciência Sociais, Rio de Janeiro, vol. 32, n. 2, 1989.
  • SLIVNIK, Andrej. A Previdência Social no Brasil: uma abordagem histórica (1923-1945). Dissertação (Mestrado em História). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2018.

Crédito da imagem de capa: Conjunto do IAPI de Realengo no Rio de Janeiro, década de 1940. Fonte: https://www.facebook.com/memorias.bangu.padremiguel.realengo/.


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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Lugares de Memória dos Trabalhadores #42: Cooperativa dos Ferroviários, Santa Maria (RS) – Glaucia Vieira Ramos Konrad



Glaucia Vieira Ramos Konrad
Professora da Universidade Federal de Santa Maria



Santa Maria é considerada o centro geográfico do estado do Rio Grande do Sul. A localização estratégica da cidade possibilitou a construção daquele que seria o principal entroncamento ferroviário do estado e que impulsionou o desenvolvimento de toda a região. A ferrovia mudou o traçado urbano da cidade e criou uma rede de serviços, comércio, escolas e instituições. Em torno da Estação formou-se bairro de Itararé, formado majoritariamente por ferroviários. O Monumento ao Ferroviário, erguido na década de 1930, marca o cenário da cidade até os dias de hoje. Clubes e associações como o Clube Treze de Maio (formado por ferroviários negros), o Riograndense Futebol Clube (fundado em 1912) e o Círculo Operário Ferroviário (criado nos anos 1920), entre outros, foram vitais na vida comunitária local. Não à toa, durante grande parte de sua história, Santa Maria foi conhecida como a Cidade Ferroviária. 

Em 1905, através de uma concessão federal, a empresa belga Compagnie Auxiliare de Chemins de Fér au Brésil tornou-se arrendatária da Viação Férrea do Rio Grande do Sul (VFRGS), quando Santa Maria passou a ser a sede da rede ferroviária do estado. Ao longo do século XX, a rede ferroviária passou por diversas administrações. Em 1913, a Brasil Railway assumiu o controle da rede férrea no estado. Sete anos depois, o governo do Estado encampou a VFRGS. Em 1957, foi criada a Rede Ferroviária Federal (RFFSA), absorvendo todas as empresas da VFRGS em uma só.


Os ferroviários de Santa Maria formavam uma categoria bastante diversificada, com a presença de trabalhadores negros, alemães, italianos, portugueses, judeus, entre outros. Em que pesem suas diferenças internas, os ferroviários logo se destacariam por sua capacidade de organização e poder de barganha. Os baixos salários, as constantes demissões e os acidentes de trabalho foram respondidos com frequentes greves e com a criação de uma forte cultura de solidariedade de classe e apoio mútuo


Seus movimentos reivindicatórios frequentemente contavam com o apoio da comunidade local. Durante as greves as famílias dos ferroviários ajudavam a impedir que os trens saíssem e procuravam convencer os fura-greves a aderir aos movimentos. As mulheres tinham uma ação destacada nesses momentos, criando uma rede de apoio para manter a subsistência das famílias nos períodos de paralisação e também tomando à frente das barricadas para impedir o avanço das forças policiais.

Foi no contexto da grande greve ferroviária de 1906 que surgiu a ideia da criação de uma entidade que proporcionasse aos ferroviários acesso aos produtos de consumo mais baratos. Mas seria apenas em 1913 que, por iniciativa do Sindicato dos Ferroviários da VFRGS, foi fundada a Cooperativa de Consumo dos Empregados da Viação Férrea do Rio Grande do Sul (COOPFER) em Santa Maria. Sua sede era na Vila Belga, um conjunto habitacional construído pela Viação em 1907.

O objetivo da Cooperativa era o de fornecer gêneros alimentícios, vestuário, calçados, medicamentos e assistência hospitalar aos ferroviários associados. Ao longo do tempo a COOPFER criou quinze armazéns e dezesseis farmácias em todo o Rio Grande do Sul, além de um hospital, a Casa de Saúde de Santa Maria. A Cooperativa também foi responsável pela instalação de duas escolas na cidade, voltadas para o ensino profissional e para as mulheres da comunidade ferroviária. Além destas escolas, ao longo das linhas férreas, foram criadas as Escolas Turmeiras com o objetivo de alfabetizar adultos nas pedreiras. Entre as décadas de 1950 e 1960, chegou a ser considerada umas das maiores cooperativas da América do Sul, chegando a ter cerca de 23 mil associados.

Com importante atuação de socialistas em suas origens e, posteriormente, de ativistas comunistas e trabalhistas, a COOPFER também se tornou um importante espaço para o movimento operário. Para além dos próprios ferroviários, tornou-se uma referência para diversas categorias de trabalhadores que, em momentos de greves e protestos, uniam-se para reivindicar direitos e melhores condições de trabalho. A ação da Cooperativa, apesar de muitas vezes permeada por tensões e disputas, foi fundamental para manter os trabalhadores em momentos de ação coletiva e nos períodos de grande carestia econômica, vendendo produtos a preços mais baixos.

Após o golpe civil-militar de 1964, a COOPFFER sofreu intervenção militar, acusada de promoção de “atividades comunistas” e de ser a base física e econômica da “subversão” no meio ferroviário do Rio Grande do Sul. Muitos trabalhadores da cidade foram denunciados, demitidos e perseguidos, sendo que alguns figuram na lista de mortos (como Onofre Ilha Dornelles), torturados (como Baltazar Mello) pela violenta perseguição aos trabalhadores ferroviários. 

A falta de investimentos, sucateamento e a adoção de uma política em favor do transporte rodoviário, levou ao declínio da RFFSA e a sua privatização na metade da década de 1990. Após um longo período de decadência, a COOPFER encerrou suas atividades. O Sítio Ferroviário de Santa Maria, incluindo a antiga sede da Cooperativa, foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado (IPHAE) no ano 2000. A história dos trabalhadores ferroviários ainda resiste e seus lugares de memória continuam a ser reivindicados e revisitados em Santa Maria.

Secção da Caldeiraria da Oficina de Santa Maria em 1928.
Fonte: FLÔRES, João Rodolpho Amaral. Os trabalhadores da V.F.R.G.S. – profissão, mutualismo, cooperativismo. Santa Maria/RS: Pallotti, 2008.


Para saber mais:

  • FLÔRES, João Rodolpho Amaral. Fragmentos da história ferroviária brasileira e riograndense: fontes documentais, principais ferrovias, Viação Férrea do Rio Grande do Sul (VFRGS), Santa Maria, a “Cidade Ferroviária”. Santa Maria: Palotti, 2007.
  • FLÔRES, João Rodolpho Amaral. Os trabalhadores da V.F.R.G.S. – profissão, mutualismo, cooperativismo. Santa Maria/RS: Pallotti, 2008.
  • KONRAD, Glaucia Vieira Ramos. Mundos do Trabalho em Santa Maria e a Greve dos Ferroviários no Estado Novo. In: WEBER, Beatriz Teixeira; RIBEIRO, José Iran. (Org.). Nova História de Santa Maria: Contribuições Recentes. Santa Maria: Palotti, 2010.
  • IPHAE (INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO DO ESTADO). Patrimônio ferroviário no Rio Grande do Sul: Inventário das estações; 1874-1959. Porto Alegre: Palotti, 2002.
  • MELLO, Luiz Fernando da Silva. O pensamento utópico e a produção do espaço social: a Cooperativa de Consumo dos Empregados da Viação Férrea do Rio Grande do Sul. Tese (Programa de Pós-graduação em Planejamento Urbano e Regional) Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 2010.

Crédito da imagem de capa: Prédio da Cooperativa dos Ferroviários e do Armazem Central em Santa Maria, década de 1940. Fonte: FLÔRES, João Rodolpho Amaral. Os trabalhadores da V.F.R.G.S. – profissão, mutualismo, cooperativismo. Santa Maria/RS: Pallotti, 2008.


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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Lugares de Memória dos Trabalhadores #41: Rua Caetano Pinto, Brás, São Paulo (SP) – Luigi Biondi



Luigi Biondi
Professor do Departamento de História da Unifesp



Na manhã do chuvoso dia 11 de julho de 1917, uma multidão de trabalhadores se reuniu em frente ao número 91 da Rua Caetano Pinto, no bairro paulistano do Brás, aguardando a saída do féretro de José Gimenez Martinez, um operário de origem espanhola de 21 anos e membro do grupo  anarquista “Jovens Incansáveis”, que ali morava. Martinez havia sido assassinado dois dias antes num embate entre grevistas e a força pública em frente à Tecelagem Mariangela do grupo Matarazzo. O cortejo, com cerca de 10.000 pessoas, levou o corpo ao cemitério do Araçá encabeçado por duas bandeiras vermelhas listradas de preto. Uma simples rua de trabalhadores simbolicamente se alongou naquele dia por toda a cidade, apropriando-se do espaço das elites da capital paulista. Aquele foi um momento marcante de uma greve que se generalizaria nos dias seguintes por diversas categorias profissionais e outras cidades do Estado de São Paulo e marcaria as relações de trabalho no país. 


A greve de 1917 foi a mais importante mobilização operária em São Paulo na Primeira República. A paralisação chegou a bloquear toda a cidade por vários dias e teve nos embates de rua e na ocupação de fábricas em bairros como Brás e Mooca algumas de suas principais características. A sociabilidade operária de ruas como a Caetano Pinto, pontuada por fábricas, moradias populares, associações e grupos políticos, certamente possibilitou a intensidade do movimento. O envolvimento comunitário, com particular papel das mulheres, assemelha a greve de 1917 às dinâmicas sociais de outras grandes mobilizações urbanas naquele período.


A Rua Caetano Pinto, cujo nome homenageia um antigo proprietário de terras na região, localiza-se no coração do Brás, principal e pioneiro bairro operário de São Paulo no início do século XX. Trata-se de uma transversal que corre da esquina com a Rua Visconde de Parnaíba até a Rangel Pestana, avenida que corta o bairro em duas partes e que, durante décadas, conectou a cidade operária ao então centro burguês. Ainda hoje essa região marca o início da Zona Leste, a ZL trabalhadora dos paulistanos. A rua, que ainda era um descampado no mapa de 1881, já aparecia urbanizada em 1895. Ficava no meio de um conjunto de quadras densamente povoadas, onde se alternavam oficinas e grandes estabelecimentos fabris, galpões, armazéns, depósitos, sobrados modestos e diversos cortiços, entre eles o Quintalão, o maior do Brás. Era uma das muitas ruas do bairro que sempre concentrou migrantes, inicialmente estrangeiros e, a partir das décadas de 1930 e 1940, brasileiros: feição característica da formação da classe trabalhadora paulistana, uma riqueza multicultural unificada e ressignificada na condição operária.

Martinez, símbolo da luta sangrenta dos dias da greve geral de 1917, havia chegado em São Paulo com a família da Espanha no começo daquele ano. Ao olharmos os nomes dos seus companheiros na pequena fábrica de calçados Bebé, onde trabalhava, reconhecemos uma grande maioria de espanhóis e italianos. A Caetano Pinto fica a três quadras da Hospedaria dos Imigrantes (hoje Museu da Imigração), por onde passaram milhares de trabalhadores estrangeiros e brasileiros, sobretudo de Minas Gerais e dos estados do Nordeste.

Naquele período, a Caetano Pinto era a “rua dos napolitanos”. Muitos imigrantes da região italiana da Campânia ali se empregavam em oficinas, fábricas e no pequeno comércio. Em 1900, foi construída uma pequena igreja dedicada à Nossa Senhora de Casaluce, popular na região de Nápoles e, desde então, uma das principais festas populares do Brás, dedicada à santa, é ali realizada. Os empresários Matarazzo, também de origem campana, tentaram desfrutar das fidelidades étnicas apoiando as atividades da igreja e suas festas.

As fábricas dos Matarazzo estavam espalhadas pelo bairro. O Moinho e a Tecelagem Mariangela, situavam-se algumas quadras mais ao norte da Caetano Pinto. Em 1933, a Metalúrgica Matarazzo, uma das primeiras grandes fábricas do setor em São Paulo, transferiu-se exatamente para a Rua Caetano Pinto, bem em frente à igreja. Apesar do paternalismo patronal praticado pelos empresários, greves seriam comuns na Metalúrgica e nas demais fábricas do grupo.

A dinâmica demográfica e social do Brás, que se realizava de forma exemplar na Rua Caetano Pinto, articulava fortemente a experiência da migração à de classe, o que ficava ainda mais evidente em momentos críticos de conflito social. Apesar do gradual processo de desindustrialização do Brás a partir dos anos 1970, ainda hoje existem na rua uma fábrica têxtil e unidades manufatureiras menores, depósitos de maquinários, comércio popular e conjuntos residenciais modestos. Próximos à velha igreja católica, cultos neopentecostais prosperam. A rua continua a manter seu perfil popular e o aspecto do trabalho fabril não se perdeu totalmente.

Em 1995, a Central Única dos Trabalhadores (CUT) transferiu sua sede nacional para o prédio da Metalúrgica Matarazzo, desativada há alguns anos.  A ocupação por uma central sindical da antiga fábrica de um dos mais famosos grupos industriais do país, representou uma apropriação simbólica icônica. O elo com a história operária paulistana foi celebrado por ocasião dos 100 anos da greve geral de 1917, quando uma série de atividades  promovidas pela CUT e pela Fundação Perseu Abramo foram realizadas no Brás. A Rua Caetano Pinto é o lugar de memória que conecta mais de 100 anos de lutas dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros.

Sede nacional da CUT no antigo prédio da antiga Metalúrgica Matarazzo à Rua Caetano Pinto.
Fonte: CUT.


Para saber mais:

  • BIONDI, Luigi e TOLEDO, Edilene. Uma revolta urbana. São Paulo: Perseu Abramo, 2018.
  • CACCAVELLI, Bruno. Lazer e sociabilidade de trabalhadores do bairro paulistano da Mooca, 1900-1920. Dissertação de Mestrado em História, EFLCH-Unifesp, 2015.
  • DUARTE, Adriano Luiz. O direito à cidade. Trabalhadores e cidadãos em São Paulo, 1942-53. São Paulo: Alameda, 2018.
  • HALL, Michael M. “O movimento operário na cidade de São Paulo: 1880-1954”. In: PORTA, Paula. História da cidade de São Paulo, v. 3. São Paulo: Paz e Terra, 2004, pp. 259-289.
  • RIBEIRO, Suzana Barreto. Italianos no Brás. Imagens e memórias. São Paulo: Brasiliense, 1994.

Crédito da imagem de capa: Cortejo do funeral de José Martinez, 11 de julho de 1917. Fonte: Arquivo Edgard Leuenroth, Unicamp.


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Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

Lugares de Memória dos Trabalhadores #40: Auditório da Secretaria da Saúde de Minas Gerais (Minascentro), Belo Horizonte (MG) – Samuel Oliveira



Samuel Oliveira
Professor do CEFET-RJ e pesquisador do LEHMT/UFRJ



O edifício do Minascentro foi planejado e construído na década de 1890 para ser sede da Secretaria de Saúde de Minas Gerais. Fazia parte de um conjunto de edifícios públicos, de estilo neoclássico, erguidos no contexto da mudança da capital do estado de Ouro Preto para Belo Horizonte. Em 1982, o prédio da secretaria de saúde foi desativado e passou a ser utilizado como um centro de convenções, alterando seu nome para Minascentro. Consolidava-se a erosão da memória social que os trabalhadores construíram naquele espaço, em particular no início dos anos 1960.

Mesmo sendo um edifício identificado com os ideais elitistas do governo do estado, a Secretaria de Saúde situava-se em área de grande circulação e comércio popular no centro da cidade. Entre a Avenida Augusto de Lima e rua Curitiba, era vizinha do Mercado Central, espaço construído para lidar com a carestia e o desabastecimento de alimentos que foi uma constante no crescimento urbano experimentado nas décadas de 1940 a 1960 e tema de mobilização dos trabalhadores. Na segunda metade do século XX, o progressivo esvaziamento do uso residencial do centro acentuou a identificação das áreas próximas à Secretaria de Saúde como localidade popular.


Dois importantes eventos marcaram a relação da Secretaria de Saúde e a história dos trabalhadores no país e na cidade. O I Congresso Nacional dos Lavradores e Camponeses Sem Terra (1961) e o I Congresso dos Trabalhadores Favelados de Belo Horizonte (1962) foram realizados no grande auditório da Secretaria.


Esses eventos eram parte de um processo de ascensão da classe trabalhadora na esfera política e mudança de uso do espaço da cidade. A expansão dos direitos políticos na redemocratização de 1945 e a crescente participação de trabalhadores na vida política do país ampliou o número de organizações populares e uma intensa discussão sobre a expansão dos direitos sociais e políticos. No centro de Belo Horizonte, o auditório da Secretaria de Saúde, as escadarias da Igreja São José, a Praça Sete de Setembro, a Praça Rio Branco e a Feira Permanente de Amostras – espaço onde era comemorado o 1º de maio – foram sistematicamente ocupados por manifestações políticas que buscavam representar os trabalhadores.

Os dois eventos realizados no auditório da Secretaria de Saúde ocorreram durante o governo de Magalhães Pinto (1961-1964) e mostram a força e o apelo desses movimentos sociais naquela conjuntura. Mesmo um governo de direita e liberal, de uma das lideranças mais expressivas da União Democrática Nacional (UDN), negociava e cedia espaço para a realização de eventos políticos que demandavam as reformas agrária e urbana. Edgard Godoi da Mata Machado (UDN) secretário do Trabalho e Cultura Popular, foi o responsável por realizar essa articulação do governo de Minas Gerais com os movimentos sociais e setores políticos trabalhistas, comunistas, socialistas e católicos reformistas que participaram desses congressos.

O I Congresso dos Lavradores e Camponeses Sem Terra, realizado em novembro de 1961, foi organizado pela União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (ULTAB). O evento foi um marco fundamental numa conjuntura de acirramento das lutas sociais no campo e nas demandas por uma ampla reforma agrária no país. O congresso foi marcado pelas disputas entre as Ligas Camponesas, lideradas pelo deputado Francisco Julião, a ULTAB, ligada ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), e a Ação Popular, organização católica, em torno das definições e estratégias das lutas dos camponeses. Como resultado foi lançada a Declaração de Belo Horizonte, documento que orientou o processo de regularização e reconhecimento de sindicatos rurais, a expansão de direitos sociais no campo, e uma proposta de regulamentação para o governo federal desapropriar terras improdutivas em favor dos trabalhadores rurais.

Meses depois, em maio de 1962, um novo encontro de trabalhadores lotaria o auditório da Secretaria de Saúde de Minas. O Congresso de favelas aprovou a Carta de Direitos do Trabalhador Favelado. Ela sintetizava as demandas por uma reforma urbana articuladas, naqueles anos, por um intenso associativismo comunitário em bairros periféricos e favelas em várias cidades do país. Na capital mineira, essa luta resultou da organização da Federação de Trabalhadores Favelados de Belo Horizonte (FTFBH), que chegou a reunir cerca de 55 associações de moradores. O documento também serviu de pauta de mobilização dos trabalhadores favelados na eleição municipal de 1962, quando Dimas Perim, militante comunista conhecido como o “advogado de favelas”, foi eleito vereador de Belo Horizonte pela legenda do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). O mandato de Perim foi cassado após o Golpe de 1964.           

A ditadura também representou o definitivo afastamento do espaço da Secretaria de Saúde das lutas e demandas dos trabalhadores. Construída pelas oligarquias estaduais na Primeira República como um lócus de um discurso higienista e racista que representava os trabalhadores nacionais como incivilizados, a Secretaria, em particular seu auditório, tornou-se palco da luta pela expansão dos direitos e reconhecimento da questão social no meio rural e urbano brasileiro. Nos anos 1980, quando o prédio foi adaptado como um equipamento urbano ligado ao mercado de espetáculos e eventos, a memória dos trabalhadores urbanos e rurais associada a essa localidade foi negligenciada e esquecida. É tempo de recuperá-la.

I Congresso dos Lavradores e Camponeses Sem Terra realizado no Auditório da Secretaria de Saúde de Minas Gerais em novembro de 1961.
Fonte: ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Fundo DOPS. Pasta 0160.


Para saber mais:

  • BORGES, Maria Eliza Linhares. Estilistas urbanos do universo rural: o PCB na luta pela sindicalização rural em MG. Revista Brasileira de História, São Paulo, n. 27, 1994, pp.73-86.
  • CAMISASCA,   Marina   Mesquita. Camponeses   mineiros   em   cena: mobilização, disputas e confrontos (1961-1964). Dissertação (Mestrado em História). Belo Horizonte, Faculdade de Filosofia  e  Ciências  Humanas,  Universidade  Federal  de  Minas  Gerais, 2009.
  • DEZEMONE, Marcus. A questão agrária, o governo Goulart e o golpe de 1964 meio século depois. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.36, n.71, 2016.
  • OLIVEIRA, Samuel Silva Rodrigues de. O Movimento de Favelas de Belo Horizonte (1959-1961). Rio de Janeiro: E-papers, 2010.
  • OLIVEIRA, Samuel Silva Rodrigues de. O Golpe de 1964 e a repressão ao movimento de ‘Trabalhadores Favelados’. Revista Antíteses, Londrina, v. 8, p. 336-339, 2015.

Crédito da imagem de capa: Congresso dos Trabalhadores Favelados no Auditório da Secretaria de Saúde de Minas Gerais, Belo Horizonte, maio de 1962. ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Fundo DOPS. Pasta 0119.


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Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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Lugares de Memória dos Trabalhadores #39: Campo de Concentração de Senador Pompeu (CE) – Frederico de Castro Neves



Frederico de Castro Neves
Professor do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará



Originalmente, as edificações que formaram o que ficaria conhecido como Campo de Concentração da cidade de Senador Pompeu, no Ceará, faziam parte da estrutura criada por uma empresa inglesa que iria construir um açude. No entanto, em 1923, a obra foi interrompida e os prédios abandonados. Em 1932, com mais uma grande seca no estado, foram incorporados à estrutura administrativa do campo de concentração, como parte de uma ampla intervenção governamental para controlar as migrações dos trabalhadores sertanejos pobres.

O Campo de Senador Pompeu, que chegou a reunir mais de 18 mil pessoas em maio de 1932, foi inicialmente planejado para a retomada das obras de construção do açude Patu, de forma a incorporar a mão-de-obra “disponível” durante a seca, quando milhares de camponeses ficaram sem trabalho. No entanto, a direção da IFOCS (Inspetoria Federal de Obras contra as Secas) decidiu priorizar outros açudes e outras barragens de menor porte. Os trabalhadores alistados nas obras saíam do campo somente para o trabalho nas obras públicas; as famílias (idosos, crianças e mulheres) deveriam permanecer no interior da cerca de arame farpado, realizando tarefas relacionadas à alimentação e manutenção das moradias. Camponeses, portanto, eram concentrados em espaços reduzidos, em barracas improvisadas, compartilhando espaços de descanso, alimentação e trabalho com desconhecidos, submetidos a regras despóticas inexistentes na agricultura familiar que, em sua maioria, praticavam.

Únicas construções de alvenaria, os prédios sediavam atividades de controle de alistamento nas obras, distribuição e armazenamento de alimentos, constituindo-se, por isso mesmo, em locais de conflitos e reinvindicação dos trabalhadores. Em torno desses prédios, os trabalhadores dividiam seus sofrimentos, disputavam alimentos e remédios, exigiam vagas nas obras públicas, reclamavam da qualidade da comida ou do atendimento médico, experimentavam novas formas de luta coletiva e de enfrentamento com o poder do Estado.


Grupos de retirantes ameaçavam os mercados e as cidades vizinhas e manifestações de protesto reuniam centenas de trabalhadores, no interior e nos arredores do campo.


As condições de vida eram as piores possíveis e a mortalidade (especialmente entre as crianças) muito alta, principalmente com a eclosão de uma epidemia de cólera, que fez com que um cemitério fosse apressadamente construído ao lado da barragem, com os corpos amontoados em valas comuns, contrariando os preceitos religiosos praticados costumeiramente pelos camponeses.

O Campo de Senador Pompeu não foi o único. Foram criados outros seis por todo o estado: Urubu e Matadouro (em Fortaleza), Burity (em Crato), Cariús, Ipu e Quixeramobim. Destes, Matadouro e Quixeramobim foram fechados poucas semanas depois de abertos. Os outros funcionaram como centros de recepção, assistência, controle e trabalho dos retirantes entre março de 1932 e fevereiro de 1933, acolhendo milhares de camponeses deslocados de suas terras em função da destruição da produção local pela ausência de chuvas regulares e mecanismos de proteção social. O maior de todos os campos, o Burity, chegou a receber cerca de 60 mil retirantes.

A criação dos Campos, em 1932, obedecia a uma política oficial de controle dos pobres durante o Governo Provisório de Getúlio Vargas (1930-1934), que reunia o Ministério de Viação e Obras Públicas (MVOP), a Inspetoria de Obras Contra as Secas (IFOCS) e a Interventoria Federal do Ceará, que chegou a criar uma secretaria especial (o Departamento das Secas) para administrar os campos e todas as iniciativas governamentais de assistência aos retirantes. Não era a primeira vez que a expressão “campo de concentração” era utilizada em documentos oficiais ou na imprensa para designar esses mecanismos de isolamento social dos retirantes. Em 1915, o Campo de Concentração do Alagadiço, em Fortaleza, reuniu cerca de 8 mil pessoas. Era uma iniciativa do governo estadual para evitar que multidões de retirantes famintos ocupassem o espaço público da cidade.

Com exceção do campo de Senador Pompeu, poucos vestígios materiais restaram dos campos de concentração cearenses e das experiências daquelas famílias de trabalhadores. Os prédios daquele campo permaneceram na memória dos camponeses retirantes como referência de um tempo de dor e sofrimento, de trabalho exaustivo e compulsório, de tarefas repetitivas e muitas vezes inócuas. Logo após o fechamento do campo foi se constituindo um ambiente em que uma crença popular nos milagres atribuídos às “almas da barragem” foi desenvolvida entre os camponeses pobres da região, que passaram a se dirigir em romaria aos pontos de referência dos eventos ligados à seca de 1932. Em 1982, sob influência do cristianismo de libertação, a paróquia local passou a organizar a Caminhada da Seca, que, uma vez por ano, refaz os caminhos da retirada dos camponeses pobres, entre os locais de moradia, a periferia da cidade, as estradas de terra, o cemitério e os prédios remanescentes do campo de concentração, levantando bandeiras de luta contra o latifúndio, a injustiça e a miséria.

Em 2019, a prefeitura local tombou, como patrimônio municipal, os prédios do Campo de Concentração de Senador Pompeu. O lançamento do filme Currais sobre a seca de 1932 e os campos, além de uma série de matérias na mídia deram, enfim, alguma visibilidade nacional para esse fundamental lugar de memória dos trabalhadores e trabalhadoras cearenses.

Casarão que foi utilizado como parte da administração do Campo de Concentração de Senador Pompeu
em 1932. Fotografia: Ted Calango Cinematográfica Ltda.


Para saber mais:

  • MARTINS, Aterlane. Das Santas Almas da Barragem à Caminhada da Seca: Projetos de Patrimonialização da Memória no Sertão Central Cearense (1982-2008). Fortaleza: Museu do Ceará, 2018.
  • NEVES, Frederico de C. Currais dos Bárbaros: os campos de concentração no Ceará (1915 e 1932). Revista Brasileira de História. São Paulo: ANPUH, v. 15, n.29, 1995.
  • RIOS, Kênia Sousa. Isolamento e Poder: Fortaleza e os campos de concentração na Seca de 1932. Fortaleza: Imprensa Universitária UFC/Museu do Ceará, 2014.
  • SILVA, Karoline Queiroz e. “Viva as almas da barragem!”: a construção da Caminhada da Seca, Senador Pompeu-CE. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Ceará, 2017.
  • Filme: Currais. Direção de Sabina Colares e David Aguiar, 2019. (trailer em https://vimeo.com/310779563)

Crédito da imagem de capa: Canteiro de obras de construção do Açude Lima Campos, em 1932. Fotografia: Amílcar Pellon (acervo da família).


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Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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Lugares de Memória dos Trabalhadores #38: Sede do Sindicato dos Ensacadores e Carregadores de Café do Rio de Janeiro (RJ) – André Cicalo



André Cicalo
Doutor em Antropologia pela Universidade de Manchester



No dia 20 de Abril de 1931, na rua Santo Cristo dos Milagres 309, região portuária do Rio de Janeiro, aconteceu uma importante reunião de trabalhadores avulsos em café, que buscavam organizar um sindicato próprio. De fato, a lei de sindicalização n. 19.779, instituída no mês anterior, oferecia novas oportunidades aos trabalhadores, até então pouco protegidos. Nascia assim o Sindicato dos Carregadores e Ensacadores de Café do Rio de Janeiro (SCECRJ), popularmente conhecido como Sindicato do Café.

Ao organizar os trabalhadores especializados no armazenamento e transporte de café no cais do porto do Rio, o Sindicato do Café visava a profissionalização da categoria e procurava tirar vantagens das leis trabalhistas prometidas pelo novo governo de Getulio Vargas. Apenas entre abril de 1931 e janeiro de 1936 foram cadastrados 1.832 sócios (todos homens), sendo aproximadamente 83% deles brasileiros, 15% portugueses e 2% de outras nacionalidades.


A maioria desses trabalhadores, como era tradicional no transporte de café no Rio de Janeiro, era composta por negros que provinham de áreas rurais do estado mas também de outros lugares do país, como Minas Gerais, Espírito Santo e Pernambuco. Essa presença negra pode ser notada de forma imediata nas fotografias tiradas em vários momentos da história do sindicato. Além disso, é possível perceber uma identidade e conexões étnicas que muitos desses trabalhadores desenvolveram a partir da memória relativamente recente da escravidão e de suas relações com o mundo do carnaval carioca.


Em 1940, o Sindicato aprovou seu primeiro estatuto. Ele previa a prestação de assistência jurídica e financeira para os trabalhadores, a criação e manutenção de cursos de alfabetização, escolas, hospitais  e ajuda para funerais, entre outros serviços. Também estabelecia regras rigorosas em relação à ética do trabalho, especialmente contra a conduta não-profissional, a falta de cumprimento das diretivas sindicais e as ausências injustificadas ao trabalho. Em 1947, a organização pôde finalmente adquirir uma sede própria no bairro de Gamboa, na Rua Silvino Montenegro 104. Composto de quatro andares o local foi solenemente inaugurado no dia Primeiro de Maio de 1950 pelo Presidente da República Eurico Gaspar Dutra.

Entre os anos 1950 e 1960, o Sindicato do Café incrementou seu poder político e econômico na região portuária, assim como no âmbito estadual e federal. A sede sindical era palco de grandes comemorações para celebrar os aniversários do Sindicato e as posses das novas diretorias. Nessas ocasiões era frequente a presença de personalidades do calibre do Governador da Guanabara, Carlos Lacerda, de representantes do Ministério do Trabalho e de políticos próximos ao Sindicato, como  os deputados José Gomes Talarico e Tenório Cavalcanti. Os eventos eram geralmente acompanhados de missas celebradas nas Igrejas de Santo Antônio dos Pobres, de São Jorge (patrono do Sindicato) e da Candelária.

Em 1960, além da sede própria, o Sindicato dos Carregadores e Ensacadores de Café possuía um considerável patrimônio. Nessa época, eram notáveis as ligações do Sindicato com o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), especialmente com Luthero Vargas e José Gomes Talarico.  Um testemunho da simpatia pela tradição varguista, pode ser visto na Revista do Sindicato que, em 1961, lembrava que Getúlio Vargas “possibilitou que o Trabalhador [do Café] ocupasse, positivamente lugares de destaque nos cenários econômico, jurídico e político [do país]”.

No início dos anos 1960, em um momento de efervescência política, crise do setor cafeeiro e aumento vertiginoso do custo de vida no Brasil, o Sindicato se tornou um centro importante de organização de greves e paralisações. É possível supor que as redes formais e informais de resistência negra cumpriram um importante papel na organização e manutenção das mobilizações dos ensacadores e carregadores de café do Rio de Janeiro naquele período.

Com o golpe militar de 1964, as manifestações operárias foram reprimidas violentamente, enquanto a vida cotidiana do proletariado portuário era intensamente vigiada pela policia política. Com a ditadura militar e a perda progressiva da importância do café na economia nacional, o Sindicato entrou numa lenta e irreversível crise, da qual nunca mais se recuperaria.

Em meados dos anos 1980, a associação tentou ampliar sua base de representação, convertendo-se no Sindicato de Movimentadores de Carga do Rio de Janeiro (SINTRAMAERJ). Essa nova organização chegou a incorporar em sua esfera o extinto Sindicato do Sal e a categoria dos ajudantes de caminhão. Apesar dessas mudanças, sua decadência foi inexorável. Hoje, longe das glórias do passado, encontra-se à beira da extinção. No entanto, a sede do antigo Sindicato dos Ensacadores e Carregadores de Café e suas memórias continuam resistindo, tanto ao esquecimento histórico, quanto à especulação imobiliária e expropriações alimentadas pelo processo de reconversão urbanística no porto do Rio de Janeiro.

Fachada do sede do Sindicato do Café durante a comemoração dos seus 29 anos de existência.
Acervo fotográfico histórico SCECRJ.


Para saber mais:

  • CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. São Paulo: Brasiliense, 1986.
  • CICALO, André. “Campos do pós-abolição: identidades laborais e experiência “negra” entre os trabalhadores do café no Rio de Janeiro (1931-1964)”. Revista Brasileira de História, vol. 35, n. 69, 2015.
  • CRUZ, Maria Cecília Velasco. “Da tutela ao contrato: “homens de cor” brasileiros e o movimento operário carioca no pós-abolição”. Topoi, v.11, 2010.
  • GOMES, Angela de Castro. A invenção do Trabalhismo. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2005.
  • GOMES, Flávio dos Santos. “Quilombos do Rio de Janeiro no século XIX.” In REIS, João José e GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras 1996.

Crédito da imagem de capa: Comemoração religiosa da posse de diretoria do sindicato em 1961 na Igreja de Santo Antonio dos Pobres no centro do Rio de Janeiro. Acervo fotográfico histórico SCECRJ.


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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Lugares de Memória dos Trabalhadores #37: Sede da União Operária Primeiro de Maio, Alegrete (RS) – Anderson Pereira Corrêa



Anderson Pereira Corrêa
Professor da Universidade Federal do Pampa



A União Operária foi fundada em 25 de abril de 1925 no Teatro Rio Branco, Praça XV de Novembro (atualmente Centro Administrativo Integrado Renato Mendes Jacques, na praça Getúlio Vargas). Em 1927, a União adquiriu seu espaço próprio à Rua Vinte de Setembro, 241. O prédio da sede, que existe até hoje, começou a ser construído em 1955. Em seus primeiros anos, a União Operária foi uma entidade pluriclassista, sindical, de mútuo socorro (mutualista) e de assistência. A entidade foi fundada por trabalhadores de variados ofícios, incluindo artesãos (sapateiros, ferreiros, marceneiros), servidores públicos, comerciantes, vendedores de lenha, aguadeiros, lavadeiras e empregadas domésticas. Após a década de 1950, adotou o complemento “Primeiro de Maio”.

Alegrete foi uma das primeiras cidades a desenvolver uma economia urbana no Rio Grande do Sul, na virada do século XIX para o XX. Embora sua base econômica fosse alicerçada na produção primária, principalmente a pecuária, na cidade havia muitas oficinas, manufaturas, algumas indústrias e um comércio bem estruturado. Além disso, possuía uma importante estação da Viação Férrea e, a partir da década de 1920, iniciou um processo de ampliação dos serviços públicos. Esse relativo desenvolvimento econômico atraiu imigrantes, em particular italianos e alemães. Em 1921, o município possuía 30.905 habitantes, dos quais 7,8% eram imigrantes. A proporção de imigrantes na população de todo o Rio Grande do Sul naquele período era de 6,9%.

Assim como em outros lugares do país, desde o final do século XIX, associações operárias de categorias específicas e pluriprofissionais surgiram em Alegrete. A presença de imigrantes na economia urbana e na organização das primeiras associações operárias foi bem significativa. Em 1882, por exemplo, foi fundada na cidade uma associação mutualista italiana. A Mútua Proteção Operária da cidade foi criada em 1897 e registros indicam a existência de uma Associação dos Empregados no Comércio em 1905 e de um Centro Operário em 1915. O Primeiro Congresso Operário do Rio Grande do Sul, realizado em Porto Alegre em 1898, foi presidido pelo marceneiro Eduardo Mallmann, então presidente da Mútua Proteção Operária de Alegrete. 

A União Operária organizava conferências, assembleias e participou ativamente dos congressos da FORGS (Federação Operária do Rio Grande do Sul) em 1927 e 1928. Possuía, inclusive, uma escola e realizava atividades de confraternização e protesto no dia 1º de maio. Na União também foram discutidas a implantação das novas regulamentações do trabalho, de assistência, previdência e organização sindical a partir da década de 1930. No entanto, a nova legislação trabalhista, com seu caráter corporativo e de organização dos trabalhadores em categorias profissionais, acabou por enfraquecer o papel de entidades como a União Operária, que reunia várias categorias e prestava socorro através do mutualismo (pecúlio com fins de ajuda mútua em caso de doença). Com as novas leis, seu caráter mutual e sindical foi se esvaziando. A partir da década de 1950, a União Operária foi assumindo cada vez mais características de um clube recreativo, com a realização de bailes e carnavais.


Embora em seus primeiros anos, a presença de imigrantes tenha sido predominante entre seus sócios e dirigentes, a União Operária rapidamente caracterizou-se como um espaço de união de trabalhadores de diversas nacionalidades e etnias. Em particular, os trabalhadores afrodescendentes, rejeitados em outras associações da cidade, assumiram um lugar de destaque na União.


A partir do final da década de 1930 trabalhadores negros passaram a ocupar os cargos na direção, inclusive a presidência da entidade. Tal processo atingiu seu ápice na década de 1970, quando a União Operária Primeiro de Maio passou a ser conhecida como “Clube dos Negros”, por reunir a comunidade afrodescendente do bairro e da cidade como um todo.

Após um período de decadência e inatividade, a União Operária Primeiro de Maio  foi reativada por um grupo de ativistas sindicais e culturais com o objetivo de preservar a memória das lutas sociais da cidade e promover discussões políticas e culturais sobre questões relacionadas à classe, gênero e etnias. O prédio-sede da União é atualmente compartilhado com a União das Associações de Bairros de Alegrete (UABA) e encontra-se em condições precárias, necessitando de uma reforma e “restauração” de suas características arquitetônicas. Como um lugar de memória fundamental para a história dos trabalhadores e trabalhadoras de Alegrete, há uma campanha em curso para que seja tombado e  reconhecido como Patrimônio Histórico do município.

João Máximo dos Santos, o primeiro presidente negro da União Operária, entre 1937 e 1938.
Acervo da União Operária Primeiro de Maio de Alegrete (RS).


Para saber mais:

  • CORRÊA, Anderson R. Pereira.  Movimento operário em Alegrete: a presença de imigrantes e estrangeiros (1897 – 1929). Porto Alegre, dissertação (História-PUCRS), 2010. http://tede2.pucrs.br/tede2/handle/tede/2325
  • CORRÊA, Anderson R. Pereira. “A Formação da Classe Operária em Alegrete: a participação de imigrantes (República Velha)”, Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, v. 01, p. 13-35, 2015.  https://seer.ufrgs.br/revistaihgrgs/article/view/60828
  • CORRÊA, Anderson R. Pereira. Uma história operário-sindical de Alegrete; a formação da classe operária alegretense. Bagé, RS: Faith, 2018. v. 01. 86p. https://docplayer.com.br/84643036-Uma-historia-operario-sindical-de-alegrete-a-formacao-da-classe-operaria-alegretense.html
  • PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz; LUCAS, Maria Elizabeth. Antologia do movimento operário gaúcho (1870-1937). Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS/Tchê!, 1992.
  • PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz. Que a União Operária seja a Nossa Pátria – História das lutas dos gaúchos para construir suas organizações. Porto Alegre: Ed.Universidade/UFRGS, 2001.

Crédito da imagem de capa: Prédio da União Operária 1º de Maio, de Alegrete, construído em 1955. A casa, em primeiro plano, pertence à família Castilhos, os doadores do terreno pra construção da sede. Foto de Anderson Pereira Corrêa, 2012.


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Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

Lugares de Memória dos Trabalhadores #36: Matte Larangeira, Laguna Carapã (MS) – Vitor Wagner Neto de Oliveira



Vitor Wagner Neto de Oliveira
Professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul



Na fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina, a exploração da erva-mate foi uma das primeiras atividades econômicas de características capitalistas que “abriu” a região ao mercado regional e internacional. Área até então de domínio indígena, essa região que inclui o atual estado de Mato Grosso do Sul passou por profundas transformações entre a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do século XX. Empreendimentos dedicados à exploração da erva proliferaram pela tríplice fronteira. Em sua maioria eram espécies de enclaves industriais semi-autônomos, frequentemente transnacionais, com leis, códigos e moedas próprios.

No sul de Mato Grosso, uma empresa em especial se tornou o maior empreendimento deste tipo. A Cia. Matte Larangeira teve sua origem em 1874, quando Thomaz Larangeira, funcionário da comissão de demarcação de fronteiras após a Guerra da Tríplice Aliança com o Paraguai, começou a explorar a erva-mate do lado paraguaio. Em 1882, o governo do Império do Brasil concedeu-lhe autorização para exploração de grande extensão de terras no sul de Mato Grosso. A renovação e ampliação constante das concessões de terras continuou durante o período republicano, graças às relações estabelecidas com famílias que dominavam a política do Mato Grosso, como os Murtinho, acionistas da empresa desde 1891. Em 1902, o controle da empresa passou para o grupo Francisco Mendes & Cia e a matriz estabeleceu-se definitivamente em Buenos Aires. No Brasil, a vila de Campanário, inaugurada em 1921 no município de Ponta Porã, tornou-se o principal centro administrativo e de oficinas da Matte Larangeira.

Assim como em outros empreendimentos ligados à exploração da erva-mate, muitos dos trabalhadores que extraiam, beneficiavam (cancheavam) e transportavam o produto nos ervais da Matte Larangeira eram arregimentados entre os indígenas guarani e kaiowa que dominavam tradicionalmente o uso da planta. Grande parte trabalhava em família, recebendo por produção. O porto de Posadas, na província argentina de Misiones, era o principal centro de contratação de trabalhadores não indígenas, em particular paraguaios. Esses trabalhadores eram contratados por intermediários, os conchavadores, que além de antecipar uma parte do salário, eram responsáveis pelo transporte e vigilância dos trabalhadores até seu embarque para os ervais.


Nos ervais da empresa, o dialeto corrente era o guarani. A “moeda” em que se pagavam os vales e se consumia nos bolichos (pequeno comércio de secos e molhados e pontos de encontro para jogar e beber) era o giro, um tipo de “papel” emitido pela empresa que circulava por toda a região. Existia ainda o sistema do barracão, em que o trabalhador era pago em mercadoria fornecida pela própria empresa, endividando-se, quase sempre. Estimativas indicam que, em seu auge, até 10 mil trabalhadores foram empregados na Matte Larangeira.


Ao longo dos anos, as fugas tornaram-se uma das principais formas de resistência dos trabalhadores diante das opressivas condições impostas pela empresa. Era um grande risco diante das violentas forças de vigilância da Matte Larangeira e da Força Pública do Estado, sempre dispostas a “caçar” e prender os “infratores”. A União dos Trabalhadores de Campo Grande chegou a denunciar ao recém criado Ministério do Trabalho nos anos 1930 as condições de trabalho que levavam à fuga dos trabalhadores. Sabotagens na produção e lutas pelo controle do tempo também foram comuns, em particular entre os trabalhadores da extração. Muitas vezes essas ações provocaram alterações importantes nas relações de trabalho na empresa

Os conflitos, frequentemente violentos, entre a Matte Larangeira e pequenos produtores pela posse da terra na região também foram recorrentes. A tensão se intensificou a partir de 1916, quando o Estado deu garantias legais para a permanência de posseiros já estabelecidos. Em 1932, posseiros e pequenos produtores chegaram a organizar a Liga dos Combatentes em Ponta Porã, que promovia campanha contra o monopólio de arrendamentos por parte da empresa

Além disso, os processos migratórios para a região também enfraqueceram o monopólio da empresa sobre a terra. Em 1943, no contexto da campanha da “Marcha para o Oeste” do Estado Novo, o governo de Getulio Vargas criou a Colônia Agrícola Nacional de Dourados, cedendo glebas para migrantes nordestinos, e cancelou a concessão de terras para a Matte Larangeira. No final da década de 1940 a empresa deixou de explorar os ervais na região, mantendo, contudo, ervais na Argentina e a sede em Buenos Aires. No Mato Grosso permaneceu com extração de madeira até o ano de 1957.

Para operação no imenso território que compunha seus domínios, a Matte Larangeira implantou diversos portos e vilas, sendo que algumas se tornaram cidades. Os prédios, residências e armazéns da antiga Vila Campanário são hoje patrimônio da Fazenda Campanário na rodovia MS-156, no município sul-mato-grossense de Laguna Carapã. A fazenda, de 37 mil hectares, é um típico latifúndio moderno do agronegócio em uma região de alta concentração fundiária. Mas os vestígios arquitetônicos da Vila Campanário também são lugares de memória do trabalho e da resistência dos povos locais. Resistência atualizada pela luta contemporânea de novos sujeitos como os sem-terra e os indígenas expulsos dos seus territórios.

Tariferos transportando o raído, fardo de erva-mate (década de 1930).
Acervo do jornal Amambai Notícias.


Para saber mais:

  • ARRUDA, Gilmar. Frutos da terra: os trabalhadores da Matte-Larangeira. Londrina: Editora UEL, 1997.
  • GUILLEN, Isabel Cristina Martins. O imaginário do sertão: lutas e resistências ao domínio da Companhia Matte Larangeira (Mato Grosso: 1890). Tese (Doutorado em História). Campinas: IFCH/UNICAMP, 1991.
  • OLIVEIRA, Vitor Wagner Neto de. “Sin él, en el Chaco no hay ingenio, ni obraje, ni algodonal”: o mundo do trabalho nas fronteiras do Cone Sul. In: ESSELIN, Paulo Marcos e FONSECA, Vinicius Rajão da (Orgs.). O expansionismo brasileiro sobre a Bacia Platina e a Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai. Porto Alegre: PPGH; FCM, 2019.
  • QUEIROZ, Paulo Roberto Cimó. “A Companhia Mate Laranjeira, 1891-1902: contribuição à história da empresa concessionária dos ervais do antigo sul de Mato Grosso”. Territórios e Fronteiras. 8 (1), 2015.
  • Filme Selva trágica (1963), direção Roberto Farias.  https://www.youtube.com/watch?v=G_4NUUOAcmg

Crédito da imagem de capa: Trabalhadores e moradores de Campanário (década de 1920). Arquivo Público Estadual de Mato Grosso do Sul.


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