CE #20: O Primeiro de Maio de Dona Elvira: lutas e cantorias

Angela de Castro Gomes
Professora Titular de História do Brasil da Universidade Federal Fluminense
Professora Emérita do CPDOC/FGV

Vem ó maio, saúdam-te os povos!
Em ti colhem viril confiança.
Vem trazer-nos cerúlea bonança,
Vem ó maio trazer-nos dias novos!
(Hino do Primeiro de Maio, Pietro Gori, 1892
)

O dia 1o de maio tornou-se, internacionalmente, o Dia do Trabalho, por ter sido a data em que, em 1886, um combativo conjunto de trabalhadores da cidade de Chicago enfrentou uma violenta repressão policial, por reivindicar melhores condições de trabalho, em especial uma jornada de oito horas. Nesse 1o de maio houve trabalhadores mortos e feridos, além de muitos que foram presos, o que deve nos lembrar que este é, por excelência, um dia de luta por direitos, que são difíceis de conquistar e precisam ser permanentemente defendidos, pois se a luta pode avançar, também pode recuar. É o que vivemos hoje, no Brasil, após a chamada Reforma Trabalhista de 2017 que, aliada a outras iniciativas governamentais, produziu, de fato, o enfraquecimento, quando não a eliminação, de direitos trabalhistas arduamente conquistados pelos trabalhadores brasileiros, numa mobilização que tem mais de um século.   

Manifestações de 1º de Maio no Rio de Janeiro, em 1919.
Fonte: Revista da Semana, “Manifestação de 1de maio de 1919”, nde 10 maio de 1919. 

Isso porque é possível acompanhar essa história, a partir das manifestações ocorridas no 1o de maio desde o início do século XX, quando os trabalhadores ocupavam as ruas das principais cidades do Brasil, com destaque para o Rio de Janeiro, então a Capital Federal, e São Paulo. Quem vai nos ajudar a entender a importância desses acontecimentos é Dona Elvira Boni, uma militante anarquista que eu entrevistei no ano de 1983, quando escrevia minha tese de doutorado. Ela tinha 84 anos e morava em um apartamento no bairro de Laranjeiras, onde gentilmente me recebeu. Como seu nome me fora indicado pelo meu amigo e seu vizinho, José Sérgio Leite Lopes (que então também fazia sua tese de antropologia), não precisei me esforçar muito para convencer Dona Elvira a conversar comigo e me contar como havia se tornado anarquista e como esse engajamento marcara sua vida. Nascida em família de imigrantes italianos, seu pai e irmãos aderem ao anarquismo e à luta dos trabalhadores, no Rio de Janeiro. Com esse apoio, Dona Elvira iria frequentar a Liga Anticlerical entre 1909 e 1911 e ser uma das cinco moças que fundaram a União das Costureiras, Chapeleiras e Classes Anexas, em 1919. Uma associação combativa de orientação anarquista, que logo organizou uma greve pela jornada de oito horas de trabalho e se manteve atuante até 1922. Nela, Dona Elvira ocupou a função de tesoureira. Experiência rara, porque se as mulheres eram presença marcante no movimento operário do início do século XX, no Brasil e no mundo, não costumavam ter posição ou função de liderança em diretorias de associações. 

Foto com Elvira Boni na mesa de encerramento do Terceiro Congresso Operário, 1920.
Fonte: Arquivo pessoal de Marcolino Jeremias, membro do Núcleo de Estudos Libertários Carlo Aldegheri – NELCA – Santos/SP.

As décadas de 1900 e 1910 são muito agitadas para os trabalhadores do país que, em 1917, fizeram uma greve geral em São Paulo (capital e interior), que se alastrou para o Rio de Janeiro, Porto Alegre e Recife. Os grevistas demandavam a jornada de oito horas, a abolição do trabalho noturno para mulheres e “menores”, além de melhores salários, reivindicações fundamentais e recorrentes ao longo do tempo. Os anarquistas tinham, nesse contexto, muita força no interior do movimento operário e, em novembro de 1918, realizaram uma revolta no Rio de Janeiro, que evidenciou o alto grau de organização que haviam alcançado, sendo duramente reprimidos. Mas antes dessa revolta, o ano de 1918 registrou dois grandes e trágicos acontecimentos. Em julho, na capital federal, houve o incêndio e desabamento do Hotel New York, na moderna Avenida Central. Com dezenas de trabalhadores mortos, o que repercutiu muito entre a população, o incêndio foi uma catástrofe que acabou por ajudar o andamento da lei de Acidentes de Trabalho, que tramitava no Parlamento e foi aprovada em janeiro de 1919. Mais terrível ainda, foi a chegada da Gripe Espanhola, da qual Dona Elvira foi uma vítima e sobrevivente. Segundo ela – o que as fotos das revistas ilustradas confirmam – os mortos eram tantos, que os cadáveres ficavam nas calçadas, havendo quem pedisse para os encarregados de recolhê-los, levar primeiro os mais antigos e deixar os mais frescos, uma vez que era impossível transportar todos eles. A Gripe Espanhola, cuja gravidade as autoridades federais e estaduais, de todo o país, custaram a admitir e, por isso, a combater, foi um flagelo para a população das cidades, mas também para a do interior. Todo o país, do Amazonas ao Rio Grande Sul, foi atingido e, como acontece sempre quando há epidemias, os mais vulneráveis foram os pobres, entre os quais estavam muitos trabalhadores que morreram sem qualquer tipo de assistência.

É nesse clima que o ano de 1919 começa. Um ano em que haveria eleições presidenciais e, o que era raro, com disputa real entre dois candidatos: o de situação, o paraibano, Epitácio Pessoa e o de oposição, o jurista baiano, Rui Barbosa. Além disso, com o fim da Primeira Guerra Mundial, o Brasil participava da Conferência de Paz em Paris, sendo signatário do Tratado de Versalhes. Epitácio Pessoa, o candidato do governo, era o representante do Brasil. E o que tudo isso tem a ver com a luta por direitos dos trabalhadores? Tem sim, primeiro porque, pelo Tratado de Versalhes, as nações signatárias se comprometiam a implementar políticas que melhorassem as condições de vida e trabalho dos “assalariados urbanos”. Segundo, porque Rui Barbosa fazia uma campanha eleitoral inusitada, chegando a falar para grandes audiências em lugares públicos. Quer dizer, a situação nacional e internacional estava mudando e se tornando um pouco mais favorável às demandas dos trabalhadores.

Trabalhadores reunidos na Praça Mauá, Rio de Janeiro, em 1º de maio de 1919.
Fonte: Revista da Semana, “Manifestação de 1de maio de 1919”, nde 10 maio de 1919. 

Assim, embora várias cidades já conhecessem as manifestações de 1o de maio, pois elas ocorreram em anos anteriores, as que aconteceram em 1919, em especial no Rio de Janeiro seriam diferentes, por sua magnitude, marcando a memória dos trabalhadores fossem anarquistas ou não. O local escolhido para a concentração foi a Praça Mauá, porque fazendo parte da região portuária da cidade, era tradicionalmente ocupada por aqueles que trabalhavam no porto ou embarcados, e também por uma grande população de trabalhadores, que lá morava e/ou frequentava com assiduidade, pois ela abrigava um circuito de religiosidade e lazer populares. Dona Elvira, que esteve presente a essa demonstração, explica que o início da manifestação foi na Praça Mauá, e que lá ocorreu um grande comício. Em seguida, os trabalhadores percorreram, em passeata, toda a Avenida Rio Branco até chegarem ao Palácio Monroe. Durante o desfile, de tamanho impressionante, vários oradores se posicionavam, ao mesmo tempo, ao longo da avenida, fazendo discursos, não sem dificuldades, devido à empolgação do povo e à falta de amplificadores para voz.  Mas o que os trabalhadores mais gostaram de fazer, enquanto caminharam, foi cantar. Dona Elvira, uma artista de teatro anarquista de linda voz, mesmo aos 80 anos, disse que, nesse dia, “cantou-se tudo quanto foi hino que se sabia”. Cantou-se o Hino dos Trabalhadores, o Hino do 1o de Maio, O Sol dos Livres (com a música do Sole Mio) e, claro, A Internacional. Nada era muito planejado, nem muito afinado; mas os trabalhadores fizeram questão de cantar. Manifestações desse tipo ainda aconteceram em 1920, no Rio e em outras cidades, mas foram escasseando e encerrando uma experiência que, se não teve tanto sucesso em termos de conquistas imediatas, foi fundamental para a história da luta dos trabalhadores, sempre em curso, sempre sendo retomada.

Dona Elvira canta o Hino dos Trabalhadores durante entrevista a Angela de Castro Gomes.

No dia 1o de maio de 1919, a Praça Mauá, o Centro do Rio e, sobretudo, o povo trabalhador tiveram um desfile memorável. Dona Elvira me falou que nunca se esqueceu desse dia e, como testemunho, cantou para mim, com emoção, todos esses hinos que convidam à resistência e à luta. Ela, miúda, olhos claros e cabelos brancos (como os meus agora), se transformava, ganhando força diante de mim. E eu, depois de ouvi-la contar e cantar, também não esqueço, dividindo com vocês o agradecimento que sempre farei a ela.  

Dona Elvira recita o prólogo e canta o Hino do Primeiro de Maio, versão em português da canção do italiano Pietro Gori, composta originalmente 1892.


PARA SABER MAIS:

ADDOR, Carlos Augusto. A insurreição anarquista no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Dois Pontos, 1986.
BATALHA, Claudio. O movimento operário na Primeira República, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editores, 2000.
BARBOSA, Rui. A questão social e política no Brasil (discurso de 20 de março de 1919), Biblioteca Virtual de Ciências Humanas.
BONI, Elvira. Depoimentos, 1983, Rio de Janeiro, CPDOC/FGV (se vocês quiserem ouvir D. Elvira Boni cantar, o que eu aconselho).
GOMES, Angela de Castro (coord.). Velhos militantes: depoimentos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editores, 1988.
GOMES, Angela de Castro. A invenção do trabalhismo. Rio de Janeiro, Ed. FGV, 2005.
SCHWARCZ, Lilia M.; STARLING, Heloisa M. A bailarina da morte: a gripe espanhola no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 2020.


Crédito dos áudios das entrevistas: Entrevista Elvira Boni Lacerda. 5ª Entrevista: 02.10.1983. Fita 7-A. Acervo CPDOC/FGV.


Vale Mais #09 – Mundos do Trabalho e Sindicalismo Católico

Vale Mais é o podcast do Laboratório de Estudos de História dos Mundos do Trabalho da UFRJ, que tem como objetivo discutir história, trabalho e sociedade, refletindo sobre temas contemporâneos a partir da história social do trabalho.

O episódio #09 do Vale Mais é sobre Mundos do trabalho e sindicalismo católico.

Este episódio do Vale Mais é o primeiro episódio da segunda temporada do podcast, que propõe conversar com doutores da área de História Social do Trabalho sobre os seus respectivos temas de pesquisa e processo de elaboração. Neste episódio conversamos com Deivison Amaral, professor da PUC-Rio e pesquisador do LEHMT, sobre sua tese “Catolicismo e Trabalho: a cultura militante dos trabalhadores de Belo Horizonte (1909-1941)”. Uma pesquisa que visa olhar para a cultura militante católica em Belo Horizonte, abordando a dimensão associativa e a atuação de trabalhadores, organizações, sindicatos e militantes leigos. Além de relacionar aspectos da formação política e religiosa dos trabalhadores e militantes leigos com a dimensão transnacional de constituição do movimento operário cristão. Dessa forma, teremos uma conversa que discutirá a relevância de estudos que busquem a interdisciplinaridade em suas pesquisas, que ultrapassem historiografias com ponto de vista pejorativos.

Produção: Heliene Nagasava e Larissa Farias 
Roteiro: Heliene Nagasava e Larissa Farias 
Apresentação: Larissa Farias

Dica citada no episódio: Daens – Um Grito de Justiça (Filme)

Vale Mais #33: Jogo, logo existo: Futebol, conflito social e sociabilidade na formação da classe trabalhadora em Rio Grande, por Felipe Bresolin Vale Mais

Está no ar o quinto episódio da nova temporada do podcast Vale Mais, do LEHMT-UFRJ! Nesta temporada, convidamos pesquisadoras e pesquisadores para discutir projetos, livros e teses recentes que aprofundam debates interdisciplinares sobre os mundos do trabalho. No sexto episódio, conversamos com Felipe Treviso Bresolin, doutorando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Felipe conversou com os entrevistadores do Vale Mais sobre o livro “Jogo, logo existo: Futebol, conflito social e sociabilidade na formação da classe trabalhadora em Rio Grande/RS (1901-1930)”, fruto de sua dissertação de mestrado, defendida em 2023. Não deixe também de compartilhar e acompanhar os próximos episódios! Entrevistadores: Ana Clara Tavares, Isabelle Pires, Josemberg Araújo, Larissa Farias e Thompson Clímaco Roteiro: Ana Clara Tavares, Isabelle Pires, Larissa Farias e Thompson Clímaco Produção: Ana Clara Tavares e Larissa Farias Edição: Josemberg Araújo e Thompson Clímaco Diretor da série: Thompson Clímaco Coordenadora geral do Vale Mais: Larissa Farias
  1. Vale Mais #33: Jogo, logo existo: Futebol, conflito social e sociabilidade na formação da classe trabalhadora em Rio Grande, por Felipe Bresolin
  2. Vale Mais #32: Breve dicionário analítico sobre a obra de Edward Palmer Thompson, por César Queirós e Marcos Braga
  3. Vale Mais #31: Saraiva, Dantas e Cotegipe: baianismo, escravidão e os planos para o pós-abolição no Brasil, por Itan Cruz
  4. Vale Mais #30: A cultura de luta antirracista e o movimento negro do século 21, por Thayara Lima
  5. Vale Mais #29: The Second World War and the Rise of Mass Nationalism in Brazil, por Alexandre Fortes

Artigo “Educação para as relações étnico-raciais e a história pública: a decolonização dos saberes na trajetória do Programa de Pós-Graduação em Relações Étnico-Raciais” – Samuel Oliveira, Maria Renilda e Roberto Borges

O artigo “Educação para as relações étnico-raciais e a história pública: a decolonização dos saberes na trajetória do Programa de Pós-Graduação em Relações Étnico-Raciais” foi escrito por Samuel Oliveira, membro do LEHMT-UFRJ, Maria Renilda e Roberto Borges.

O texto faz parte de uma coletânea de artigos no livro “História Pública e Ensino de História”, organizada por Rodrigo Almeida (UFF) e Miriam Hermeto (UFMG). Investiga como as relações étnico-raciais constituem o debate sobre a História pública, a educação e a produção do conhecimento, compreendendo a formação de um programa de mestrado interdisciplinar que tem as relações raciais e as memórias negras como centro de discussão e análise.


Créditos da imagem de capa: Capa do livro História pública e ensino de história.

Chão de Escola #10: Os impactos da ditadura civil-militar nas lutas e direitos das trabalhadoras e trabalhadores do campo

Autoras:  PROFª Alessandra Carvalho1 e PROFª Claudiane Torres da Silva2

Apresentação da atividade:

Segmento: Ensino Fundamental II (9º ano)

Unidade temática: Ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985) e os processos de resistência

Objetivos gerais:

– Caracterizar as lutas de trabalhadores rurais por direitos sociais e pela reforma agrária no governo de João Goulart.

– Contextualizar o golpe civil-militar de 1964 no cenário das disputas políticas e sociais da década de 1960.

– Identificar os impactos da ditadura sobre as trabalhadoras e os trabalhadores rurais e suas organizações.

– Caracterizar os processos de resistência das trabalhadoras rurais durante a ditadura civil-militar.

Habilidades a serem desenvolvidas (de acordo com a BNCC)

(EF09HI19) Identificar e compreender o processo que resultou na ditadura civil-militar no Brasil e discutir a emergência de questões relacionadas à memória e à justiça sobre os casos de violação dos direitos humanos.

Duração da atividade: 4 aulas de 50 minutos.

Aulas Planejamento
01Etapa 1
02Etapas 2 e 3
03 e 04Etapa 4

Conhecimentos prévios:

– Estabelecimento de direitos sociais para os trabalhadores urbanos desde a década de 1930;

– Lutas sociais nos anos 1950;

– Contexto político e social do governo de João Goulart (1961-1964).

Atividade

A atividade propõe a caracterização do contexto de luta dos trabalhadores rurais por direitos sociais e reforma agrária no Brasil na década de 1960, relacionando-a ao golpe civil-militar de 1964. A partir daí, identifica as ações repressivas da ditadura, as violações dos direitos humanos dos camponeses ocorridas após 1964 e as formas de resistência das trabalhadoras do campo.

Etapa 1: As lutas dos camponeses nas décadas de 1950 e 1960

Recursos: Projetor, caixa de som, quadro, caderno e fotocópia;

Ao longo da história do Brasil, as disputas em torno do acesso e distribuição da propriedade da terra foram constantes. Nessa longa história, devemos entender os movimentos sociais no campo como múltiplas experiências que caracterizam contextos políticos específicos. Em meados do século XX surgem várias denúncias sobre a exploração dos trabalhadores rurais, as dificuldades de acesso à terra e a reivindicação de uma reforma agrária. A ausência histórica de uma política de distribuição de terras no campo foi terreno fértil para o surgimento de importantes organizações e movimentos sociais como, por exemplo, as Ligas Camponesas e, posteriormente, o Movimentos dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST). Com o aprofundamento do debate sobre a condição do trabalhador rural e a reforma agrária no país após 1945, podemos observar que os atores políticos passaram a responder aos movimentos sociais mais atuantes, fazendo da luta por direitos e da resistência da classe trabalhadora rural um importante campo de disputas. Estavam em jogo questões como educação no campo, acesso à terra, uso sustentável da terra, direitos trabalhistas, entre outros aspectos que reforçariam uma consciência de classe no campo. Nessa atividade vamos analisar as lutas de trabalhadores rurais na década de 1960, considerando o governo de João Goulart, o golpe civil-militar de 1964 e as ações da ditadura estabelecida em seguida.

Para iniciar a discussão sobre as lutas dos trabalhadores rurais nos anos 1960, apresente aos alunos duas canções. Não dê informações sobre elas, mas peça que as escutem pensando nas seguintes questões, que podem ser escritas no quadro:
– Quem está cantando?
– Quem são os autores das canções?
– Sobre o que falam as canções?
– Que tipo de canções são essas?

Canção 1: Hino da Reforma Agrária.

Duração: 3’03’’min.

A canção deve ser exibida a partir de 50”, sem a narração inicial que oferece algumas informações que queremos que o aluno descubra sozinho. Nela, um militante dos movimentos rurais descreve o contexto do início dos anos 1960 e cita a Lei 4.214, de 02 de março de 1963, conhecida como Estatuto do Trabalhador Rural. Essa lei determinou a extensão da legislação social ao trabalhador rural fornecendo as bases para a organização sindical do campo brasileiro.

Canção 2: A História não falha.

Duração: 2’51’’

A canção cita a expressão “na lei ou na marra” que remete à história da associação de trabalhadores rurais que surgiu no Engenho Galileia, em Vitória de Santo Antão, Pernambuco, em janeiro de 1955, e foi seguida pela criação das Ligas Camponesas. Além de mobilizar trabalhadores rurais na luta por direitos e pela terra, uma comissão de trabalhadores rurais decidiu ir a Recife buscar apoio de um deputado estadual recém-eleito, ligado aos camponeses, chamado Francisco Julião. Este cunhou a palavra de ordem “Reforma agrária na lei ou na marra”, que alcançou grande força durante o governo de João Goulart.

Após ouvir as canções, é hora de ouvir os alunos! Como estamos usando documentos sonoros, é importante chamar a atenção para seus diferentes elementos. Além da letra, a melodia, os instrumentos usados e as maneiras de cantar são fundamentais para construir os sentidos da música. De maneira sensível e livre, estimule os estudantes a analisar esses aspectos – são canções cujos ritmos nos remetem à região Nordeste, cantadas em conjunto por homens e mulheres, que falam dos trabalhadores rurais e seus projetos de vida e convocam para a união e a luta. As contribuições dos estudantes podem ser organizadas no quadro.
Em seguida, informe aos alunos que as canções que eles escutaram fazem parte do CD “Cantando e lutando: música e política dos trabalhadores rurais de Pernambuco”, gravado em 2007 na cidade de Carpina, Pernambuco, durante a festa de São José. Esse CE é parte do projeto “Memória camponesa e cultura popular” (UFRJ, UFRRJ, com a colaboração de pesquisadores de outras universidades e de entidades sindicais) e, nele, foram registradas canções entoadas em reuniões e manifestações organizadas por trabalhadores rurais antes e depois do golpe de 1964. Por isso, elas são documentos que nos aproximam das formas de expressar o mundo e fazer política dos camponeses e nos permitem introduzir a temática da aula.
O repertório do CD está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=xsd3pH0HvyI&list=PLpv_6194cjxroOi_WTt_eTwXVUKPdZyp1

Após as canções, distribuía o texto abaixo aos alunos e peça que respondam no caderno as questões colocadas ao final:

Texto: “Da barbárie à terra prometida: o campo e as lutas sociais na história da República”

“… a reforma agrária passou a ser um dos temas mais referidos no início dos anos 60, mantendo-se constantemente na ordem do dia, ocupando as seções de maior destaque dos jornais, (…) tornando-se um dos principais eixos do debate e das disputas políticas nacionais. (…)
O reconhecimento da importância da reforma agrária devia-se, em grande parte, à mobilização de trabalhadores rurais, que vinha desde a década de 1940 e ganhou maior força e visibilidade em fins dos anos 1950 e início dos anos 1960. Na verdade, os trabalhadores rurais foram uma das grandes novidades no espaço político do país naquele período. De assalariados a pequenos proprietários, incluindo posseiros, arrendatários, foreiros e colonos, (…) eles passaram a se identificar como camponeses, a se organizar e a lutar por terras e direitos.
Entre os fatos que motivaram essa mobilização estavam as expulsões de camponeses das propriedades, intensificadas a partir dos anos 1940. Essas expulsões ocorreram por razões diversas, dependendo da região do país. (…)
Essa situação coincidiu com o deslocamento para o campo de militantes de grupos e partidos de esquerda, que buscavam mobilizar e organizar o campesinato. A presença desses militantes foi fundamental em vários aspectos. Eles apresentavam aos camponeses uma alternativa à expulsão e à exploração, (…) contrapondo-se ao poder dos grandes proprietários e dos grileiros. Construíam uma noção de grupo, fazendo com que aquilo vivido por cada camponês como uma fatalidade individual fosse percebido como um problema coletivo. (…)
As lutas camponesas assumiram feições distintas, indo desde resistências contra expulsões até ocupações de terra e passando também por movimentos grevistas por salários, direitos trabalhistas e acesso a lotes para cultivo. De início, eram localizadas, mas, com o passar do tempo, passaram a se generalizar, a envolver um número maior de pessoas e a se radicalizar, chegando mesmo a ocorrer enfrentamentos armados entre camponeses, jagunços e policiais.
Além da ação direta na própria área rural, os camponeses passaram a realizar manifestações nas cidades, principalmente nas capitais, com o objetivo, por um lado, de encaminhar suas reivindicações e pressionar as autoridades por uma solução a seu favor, e, por outro, de levar seus problemas ao conhecimento da população urbana, buscando seu apoio. A presença dos camponeses nas cidades, além de pesar para reduzir a distância e o estranhamento sentidos pela população urbana, reforçava entre esta a percepção de que o campo era marcado por graves problemas sociais, de que havia no país uma questão agrária, que pedia uma solução urgente que passava não necessariamente pela repressão policial, mas pela adoção de medidas políticas de longo alcance, como a reforma agrária.

FONTE: GRYNSZPAN, Mario. Da barbárie à terra prometida: o campo e as lutas sociais na história da República. In: GOMES, A. C, PANDOLFI, D. C., ALBERTI, V. A República no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: CPDOC, 2002, p. 130-131.

Glossário:


Arrendatário: agricultor que recebe de um proprietário uma porção de terra para trabalhar e pela qual deve pagar uma remuneração;
Campesinato: conjunto de grupos sociais de base familiar que se dedica a atividades agrícolas, com graus diversos de autonomia;
Colono: agricultor que estabelece um contrato de exploração de uma porção de terra com seu proprietário mediante pagamento em dinheiro e/ou produtos.
Foreiro: agricultor que paga foro, ou seja, tributo ao proprietário da terra.
Grileiro: pessoa que se apossa de terras alheias mediante falsas escrituras de propriedade.
Jagunço: indivíduo que se presta ao trabalho paramilitar de proteção e segurança a grandes fazendeiros e lideranças políticas.
Posseiro: agricultor que ocupa terras devolutas ou abandonadas e desenvolve uma atividade de cultivo.

Considerando as canções e o texto acima:

  1. Explique a mudança presente na seguinte afirmação: “De assalariados a pequenos proprietários, incluindo posseiros, arrendatários, foreiros e colonos, (…) eles passaram a se identificar como camponeses, a se organizar e a lutar por terras e direitos.”
  2. Identifique as principais reivindicações dos trabalhadores rurais brasileiros nas décadas de 1950 e 1960.
  3. Apresente as principais formas de ação organizadas pelos camponeses.
  4. Explique como se dava a articulação dos trabalhadores rurais com outros setores da sociedade brasileira.

Etapa 2: As conquistas dos trabalhadores rurais no governo de João Goulart (1961-1964)

Recursos: Projetor, caixa de som, quadro, caderno e fotocópia;

A principal marca do governo de João Goulart, que chegou à presidência da república em 1961, foram as chamadas “reformas de base”. Nessa ampla denominação, foram reunidas propostas de mudanças que incluíam intervenções no sistema bancário e de pagamento de impostos, a regulação do acesso à moradia nas cidades, a ampliação do ensino superior, o direito de voto para analfabetos e militares de baixa patente e a reforma agrária. De todas essas iniciativas, a reforma agrária alcançou grande destaque, vista como meio de resolver os conflitos pela posse da terra e garantir o acesso à propriedade para milhões de trabalhadores rurais.
Em discurso durante o 1º Congresso Camponês realizado em Belo Horizonte, em novembro de 1961, João Goulart afirmou que pretendia realizar a reforma agrária. Em 1963, o presidente apresentou às lideranças políticas o anteprojeto de reforma agrária, mas este não foi aprovado no Congresso Nacional. Isso gerou grande insatisfação na classe trabalhadora rural, nos movimentos populares e nas forças políticas de esquerda, que intensificaram as pressões pela reforma agrária. Em 1964, João Goulart optou por organizar uma ofensiva política com os principais setores de esquerda para pressionar pelas reformas através da mobilização da população em manifestações públicas. A primeira foi o comício de 13 de março de 1964 na Central do Brasil, Rio de Janeiro, também conhecido como Comício das Reformas, no qual João Goulart anunciou a desapropriação de terras federais para a reforma agrária e intervenções em empresas da área do petróleo. Algumas semanas depois, o golpe civil-militar de 1964 interrompeu esse processo político e deu início a um regime ditatorial.

Nessa etapa, vamos começar assistindo um trecho do documentário “Direitos em construção permanente” até o minuto 8’40’’. Indique aos estudantes que eles devem anotar no caderno as informações sobre o que aconteceu no governo de João Goulart.

O documentário faz uma breve descrição da conquista de direitos trabalhistas desde o início do período republicano até o governo de João Goulart. Muitas informações já devem ser conhecidas pelos alunos, pois se referem aos períodos da Primeira República e Primeiro Governo Vargas. O documentário cita a criação da Federação dos Trabalhadores Rurais de Pernambuco (Fetape, 1962), a greve dos canavieiros (1962), a criação da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (Contag, 1963) e a aprovação do Estatuto do Trabalhado Rural (1963).

Após a exibição do vídeo, em diálogo com as anotações dos estudantes, destaque o surgimento da Fetape, a primeira greve dos canavieiros e a criação da Contag como indicadores do avanço da organização dos trabalhadores rurais e da sua capacidade de pressão nos anos de 1962 e 1963. Estimule os alunos a relacionar essa discussão com as canções e o texto trabalhados na etapa anterior, que falavam de direitos, reforma agrária, luta e união dos trabalhadores, surgimento de uma identidade camponesa…

Em seguida, analise coletivamente os dois documentos abaixo buscando responder as seguintes questões:

– Qual é a importância da Lei 4.214 para os camponeses?
– O que levou à aprovação dessa lei?
– Como podemos relacionar as determinações da lei com a imagem escolhida pelo Ministério da Agricultura para ilustrar a capa de sua publicação?

Documento 1: Verbete “Estatuto do Trabalhador Rural” (LAMARÃO, Sérgio e MEDEIROS, Leonilde Servolo).

Definindo o trabalhador rural como “toda pessoa física que presta serviços a empregador rural… mediante salário pago em dinheiro ou in natura, ou parte em dinheiro e parte in naturaa Lei nº 4.214 tornou obrigatória a concessão de carteira profissional a todo trabalhador rural maior de 14 anos independente do sexo, estipulou a jornada de trabalho em oito horas e instituiu o direito ao aviso prévio e à estabilidade. Nenhum trabalhador poderia ser remunerado com base inferior ao salário mínimo regional. Os trabalhadores menores de 16 anos receberiam a metade do salário atribuído ao adulto. Além disso, o estatuto assegurou o direito ao repouso semanal e às férias remuneradas. Quanto à orientação sindical propriamente dita, a lei – seguindo exatamente a orientação da CLT – afirmava ser “lícita a associação em sindicatos para estudo, defesa e condução dos interesses econômicos e profissionais de empregados e empregadores”. (…) A legalização do sindicato rural só seria possível mediante a carta de reconhecimento do Ministério do Trabalho.

Documento 2

Capa da publicação contendo o texto da Lei 4.214 (março de 1963) distribuída pelo Ministério da Agricultura. Disponível em: http://memorialdademocracia.com.br/card/campones-ganha-protecao-de-estatuto

Etapa 3: O golpe civil-militar de 1964

A pressão dos trabalhadores rurais pela reforma agrária, com apoio de importantes setores urbanos e políticos, esteve no centro das tensões do governo Jango. A seguir, estão dois documentos que permitem discutir como, na época, essas tensões eram representadas e nos ajudam a caracterizar o contexto no qual se deu o golpe de Estado civil-militar em 1964.

Documento 1: Texto “1964: pouco antes do golpe, reforma agrária esteve no centro dos debates no Senado”

Uma das principais bandeiras do então presidente da República João Goulart (1919-1976), a reforma agrária esteve no centro do embate político que antecedeu o golpe de 1964.  (…) “O único objetivo é desapropriar o latifúndio improdutivo”, argumentava no Plenário, no dia 4 de março, o então senador Arthur Virgílio (AM), líder do PTB, partido de Jango, tranquilizando os fazendeiros que estivessem trabalhando e produzindo. “Mas uma atitude que não encontrará meios de recuar é a de alcançar essas terras que não merecem respeito, que são esse latifúndio nocivo ao país, que é motivo de atraso à nação. O latifúndio antissocial, o latifúndio anti-humano”, afirmou.
A proposta de Jango estava ancorada em uma mudança constitucional que permitiria a desapropriação de terras com pagamento a longo prazo, na forma de títulos da dívida agrária. Mas deputados e senadores derrotaram o governo e mantiveram a norma segundo a qual as desapropriações para fins de reforma agrária seriam efetuadas mediante pagamento antecipado, em dinheiro. O que, na prática, inviabilizava um amplo programa de reforma agrária, dado o alto custo.
(…) Na queda de braço com o Congresso, Jango buscou apoio popular, e no dia 13 de março de 1964, no “Comício das Reformas”, na Central do Brasil, no Rio de Janeiro, anunciou em discurso para 200 mil pessoas a desapropriação de terras às margens de rodovias, ferrovias, açudes públicos federais e as beneficiadas por obras de saneamento da União. (…)
No Congresso, o clima esquentou ainda mais. O comício foi encarado por parlamentares de oposição como sinal de que o governo decidira partir para o confronto. “Se por trás do presidente da República estão elementos conturbadores, provocadores e agitadores, que pretendem levar o presidente da República à campanha de descrédito do Congresso, tudo isso excede os limites, atenta contra o regime, põe em risco o regime democrático, como se fosse um plano inclinado, no qual, após meio caminho, ninguém pode retornar”, discursou no dia 17 de março de 1964 o então senador João Agripino, da UDN da Paraíba.
“O presidente da República violou a Constituição federal. O presidente da República violou a lei”, bradou no dia 18 o senador Daniel Krieger, da UDN do Rio Grande do Sul, sob o argumento de que Jango fizera um comício em área não permitida pelo então governo da Guanabara. (…)

FONTE: GONÇALVES JR., Valter. 09 jan 2020. Agência Senado. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2014/03/24/1964-pouco-antes-do-golpe-reforma-agraria-esteve-no-centro-dos-debates-no-senado

  • Distribua o texto aos estudantes e peça para que identifiquem como o projeto de reforma agrária do governo João Goulart era visto por seus apoiadores e opositores.
  • Em 13 de março de 1964, foi realizado um comício na cidade do Rio de Janeiro, perto da “Central do Brasil”, importante estação de trens urbanos. Qual o significado desse comício para o governo Jango e para seus opositores? 

Documento 2

Charge de Lan, publicada no Jornal do Brasil em 14.06.1963. In: MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Jango e o golpe de 1964 na caricatura. Rio de Janeiro: Zahar. 2006, p. 74.
  • Apresente a charge aos alunos, indicando quando e onde ela foi publicada. Discuta brevemente o que é uma charge política e que tipo de interpretação podemos fazer dela.
  • Identifique o personagem e o cenário construído na charge (João Goulart, suando muito, busca se equilibrar sobre uma corda bamba; abaixo dele, à esquerda, podemos identificar foices, martelos – que aludem ao comunismo – e algumas espadas e, do lado direito, há várias espadas – que aludem às Forças Armadas).

ETAPA 4: A ditadura civil-militar e os trabalhadores rurais: repressão e resistência

Recursos: quadro, caderno e fotocópia;

Nessa etapa final, o objetivo é discutir as ações repressivas empreendidas pela ditadura civil-militar, proprietários de terra e suas milícias contra as organizações dos trabalhadores rurais. Ao mesmo tempo, destacamos a continuidade da mobilização camponesa nas décadas de 1960 a 1980. Para desenvolver essa etapa, foram selecionados quatro conjuntos de documentos compostos por textos temáticos e trajetórias de trabalhadoras rurais, que demarcam a importância da atuação das mulheres nas lutas políticas.
As trajetórias foram extraídas do livro “Retrato da repressão política no campo: Brasil 1962-1985: camponeses torturados, mortos e desaparecidos”, de Ana Carneiro e Marta Ciocari, publicado em 2011 pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário a partir dos acervos da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos do Ministério da Justiça. Assim, ele é resultado de uma política de Estado que buscou investigar as violações dos direitos humanos praticadas durante a ditadura civil-militar e “resgatar a memória, verdade e justiça de mortos e desaparecidos durante o período militar”  (https://bibliotecadigital.mdh.gov.br/jspui/handle/192/464).

Na primeira aula, os estudantes devem ser divididos em grupos pequenos de, no máximo, quatro pessoas. Cada grupo receberá um conjunto e as seguintes orientações para a tarefa:

  1. Cada estudante vai sublinhar no texto e na trajetória os trechos que falam sobre os direitos da classe trabalhadora. Em seguida, o grupo vai escrever no caderno a lista de reivindicações que aparecem.
  2. Ao ler os depoimentos das trabalhadoras, os estudantes devem debater no grupo as violações de direitos humanos que sofreram essas trabalhadoras e escrevê-las no caderno, identificando aquelas que foram cometidas por agentes do Estado e as que foram cometidas por agentes privados.
  3. Por fim, os estudantes devem analisar as violências sofridas que são específicas da condição das mulheres.

Na segunda aula, cada grupo deve apresentar à turma as reivindicações das trabalhadoras rurais e as violações dos direitos humanos cometidas por agentes públicos e privados que encontrou em seu conjunto temático. Para finalizar a etapa, é importante debater coletivamente as violências específicas que recaem sobre as camponesas.

 Bibliografia e material de apoio:

– Programa de memória dos movimentos sociais: a memória nos mobiliza (MEMOV)
www.memov.com.br/site/index.php
– Memórias da Ditadura
www.memoriasdaditadura.org.br
– Memorial da democracia
http://memorialdademocracia.com.br/card/campones-ganha-protecao-de-estatuto
– Senado Federal
https://www12.senado.leg.br/hpsenado
– Verbete Estatuto do Trabalhador Rural
www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/estatuto-do-trabalhador-rural
– Documentário “Direitos em construção permanente”
https://www.youtube.com/watch?v=52NvEea-1vQ&feature=emb_logo
– CARNEIRO, Ana; CIOCCARI, Marta. Retrato da repressão política no campo -Brasil 1962-1985. Camponeses torturados, mortos e desaparecidos. Brasília: MDA, 2011.
– GASPAROTTO, Alessandra & TELÓ, Fabricio (org.) Histórias de lutas pela terra no Brasil (1960-1980). São Leopoldo: Oikos Editora, 2021. Disponível em: http://oikoseditora.com.br/obra/index/id/1124?fbclid=IwAR04OuECRHKUl7GpimWRK7o3k4sKbevm4GhXAuKenbKLZT8sWTwUCbDmIcs
– GRYNSZPAN, Mario. Da barbárie à terra prometida: o campo e as lutas sociais na história da República. In: GOMES, A. C, PANDOLFI, D. C., ALBERTI, V. A República no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: CPDOC, 2002.
– MOTTA, Rodrigo P. Sá. Jango e o golpe de 1964 na caricatura. Rio de Janeiro: Zahar. 2006.

1 Professora de História do Colégio de Aplicação da UFRJ
2 Professora de História da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro e Pesquisadora do LEHMT-UFRJ


Crédito da imagem de capa: Trabalhadores do campo. https://memoria.ebc.com.br/cidadania/2015/08/trabalhadores-do-campo-foram-vitimas-de-grilagem-na-ditadura-diz-pesquisadora: Acesso em 03/04/2021


Chão de Escola

Nos últimos anos, novos estudos acadêmicos têm ampliado significativamente o escopo e interesses da História Social do Trabalho. De um lado, temas clássicos desse campo de estudos como sindicatos, greves e a relação dos trabalhadores com a política e o Estado ganharam novos olhares e perspectivas. De outro, os novos estudos alargaram as temáticas, a cronologia e a geografia da história do trabalho, incorporando questões de gênero, raça, trabalho não remunerado, trabalhadores e trabalhadoras de diferentes categorias e até mesmo desempregados no centro da análise e discussão sobre a trajetória dos mundos do trabalho no Brasil.
Esses avanços de pesquisa, no entanto, raramente têm sido incorporados aos livros didáticos e à rotina das professoras e professores em sala de aula. A proposta da seção Chão de Escola é justamente aproximar as pesquisas acadêmicas do campo da história social do trabalho com as práticas e discussões do ensino de História. A cada nova edição, publicaremos uma proposta de atividade didática tendo como eixo norteador algum tema relacionado às novas pesquisas da História Social do Trabalho para ser desenvolvida com estudantes da educação básica. Junto a cada atividade, indicaremos textos, vídeos, imagens e links que aprofundem o tema e auxiliem ao docente a programar a sua aula. Além disso, a seção trará divulgação de artigos, entrevistas, teses e outros materiais que dialoguem com o ensino de história e mundos do trabalho.

A seção Chão de Escola é coordenada por Claudiane Torres da Silva, Luciana Pucu Wollmann do Amaral e Samuel Oliveira.

O golpe contra os trabalhadores – Paulo Fontes

O inédito espaço político conquistado por lideranças sindicais incomodava e amedrontava. O golpe de 1964 foi, sobretudo, um golpe contra os trabalhadores.

Em recente editorial no qual reconhece que o apoio ao golpe de 1964 foi um erro, o jornal O GLOBO justifica de forma reveladora que seu entusiasmo com a queda do governo de João Goulart era devido ao temor da instalação de uma suposta “República Sindical” no país. A retórica anticomunista e a histeria conservadora que contagiavam vastos setores das classes médias e altas tinham um alvo claro: o crescimento da organização de operários e de vastos setores populares nas cidades, bem como a impressionante mobilização de camponeses nas zonas rurais. O inédito espaço político conquistado por lideranças sindicais incomodava e amedrontava. O golpe de 1964 foi, antes de tudo e sobretudo, um golpe contra os trabalhadores e suas organizações.

A presença pública e as lutas por direitos dos trabalhadores brasileiros, intensas desde o final da II Guerra Mundial, atingiriam seu ápice no início da década de 1960. Os sindicatos foram os principais vetores da organização popular naqueles anos. Mas tal mobilização também ocorria através de associações de moradores e espaços informais, como clubes de bairros e instituições culturais. Estudos recentes mostram que, ao contrário do que se supunha, a presença sindical nos locais de trabalho se fortalecia. No campo, a emergência das Ligas Camponesas, e suas demandas por uma Reforma Agrária transformadora, surpreendeu o país e colocou os trabalhadores rurais no centro do cenário político.

Trabalhistas, católicos, comunistas, janistas, entre diversas outras forças políticas, disputavam e formavam alianças no interior deste movimento. Greves, protestos e uma linguagem marcadamente nacionalista e reformista embalavam reivindicações por transformações estruturais e pela conquista de direitos desde sempre negados, como a lei do 13º salário e a sindicalização no campo.

Em um contexto marcado pela Guerra Fria e pelos impactos da Revolução Cubana, esta presença pública dos trabalhadores significava, para muitos, a antesala do comunismo. A desenvoltura com que lideranças camponesas e dirigentes do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) se aproximavam do governo e do presidente Jango (nunca perdoado por cultivar essas “relações perigosas”) era particularmente execrada. A visibilidade desta aliança no famoso comício da Central do Brasil no dia 13 de março foi a gota d’água para os grupos conservadores e golpistas. Apesar da intensa campanha contra o governo, pesquisas de opinião então realizadas, e durante muito tempo ocultadas, mostram que a maioria da população apoiava Jango e suas reformas.

O golpe acabou com tudo aquilo. E surpreendeu muitos dirigentes sindicais, radicalizados e demasiadamente confiantes na sua influência política e poder de mobilização. Para os vitoriosos, era primordial destruir a “hidra comunista e trabalhista”. Sindicatos em todo o país foram invadidos, sofreram intervenções governamentais e tiveram seu patrimônio dilapidado. Suas lideranças foram presas, caçadas e, algumas, assassinadas. A ditadura foi dura desde seu primeiro dia.

Entidades empresarias, como a FIESP, celebraram a nova era. A queda do governo foi a senha para a revanche patronal. Milhares de trabalhadores foram demitidos e, devido à proliferação das infames “listas negras”, tiveram enormes dificuldades para encontrar novos empregos. A aliança entre empresários e o DOPS que, como historiadores já demonstraram, vinha de longe, tornou-se ainda mais sólida e disseminada. Um clima de medo e perseguições passaria a dominar o interior das empresas. No campo, um número ainda não calculado de trabalhadores rurais foi expulso de suas comunidades e muitos foram mortos por milícias privadas e capangas a serviço de latifundiários.

Uma política econômica antitrabalhista proibiu greves, comprimiu salários, acabou com a estabilidade no emprego, facilitando demissões e a rotatividade da mão de obra. Seu impacto foi tão grande que o ditador Castello Branco viu-se obrigado a reiteradamente repetir, em vão, que “a Revolução não era contra os trabalhadores”. O deliberado enfraquecimento dos sindicatos facilitou em muito a superexploração do trabalho, uma das marcas do regime, que faria do país o campeão mundial em acidentes e mortes no trabalho no início dos anos 1970.

A mesma ditadura que tanto reprimiu e controlou os sindicatos e organizações populares chegaria ao fim, em grande medida, pela força e mobilização dos trabalhadores. Fruto de uma persistente resistência cotidiana e de transformações de vulto na sociedade brasileira, as grandes greves que, a partir do ABC paulista, tomaram conta do país, clamaram novamente por justiça e democracia. Ao mesmo tempo revitalizaram o sindicalismo e deixaram marcas presentes até hoje em nossa vida política e social.

No entanto, ainda sabemos pouco sobre a história dos trabalhadores durante a Ditadura Civil-Militar. Boa parte do interesse dos estudiosos sobre o período concentrou-se em outros grupos sociais e temas, o que se reflete na literatura e na programação dos numerosos eventos que analisam os 50 anos do golpe.

Felizmente, este quadro começa a mudar. Neste sentido, a abertura dos arquivos governamentais, incluindo o do Ministério do Trabalho, cuja documentação apodrece, sem cuidado algum, em um prédio da periferia de Brasília, é um passo fundamental. E sem dúvida, o relatório final da Comissão Nacional da Verdade poderá ter um papel decisivo neste encontro do Brasil com sua história.

Passeata celebra criação do Comando Geral dos Trabalhadores no Rio de Janeiro em agosto de 1962.
Fonte: Memorial da Democracia.

Artigo publicado originalmente em Carta Maior em 14/04/2014:

Crédito da imagem de capa: Passeata durante a “Greve dos 700 mil” em São Paulo em outubro de 1963. Fonte: Memorial da Democracia

Paulo Fontes é professor do Instituto de História da UFRJ e pesquisador produtividade do CNPq. É o coordenador do LEHMT-UFRJ e o atual diretor da Universidade da Cidadania da UFRJ.

#Live Labuta: Os trabalhadores e os 80 anos da CSN – com Maria Conceição do Santos e Marcos Aurélio Gandra

No dia em que a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) completa 80 anos, 9 de abril de 2021, o Laboratório de Estudos de História dos Mundos do Trabalho (LEHMT-UFRJ) convida Maria Conceição do Santos e Marcos Aurélio Gandra para debater a história dos trabalhadores e trabalhadoras na trajetória da empresa símbolo do nacional-desenvolvimentismo no país.

Maria Conceição do Santos é ativista dos direitos humanos e do movimento feminista nos, ex-funcionária da CSN, é pós-graduada em direitos humanos pela PUC-Rio.

Marcos Aurélio Gandra é professor do curso de Serviço Social do Centro Universitário de Volta Redonda (UNIFOA) e da Rede Pública Municipal de Ensino de Piraí-RJ. É doutorando em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e foi pesquisador-colaborador da Comissão Municipal da Verdade “Dom Waldyr Calheiros” (CMV-VR).

O debate será mediado por Leonardo Ângelo da Silva, doutor em História pela UFRRJ e pesquisador do LEHMT- UFRJ.

Anotem: dia 09/04/2021 no Labuta, canal do LEHMT no Youtube.

O público poderá participar pelo Chat!

Contribuição Especial #19: Beatriz Loner: uma historiadora dos mundos do trabalho, das emancipações e do pós-abolição

Contribuição especial de Fernanda Oliveira¹

Beatriz Ana Loner nos deixou há 3 anos, mais precisamente em 29 de março de 2018, depois de um longo período de luta em que manteve o olhar crítico e acolhedor para as novas pesquisas e para as que pretendia dar sequência tão logo saísse do hospital. Esse momento não chegou, mas o ponto de partida dessa escrita não faz jus a fundamental contribuição para a historiografia brasileira e mesmo da região do Prata dessa historiadora social, dos mundos do trabalho, das emancipações e do pós-abolição. Utilizando uma expressão corporal da própria Beatriz, é tempo de baixarmos os óculos e erguermos a cabeça com o objetivo de olhar para partes de uma importante experiência marcada por engajamento político, ora nas associações de classe, representação acadêmica e salas de aula, quanto por uma extensa produção que aliou história e sociologia pela lente atenta de uma história da sociedade, para parafrasear uma de suas referências, Eric Hobsbawm, a saber, por meio do aporte da História Social. 

Beatriz nasceu em 1952, na cidade de Bento Gonçalves (RS). Era filha de imigrantes italianos recém chegados ao Brasil. Graduou-se em História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul no início dos anos 70 e,  no final daquela década, iniciou o  mestrado em história na Unicamp.  Em 1985 defendeu a dissertação intitulada “O partido Comunista do Brasil e a linha do Manifesto de Agosto: um estudo”.

A historiadora compôs o grupo que criou a primeira seção do grupo de trabalho Mundos do Trabalho, em 1999 no Rio Grande do Sul, e que na sequência, junto do grupo criado posteriormente em São Paulo, fundou a seção nacional do referido GT junto à então Associação Nacional de Professores Universitários de História (ANPUH). Momentos que coincidem com a defesa de sua tese de doutorado em sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A pesquisa empírica de fôlego aliada à sofisticada análise teórica ancorada na história social britânica uniu a um só tempo as linhas mestras das duas ciências irmãs – história e sociologia – as quais compunham a base de formação da licenciada e mestre em história que então doutorava-se em sociologia. O fez enfrentando problemas caros a ambas as ciências, a saber uma investigação concentrada nas experiências e relações sociais de operários de Pelotas e Rio Grande entre 1888 e 1930, explicitando a construção de classe.

Foi por meio dessa pesquisa, transformada em livro em 2001, que Loner nos evidenciou um sul do país com expressiva presença negra entre os operários, cuja experiência permitia refletir sobre as memórias da escravidão e as experiências de um mundo de trabalho livre naquelas duas cidades cujas economias haviam se fortalecido em virtude da exploração da mão de obra escravizada. Simultaneamente evidenciava a composição plural do operariado, ainda que não fosse composto pelos clássicos operários, principalmente no que tange aqueles envolvidos nas organizações sindicais, os imigrantes europeus e seus descendentes também estavam ali. A observação dessa pluralidade que lhe fez atentar para as divisões internas à classe, como evidencia-se sobretudo no capítulo 5, intitulado Associações negras. Ao observar o processo de formação da classe operária a partir de lideranças sindicais e outros operários evidenciava o papel do preconceito e da discriminação enfrentada por negros. Tais enfrentamentos estavam na base do desenvolvimento de uma rede associativa, entendida enquanto estratégia de luta por direitos, tanto como trabalhadores como de resistência aos processos tão caros a sociedade branca sulina em um momento de grandes transformações políticas e sociais. 

Beatriz Lorner foi a primeira  Coordenadora Nacional do GT Mundos do Trabalho. Em 2002, organizou a I Jornada Nacional de História do Trabalho, realizada em Pelotas no ano de 2002, considerada um momento decisivo na definição e articulação desse campo de estudos como o conhecemos hoje. Neste momento Beatriz já completava mais de uma década como professora da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), no curso de História. No entanto, sua trajetória docente vinha de muito antes, como professora do ensino básico público do estado do Rio Grande do Sul. Tais experiências moldaram a professora de História do Brasil e Teoria e Metodologia da História, responsável por dinâmicas de sala de aula que envolviam formação de senso crítico por meio de compartilhamento de saberes assentados em textos teóricos e de conteúdo histórico que mobilizavam discussões acaloradas. Não são raros alunos e alunas que recordam das discussões em torno dos pilares da escrita da história, da importância da metodologia e dos embates entre intelectuais, tanto por meio dos textos acadêmicos quanto por meio de artigos na imprensa brasileira, como os embates entre Silvia Lara, Sidney Chalhoub e Jacob Gorender no início dos anos 1990. Tais discussões apontavam também para as grandes questões que se colocaram no campo historiográfico da história da escravidão e da formação dos mundos de trabalho livre no Brasil.

Por entre tantos meandros de pura efervescência do conhecimento historiográfico no Brasil Beatriz dava início a outra forma de problematizar a experiência negra em tempos de liberdade, inclusive ao propor uma análise do associativismo negro para observar esses processos de hierarquização, mas também de resistência e de existência. Estes resultados desdobraram-se em muitas outras pesquisas, cada vez mais relacionadas com a experiência negra. Não raras vezes envolviam sua principal parceira acadêmica a também historiadora e amiga de longa data, Lorena Almeida Gill, e seus tantos alunos e alunas, dentre as quais felizmente me incluo. A Bia, como a chamávamos depois de vencida a barreira da mulher forte e temida por nós enquanto jovens estudantes, nos possibilitava percorrer os meandros dessa história com classe, raça e gênero. Ora percorrendo trajetórias de alguns daqueles sindicalistas negros, aos moldes dos irmãos Antonio Baobad e Rodolfo Xavier e de membros da família Silva Santos e das trajetórias coletivas como as da sociabilidade negra no extremo sul, ora extrapolando os limites das fronteiras nacionais e de gênero, para investigar as experiências de mulheres negras na fronteira entre o Brasil e o Uruguai. Com isso teceu redes intelectuais com pesquisadores uruguaios e argentinos de forma a também contribuir para as discussões acadêmicas dos países hermanos, não sem também se permitir repensar e agregar conhecimentos novos. 

Fora assim, entre projetos coletivos, sala de aula, pesquisas e apostas em projetos políticos partidários que reposicionassem o lugar dos trabalhadores e das trabalhadoras que Beatriz, que havia participado da fundação do Partido dos Trabalhadores, articulou as pontes de pesquisa historiográfica daquilo que viria a se delinear como campo do pós-abolição. Suas pesquisas já haviam apontado para a importância da experiência de liberdade geracional entre trabalhadores negros, salientando que as emancipações eram valorizadas pelos sujeitos negros. Por sua vez, os descendentes de escravizados, que carregavam em si a memória da escravidão, por vezes não vivida por si, mas combatida, apareciam como os operários por excelência. E tudo isso só fora possível por uma imersão constante nas fontes empíricas. Era assim que Beatriz equilibrava rigor teórico e metodológico no fazer historiográfico, e repassava isso às novas gerações. Principalmente por meio da experiência do Núcleo de Documentação Histórica (NDH-UFPEL), fundado em 1990. Projeto de uma vida dedicado à salvaguarda de acervos institucionais, como o da própria UFPEL e mais recentemente da Delegacia Regional do Trabalho e não menos importante também junto à Biblioteca Pública Pelotense, na qual desenvolveu projetos junto ao arquivo histórico e a hemeroteca. A professora Beatriz Loner está homenageada junto ao nome do NDH-UFPEL.  

Sua produção foi constante, e eu não me arriscaria a fazer um mapeamento nesse espaço, mas destaco para além dos textos, muitos dos quais de fácil acesso nos periódicos nacionais ou mesmo nos livros de referência, a sua atuação coletiva em defesa da pesquisa histórica e da formação de jovens cientistas sociais, historiadoras e historiadores. Isto pode ser acompanhado ao lançarmos um breve olhar para a aposentadoria de Beatriz, que aconteceu em 2011. Naquele momento ela passa a atuar como professora visitante da Universidade Federal de Santa Maria, onde permanece por dois anos. No entanto, sua passagem foi profícua o suficiente e serviu de estímulo para que um grupo de jovens estudantes de história criasse o Grupo de Estudos do Pós-Abolição, formalmente institucionalizado em 2016.

Em 2013 Beatriz participou da fundação do Grupo de Trabalho Emancipações e Pós-Abolição também junto a ANPUH, sem que isso significasse um afastamento dos Mundos do Trabalho. Aliás, bem pelo contrário. Beatriz era dessas intelectuais que constroem pontes, que estimulam trajetórias, que carrega consigo o ideal de que um dia a sociedade brasileira seja mais justa e de fato democrática. Não à toa a família de Beatriz, especialmente seu companheiro de uma vida José Bernardo e as três filhas Mariana, Lúcia e Eleonora, optaram por esperar para informá-la sobre o golpe sofrido pela presidenta Dilma Roussef em 2016. Aqueles já eram tempos sombrios demais para aquela intelectual que mesmo no hospital seguia lendo e se preparando para seguir na ativa tão logo saísse do hospital, como muitas e muitos de nós puderam presenciar quando do lançamento da 2º edição de Construção de Classe, que aconteceu em novembro de 2017 já nas dependências do hospital em que ela estava internada, mas que contou com sua presença e suas considerações.

Lançamento da 2ª edição de Construção de Classe (Porto Alegre. 2017). 
Da esquerda para a direita na frente: Micaele Scheer (UFRGS/GT Mundos do Trabalho-RS); Lorena Almeida Gill (NDH-UFPEL), Beatriz Ana Loner e Silvia Petersen (UFRGS)
Da esquerda para a direita atrás: Melina Perussatto (UFRGS/GT Mundos do Trabalho-RS/GT Emancipações e Pós-Abolição-RS), Fernanda Oliveira (UFRGS/ GT Emancipações e Pós-Abolição-RS)
Fonte: Acervo pessoal de Fernanda Oliveira.

Beatriz nos deixou no ano seguinte, mas seus textos bem como seu exemplo de intelectual rigorosa no trato com as fontes e com o aporte teórico, está na base da formação de um grupo de cientistas sociais, historiadoras e historiadores que hoje ocupa as salas de aula de todos os níveis de ensino no Brasil. Está também no cerne das discussões que hoje nos permitem observar a atualidade dos problemas históricos presentes nas pesquisas tanto dos mundos do trabalho quanto das emancipações e pós-abolição. Que sejamos capazes de seguir a mensagem que se fortaleceu nos últimos projetosproduções coletivas em que Beatriz se engajou e assim possamos construir pontes ao invés de muros.

*Agradecimento especial à Eleonora Loner e Vilma Norma Loner pelas informações orais gentilmente fornecidas.

¹ Professora do Departamento de História da UFRGS

Referências:
CHALHOUB, Sidney. “Gorender põe etiquetas nos historiadores”. Folha de São Paulo, 24/11/1990, Caderno Letras.
GORENDER, Jacob. “Como era bom ser escravo no Brasil”. Folha de São Paulo, 15/12/1990, Caderno Letras.
LARA, Sílvia H. “Gorender escraviza história”. Folha de São Paulo, 12/01/1991, Caderno Letras.
LONER, Beatriz. Construção de classe: operários de Pelotas e Rio Grande. Pelotas: Editora da UFPel, 2001. [2ª edição em 2016]
LONER, Beatriz Ana. A rede associativa negra em Pelotas e Rio Grande. In: SILVA, Gilberto Ferreira da; SANTOS, José Antônio dos; CARNEIRO, Luiz Carlos da Cunha. RS negro: cartografias sobre a produção do conhecimento. Edipucrs, 2008.
LONER, Beatriz Ana. Antônio: de Oliveira a Baobad. In: GOMES, Flávio; DOMINGUES, Petrônio. Experiências da Emancipação: biografias, instituições e movimentos sociais no pós-abolição (1890-1980). Selo Negro Edições, 2011.
LONER, Beatriz Ana; GILL, Lorena Almeida; MAGALHÃES, Mario Osório. Dicionário de história de Pelotas. Universidade Federal de Pelotas, 2017.
KOSCHIER, Paulo Luiz Crizel; GILL, Lorena Almeida. A família Silva Santos e outros escritos: escravidão e pós-abolição ao sul do Brasil. São Leopoldo: Casa Leiria, 2019.
MENDONÇA, Joseli; MAMIGONIAN, Beatriz; TEIXEIRA, Luana. Pós-abolição no Sul do Brasil: associativismo e trajetórias negras. Salvador: Sagga, 2020.


Crédito da imagem de capa: Beatriz Ana Loner (2015). Fonte: Redes sociais.

Artigo “Ferreiros, ‘escravos operários’ e metalúrgicos: trabalhadores negros e a metalurgia na cidade do Rio de Janeiro e na microrregião Sul Fluminense (Século XIX e XX)” – Thompson Clímaco e Antonio Bispo

As discussões historiográficas acerca do pós-abolição e a constituição dos mundos do trabalho fabril não são recentes no Brasil, bem como a compreensão da mão de obra escravizada, anteriormente, como trabalhadora. No entanto, novas pesquisas e abordagens visam reexaminar essas aproximações entre a classe trabalhadora oitocentista e classe trabalhadora fabril no século XX como o artigo “Ferreiros, ‘escravos operários’ e metalúrgicos: trabalhadores negros e a metalurgia na cidade do Rio de Janeiro e na microrregião Sul Fluminense (Século XIX e XX)” de Thompson Clímaco, graduando em história pela UFRJ e pesquisador do LEHMT-UFRJ e Antonio Bispo, mestre em História Comparada pela UFRJ. 

Neste texto, a cidade do Rio de Janeiro e a microrregião Sul Fluminense são mobilizadas visando uma nova perspectiva em torno da construção dos espaços de trabalho e classe operária entre os séculos XIX e XX. Por meio da análise dos locais de trabalho, da construção dos lugares de memória, territórios e processos históricos. Clímaco e Bispo Neto analisam experiências de trabalhadores negros que deram sentidos diversos, àqueles espaços, criando e recriando memórias, costumes e práticas. 

Ademais, os historiadores também buscam destacar possíveis permanências na divisão de trabalho interna das fábricas, dentre elas: insalubridade, remuneração e autonomia – num contexto de negociação e conflito – dos proletários negros. Assim como suas experiências migratórias em busca de trabalho nas fábricas e a construção de sociabilidade fora delas, nas primeiras décadas do século XX.

O artigo compõe o dossiê “Mundos do Trabalho”, organizado pelas doutorandas Clarisse Pereira (UFF) e Heliene Nagasava (CPDOC/FGV) na revista Cantareira da Universidade Federal Fluminense (UFF). 

Para conferir o texto, acesse: https://periodicos.uff.br/cantareira/article/view/44525

Créditos da imagem de capa: Centro de Memória do Sul Fluminense (CEMEFS).  Metalúrgicos da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) na oficina. Volta Redonda, 1947.

Contribuição especial #18: A Comuna de Paris de 1871 e os trabalhadores

Contribuição especial de Claudio Batalha¹

Este ano comemoram-se 150 anos da Comuna de Paris, descrita como a primeira experiência do poder operário. Porém, afinal o que foi a Comuna de Paris?

A França vinha de sofrer contínuas derrotas na Guerra Franco-Prussiana, iniciada em julho de 1870, com a captura em setembro do Imperador Napoleão III, pela coligação de estados alemães sob liderança da Prússia, levando ao fim do Segundo Império e ao reestabelecimento da República com um governo provisório de defesa nacional. O novo governo tenta a qualquer preço obter um acordo de paz com os alemães, mas encontra resistência de alguns setores, particularmente em Paris do Comitê Central dos 20 arrondissements (circunscrições administrativas da cidade), que reúne forças paramilitares como a Guarda Nacional. Em janeiro de 1871, Paris, sitiada pelos alemães, começa a ser bombardeada. No mês seguinte o recém-nomeado chefe do novo governo Auguste Thiers obtém um armistício provisório com os alemães, que permanecem estacionados nos arredores da capital francesa.

No dia 18 de março de 1871, tropas do governo tentam tomar os canhões que a Guarda Nacional havia posicionado em pontos estratégicos da cidade. A tentativa fracassa e eclode um motim popular, que logo se transforma em revolta. O governo foge da cidade para instalar-se na próxima Versalhes, levando consigo a administração pública. Diante da ausência de governo, o Comitê Central da Guarda Nacional (formado algumas semanas antes) assume o controle e convoca a eleição da Comuna de Paris (retomada da denominação adotada durante a Revolução Francesa para o poder municipal informal resultante da insurreição de agosto de 1792). A Comuna eleita de 1871, que funcionaria como poder legislativo e executivo, reunia forças distintas composta por neojacobinos, republicanos, membros do CCGN, membros da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), blanquistas (seguidores do revolucionário Auguste Blanqui) e uma minoria que buscava um entendimento entre a Paris revoltada e o governo refugiado em Versalhes (que não chegou a tomar posse).

Ilustração da barricada da Praça Blanche defendida por trabalhadoras em maio de 1871. Fonte: Wikimedia Commons 

A Comuna não foi planejada, é fruto de acontecimentos imprevistos e da necessidade diante do vazio de poder de garantir a defesa e a sobrevivência da população parisiense. As nove comissões colegiadas estabelecidas por ela para lidar com diferentes ramos da administração funcionaram quase como ministérios. Suas medidas em diversos campos buscaram colocar em prática propostas já defendidas por setores de esquerda, mas também projetos inovadores e inevitáveis improvisações. Entre as primeiras medidas tomadas a suspenção de pagamento dos aluguéis atrasados, o fim da conscrição (serviço militar obrigatório) e a proclamação da Guarda Nacional como única força militar na cidade, que deveria ser composta por todos os cidadãos. No campo da educação estabelece a separação entre Estado e religião, inaugura o ensino laico (em um quadro até então dominado pelo ensino confessional), público e gratuito. No trabalho, retoma medidas de 1848 como o controle dos trabalhadores sobre oficinas abandonadas por seus proprietários por meio de cooperativas de produção, a proibição do trabalho noturno de padeiros, a restituição de objetos penhorados de baixo valor. No campo militar – a despeito dos feitos de alguns comandantes e do valor de seus comandados – nunca logrou estabelecer uma organização e uma disciplina entre as tropas irregulares que reunia capazes de dar enfrentamento a um exército regular treinado, bem equipado e disciplinado como logo se formou sob as ordens do governo de Versalhes.

Cartaz com decretos da Comuna de Paris, 3 de abril de 1971. Fonte: Wikimedia Commons

O exemplo de Paris foi seguido por algumas outras cidades, particularmente no sul da França, mas essas outras comunas acabaram em pouco tempo suprimidas pelas forças governamentais. Assim Paris permaneceu isolada, cercada ao norte e ao leste pelos alemães e ao oeste e ao sul pelos versalheses. Padecendo de sérios problemas de abastecimento e sem condições para romper o cerco, surgiram crescentes dissensões internas sobre a condução da Comuna. Em 1º de maio por maioria de votos a Comuna decidiu estabelecer um Comitê de Salvação Pública (também retomando a denominação da Revolução Francesa), iniciativa apontada pela minoria como uma usurpação do poder popular e o caminho aberto para a ditadura. Duas semanas depois, a maioria decidiu que a minoria, composta sobretudo pelos membros da AIT, já não tinha direito de assento na Comuna.

No dia 21 de maio as tropas versalhesas rompem as defesas ao oeste de Paris, dando início à semana sangrenta, promovendo execuções sumárias dos defensores da cidade até o fuzilamento, no dia 28, de 147 dos últimos combatentes contra um muro no interior do Cemitério Père Lachaise no leste da capital francesa . Local que passou à posteridade como o Muro dos Federados. As vítimas entre mortos, presos e deportados chegam a 50 mil e a França permaneceu sob estado de sítio até 1876. Apenas em 1880 aqueles que conseguiram escapar da repressão e partir para o exílio puderam retornar por meio de uma anistia.

A Comuna, pelo ensaio de poder dos trabalhadores e pelo martirológio promovido pela sua supressão, tornou-se assim um evento celebrado pelo movimento operário internacional. A partir de 1880 o Muro dos Federados tornou-se um local para a rememoração anual dos mortos da Comuna. Seu exemplo, no entanto, serviu para alimentar a luta interna dentro da AIT. As duas principais facções, de um lado, o conselho geral de Londres, em que estavam Marx e Engels, e de outro lado Mikhail Bakunin, produziram belos textos de propaganda política sobre o acontecimento, buscando uma apropriação de sua memória. Em privado, ambos os lados tinham diversas reservas sobre os membros da seção parisiense da AIT, que em sua maioria não eram nem marxistas, nem bakuninistas. Os membros da seção parisiense eram majoritariamente jovens trabalhadores vindos do proudhonismo (de Pierre Joseph Proudhon), que retinham de seu inspirador o federalismo e a defesa da auto-organização dos trabalhadores (sustentada na obra póstuma do pensador), mas afastavam-se de suas posições contrárias às greves, aos direitos das mulheres e à participação política. A historiografia posterior sobre a Comuna de inspiração marxista ou anarquista, sustentou as posições públicas de seus mestres e ocultou o caráter plural e diversificado dos participantes da Comuna e o caráter original do socialismo da AIT parisiense.

A historiografia mais acadêmica, particularmente francesa, envolveu-se em uma longa controvérsia se a Comuna era a última das revoluções do século XIX ou a primeira do século XX, a Comuna como crepúsculo ou como aurora, quando talvez fosse mais apropriado buscar as duas dimensões no episódio. Uma parte da historiografia de língua inglesa buscou colocar em dúvida a dimensão operária da Comuna, enfatizando seu caráter comunitário e ligado a uma identidade de bairro, em detrimento de uma solidariedade classista, posição sustentada pelo sociólogo estadunidense Roger V. Gould. Contestado principalmente pelo geógrafo britânico David Harvey que argumenta não haver incompatibilidade entre uma identidade comunitária e uma identidade de classe e que a população parisiense era composta majoritariamente por trabalhadores. Neste ponto cabe uma explicação, que frequentemente contribui para confusões nesse debate (opondo a insurreição popular à insurreição operária), a classe operária parisiense não era composta majoritariamente por trabalhadores fabris, mas por artífices atuando em oficinas e manufaturas. A fábrica moderna ainda era um fenômeno reduzido ao leste da França no início da década de 1870. Ou seja, compreender a composição da classe operária parisiense nesse período é essencial para um entendimento da natureza da Comuna.

A Comuna hoje continua a nos desafiar por seu esforço de reorganizar o mundo mesmo sob as condições mais adversas, pelo legado de esperança e de utopia que perdura em sua história. Este ano a prefeitura de Paris prevê realizar celebrações bem mais amplas do que as habitualmente mantidas no aniversário da Comuna, ao mesmo tempo em que diversos movimentos sociais vêm buscando inspiração retórica e simbólica no acontecimento. Quem sabe a Comuna ainda tem lições a legar para as lutas sociais e para as bandeiras da esquerda do século XXI…

¹ Professor do Departamento de História da Unicamp

Referências:
ARCHER, Julian P. W. The First International in France 1864-1872. Its Origins, Theories, and Impact. Lanham, MD/Oxford: University Press of America, 1997.
BAKOUNINE, Michel. De la guerre à la Commune: textes de 1870-1871 établis sur les manuscrits originaux et présentés par Fernand Rude. Paris: Anthropos, 1972.
BOITO, Armando (org.). A Comuna de Paris na história. São Paulo: Xamã/CEMARX, IFCH-UNICAMP, 2001.
GOULD, Roger V. Insurgent Identities: Class, Community, and Protest. From 1848 to the Commune. Chicago: University of Chicago Press, 1995.
HARVEY, David. Paris, capital da modernidade. São Paulo: Boitempo, 2015.
LISSAGARAY, Prosper-Olivier. História da Comuna de 1871. São Paulo: Ensaio, 1991.
MARX, Karl. A guerra civil na França. São Paulo: Boitempo, 2011. [há várias edições]
MUSTO, Marcello (org.), Trabalhadores, uni-vos!: Antologia política da I Internacional. São Paulo: Boitempo/Fundação Perseu Abramo, 2014.
ROUGERIE, Jacques. La Commune de 1871, 4ª ed,, Paris: Presses Universitaires de France, 2009.
SAMIS, Alexandre. Negras tormentas: o federalismo e o internacionalismo na Comuna de Paris. São Paulo: Hedra, 2011.
SCHAFER, David A. The Paris Commune: French Politics, Culture and Society at the Crossroads of the Revolutionary Tradition and Revolutionary Socialism. Basingstoke, Hampshire/Nova Iorque: Palgrave Macmillan, 2005.


Crédito da imagem de capa: A Comuna de Paris, 1871. Federados ao pé da coluna Vendôme, 1º arrondissement, Paris. (Museu Carnavalet, História de Paris)

Contribuição especial #17: Beth Lobo: Feminismo e História do Trabalho

Contribuição especial de Glaucia Fraccaro¹

Existe luta feminista fora do feminismo? Os últimos textos escritos pela socióloga Elisabeth Souza Lobo tiveram o propósito de reunir numa análise única o movimento de mulheres e o movimento feminista que, nos anos 1980, pareciam estar apartados. Movimento de mulheres era uma designação que caracterizava movimentos populares, com reivindicações “socioeconômicas” e a palavra “feminista” era usada para os movimentos com ações de caráter “socioculturais”, tidas como clássicas: sexualidade, aborto e violência. A experiência relatada por uma trabalhadora rural, de Bico do Papagaio, em Tocantins, que fez parte de uma das numerosas pesquisas de Elisabeth Souza Lobo, parecia sugerir uma síntese: “Se reivindicar terra e direito à saúde for feminista, então eu sou”. Para Lobo, o sentido da igualdade entre mulheres e homens poderia assumir um conteúdo capaz de questionar as relações de dominação na família ou a divisão sexual do trabalho.

No entanto, ela não teria chegado a essa síntese sem uma valiosa trajetória política e intelectual. Elisabeth Souza Lobo nasceu em 1943, em Porto Alegre. Assim como muitos outros militantes políticos na cidade, iniciou sua atuação no movimento estudantil no Colégio de Aplicação local. Com o golpe de 1964, aderiu à Dissidência do Partido Comunista no Rio Grande do Sul e na sequência participou da fundação do POC (Partido Operário Comunista). Em 1967, ela e Marco Aurélio Garcia, com quem era casada, partiram para a França. Chegaram a voltar para o Brasil e depois foram para o Chile durante o governo da Unidade Popular liderado por Salvador Allende. No começo da ditadura de Pinochet, exilaram-se definitivamente na França. Em diferentes momentos de exílio e estudos, contribuiu com centros de pesquisas feministas em países da América Latina e Europa. Em 1979, concluiu uma tese de doutorado em sociologia na Universidade Paris VIII, sobre a ditadura militar no Brasil.

Com a Anistia, voltou ao Brasil, e envolveu-se nos movimentos sociais e políticos que discutiam amplamente o futuro democrático do Brasil. Beth Lobo, como era carinhosamente chamada por suas companheiras, fez parte do grande movimento político que marcou o final da ditadura militar e resultou na fundação do Partido dos Trabalhadores (1980) e da Central Única dos Trabalhadores (1983). Ela atuava diretamente como militante do PT e como assessora das mulheres que integravam a central sindical. Em 1986, o grupo de mulheres da CUT, que reunia sindicalistas e estudiosas, criou a Comissão Nacional sobre a Questão da Mulher Trabalhadora. Para Didice Godinho Delgado, que foi a primeira coordenadora dessa comissão, Lobo conseguiu fazer da sociologia uma ferramenta para a prática militante, conjugando pesquisas sobre mulheres e sindicalismo com sua “vinculação cidadã”.

Grupo de mulheres reunidas durante o I Congresso da Trabalhadora Metalúrgica de São Bernardo do Campo e Diadema
em 1978. Fonte: Diário do Grande ABC.

Formação política, assessoria sindical, produção de textos, campanhas políticas, pesquisas universitárias e aulas na USP e na Unicamp. Esse conjunto de tarefas fazia parte das atividades de Beth Lobo junto ao grupo de mulheres do PT e da CUT. Sua produção científica, que conjugava ciência e política foi publicada em revistas especializadas sobre estudos do trabalho e apresentada em congressos da área. Beth Lobo se debruçou, então, sobre os números e indicadores que forneciam o cenário da classe operária urbana no ABC paulista. Foi aí que ficou atenta à organização das trabalhadoras, recolheu relatos e produziu análises. Sobre as greves no ABC, no final dos anos 1970, afirmou: “As reivindicações gerais dos metalúrgicos não retomam as das operárias, a discriminação sexista permanece oculta num discurso unificador; todavia, o sindicato é seu ponto de apoio”. A partir desse texto, escrito em 1982, em parceria com Leda Gitahy, John Humphrey e Rosa Lúcia Moysés, Lobo decidiu por considerar essa contradição colocada em seus próprios termos e, ao invés de entender o mundo das mulheres como apartado do trabalho, passou a tratar do tema a partir do conceito de divisão sexual do trabalho.

A existência de uma opressão específica, na forma de uma grande massa de trabalho realizado quase que exclusivamente pelas mulheres, um trabalho invisível, feito para outros e sempre em nome da natureza, do amor e do dever maternal, se tornou evidente nos anos 1970, tanto para a sociologia quanto para os movimentos sociais. Elisabeth Souza Lobo estava na França e fazia parte do Círculo de Mulheres Brasileiras em Paris (CMB) quando esse debate tomou os grupos feministas. Diferente de outros grupos políticos formados no exílio, as feministas procuravam manter uma perspectiva mais internacional sobre a experiência das mulheres, deixando de lado as percepções confinadas nas fronteiras do Estado-nação. Por esse motivo, algumas brasileiras do CMB tomaram contato com diversas correntes de esquerda, incluindo, a Liga Comunista Revolucionária (LCR). Tratava-se de uma organização política que atuou com esse nome entre os anos 1969 e 1973, ligada a Quarta Internacional. Nessa articulação transnacional, elas procuravam compreender a experiência das trabalhadoras e duvidavam que as mulheres compunham o “exército de reserva”, diminuindo o valor da força de trabalho. O resultado desses debates apareceu em artigos de várias autoras brasileiras e francesas, em 1984, no livro francês Le Sexe du Travail. Ele foi traduzido e publicado no Brasil como O Sexo do Trabalho, em 1986, e contava com a contribuição de autoras como Danièle Kergoat e Helena Hirata.

Todas essas discussões do feminismo somadas aos fortes debates do período sobre autonomia dos movimentos sociais influenciaram profundamente as reflexões de Beth Lobo. Na conjuntura dos anos 1980, a divisão sexual do trabalho entrava de vez nas pesquisas sociológicas e no debate feminista no Brasil, tendo as mulheres da CUT como algumas de suas protagonistas. Esse campo político, integrado por Elisabeth Lobo, alterou em definitivo as leituras sobre as relações de trabalho. Ao trazer a divisão sexual para o centro da análise das relações sociais, inseriram as mulheres nos debates sobre economia e luta por direitos. Ainda assim, a história desse grupo de mulheres e de sua contribuição andam em separado quando o assunto é a história do feminismo no Brasil.

Elas demonstraram e enfatizaram a existência da luta pela emancipação das mulheres em organizações que envolvem, de forma geral, a luta por direitos. Desta forma, tornaram possível perceber a participação de mulheres comuns, trabalhadoras do campo ou da cidade, na conformação de direitos e nos sentidos de justiça social. Para Elisabeth Souza Lobo, a dominação não implicava passividade, mas também violência, ação, conflito e relações antagônicas. Ao tentar entender a resposta que as trabalhadoras forneciam, ela conseguiu compor uma trajetória que conjugou o feminismo com a classe trabalhadora. Não raro, Lobo retomava E. P. Thompson nas suas análises conduzindo a experiência das trabalhadoras como parte da história do trabalho. Reunir o que parecia estar em lugares distintos resultou numa abordagem “vista de baixo”: a consciência da ação não estava fora dela, e assim, encontrou a luta feminista mesmo quando o feminismo parecia não ser reivindicado.

Elizabeth Lobo no 1° Seminário de Formação sobre a Questão da Mulher Trabalhadora, organizado pela Comissão Nacional da Mulher Trabalhadora da CUT em conjunto com a Comissão Regional da CUT ABC, Mogi e Baixada Santista.
O Seminário foi realizado na cidade de Santo André, em maio de 1989. Fotografia de Cibele Aragão.

O artigo em que Beth Lobo analisa o feminismo no Brasil se chama “Questões a partir de estudos sobre o movimento de mulheres no Brasil” e foi apresentado num seminário da Faculdade de Educação da USP, em 1989. Quase todos os seus textos foram reunidos no livro A Classe Operária tem Dois Sexos, publicado pela primeira vez em 1991, pela Editora Brasiliense. Embora fossem ainda reflexões iniciais, o artigo trazia uma análise fundamental sobre a atuação das “vistas de baixo” na história do trabalho e do feminismo no Brasil. O livro foi uma iniciativa de companheiras e de Marco Aurélio Garcia. Ele traduziu os textos de Lobo publicados fora do país. A edição contou com a participação de Ana Maria Goldani, Helena Hirata, Leila Blass, Maria Berenice Godinho Delgado, Maria Célia Paoli e Vera Soares. Elas selecionaram os ensaios e agruparam os textos de Lobo segundo unidades temáticas.

Elizabeth Souza Lobo morreu em um acidente automobilístico na Paraíba no dia 15 de março de 1991, aos 47 anos, junto com Maria da Penha Nascimento Silva, então com 42 anos, fundadora do Movimento de Mulheres do Brejo (MMB) e da Comissão Nacional sobre a Questão da Mulher Trabalhadora da CUT. O livro já ganhou novas edições em 2011 pela Fundação Perseu Abramo e outra em 2021, fruto da parceria da mesma fundação com a Editora Expressão Popular, e pode ser adquirido gratuitamente no site da editora. O título da publicação exprime a síntese entre mundos que parecem estar separados e foi usada por Lobo quando ela escreveu a orelha da edição brasileira de O Sexo do Trabalho. A classe operária tem dois sexos, soa até hoje como uma palavra de ordem.

¹ Professora do Departamento de História da UFSC

Referências:
ABREU, Maíra. Feminismo no Exílio: o Círculo de Mulheres Brasileiras em Paris e o Grupo Latino-Americano de Mulheres em Paris. São Paulo: Alameda, 2014.
DELGADO, Didice G. “O legado de Beth Lobo”. Teoria e Debate, n. 92, 2011.
HIRATA, Helena (e outras). Dicionário Crítico do Feminismo. São Paulo: Editora da Unesp, 2009.
HIRATA. Helena. “Elisabeth Souza-Lobo, 1943-1991”. Revista BIB, n. 31, 1991.
KARTCHEVSKY, Andrée (e outras). O Sexo do Trabalho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
SOUZA-LOBO, Elisabeth. Crise de domination et dictature militaire au Bresil. Tese de Doutorado apresentada à Universidade de Paris VIII, 1979.
SOUZA-LOBO, Elisabeth. Domination et résistance: travail et quotidienneté. Paris: IRESCO, 1995.
SOUZA-LOBO, Elisabeth. Emma Goldman. São Paulo: Brasiliense, 1983.
SOUZA-LOBO. Elisabeth. A Classe Operária tem Dois Sexos. São Paulo: Brasiliense, 1991. Para baixar o livro na íntegra e gratuitamente: https://fpabramo.org.br/publicacoes/estante/a-classe-operaria-tem-dois-sexos-trabalho-dominacao-e-resistencia/


Crédito da imagem de capa: Capa do livro A Classe Operária tem Dois Sexos. São Paulo: Brasiliense, 1991.