Vale Mais é o podcast do Laboratório de Estudos de História dos Mundos do Trabalho da UFRJ. O objetivo é discutir história, trabalho e sociedade, refletindo sobre temas contemporâneos a partir da história social do trabalho.
O episódio #06 é sobre Epidemias e trabalhadores do Norte e do Nordeste.
A história da região Amazônica foi marcada por surtos epidêmicos de doenças tropicais. Esses episódios foram agravados pela pobreza, por condições sanitárias precárias e sobretudo pela demora de uma resposta de assistência por parte do Estado. Na caatinga nordestina as epidemias e doenças assolaram as obras emergenciais para combater as secas, especialmente na década 1950. Dando continuidade à nossa série que traz os temas da saúde pública e das epidemias sob a ótica dos mundos do trabalho, o foco de hoje são os trabalhadores das regiões norte e nordeste do país.
Conversamos com a historiadora Lara de Castro, professora da Universidade Federal do Amapá e presidenta da Seção Amapá da Associação Nacional de História (Anpuh).
Produção: Deivison Amaral, Julia Chequer, Heliene Nagasava e Paulo Fontes. Roteiro: Julia Chequer, Heliene Nagasava e Paulo Fontes. Apresentação: Julia Chequer e Yasmin Getirana.
Maria Célia Paoli nos deixou há pouco mais de um ano. Professora e pesquisadora do Departamento de Sociologia da USP, Maria Célia foi uma figura importante em vários sentidos: 1) como professora e formadora de gerações de pesquisadores em Ciências Sociais; 2) como intelectual pública, entre outras razões, por sua presença na equipe da Secretaria Municipal de Cultura da gestão de Luiza Erundina na cidade de São Paulo; 3) como fundadora e organizadora do Cenedic – Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania, na USP, e 4) como incansável acadêmica preocupada em abrir – mas não de caso pensado – um campo de reflexão plural e criativo sobre as classes populares e o mundo do trabalho no Brasil.
Para esse último intento, mobilizou referências múltiplas na historiografia, na literatura, na filosofia política, mas também por entre as diversas “especialidades” da sociologia. Um caleidoscópico campo de interesses, espalhados por suas publicações e por suas reflexões, partilhadas e cultivadas por todos aqueles que tinham o privilégio de privar de sua proximidade pessoal, espécie de “círculo interno” composto por alunos, colegas, intelectuais, militantes e amigos. Como arendtiana de alma que era, Maria Célia certamente não estranharia tal caracterização, nem tal termo, no fundo a consequência mais fiel do preceito célebre daquela filósofa de que a riqueza do espaço privado depende de um espaço público pujante e diverso. Por todas essas razões, estamos diante de uma interlocutora – uma “pessoa extraordinária”, parafraseando seu mestre e orientador, Eric Hobsbawm – que fala por meio de sua obra e de sua memória.
O arco de suas reflexões é vasto, cobrindo diferentes tópicos. O primeiro deles é o enquadramento das lutas sociais na passagem para um Brasil moderno. Sua tese de doutorado, “Labour Law and the State in Brazil 1930-1950”, é um diálogo crítico com a literatura sobre a formação da classe trabalhadora na sociologia brasileira, seja a uspiana, seja a isebiana-pecebista. O vasto emprego de depoimentos de trabalhadores, para o período investigado, confirma, em termos metodológicos, a inclinação para – se fosse o caso de encaixar o tipo de sociologia praticada por Maria Célia em algum ajuste disciplinar – uma sociologia histórica; adicionalmente, denuncia a preferência axiológica pelo ponto de vista dos “de baixo”. Temos aqui a presença da sugestão marcante contida na obra do historiador Edward Palmer Thompson, de quem Maria Célia era leitora apaixonada.
Não por acaso, sua participação nas bancas de pós-graduação e como referência bibliográfica obrigatória nos trabalhos acadêmicos de uma coorte de historiadores sociais da Unicamp, conhecidos por sua reavaliação crítica do populismo, é digna de nota. Teses e dissertações saídas entre a primeira metade dos anos 1990 e a primeira metade dos anos 2000 – sobretudo aquelas orientadas por Michael Hall – confirmam aquela influência. Nomes hoje reconhecidos no campo da história social do trabalho – Alexandre Fortes, Antonio Luigi Negro, Fernando Teixeira da Silva, Hélio da Costa e Paulo Fontes, membros autonomeados de uma imaginária e irônica Central Única de Historiadores (CUH) – discutiram ativamente com seu esforço de reinterpretação sociológica sobre o significado dos direitos sociais, da Justiça do Trabalho, do Estado Corporativo, e da experiência de classe. Maria Célia surgia como uma espécie de “mãe de todos” no que concerne à recepção de Thompson, contemporânea que era da apropriação criativa do historiador inglês da classe operária por estudiosos brasileiros de sua geração, muitos deles seus amigos e parceiros intelectuais, como Michael Hall, Paulo Sérgio Pinheiro, Marco Aurélio Garcia, Elizabeth Lobo, Eder Sader, Vera da Silva Telles, José Ricardo Ramalho e José Sérgio Leite Lopes, entre outros.
Seminário do Instituto Cajamar, promovido no Sindicato dos Químicos de São Paulo, 1992. Primeira fila (da direita para esquerda): Marco Aurélio Garcia, Antonio Luigi Negro, Eric Hobsbawm, Maria Celia Paoli e Alexandre Fortes. Segunda fila (da direita para a esquerda): Fernando Teixeira da Silva, Paulo Fontes, Hélio da Costa e José Sérgio Leite Lopes. Acervo Alexandre Fortes.
A cidade (veja-se o belo artigo escrito em parceria com Adriano Duarte sobre o bairro da Mooca) e a cultura, outros tópicos do interesse intelectual de Maria Célia, eram lidos principalmente a partir do motivo principal de sua obra, os mundos do trabalho. Os exemplos de lutas sociais remetem em boa medida às condições de vida do operariado urbano, as quais ensejavam reivindicações por justiça que, hoje, seriam lidas pela ótica da “luta por reconhecimento” (mas não era essa a noção empregada na época).
Uma luta eminentemente moderna em seu conteúdo – luta por justiça -, e por uma confirmação da igualdade de condições – cidadania – que estava na base do discurso formal das elites. O papel do operariado na República foi justamente o de tematizar praticamente os motivos da cidadania. As lutas saídas daquelas reivindicações falam em quebra-quebra, saques, depredações, assaltos a presídios, apedrejamentos ou empastelamento de jornais, mas também de greves e revoltas que querem comunicar algo: não apenas a persistência de uma enorme carência material, mas sobretudo a existência de um déficit de reciprocidade no suposto “contrato social” que abarca igualmente as condições econômicas de vida e de sobrevivência. Maria Célia vai coletando aqui e ali os exemplares da revolta e da inquietação popular e seus motivos, suas razões, para então interpretá-los como indícios de uma atividade política com toda a sua legitimidade.
Argumentos econômicos e argumentos políticos se misturam em um amálgama que procura entender os conflitos e as reivindicações populares. Um direito – outro termo da gramática da modernidade – existente até então apenas no papel (pensado pelas elites para o povo) é apropriado, vivido e experimentado pelas classes populares, seu destinatário ideal. A justiça do papel encontra o seu ator na prática. Aqui, um outro tema caro à autora: a desproteção e o sentimento de abandono e desamparo, coletivamente vividos. Nesse sentido, a Justiça do Trabalho encerra ao mesmo tempo um pilar estrutural da desmobilização da auto-organização operária, por um lado, e simultaneamente um horizonte de proteção contra o arbítrio patronal e estatal, por outro lado, para quem acorrem aqueles que vão “buscar os seus direitos”, como ela gostava de lembrar. Um papel, portanto, dúbio, ambíguo dessa instituição. Tal ideia perseguiu muitas das formulações da autora, afastando-a de um tratamento esquemático em termos de oposição entre Estado versus Sociedade Civil, com uma abordagem sociológica centrada no conflito de classes que se faz e refaz nos próprios termos do conflito.
Estreitamente ligados aos tópicos acima pincelados estão os famosos balanços bibliográficos da produção acadêmica sobre a classe operária brasileira (escritos em parceria com Eder Sader e Vera Telles), datados dos meados dos anos 1980, passagem obrigatória por todos aqueles que iniciavam seus estudos sobre o tema. Essas resenhas, assim como outros artigos da mesma época, são o resultado da maturação da tese doutoral, cuja intuição de base persiste como uma linha diretriz. Essa última pode ser sintetizada na questão seguinte: como é possível, diante de tanta violência acumulada das classes dominantes e do Estado, a constituição, no Brasil, de uma esfera pública verdadeiramente moderna? Daí o fascínio das lutas sociais da Primeira República, quando os anarquistas, socialistas e comunistas de primeira hora se comportavam como os pedagogos da diferenciação moderna que os “de cima” eram incapazes de oferecer. Esse papel pedagógico do operariado teria continuado mesmo depois de 1930, com a existência do aparato controlador do Estado. Afinal, a história da classe trabalhadora (dos “de baixo”) não coincide necessariamente com a história das classes dominantes sobre a classe trabalhadora (a “fala dos outros”). Eram indicações de uma história muito mais mitigada e rica do que as versões oriundas de documentos ou resoluções das lideranças. Mas havia também, do outro lado, ação, que é a base, a seiva vital da política – e por aí encontramos o fio que ata a inspiração da filosofia política de Hannah Arendt com a versão das classes sociais de Edward Thompson (a classe é aquilo que ela faz, e essa é a sua única definição).
Anos mais tarde, quando da fundação do Núcleo (depois Centro) de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) em 1995, deu-se o momento do confronto com a produção de Francisco de Oliveira. Ali está a chave de como se complementam a reflexão sobre a classe trabalhadora na formação do espaço público democrático e o papel do assalariamento na constituição de uma contratualidade de tipo “socialdemocrata”, tal como concebida, à época, por aquele autor. A terminologia, polêmica, é menos importante do que o significado que ele queria designar na ocasião: o sentido da contratação coletiva como índice da tendência estrutural do capitalismo avançado em socializar a riqueza na forma do chamado “fundo público”. Por conseguinte, ficava claro que os direitos de cidadania no Brasil, então perseguidos pelos movimentos sociais e pelo movimento operário em particular (a referência histórica era o “novo sindicalismo”), correspondiam ao que Chico de Oliveira chamava de “direitos do anti-valor”. Ora, uns e outros (os direitos de cidadania e os direitos do anti-valor) tinham de fazer a prova dos nove, isto é, de como se processariam em um contexto não mais posto pela teoria da modernização, mas pelo desenvolvimento desigual que a globalização e o neoliberalismo só pareciam agudizar. Esse episódio vai nutrir a trajetória intelectual do Cenedic a partir de então, com a problemática do “desmanche” do ideal de desenvolvimento nacional e de uma “completude” do “incompleto”.
Essa nova agenda incluía, por exemplo, as questões da reestruturação produtiva, do mercado de trabalho (a terceirização, por exemplo), da violência familiar como produto de uma vida precarizada, dos bairros e da sociabilidade comunitária num ambiente de desemprego, dos sentidos de justiça e reciprocidade nos movimentos sociais, até chegar, por fim, na temática da responsabilidade social do empresariado, um assunto de que ela não chegou a tratar de forma sistemática.
Juízos como esses só são possíveis por aqueles que leram – e admiraram – os escritos de Maria Célia; aqueles que aprenderam que sua forma de pensar, sendo mais difícil, tinha também um acabamento menos óbvio e mais duradouro.
Já no final, na última vez em que nos encontramos, suas palavras e sentidos ziguezagueavam bem livres em piruetas no ar. Sabe o que foi que ela me disse antes de nos despedirmos? Ela cantarolou um sambinha de Noel.
Maria Célia Paoli, pessoa extraordinária.
Maria Célia Paoli. Acervo Folha de São Paulo.
¹ Professor do Departamento de Sociologia da USP.
Artigos e livros selecionados de Maria Célia Paoli Desenvolvimento e Marginalidade: um Estudo de caso. São Paulo: Pioneira, 1974. “Labour Law and the State in Brazil 1930-1950”. PhD University of London, 1988. (com Eder Sader e Vera da Silva Telles) “Pensando a Classe Operária: os Trabalhadores Sujeitos ao Imaginário Acadêmico (Notas de uma Pesquisa)”. Revista Brasileira de História 6, 1984, p. 129-149. (com Eder Sader) “Sobre as Classes Populares no Pensamento Sociológico Brasileiro” in Ruth Cardoso, A Aventura Antropológica. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. “Os Trabalhadores Urbanos na Fala dos Outros. Tempo, Espaço e Classe na História Operária Brasileira” in José S. Leite Lopes (coord.) Cultura & Identidade Operária. Aspectos da Cultura da Classe Trabalhadora. Rio de Janeiro: Marco Zero/Editora UFRJ, 1987. “Trabalhadores e Cidadania: a Experiência do Mundo Público na História do Brasil Moderno”. Estudos Avançados 3 (7), 1989, p. 40-66. “São Paulo Operária e suas Imagens (1900-1940)”. Espaço & Debates 33: Temporalidade: Memória e Cotidiano da Cidade. São Paulo, 1991, p. 27-41. “Citizenship, Inequalities, Democracy and Rights: The Making of a Public Space in Brazil”. Social and Legal Studies 1 (2), June 1992, p. 131-142. “Os Direitos do Trabalho e sua Justiça: em busca das referências democráticas”, São Paulo: Revista da USP, 1994, p. 100-115. (com Vera da Silva Telles) “Social Rights: Conflicts and Negotiations in Contemporary Brazil” in Sonia E. Alvarez, Evelina Danigno and Arturo Escobar (eds.) Cultures of Politics, Politics of Cultures: Re‑visioning Latin American Social Movements. Boulder, CO.: Westview Press, 1998. (com Adriano Duarte) “São Paulo no Plural: Espaço Público e Redes de Sociabilidade” in Paula Porta (ed.) História da Cidade de São Paulo. A Cidade na Primeira Metade do Século XX (1890-1954). Volume 3, São Paulo: Paz e Terra, 2004. “O Mundo do Indistinto: Sobre Gestão, Violência e Política” in Francisco de Oliveira e Cibele Rizek (orgs.) A Era da Indeterminação. São Paulo: Boitempo, 2007.
Crédito da imagem de capa: Maria Célia Paoli (entre Vera da Silva Telles e Marilena Chauí) no seminário A Construção Democrática em Questão na USP, final dos anos 1990.
Adelle Sant’Anna, mestranda no Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ e pesquisadora do LEHMT, publicou o artigo “História social do trabalho: Thompson, Sader, Fontes e Silva” na edição mais recente da revista Outrora, periódico discente dos alunos da graduação do Instituto de História da UFRJ. O artigo apresenta trajetórias teóricas e políticas de quatro intelectuais que contribuíram para o campo da história social do trabalho: Edward Palmer Thompson, Éder Sader, Paulo Fontes e Leonardo da Silva.
“Aqui, da trincheira da produção, da nossa trincheira sindical, tudo faremos, a fim de apressar o dia da vitória final”.
Foi com esse entusiasmo que dirigentes sindicais do Rio Grande do Norte se dirigiram às tropas da Força Expedicionária Brasileira (FEB), em 22 de janeiro de 1945. A expressão “trincheira da produção”, também utilizada em outras regiões do país, não se referia apenas ao apoio dos trabalhadores à luta contra o nazifascismo durante a Segunda Guerra Mundial, mas também às suas privações cotidianas durante o conflito. Enquanto a FEB lutava na Itália, os “soldados da produção” trabalhavam intensamente nas fábricas, convocados ao sacrifício em prol da pátria. Esse discurso nacionalista adquiriu enorme força, mexeu com o país e potencializou uma dinâmica incontrolável de mobilização popular, com evidente protagonismo da classe trabalhadora.
Quando submarinos alemães abateram navios brasileiros, em agosto de 1942, no litoral nordestino, causando a morte de centenas de pessoas, houve manifestações em diversos pontos do país exigindo que o governo declarasse guerra ao Eixo. Desde então, inúmeras campanhas foram iniciadas, com apoio de trabalhadores, sindicatos, clubes esportivos e jornais, buscando angariar fundos para o Brasil frente ao conflito. Operários das cinco fábricas da Companhia América Fabril, por exemplo, ofereceram uma boa quantia em dinheiro para a Campanha Nacional de Aviação, que pretendia doar aviões ao Território do Acre. O Sindicato dos Metalúrgicos de Porto Alegre, em parceria com o Sindicato dos Ferroviários e a Rádio Farroupilha, promoveu a campanha “Asas para o Brasil”, com doação de recursos para ofertar um avião à Força Aérea. Uma campanha semelhante foi organizada pelo clube de futebol Vasco da Gama. Em Belo Horizonte, uma campanha previa doar navios à Marinha. Todas essas mobilizações tinham como propósito “vigiar e patrulhar as costas do Brasil” contra os “corsários do mal”.
Com a repercussão do afundamento dos navios brasileiros, o governo Getúlio Vargas declarou guerra aos países do Eixo. Além de organizar a FEB e enviar tropas para o front, com o reforço de muitos “pracinhas operários”, foi estabelecido no país o “esforço de guerra”, que combinava incremento da produção nacional com suspensão de direitos trabalhistas. Em certos casos, operários eram tratados como reservistas militares, passíveis de punições equivalentes à falta ou deserção ao serviço. Convém ainda lembrar que a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), promulgada em 1º de maio de 1943, não pôde ser aplicada plenamente nas empresas incluídas no esforço de guerra. O desabastecimento também foi um grave problema enfrentado pelo Brasil durante a guerra, sobretudo em relação aos alimentos de primeira necessidade. A falta de trigo, por exemplo, levou a busca de outros ingredientes para a preparação de pães. Os que eram feitos de milho, foram batizados como “pão da guerra”. Já a escassez de açúcar levava famílias pobres a preparar seu café com caldo de cana para adoçar a bebida.
Todo este cenário de sacrifício à classe trabalhadora também se estabeleceu em escala global. Porém, os efeitos colaterais desse engajamento só seriam sentidos ao final da guerra. No Brasil, com a rendição das tropas alemãs, em 8 de maio de 1945, houve um carnaval fora de época. Foi até decretado feriado nacional em comemoração ao Dia da Vitória ou “Dia V”, como divulgou a imprensa. Ruas e praças pelo país afora eram tomadas de gente, sambas, frevos e marchinhas. Havia muita sátira aos nazistas, fascistas e integralistas, além de alegorias exaltando os expedicionários brasileiros. Com grande adesão popular, trabalhadora e sindical, muitos ostentavam nesses festejos estandartes em forma de “V” ou posavam para fotografias fazendo com as mãos o sinal de vitória. Também eram frequentes a exposição de bandeiras de países aliados, bem como cartazes e jornais com fotos de lideranças políticas mundiais que se uniram contra o nazifascismo, como Churchill, Roosevelt e Stalin. Algumas vezes, os festejos extravasaram para revanches. Foi o que ocorreu, por exemplo, no bairro industrial de São Miguel Paulista, em São Paulo, onde os trabalhadores da Nitro Química chegaram a subir e amassar carros de alguns chefes integralistas e partidários do Eixo.
Celebração pela vitória na guerra na Rua São Bento em São Paulo.
Celebração em São Paulo pela vitória na Guerra.
Fotografias de Thomas Farkas. Acervo do Instituto Moreira Salles
Passada a euforia do final da guerra, uma nova era parecia se abrir aos trabalhadores em todo o mundo. No caso brasileiro, especialmente, o “Dia V” já concorria com os preparativos da primeira eleição presidencial após anos de ditadura do Estado Novo, com maior participação eleitoral de trabalhadora(e)s. Ela foi realizada junto à eleição de senadores e deputados federais para a Assembleia Nacional Constituinte, em dezembro de 1945. Além da formação de novas legendas partidárias, como a União Democrática Nacional (UDN), o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e o Partido Social Democrático (PSD), uma antiga sigla, fundada em 1922, reconquistava sua legalidade: o Partido Comunista do Brasil (PCB). Seu principal líder, Luís Carlos Prestes, após 9 anos como preso político, foi libertado do cárcere logo após o “Dia V”. A popularidade do “Cavaleiro da Esperança” e a ação decisiva da União Soviética na derrota do nazifascismo empolgavam multidões, em particular os trabalhadores de cidades industriais e portuárias. Para a Constituinte, os comunistas elegeram Prestes como senador e catorze deputados federais.
As demandas represadas pelos trabalhadores por maior protagonismo político e social, bem como pelas não atendidas compensações pelos sacrifícios do período da guerra, eclodiram com força entre os anos de 1945 e 1946, quando a derrota do nazi-fascismo foi entendida como a vitória da classe trabalhadora. Elas podem ser resumidas na expressão “descontar o cheque patriótico”, utilizada pelo historiador britânico Geoff Eley.
Este cenário acabou desencadeando uma série de manifestações e greves de trabalhadora(e)s, lutando por reajuste salarial, abono de natal (atual décimo terceiro), aplicação e fiscalização das leis trabalhistas, além de melhores condições de trabalho. Assustados, setores conservadores do mundo político, empresarial e religioso reagiriam com força, buscando disputar corações e mentes da classe trabalhadora nos sindicatos, locais de trabalho, bairros periféricos e favelas. A emergência da Guerra Fria e a ascensão do anticomunismo como uma linguagem compartilhada por diversos setores dominantes no Brasil marcariam decisivamente os embates políticos e a visão sobre as lutas dos trabalhadores nos anos seguintes.
Desta forma, o contexto decisivo do final da Segunda Guerra Mundial provocou uma reconfiguração das relações de trabalho no Brasil ou a “prática de relações de classe de novo tipo”, como definiu um operário têxtil de Magé (RJ) em discurso no sindicato. Desde então, trabalhadoras e trabalhadores do Brasil se consolidaram como protagonistas da política brasileira, exigindo ações do Estado, dos partidos e das diversas instituições do país em atendimento às suas demandas, pois tinham a exata noção de sua importância para a sociedade, principalmente nos momentos mais difíceis. Ao mesmo tempo, essa classe trabalhadora, ao enfrentar uma reação hostil de setores do Estado e das classes dominantes, também experimentava novas formas de organização, com ações mais autônomas, se apropriando e ressignificando a legislação trabalhista, visando “apressar o dia da vitória final” que prometia chegar ao fim da guerra.
¹ Professor da Universidade Estadual do Piauí (UESPI) e pesquisador do LEHMT.
Referências
ALCÂNTARA, Patrícia Costa de. Os Conflitos de um Conflito: processos trabalhistas ajuizados nas Juntas de Conciliação e Julgamento de Belo Horizonte durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Seropédica: Dissertação em História, Relações de Poder, Trabalho e Práticas Culturais, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, 2018. COSTA, Hélio da. Em busca da memória. Comissão de fábrica, partido e sindicato no pós-guerra. São Paulo: Scritta, 1995. CYTRYNOWICZ, Roney. Guerra sem guerra: A mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial. São Paulo: Geração Editorial/Editora da Universidade de São Paulo, 2000. ELEY, Geoff. War and the Twentieth-Century State. In: Daedalus. v.124. n.2. 1995. Disponível em <https://www.jstor.org/stable/20027301?seq=1>. FÁVERI, Marlene de. Memórias de uma (outra) guerra: cotidiano e medo durante a Segunda Guerra em Santa Catarina. Florianópolis: UFSC; Itajaí: UNIVALI, 2004. FERRAZ, Francisco César Alves. Os brasileiros e a Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. FONTES, Paulo. Um Nordeste em São Paulo: trabalhadores migrantes em São Miguel Paulista (1945-1966). Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008. GOMES, Angela de Castro. A invenção do trabalhismo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005. 3 ed. PEDREIRA, Flávia de Sá (Org.). Nordeste do Brasil na II Guerra Mundial. São Paulo: LCTE, 2019. RIBEIRO, Felipe; FORTES, Alexandre. Trabalhadores e Segunda Guerra Mundial: debates introdutórios para um dossiê. In: Revista Mundos do Trabalho. v.11. 2019. Disponível em <https://doi.org/10.5007/1984-9222.2019.e70508>.
Crédito da imagem de capa: Comemoração de Trabalhadores em São Paulo sobre a Vitória na Guerra. Fonte: https://tokdehistoria.com.br/
Em comemoração ao Dia do Trabalhador, a Associação Nacional de História – ANPUH-Brasil oferece à comunidade de historiadores e historiadoras uma relação de artigos a respeito de temas conexos, publicados na Revista Brasileira de História (RBH), entre 1981 e 2020. Foram elencados 118 textos (artigos, traduções e resenhas), que abordam a história do trabalho, bem como a história dos trabalhadores e trabalhadoras, rurais e urbanos, das suas lutas sociais e das suas formas de organização política. Cabe destacar que, para fins expositivos, não foram elencados artigos sobre o problema da escravidão no país, a não ser quando o tema foi abordado diretamente em relação ao trabalho livre, ficando para uma próxima ocasião a elaboração de listas sobre esse outro importante problema da história nacional. Apesar disso, a lista abaixo fornece um panorama bastante representativo do material publicado na RBH, em que se destacam, afora artigos clássicos, os dossiês À lucta, trabalhadores (1983), Sociedade e trabalho na história (1986), Trabalho e trabalhadores (2012).
Marcus Vinicius Correia Biaggi Assistente editorial Revista Brasileira de História
Ano: 1981 Título: A participação das massas brasileiras na Revolução anti-escravista e anti-monárquica (1888-1891) Autor: Décio Saes V. 1; N.1; Seção: ART; Dossiê: Link de acesso: https://www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=1295
Ano: 1981 Título: No Brasil escravista: relações sociais entre libertos e homens livres e entre libertos e escravos Autor: Kátia M. de Queiroz Mattoso V. 1; N.2; Seção: ART; Dossiê: Link de acesso: https://www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=1671
Ano: 1983 Título: A ciência da produção: fábrica despolitizada Autor: Edgar Salvadori de Decca V. 3; N.6; Seção: ART; Dossiê: À lucta, trabalhadores! Link de acesso: https://www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=1718
Ano: 1983 Título: A introdução do trabalho livre nas fazendas de café de São Paulo Autor: Verena Stolcke e Michael hall V. 3; N.6; Seção: ART; Dossiê: À lucta, trabalhadores! Link de acesso: https://www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=1719
Ano: 1983 Título: Pensando a classe operária: os trabalhadores sujeitos ao imaginário acadêmico Autor: Maria Célia Paoli, Eder Sáder e Vera da Silva Telles V. 3; N.6; Seção: RES; Dossiê: À lucta, trabalhadores! Link de acesso: https://www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=1721
Ano: 1983 Título: Regulamento sobre o serviço dos criados: um estudo sobre o relacionamento estado e sociedade no Rio Grande do Sul (1887/1889) Autor: Margaret Marchiori Bakos V. 4; N.7; Seção: ART; Dossiê: ?Hay gobierno? Link de acesso: https://www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=1860
Ano: 1983 Título: O éter da comunidade: política e legislação do trabalho sob o nazismo. / Lei de ordenação do trabalho nacional. Autor: Adalberto Marson V. 4; N.7; Seção: DOC; Dossiê: ?Hay gobierno? Link de acesso: https://www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=1863
Ano: 1985 Título: Trabalho escravo e trabalho livre na cidade do Rio: vivência de libertos, “galegos” e mulheres pobres Autor: Sidney Chalhoub, Gladys Ribeiro, Martha de R. Esteves V. 5; N.0; Seção: ART; Dossiê: Cultura e cidades Link de acesso: https://www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=1909
Ano: 1985 Título: Ideologia populista e resistência de classes: o Peronismo e a classe operária, 1955/1960 Autor: Daniel James V. 5; N.10; Seção: ART; Dossiê: Produção e transgressões Link de acesso: https://www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=3601
Ano: 1985 Título: Crônica de um massacre – uma greve operário/camponesa contra a United Fruit Co. Autor: Héctor H. Bruit V. 5; N.10; Seção: ART; Dossiê: Produção e transgressões Link de acesso: https://www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=3602
Ano: 1985 Título: Apontamentos sobre uma experiência de luta operária na Zona da Mata de Minas Gerais Autor: Eliana Regina de Freitas Dutra V. 5; N.10; Seção: ART; Dossiê: Produção e transgressões Link de acesso: https://www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=3603
Ano: 1986 Título: Lógica e dissonância – Sociedade de trabalho: lei, ciência e resistência operária Autor: Maria Stella Martins Bresciani V. 6; N.11; Seção: ART; Dossiê: Sociedade e trabalho na história Link de acesso: https://www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=3617
Ano: 1986 Título: Disciplina e controle no espaço fabril: o trabalhador têxtil em Minas Gerais Autor: Heloísa Helena Pacheco Cardoso V. 6; N.11; Seção: ART; Dossiê: Sociedade e trabalho na história Link de acesso: https://www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=3619
Ano: 1986 Título: Operários alemães no Rio Grande do Sul (1920/1937) Friedrich Kniestedt também foi um imigrante alemão Autor: René E. Gertz V. 6; N.11; Seção: ART; Dossiê: Sociedade e trabalho na história Link de acesso: https://www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=3620
Ano: 1986 Título: Representações sobre o trabalho livre na crise do escravismo fluminense (1870/1903) Autor: Ana Maria dos Santos e Sônia Regina de Mendonça V. 6; N.11; Seção: ART; Dossiê: Sociedade e trabalho na história Link de acesso: https://www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=3621
Ano: 1986 Título: “Sociedade e trabalho” e os primeiros anos de escolaridade – Introdução das noções básicas para a formação de um conceito: trabalho Autor: Ernesta Zamboni V. 6; N.11; Seção: ART; Dossiê: Sociedade e trabalho na história Link de acesso: https://www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=3623
Ano: 1986 Título: A reforma agrária e o desenvolvimento rural em Cuba Autor: Iliana Rojas, Mariana Ravenet e Jorge Hernández V. 6; N.12; Seção: ART; Dossiê: Terra e poder Link de acesso: https://www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=3625
Ano: 1986 Título: Terra, trabalho e progresso na obra de Monteiro Lobato Autor: André Luiz Vieira Campos V. 6; N.12; Seção: ART; Dossiê: Terra e poder Link de acesso: https://www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=3627
Ano: 1986 Título: O café e o trabalho “livre” em Minas Gerais – 1870/1920 Autor: Ana Lúcia Duarte Lanna V. 6; N.12; Seção: ART; Dossiê: Terra e poder Link de acesso: https://www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=3628
Ano: 1986 Título: A subordinação dos lavradores de cana aos senhores de engenho Autor: Vera Lúcia do Amaral Ferlini V. 6; N.12; Seção: ART; Dossiê: Terra e poder Link de acesso: https://www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=3632
Ano: 1987 Título: Instituições, trabalho e luta de classes no Brasil do século XIX Autor: José Carlos Barreiro V. 7; N.14; Seção: ART; Dossiê: Instituições Link de acesso: https://www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=3645
Ano: 1987 Título: Instituições totais e classes trabalhadoras: um balanço crítico Autor: Michael Ignatieff V. 7; N.14; Seção: BIBLIO; Dossiê: Instituições Link de acesso: https://www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=3647
Ano: 1988 Título: A imagem do operário no século XIX pelo espelho de um “Vaudeville” Autor: Robert Paris V. 8; N.15; Seção: ART; Dossiê: Sociedade e cultura Link de acesso: https://www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=3656
Ano: 1988 Título: Medo branco de almas negras: escravos, libertos e republicanos na cidade do Rio Autor: Sidney Chalhoub V. 8; N.16; Seção: ART; Dossiê: Sociedade e cultura Link de acesso: https://www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=3676
Ano: 1989 Título: Além da indústria Têxtil: o trabalho feminino em atividades “masculinas” Autor: Esmeralda Blanco B. de Moura V. 9; N.18; Seção: ART; Dossiê: A mulher e o espaço público Link de acesso: https://www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=3851
Ano: 1990 Título: O motim do vintém e a cultura política do Rio de Janeiro em 1880 Autor: Sandra Lauderdale Graham V. 10 ; N.20; Seção: ART; Dossiê: Reforma e revolução Link de acesso: https://www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=3899
Ano: 1990 Título: “Nós, filhos da Revolução Francesa”: a imagem da Revolução no Movimento Operário Brasileiro no início do século XX Autor: Cláudio H. Batalha V. 10 ; N.20; Seção: ART; Dossiê: Reforma e revolução Link de acesso: https://www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=3900
Ano: 1991 Título: As lutas camponesas no Rio Grande do Sul e a formação do M.S.T. Autor: Zilda Márcia Gricoli V. 11; N.22; Seção: ART; Dossiê: Estruturas agrárias e relações de poder Link de acesso: https://www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=3700
Ano: 1991 Título: Trabalho e vadiagem. A origem do trabalho livre no Brasil. Autor: Eni de Mesquita Samara V. 11; N.22; Seção: RES; Dossiê: Estruturas agrárias e relações de poder Link de acesso: https://www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=79870
Ano: 1992 Título: A idêntidade da classe operária no Brasil (1880-1920): Atipicidade ou legitimidade? Autor: Cláudio H. M. Batalha V. 12; N.0; Seção: ART; Dossiê: Política e cultura Link de acesso: https://www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=3716
Ano: 1994 Título: Estilistas urbanos do universo rural: o PCB na luta pela sindicalização em Minas Gerais Autor: Maria Eliza Linhares Borges V. 14; N.27; Seção: ART; Dossiê: Brasil, 1954-1964 Link de acesso: https://www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=3860
Ano: 1994 Título: Bandeirantes do progresso: imagens do trabalho e do trabalhador na cidade em festa. São Paulo, 25 de janeiro de 1954 Autor: Esmeralda Blanco Bolsonaro de Moura V. 14; N.28; Seção: ART; Dossiê: Espaço plural Link de acesso: https://www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=3766
Ano: 1994 Título: Cultura, trabalho, meio ambiente: estratégias de “empate” no Acre Autor: Maria Antonieta Antonacci V. 14; N.28; Seção: ART; Dossiê: Espaço plural Link de acesso: https://www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=3767
Ano: 1995 Título: Representações políticas no movimento Diretas-Já Autor: Marcos Francisco Napolitano de Eugênio V. 15; N.29; Seção: ART; Dossiê: Representações Link de acesso: https://www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=3780
Ano: 1995 Título: Anotações sobre a história do trabalho no Brasil Autor: Ismênia de Lima Martins V. 15; N.30; Seção: ART; Dossiê: Historiografias: propostas e práticas Link de acesso: https://www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=3787
Ano: 1996 Título: Memória e identidade entre sapateiros e curtumeiros Autor: Teresa Maria Malatian V. 16; N.0; Seção: ART; Dossiê: Confrontos e perspectivas Link de acesso: https://www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=3804
Ano: 1996 Título: Imperfeita ou refeita? O debate sobre o fazer-se da classe trabalhadora inglesa Autor: Antônio Luigi Negro V. 16; N.0; Seção: ART; Dossiê: Confrontos e perspectivas Link de acesso: https://www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=3795
Ano: 1997 Título: Edgar Leuenroth: uma vida e um arquivo libertários Autor: Yara Aun Khoury V. 17; N.33; Seção: ART; Dossiê: Biografia, biografias Link de acesso: https://www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=3818
Vale Mais é o podcast do Laboratório de Estudos de História dos Mundos do Trabalho da UFRJ. O objetivo é discutir história, trabalho e sociedade, refletindo sobre temas contemporâneos a partir da perspectiva da história social.
O episódio #05 é sobre O SUS e os mundos do trabalho.
A pandemia do Covid 19 colocou em pauta o Sistema Único de Saúde, o eixo central do combate à doença no Brasil. Conquista importante da Constituição de 1988, o SUS tem sua história profundamente ligada às mobilizações em torno da redemocratização do país e às lutas dos trabalhadores e trabalhadoras dos anos 1970 e 1980.
Quem responde essas perguntas é o historiador José Roberto Franco Reis, doutor em História Social do Trabalho pela Unicamp e pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz da Fundação Oswaldo Cruz.
Produção: Deivison Amaral, Heliene Nagasava, Julia Chequer, Paulo Fontes e Yasmin Getirana. Roteiro: Heliene Nagasava, Julia Chequer e Paulo Fontes. Apresentação: Yasmin Getirana.
Em 2020, foi lançado o livro “História do Trabalho: entre debates, caminhos e encruzilhadas”, organizado por Clarice Speranza (UFRGS). O livro contém artigos de vários autores e autoras resultantes de pesquisas recentes no campo da história do trabalho.
O capítulo “Igreja Católica e Mundo do Trabalho no Brasil: breve análise historiográfica” foi escrito por Deivison Amaral (PUC-Rio), pesquisador do LEHMT, em coautoria com Isabel Bilhão (UNISINOS). No capítulo, os autores analisam a produção historiográfica brasileira que trata da relação entre a Igreja Católica e os trabalhadores em longa duração. Essa relação é analisada considerando o advento da Ação Católica Brasileira (ACB), em 1935, como marco que separou dois momentos distintos. Antes da ACB, havia um catolicismo social voltado ao mundo do trabalho, mas que era majoritariamente dirigido por leigos, enquanto depois da ACB, houve uma hierarquização do movimento pela Igreja Católica no Brasil. Esse segundo momento conta com historiografia mais vasta e o primeiro, apesar de contar com estudos recentes, ainda carece de mais atenção da historiografia brasileira.
O texto defende a importância de se pensar a religião como mais um dos muito elementos constitutivos da experiência de classe, rompendo com as visões pejorativas sobre a presença da Igreja Católica no meio operário. A atuação da Igreja que não se limita a acusações pelo enfraquecimento das lutas, pela cooptação de trabalhadores ou pelo colaboracionismo patronal. Essa abordagem permite a compreensão de que tanto os elementos desagregadores quanto as estratégias de resolução ou atenuação de conflitos em busca da unidade compõem as vivências operárias e precisam ser levadas em conta nos estudos que pretendem considerar a complexidade dos mundos do trabalho. A religião deve ser considerada, definitivamente, como um desses elementos. Tal postura investigativa permite compreender ainda a existência de outras formas de resistência que escapam ao padrão revolucionário clássico, buscando pensar as especificidades da luta social dentro do catolicismo.
O livro conta ainda com 11 capítulos, conforme sumário abaixo, e sua versão digital está disponível para download gratuito na Amazon.
Sumário
APRESENTAÇÃO
Entre debates, caminhos e encruzilhadas
Clarice Gontarski Speranza
PARTE 1
Reformas e lutas por direitos
1. Reforma Trabalhista: emprego, tempo e história
Fernando Teixeira da Silva
2. Los intentos de Reforma Laboral regresiva en la Argentina desde 2015: una lectura en perspectiva histórica
Victoria Basualdo
3. Desafios para os rurais em tempos de globalização
Clifford Welch
4. O Judiciário e a Reforma Trabalhista: as alterações na legislação trabalhista entre 1943 a 2017
Alisson Droppa
PARTE 2
Experiência e diversidade nos mundos do trabalho
5. Notícias do Brasil e do mundo: os planos dos fazendeiros de negociarem com “seus” “ex-escravos” a organização do trabalho livre
Antonio Luigi Negro
6. Manoel de Souza Lobo, o mundo do trabalho nos seringais do Rio Madeira (AM) e a relação com os índios Parintintin (1913-1932)
Davi Avelino Leal
7. Para garantir os direitos do operário e defendê-lo contra as injustiças e as opressões: mundos do trabalho, Tratado de Versalhes (1919) e a Conferência Internacional do Trabalho (1938)
Glaucia Vieira Ramos Konrad
8. A Casa do Trabalhador do Amazonas: o quartel general dos trabalhadores
da terra cabocla (1944-1964)
César Augusto Bubolz Queirós
PARTE 3
Percursos e debates historiográficos
9. Guerra, revolução e movimento operário: as greves gerais de 1917-1919 no Brasil em perspectiva comparada
Aldrin Castellucci
10. Igreja Católica e Mundos do Trabalho no Brasil: breve análise historiográfica
Deivison Gonçalves Amaral
Isabel Aparecida Bilhão
11. Trabalhadores brasileiros antifascistas, III Internacional e a Aliança Nacional Libertadora entre 1934 e 1935: história e historiografia
Em 1953, quando o Brasil não produzia automóveis e só fazia importar veículos que chegavam desmontados no porto de Santos – cabendo às fábricas de São Paulo remontarem as partes (ou produzir componentes para os quais já possuíamos tecnologia) –, uma roda de conversa se formou na General Motors de São Caetano. A pergunta do bate-papo era qual a memória dos trabalhadores, no chão de fábrica, tinham da fatídica manhã de 24 de outubro de 1929, dia da derrubada e quebradeira da bolsa de valores de Nova Iorque. Quando o mundo sentiu os efeitos do Craque da Bolsa – causa da Grande Depressão –, milhões de trabalhadores perderam seus empregos e passaram fome. O desemprego foi longo e profundo. As empresas, antes de decretar lock down, demitiam em massa.
Exatamente porque as demissões tinham sido em massa, a conversa de veteranos na General Motors em 1953 juntou, não os dispensados, mas sim aqueles pouquíssimos que haviam conseguido permanecer no emprego. Os homens reunidos para lembrarem dos “dias pretos de 1930” deviam ser brancos, pois possuíam sobrenomes europeus. Iniciando as recordações, o feitor geral de carrocerias e estufa lembrou-se que, no setor de montagem, a firma ia muito bem no início de 1929. Batendo recordes de produção, o expediente no mês de maio era esticado até as primeiras horas da noite, sendo que já tinha começado antes do habitual. Os trabalhadores chegaram a comparecer tão cedo para o serviço que o desjejum era feito na fábrica. E o improviso fez o pessoal inclusive pegar antigas calotas das rodas para servir café.
No ano seguinte, por conta da crise, o ritmo tinha diminuído. Em 1930, quando o mais antigo empregado da GM – Arno Fritz Ehrhardt – entrava nas seções, mil e quinhentos funcionários se inquietavam. Apesar de divididos em 22 nacionalidades, o medo era um só e tinha nome: facão. Temiam Ehrhardt porque era o “fantasma da ópera”. Encarregado pela Seção de Pessoal, ele chegava para “mandar todo mundo embora”, executando as ordens vindas lá de cima.
Facão significava rua. Rua da amargura, conforme se dizia, local de ajuntamento de desempregados. “Quando a coisa piorou”, disse Ehrhardt, “os feitores passaram a trabalhar como guardas”.
Facão significava rua. Rua da amargura, conforme se dizia, local de ajuntamento de desempregados. “Quando a coisa piorou”, disse Ehrhardt, “os feitores passaram a trabalhar como guardas”.
Aí ficou claro quem a GM queria preservar. Ao mandar os guardas embora, substituindo-os pelos feitores, a empresa fez suas escolhas e mostrou quem era mais importante para ela: não era quem vigiava o movimento, mas quem estava encarregado de tirar a produção dos operários.
Mas o pior ainda estava por chegar. Com a Revolta Constitucionalista de 1932, veio a decisão da firma do lock down, fechando as portas. Para alívio dos trabalhadores, a situação não se alongou porque o governo do estado de São Paulo mandou adquirir todo o estoque para fins militares (inclusive modelos encalhados). Edmundo Drexler e seus colegas, que estavam parados, chegaram então “a trabalhar 24 e até 36 horas consecutivas para poder dar conta do serviço a realizar”. Em poucas palavras, deram o couro para cooperar com o esforço de guerra de São Paulo contra Getúlio Vargas. Katafaj acrescentou que o ritmo de produção era “dos mais rigorosos”. Em muitas ocasiões, trabalharam “‘vários dias sem ir para casa’”. De fato, concordou Basílio Rossi, lembrando da ocasião quando a produção voltou a bater recordes: apareceu um diretor, escreveu num quadro a nova marca alcançada e, ao lado, baixou a nova meta, escrevendo ‘“quebre esse recorde’”. Foi pensando nisso que a GM protegeu feitores, colocando-os para fazerem o serviço da vigilância. Para arrancar a produção dos trabalhadores, os patrões sempre precisaram de feitores.
Com o espalhamento do coronavírus, a crise global em 2020 também derrubou as bolsas de valores e provoca desemprego. Mas vai mais além. Fábricas como as de Bergamo, na Itália, que mantiveram a produção sem respeitar as normas de saúde pública, se tornaram focos irradiantes de contágio, o que depois se refletiu nos comboios de caminhões, em marcha fúnebre, levando os mortos – no silêncio tenebroso do escuro da noite fria – até cemitérios distantes, destino final das vítimas que perderam suas vidas para manter empresas funcionando. O anúncio recente da General Motors do Brasil de consertar 3 mil ventiladores mecânicos a serem usados no tratamento dos doentes com dificuldades respiratórias é ótimo, até porque a produção brasileira anual não passa de 200. Mas isso não é suficiente. De uma vez por todas, os empresários precisam entender que a vida humana vem na frente do cálculo de seus lucros particulares. Como foi visto recentemente, industriais alinhados ao governo, em linguagem chula e cruel, estão mais preocupados com os supostos “CNPJs na UTI” do que com a vida de milhões de trabalhadores e trabalhadoras pobres e explorados. Não podem simplesmente passar o facão e estragar ou tirar a vida dos trabalhadores, diversos deles, talvez, sem nem mesmo um CPF. Na sua crítica ao distanciamento social sanitário, muitos patrões, na verdade, acabam por praticar um distanciamento social desumano, ao desconhecerem por completo o valor da solidariedade e ao nutrirem desprezo pela situação da classe trabalhadora. Por um lado, se desfazem dos funcionários quando lhes convém. Por outro, tiram o sangue dos empregados quando querem produção. Melhor não duvidarem da capacidade de luta da classe trabalhadora.
¹ Professor do Departamento de História da UFBA, pesquisador CNPq.
Referências Costa, Hélio da, Em Busca da Memória. Organização no Local de Trabalho, Partido e Sindicato m São Paulo. São Paulo, Scritta, 1995. Mazzo, Armando, Memórias de um Militante Político e Sindical no abc. São Bernardo, Secretaria de Educação, Cultura e Esportes, 1991. Medici, Ademir, Migração e Urbanização. São Paulo, Hucitec, 1993. Negro, Antonio Luigi, Linhas de Montagem. O Industrialismo Nacional-Desenvolvimentista e a Sindicalização dos Trabalhadores. São Paulo, Boitempo, 2004. Negro, Antonio Luigi, “Entre a solidariedade e o egoísmo, patrões escolhem defender seus próprios interesses”, entrevista a Mariana Lemle, Blog de HCS-Manguinhos, 3/4/2020. http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/entre-a-solidariedade-e-o-egoismo-patroes-escolhem-defender-seus-proprios-interesses/ Pereira Neto, Murilo L., A reinvenção da classe trabalhadora (1953-1964). Campinas, Editora da Unicamp, 2012. Vida na GMB, nos 29-33, 1953-54. Biblioteca Nacional (periódicos), 2-468, 2, 2.
Paulo Fontes, professor do Instituto de História da UFRJ e Coordenador do LEHMT, concedeu uma entrevista para o Jornal da Associação dos Docentes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Paulo falou sobre os significados do Primeiro de Maio e os possíveis impactos da pandemia do COVID 19 para os mundos do trabalho.
Desde 1889, o Dia Internacional do Trabalhador é comemorado em todo o mundo no dia 1º de Maio. A data congrega “luta, luto e celebração”, como explica o professor Paulo Fontes, do Instituto de História da UFRJ. “Amanhã teremos o primeiro 1º de Maio da história em que as pessoas não irão para as ruas por conta da pandemia. Ainda assim, há marcados protestos virtuais, lives. Há toda uma efervescência nas redes sociais que reproduzem as características fundamentais desde sua origem: o luto, a luta, a festividade”, aponta o docente, que coordena o Laboratório de Estudos de História dos Mundos do Trabalho (Lehmt), do IH. Ele também analisa o cenário atual e fala das perspectivas para o futuro pós-pandemia.
Como surgiu o 1º de Maio e qual sua importância?
A origem da data está relacionada a um movimento de greve de bastante intensidade em Chicago, em 1886. Durante a greve, houve um conflito com a polícia, foi jogada uma bomba e morreram manifestantes e policiais. Alguns trabalhadores foram presos e quatro acabaram sendo condenados à morte, o que teve grande repercussão. Em 1889, a Segunda Internacional, em seu congresso de Paris, resolveu criar uma data em que os trabalhadores celebrassem sua condição de classe trabalhadora. Então a data 1º de maio foi escolhida. Tem a ver com a greve de Chicago, iniciada também em 1º de maio. E tem a ver com o fato de ser uma data de festejos vinculados à celebração da primavera, na Europa. Essa tradição vem desde a Idade Média. Houve essa confluência de significados.
Esse reconhecimento como o Dia dos Trabalhadores é o mesmo em todo o mundo?
É curioso, porque, até pela dinâmica de sua origem, os Estados Unidos nunca reconheceram a data como Dia do Trabalhador. Eles têm uma outra data, que é o Dia do Trabalho, que é a segunda segunda-feira de agosto. Mais recentemente, com aumento de imigrantes de origem latino-americana, o 1º de Maio tem ganhado força nos Estados Unidos. A origem da data articula o 1º de Maio em três dimensões: uma, do luto, pois foi criado em função da morte de lideranças; tem um lado de luta, em relação aos interesses da classe trabalhadora; e um aspecto mais festivo. A depender do momento político, uma pode ter mais ênfase do que as outras. Amanhã teremos o primeiro 1º de Maio da história em que as pessoas não irão para as ruas por conta da pandemia. Ainda assim, há protestos virtuais marcados, lives. Há toda uma efervescência das redes sociais que reproduzem as características fundamentais desde sua origem: o luto, a luta, a festividade.
A data passou a ser usada por governos?
Todas as correntes políticas ao longo do século XX adotaram a data com ênfases diferentes. Especialmente a partir da Revolução Russa, ganha um caráter ritualístico do próprio Estado Socialista. Mas não só. O fascismo a usou como celebração. Os países com modelos corporativistas, como o Brasil de Vargas, nos anos 1930, incorporaram a data ao seu calendário. Era o momento em que Vargas se dirigia especificamente aos trabalhadores com “um presente”. A CLT foi promulgada no 1º de Maio, a Justiça do Trabalho foi criada no 1º de Maio. E mesmo após Vargas, essa tradição se manteve. O reajuste do salário mínimo, por exemplo, acontecia no 1º de Maio.
Quais as principais mudanças no mundo do trabalho no último século?
O 1o de Maio está muito associado, originalmente, com trabalhadores do mundo industrial. Não necessariamente só das indústrias, mas da rede que a indústria alimentava, de trabalhadores braçais,
predominantemente. A classe trabalhadora sempre foi diversa, mas o operário industrial compunha a simbologia do que se identificava como mundo do trabalho. Uma transformação importante nas últimas quatro décadas é a mudança desse “protótipo” de trabalhador. Há uma perda relativa do peso simbólico da indústria, e, portanto, desses trabalhadores no mundo contemporâneo. Mas é um paradoxo: ao mesmo tempo, o mundo nunca teve tantas pessoas trabalhando na indústria como agora. Toda a Ásia está na indústria. Mas, hoje, quando se pensa em trabalhador, se pensa numa multiplicidade muito maior de profissionais. Por outro lado, a identidade de classe tem sofrido abalos. Há um discurso muito forte de políticas neoliberais, de empreendedorismo. E há uma multiplicidade de identidades articuladas pela própria classe que muitas vezes surpreendentemente apagam do discurso político e identitário a condição de trabalhadores.
Nessa pandemia, muitos trabalhadores informais estão em graves dificuldades. Essa situação pode modificar o debate sobre trabalho?
A Organização Mundial do Trabalho acabou de divulgar um estudo que indica que metade dos empregos estão sob risco. Nem a crise dos anos 1930 teve esse impacto. A ideia romântica do chamado empreendedorismo, sobretudo liderada pelos neoliberais, está em xeque. Porém, não significa que voltaremos a condições anteriores de emprego. O relógio da História não funciona assim. Haverá outros processos. É algo inédito para o qual precisaremos construir novas respostas. A própria questão da jornada de trabalho pode ser retomada. Nunca trabalhamos tanto como hoje. O trabalho entra na nossa casa de modo que a gente nem pense sobre isso. Essa crise nos mostra que não existe sociedade sem trabalhadores.
Quais são as perspectivas pós-pandemia?
Talvez cresça na agenda política do imaginário essa centralidade do trabalho. A verdade é que ninguém sabe com certeza o que vai acontecer. O que é certo é que o trabalho, como subsistência, existe e vai continuar existindo. Provavelmente haverá uma nova configuração dos trabalhadores como sujeitos políticos.
Contribuição especial de Renata Figueiredo Moraes¹
O 13 de maio de 1888 foi um dia de celebração nos mundos do trabalho da capital do Império. Até então, na cidade com o maior número de escravos nas Américas, trabalhadores livres e escravizados compartilhavam experiências de trabalho e de vida cotidiana em oficinas, no comércio e nas ruas do Rio de Janeiro. Nos dias seguintes ao fim da escravidão, milhares de trabalhadores e trabalhadoras, brancos e negros, participaram ativamente dos festejos, missa, cortejos e bailes que marcaram a abolição. Aspecto ainda pouco estudado, o abolicionismo mobilizou diversas categorias de trabalhadores cariocas que se engajaram em diversas formas de lutas e mobilizações pelo fim da escravidão.
Foi o caso dos tipógrafos. Ao cultivarem uma autoimagem de “homens do progresso”, viam a escravidão com horror e, desde há muito, desenvolviam ações pela liberdade. Em 1858, por exemplo, os editores do Jornal dos Typógraphos se mobilizaram contra os leilões de escravizados ocorridos em praça pública, e propuseram criar uma associação para arrecadar fundos para libertar os escravos. Na década de 1880, um grupo de tipógrafos fundou o Clube Abolicionista Gutemberg – destinado a comprar alforrias e promover a instrução noturna e gratuita para os libertos.
Os tipógrafos viram na abolição uma vitória e se orgulhavam de serem os trabalhadores responsáveis pela impressão da Lei Áurea. Cerca de 800 tipógrafos da cidade integraram o cortejo comemorativo da abolição, organizado pela imprensa fluminense. Na edição única do jornal comemorativo Treze de maio, vários tipógrafos publicaram poesias em que exaltavam as lutas pela abolição. O Centro Tipográfico Treze de Maio, fundado em junho de 1888, inspirava-se na abolição em suas lutas por novas conquistas sociais para a categoria.
Nos anos que precederam o fim da escravidão, diversas categorias de trabalhadores na Corte envolveram-se nas lutas abolicionistas. Vários trabalhadores associavam a luta pela abolição e seus festejos às suas próprias demandas por direitos nos mundos do trabalho. Muitos queriam aderir às festas, como os funcionários da Caixa Econômica, das fábricas de chapéus, os militares da armada e os operários das fábricas de cal, entre outros.
Os caixeiros, como eram conhecidos os trabalhadores do comércio, são outro bom exemplo. Em geral morando em seus locais de trabalho, a relação entre eles e seus patrões era de dependência, com longas jornadas de serviço. O ambiente festivo da abolição alimentou a reivindicação por mais direitos ao lazer e pela folga aos domingos, principalmente após ter sido esse o dia da assinatura da lei. Os caixeiros não tiveram atendida sua reivindicação de fechamento do comércio a partir das 14h para participarem das festas de maio de 1888, só podendo ir às festas noturnas. Naquele momento, a batalha para participar dos festejos era apenas uma entre tantas que os caixeiros a partir de então teriam que travar.
Os festejos noturnos foram o grande espaço de celebração da liberdade recém adquirida para a maioria dos ex-escravizados. Além de muitos não terem sido liberados do trabalho por seus patrões para participarem das comemorações oficiais durante o dia, outros que, mesmo finda a escravidão, continuaram com suas atividades cotidianas, seja no comércio, no ganho nas ruas ou em oficinas artesanais. À noite, no entanto, as ruas do centro da cidade foram ocupadas majoritariamente por homens e mulheres libertos que deram seus próprios sentidos para as festas e para liberdade pela qual tanto lutaram. A festa dos antigos escravos, no entanto, não foi bem vista por muitos. Vários jornais cariocas reclamaram das aglomerações em círculo com “música de requebros” em plena Rua do Ouvidor.
Os funcionários públicos, entretanto, foram liberados para festejar durante o dia. Os servidores do Ministério da Agricultura, em particular, animaram-se para celebrar o fim da escravidão. O titular da pasta, Rodrigo Silva, era o responsável pelo projeto de lei da abolição na Câmara e foi homenageado por seus subordinados. No evento, Machado de Assis, funcionário do Ministério e chefe da seção responsável pela fiscalização da chamada “Lei do Ventre Livre” de 1871, discursou destacando as ações do ministro em prol da liberdade. Rodrigo Silva agradeceu e lembrou que o mérito cabia igualmente aos funcionários que haviam atuado na defesa dos direitos dos escravos. Também presente, Artur Azevedo declamou uma poesia em que pedia folga para que os funcionários públicos pudessem participar da festa pela aprovação da lei da abolição, reivindicação que foi atendida prontamente.
A liberdade do 13 de maio, consubstanciada em uma lei, era fundamentalmente fruto de décadas de lutas que envolveram trabalhadores escravizados, libertos e livres. E foi imensamente festejada por eles. Longe de ser uma dádiva, como faziam crer alguns editores dos jornais da Corte, o fim da escravidão em maio de 1888 foi uma conquista de lutas iniciadas muitos anos antes no parlamento, na justiça, nas ruas e nos locais de trabalho. Durante as festas, o ex-tipógrafo negro Machado de Assis também escreveu uma poesia especial para celebrar a Abolição. Em seu verso final, clamava: “União Brasileiros, e entoemos o Hino do Trabalho!”. Machado sabia que, apesar do Treze de Maio, a liberdade precisaria ser reconquistada a cada dia por todos os trabalhadores.
A festa dos libertos – Revista Ilustrada, nº 499, Ano 13, 2 de junho de 1888.
¹ Professora do Departamento de História da UERJ e pesquisadora do LEHMT.
REFERENCIAS: LARA, Sílvia Hunold. “Escravidão, cidadania e história do trabalho no Brasil”. In: Projeto História: PUC-SP, nº 16, Fevereiro/98. MENDONÇA, Joseli Nunes. Cenas da Abolição. Escravos e senhores no parlamento e na justiça. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001. MORAES, Renata Figueiredo. “A festa da abolição do 13 de maio – comemorações, identidade e memória”. In: ABREU, M; XAVIER, G; MONTEIRO, L; BRASIL, E. (orgs). Cultura negra. Festas, carnavais e patrimônios negros. Novos Desafios para os historiadores. Vol. 1. Niterói: Eduff, 2018. POPINIGIS, Fabiane. Proletários de casaca. Trabalhadores do comércio carioca (1850-1911). Campinas: Editora da Unicamp, 2007. VITORINO, Artur José Renda. Processo de trabalho, sindicalismo e mudança técnica: o caso dos trabalhadores gráficos em São Paulo e no Rio de Janeiro, 1858-1912. Dissertação de mestrado. Campinas: Unicamp, 1995.
Crédito da imagem de capa: Largo do Paço, multidão saudando a assinatura da lei da abolição. LAGO, Pedro e Bia Correa. Coleção Princesa Isabel. Fotografia do século XIX.
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