Vale Mais #05 – O SUS e os mundos do trabalho


Vale Mais é o podcast do Laboratório de Estudos de História dos Mundos do Trabalho da UFRJ. O objetivo é discutir história, trabalho e sociedade, refletindo sobre temas contemporâneos a partir da perspectiva da história social.

O episódio #05 é sobre O SUS e os mundos do trabalho.

A pandemia do Covid 19 colocou em pauta o Sistema Único de Saúde, o eixo central do combate à doença no Brasil. Conquista importante da Constituição de 1988, o SUS tem sua história profundamente ligada às mobilizações em torno da redemocratização do país e às lutas dos trabalhadores e trabalhadoras dos anos 1970 e 1980.

Quem responde essas perguntas é o historiador José Roberto Franco Reis, doutor em História Social do Trabalho pela Unicamp e pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz da Fundação Oswaldo Cruz.

Produção: Deivison Amaral, Heliene Nagasava, Julia Chequer, Paulo Fontes e Yasmin Getirana.
Roteiro: Heliene Nagasava, Julia Chequer e Paulo Fontes.
Apresentação: Yasmin Getirana.

Créditos da Imagem de Capa: Acervo Casa de Oswaldo Cruz/ Fiocruz. Disponível em: https://portal.fiocruz.br/noticia/casa-de-oswaldo-cruz-preserva-memoria-da-oitava-conferencia

Livro “História do Trabalho: entre debates, caminhos e encruzilhadas” (download gratuito).

Em 2020, foi lançado o livro “História do Trabalho: entre debates, caminhos e encruzilhadas”, organizado por Clarice Speranza (UFRGS). O livro contém artigos de vários autores e autoras resultantes de pesquisas recentes no campo da história do trabalho.

O capítulo “Igreja Católica e Mundo do Trabalho no Brasil: breve análise historiográfica” foi escrito por Deivison Amaral (PUC-Rio), pesquisador do LEHMT, em coautoria com Isabel Bilhão (UNISINOS). No capítulo, os autores analisam a produção historiográfica brasileira que trata da relação entre a Igreja Católica e os trabalhadores em longa duração. Essa relação é analisada considerando o advento da Ação Católica Brasileira (ACB), em 1935, como marco que separou dois momentos distintos. Antes da ACB, havia um catolicismo social voltado ao mundo do trabalho, mas que era majoritariamente dirigido por leigos, enquanto depois da ACB, houve uma hierarquização do movimento pela Igreja Católica no Brasil. Esse segundo momento conta com historiografia mais vasta e o primeiro, apesar de contar com estudos recentes, ainda carece de mais atenção da historiografia brasileira.

O texto defende a importância de se pensar a religião como mais um dos muito elementos constitutivos da experiência de classe, rompendo com as visões pejorativas sobre a presença da Igreja Católica no meio operário. A atuação da Igreja que não se limita a acusações pelo enfraquecimento das lutas, pela cooptação de trabalhadores ou pelo colaboracionismo patronal. Essa abordagem permite a compreensão de que tanto os elementos desagregadores quanto as estratégias de resolução ou atenuação de conflitos em busca da unidade compõem as vivências operárias e precisam ser levadas em conta nos estudos que pretendem considerar a complexidade dos mundos do trabalho. A religião deve ser considerada, definitivamente, como um desses elementos. Tal postura investigativa permite compreender ainda a existência de outras formas de resistência que escapam ao padrão revolucionário clássico, buscando pensar as especificidades da luta social dentro do catolicismo.

O livro conta ainda com 11 capítulos, conforme sumário abaixo, e sua versão digital está disponível para download gratuito na Amazon.

Sumário

APRESENTAÇÃO

Entre debates, caminhos e encruzilhadas

Clarice Gontarski Speranza

PARTE 1

Reformas e lutas por direitos

1. Reforma Trabalhista: emprego, tempo e história

Fernando Teixeira da Silva

2. Los intentos de Reforma Laboral regresiva en la Argentina desde 2015: una lectura en perspectiva histórica

Victoria Basualdo

3. Desafios para os rurais em tempos de globalização

Clifford Welch

4. O Judiciário e a Reforma Trabalhista: as alterações  na legislação trabalhista entre 1943 a 2017

Alisson Droppa

PARTE 2

Experiência e diversidade nos mundos do trabalho

5. Notícias do Brasil e do mundo: os planos dos fazendeiros de negociarem com “seus” “ex-escravos” a organização do trabalho livre

Antonio Luigi Negro

6. Manoel de Souza Lobo, o mundo do trabalho nos seringais do Rio Madeira (AM) e a relação com os índios Parintintin (1913-1932)

Davi Avelino Leal

7. Para garantir os direitos do operário e defendê-lo contra as injustiças e as opressões: mundos do  trabalho, Tratado de Versalhes (1919) e a Conferência Internacional do Trabalho (1938)

Glaucia Vieira Ramos Konrad

8. A Casa do Trabalhador do Amazonas: o quartel general dos trabalhadores

da terra cabocla (1944-1964)

César Augusto Bubolz Queirós

PARTE 3

Percursos e debates historiográficos

9. Guerra, revolução e movimento operário: as greves gerais de 1917-1919 no Brasil em perspectiva comparada

Aldrin Castellucci

10. Igreja Católica e Mundos do Trabalho no Brasil: breve análise historiográfica

Deivison Gonçalves Amaral

Isabel Aparecida Bilhão

11. Trabalhadores brasileiros antifascistas, III Internacional e a Aliança Nacional Libertadora entre 1934 e 1935: história e historiografia

Diorge Alceno Konrad

Contribuição especial #06: O facão, o vírus e a crise. Como uma roda de conversa na General Motors recordou a Quebra da Bolsa de 1929.

Contribuição especial de Antonio Luigi Negro¹

Em 1953, quando o Brasil não produzia automóveis e só fazia importar veículos que chegavam desmontados no porto de Santos – cabendo às fábricas de São Paulo remontarem as partes (ou produzir componentes para os quais já possuíamos tecnologia) –, uma roda de conversa se formou na General Motors de São Caetano. A pergunta do bate-papo era qual a memória dos trabalhadores, no chão de fábrica, tinham da fatídica manhã de 24 de outubro de 1929, dia da derrubada e quebradeira da bolsa de valores de Nova Iorque. Quando o mundo sentiu os efeitos do Craque da Bolsa – causa da Grande Depressão –, milhões de trabalhadores perderam seus empregos e passaram fome. O desemprego foi longo e profundo. As empresas, antes de decretar lock down, demitiam em massa.

Entrada da fábrica da General Motors em São Caetano do Sul (SP) em 1939. Foto: John Philips. Disponível em https://medium.com/@eliezer_santos/s%C3%A3o-paulo-antiga-pelas-lentes-da-life-266c22bbfed4.

Exatamente porque as demissões tinham sido em massa, a conversa de veteranos na General Motors em 1953 juntou, não os dispensados, mas sim aqueles pouquíssimos que haviam conseguido permanecer no emprego. Os homens reunidos para lembrarem dos “dias pretos de 1930” deviam ser brancos, pois possuíam sobrenomes europeus. Iniciando as recordações, o feitor geral de carrocerias e estufa lembrou-se que, no setor de montagem, a firma ia muito bem no início de 1929. Batendo recordes de produção, o expediente no mês de maio era esticado até as primeiras horas da noite, sendo que já tinha começado antes do habitual. Os trabalhadores chegaram a comparecer tão cedo para o serviço que o desjejum era feito na fábrica. E o improviso fez o pessoal inclusive pegar antigas calotas das rodas para servir café.

No ano seguinte, por conta da crise, o ritmo tinha diminuído. Em 1930, quando o mais antigo empregado da GM – Arno Fritz Ehrhardt – entrava nas seções, mil e quinhentos funcionários se inquietavam. Apesar de divididos em 22 nacionalidades, o medo era um só e tinha nome: facão. Temiam Ehrhardt porque era o “fantasma da ópera”. Encarregado pela Seção de Pessoal, ele chegava para “mandar todo mundo embora”, executando as ordens vindas lá de cima.

Facão significava rua. Rua da amargura, conforme se dizia, local de ajuntamento de desempregados. “Quando a coisa piorou”, disse Ehrhardt, “os feitores passaram a trabalhar como guardas”.

Facão significava rua. Rua da amargura, conforme se dizia, local de ajuntamento de desempregados. “Quando a coisa piorou”, disse Ehrhardt, “os feitores passaram a trabalhar como guardas”.

Aí ficou claro quem a GM queria preservar. Ao mandar os guardas embora, substituindo-os pelos feitores, a empresa fez suas escolhas e mostrou quem era mais importante para ela: não era quem vigiava o movimento, mas quem estava encarregado de tirar a produção dos operários.

Mas o pior ainda estava por chegar. Com a Revolta Constitucionalista de 1932, veio a decisão da firma do lock down, fechando as portas. Para alívio dos trabalhadores, a situação não se alongou porque o governo do estado de São Paulo mandou adquirir todo o estoque para fins militares (inclusive modelos encalhados). Edmundo Drexler e seus colegas, que estavam parados, chegaram então “a trabalhar 24 e até 36 horas consecutivas para poder dar conta do serviço a realizar”. Em poucas palavras, deram o couro para cooperar com o esforço de guerra de São Paulo contra Getúlio Vargas. Katafaj acrescentou que o ritmo de produção era “dos mais rigorosos”. Em muitas ocasiões, trabalharam “‘vários dias sem ir para casa’”. De fato, concordou Basílio Rossi, lembrando da ocasião quando a produção voltou a bater recordes: apareceu um diretor, escreveu num quadro a nova marca alcançada e, ao lado, baixou a nova meta, escrevendo ‘“quebre esse recorde’”. Foi pensando nisso que a GM protegeu feitores, colocando-os para fazerem o serviço da vigilância. Para arrancar a produção dos trabalhadores, os patrões sempre precisaram de feitores.

Com o espalhamento do coronavírus, a crise global em 2020 também derrubou as bolsas de valores e provoca desemprego. Mas vai mais além. Fábricas como as de Bergamo, na Itália, que mantiveram a produção sem respeitar as normas de saúde pública, se tornaram focos irradiantes de contágio, o que depois se refletiu nos comboios de caminhões, em marcha fúnebre, levando os mortos – no silêncio tenebroso do escuro da noite fria – até cemitérios distantes, destino final das vítimas que perderam suas vidas para manter empresas funcionando. O anúncio recente da General Motors do Brasil de consertar 3 mil ventiladores mecânicos a serem usados no tratamento dos doentes com dificuldades respiratórias é ótimo, até porque a produção brasileira anual não passa de 200. Mas isso não é suficiente. De uma vez por todas, os empresários precisam entender que a vida humana vem na frente do cálculo de seus lucros particulares. Como foi visto recentemente, industriais alinhados ao governo, em linguagem chula e cruel, estão mais preocupados com os supostos “CNPJs na UTI” do que com a vida de milhões de trabalhadores e trabalhadoras pobres e explorados. Não podem simplesmente passar o facão e estragar ou tirar a vida dos trabalhadores, diversos deles, talvez, sem nem mesmo um CPF. Na sua crítica ao distanciamento social sanitário, muitos patrões, na verdade, acabam por praticar um distanciamento social desumano, ao desconhecerem por completo o valor da solidariedade e ao nutrirem desprezo pela situação da classe trabalhadora. Por um lado, se desfazem dos funcionários quando lhes convém. Por outro, tiram o sangue dos empregados quando querem produção. Melhor não duvidarem da capacidade de luta da classe trabalhadora.

¹ Professor do Departamento de História da UFBA, pesquisador CNPq.

Referências
Costa, Hélio da, Em Busca da Memória. Organização no Local de Trabalho, Partido e Sindicato m São Paulo. São Paulo, Scritta, 1995.
Mazzo, Armando, Memórias de um Militante Político e Sindical no abc. São Bernardo, Secretaria de Educação, Cultura e Esportes, 1991.
Medici, Ademir, Migração e Urbanização. São Paulo, Hucitec, 1993.
Negro, Antonio Luigi, Linhas de Montagem. O Industrialismo Nacional-Desenvolvimentista e a Sindicalização dos Trabalhadores. São Paulo, Boitempo, 2004.
Negro, Antonio Luigi, “Entre a solidariedade e o egoísmo, patrões escolhem defender seus próprios interesses”, entrevista a Mariana Lemle, Blog de HCS-Manguinhos, 3/4/2020. http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/entre-a-solidariedade-e-o-egoismo-patroes-escolhem-defender-seus-proprios-interesses/
Pereira Neto, Murilo L., A reinvenção da classe trabalhadora (1953-1964). Campinas, Editora da Unicamp, 2012.
Vida na GMB, nos 29-33, 1953-54. Biblioteca Nacional (periódicos), 2-468, 2, 2.

Crédito da imagem de capa: Operários e operárias na linha de produção da GM em São Caetano do Sul (SP), 1939. Foto: John Philips.
Disponível em https://medium.com/@eliezer_santos/s%C3%A3o-paulo-antiga-pelas-lentes-da-life-266c22bbfed4

“Não existe sociedade sem trabalhadores” – Entrevista de Paulo Fontes para o Jornal da ADUFRJ

Paulo Fontes, professor do Instituto de História da UFRJ e Coordenador do LEHMT, concedeu uma entrevista para o Jornal da Associação dos Docentes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Paulo falou sobre os significados do Primeiro de Maio e os possíveis impactos da pandemia do COVID 19 para os mundos do trabalho.

“NÃO EXISTE SOCIEDADE SEM TRABALHADORES”

Silvana Sá
silvana@adufrj.org.br

Desde 1889, o Dia Internacional do Trabalhador é comemorado em todo o mundo no dia 1º de Maio. A data congrega “luta, luto e celebração”, como explica o professor Paulo Fontes, do Instituto de História da UFRJ. “Amanhã teremos o primeiro 1º de Maio da história em que as pessoas não irão para as ruas por conta da pandemia. Ainda assim, há marcados protestos virtuais, lives. Há toda uma efervescência nas redes sociais que reproduzem as características fundamentais desde sua origem: o luto, a luta, a festividade”, aponta o docente, que coordena o Laboratório de Estudos de História dos Mundos do Trabalho (Lehmt), do IH. Ele também analisa o cenário atual e fala das perspectivas para o futuro pós-pandemia.

Como surgiu o 1º de Maio e qual sua importância?

A origem da data está relacionada a um movimento de greve de bastante intensidade em Chicago, em 1886. Durante a greve, houve um conflito com a polícia, foi jogada uma bomba e morreram manifestantes e policiais. Alguns trabalhadores foram presos e quatro acabaram sendo condenados à morte, o que teve grande repercussão. Em 1889, a Segunda Internacional, em seu congresso de Paris, resolveu criar uma data em que os trabalhadores celebrassem sua condição de classe trabalhadora. Então a data 1º de maio foi escolhida. Tem a ver com a greve de Chicago, iniciada também em 1º de maio. E tem a ver com o fato de ser uma data de festejos vinculados à celebração da primavera, na Europa. Essa tradição vem desde a Idade Média. Houve essa confluência de significados.

Esse reconhecimento como o Dia dos Trabalhadores é o mesmo em todo o mundo?

É curioso, porque, até pela dinâmica de sua origem, os Estados Unidos nunca reconheceram a data como Dia do Trabalhador. Eles têm uma outra data, que é o Dia do Trabalho, que é a segunda segunda-feira de agosto. Mais recentemente, com aumento de imigrantes de origem latino-americana, o 1º de Maio tem ganhado força nos Estados Unidos. A origem da data articula o 1º de Maio em três dimensões: uma, do luto, pois foi criado em função da morte de lideranças; tem um lado de luta, em relação aos interesses da classe trabalhadora; e um aspecto mais festivo. A depender do momento político, uma pode ter mais ênfase do que as outras. Amanhã teremos o primeiro 1º de Maio da história em que as pessoas não irão para as ruas por conta da pandemia. Ainda assim, há protestos virtuais marcados, lives. Há toda uma efervescência das redes sociais que reproduzem as características fundamentais desde sua origem: o luto, a luta, a festividade.

A data passou a ser usada por governos?

Todas as correntes políticas ao longo do século XX adotaram a data com ênfases diferentes. Especialmente a partir da Revolução Russa, ganha um caráter ritualístico do próprio Estado Socialista. Mas não só. O fascismo a usou como celebração. Os países com modelos corporativistas, como o Brasil de Vargas, nos anos 1930, incorporaram a data ao seu calendário. Era o momento em que Vargas se dirigia especificamente aos trabalhadores com “um presente”. A CLT foi promulgada no 1º de Maio, a Justiça do Trabalho foi criada no 1º de Maio. E mesmo após Vargas, essa tradição se manteve. O reajuste do salário mínimo, por exemplo, acontecia no 1º de Maio.

Quais as principais mudanças no mundo do trabalho no último século?

O 1o de Maio está muito associado, originalmente, com trabalhadores do mundo industrial. Não necessariamente só das indústrias, mas da rede que a indústria alimentava, de trabalhadores braçais,

predominantemente. A classe trabalhadora sempre foi diversa, mas o operário industrial compunha a simbologia do que se identificava como mundo do trabalho. Uma transformação importante nas últimas quatro décadas é a mudança desse “protótipo” de trabalhador. Há uma perda relativa do peso simbólico da indústria, e, portanto, desses trabalhadores no mundo contemporâneo. Mas é um paradoxo: ao mesmo tempo, o mundo nunca teve tantas pessoas trabalhando na indústria como agora. Toda a Ásia está na indústria. Mas, hoje, quando se pensa em trabalhador, se pensa numa multiplicidade muito maior de profissionais. Por outro lado, a identidade de classe tem sofrido abalos. Há um discurso muito forte de políticas neoliberais, de empreendedorismo. E há uma multiplicidade de identidades articuladas pela própria classe que muitas vezes surpreendentemente apagam do discurso político e identitário a condição de trabalhadores.

Nessa pandemia, muitos trabalhadores informais estão em graves dificuldades. Essa situação pode modificar o debate sobre trabalho?

A Organização Mundial do Trabalho acabou de divulgar um estudo que indica que metade dos empregos estão sob risco. Nem a crise dos anos 1930 teve esse impacto. A ideia romântica do chamado empreendedorismo, sobretudo liderada pelos neoliberais, está em xeque. Porém, não significa que voltaremos a condições anteriores de emprego. O relógio da História não funciona assim. Haverá outros processos. É algo inédito para o qual precisaremos construir novas respostas. A própria questão da jornada de trabalho pode ser retomada. Nunca trabalhamos tanto como hoje. O trabalho entra na nossa casa de modo que a gente nem pense sobre isso. Essa crise nos mostra que não existe sociedade sem trabalhadores.

Quais são as perspectivas pós-pandemia?

Talvez cresça na agenda política do imaginário essa centralidade do trabalho. A verdade é que ninguém sabe com certeza o que vai acontecer. O que é certo é que o trabalho, como subsistência, existe e vai continuar existindo. Provavelmente haverá uma nova configuração dos trabalhadores como sujeitos políticos.

Contribuição especial #05: Os trabalhadores cariocas e as festas da Abolição

Contribuição especial de Renata Figueiredo Moraes¹

O 13 de maio de 1888 foi um dia de celebração nos mundos do trabalho da capital do Império. Até então, na cidade com o maior número de escravos nas Américas, trabalhadores livres e escravizados compartilhavam experiências de trabalho e de vida cotidiana em oficinas, no comércio e nas ruas do Rio de Janeiro. Nos dias seguintes ao fim da escravidão, milhares de trabalhadores e trabalhadoras, brancos e negros, participaram ativamente dos festejos, missa, cortejos e bailes que marcaram a abolição. Aspecto ainda pouco estudado, o abolicionismo mobilizou diversas categorias de trabalhadores cariocas que se engajaram em diversas formas de lutas e mobilizações pelo fim da escravidão.

Foi o caso dos tipógrafos. Ao cultivarem uma autoimagem de “homens do progresso”, viam a escravidão com horror e, desde há muito, desenvolviam ações pela liberdade. Em 1858, por exemplo, os editores do Jornal dos Typógraphos se mobilizaram contra os leilões de escravizados ocorridos em praça pública, e propuseram criar uma associação para arrecadar fundos para libertar os escravos. Na década de 1880, um grupo de tipógrafos fundou o Clube Abolicionista Gutemberg – destinado a comprar alforrias e promover a instrução noturna e gratuita para os libertos.

Os tipógrafos viram na abolição uma vitória e se orgulhavam de serem os trabalhadores responsáveis pela impressão da Lei Áurea. Cerca de 800 tipógrafos da cidade integraram o cortejo comemorativo da abolição, organizado pela imprensa fluminense. Na edição única do jornal comemorativo Treze de maio, vários tipógrafos publicaram poesias em que exaltavam as lutas pela abolição. O Centro Tipográfico Treze de Maio, fundado em junho de 1888, inspirava-se na abolição em suas lutas por novas conquistas sociais para a categoria.

Nos anos que precederam o fim da escravidão, diversas categorias de trabalhadores na Corte envolveram-se nas lutas abolicionistas. Vários trabalhadores associavam a luta pela abolição e seus festejos às suas próprias demandas por direitos nos mundos do trabalho. Muitos queriam aderir às festas, como os funcionários da Caixa Econômica, das fábricas de chapéus,  os militares da armada e os operários das fábricas de cal, entre outros.

Os caixeiros, como eram conhecidos os trabalhadores do comércio, são outro bom exemplo. Em geral morando em seus locais de trabalho, a relação entre eles e seus patrões era de dependência, com longas jornadas de serviço. O ambiente festivo da abolição alimentou a reivindicação por mais direitos ao lazer e pela folga aos domingos, principalmente após ter sido esse o dia da assinatura da lei. Os caixeiros não tiveram atendida sua reivindicação de fechamento do comércio a partir das 14h para participarem das festas de maio de 1888, só podendo ir às festas noturnas. Naquele momento, a batalha para participar dos festejos era apenas uma entre tantas que os caixeiros a partir de então teriam que travar.

Os festejos noturnos foram o grande espaço de celebração da liberdade recém adquirida para a maioria dos ex-escravizados. Além de muitos não terem sido liberados do trabalho por seus patrões para participarem das comemorações oficiais durante o dia, outros que, mesmo finda a escravidão, continuaram com suas atividades cotidianas, seja no comércio, no ganho nas ruas ou em oficinas artesanais. À noite, no entanto, as ruas do centro da cidade foram ocupadas majoritariamente por homens e mulheres libertos que deram seus próprios sentidos para as festas e para liberdade pela qual tanto lutaram. A festa dos antigos escravos, no entanto, não foi bem vista por muitos. Vários jornais cariocas reclamaram das aglomerações em círculo com “música de requebros” em plena Rua do Ouvidor.

Os funcionários públicos, entretanto, foram liberados para festejar durante o dia. Os servidores do Ministério da Agricultura, em particular, animaram-se para celebrar o fim da escravidão. O titular da pasta, Rodrigo Silva, era o responsável pelo projeto de lei da abolição na Câmara e foi homenageado por seus subordinados. No evento,  Machado de Assis, funcionário do Ministério e chefe da seção responsável pela fiscalização da chamada “Lei do Ventre Livre” de 1871,  discursou destacando as ações do ministro em prol da liberdade. Rodrigo Silva agradeceu e lembrou que o mérito cabia igualmente aos funcionários que haviam atuado na defesa dos direitos dos escravos. Também presente, Artur Azevedo declamou uma poesia em que pedia folga para que os funcionários públicos pudessem participar da festa pela aprovação da lei da abolição, reivindicação que foi atendida prontamente.

A liberdade do 13 de maio, consubstanciada em uma lei, era fundamentalmente fruto de décadas de lutas que envolveram trabalhadores escravizados, libertos e livres. E foi imensamente festejada por eles. Longe de ser uma dádiva, como faziam crer alguns editores dos jornais da Corte, o fim da escravidão em maio de 1888 foi uma conquista de lutas iniciadas muitos anos antes no parlamento, na justiça, nas ruas e nos locais de trabalho. Durante as festas, o ex-tipógrafo negro Machado de Assis também escreveu uma poesia especial para celebrar a Abolição. Em seu verso final, clamava: “União Brasileiros, e entoemos o Hino do Trabalho!”. Machado sabia que, apesar do Treze de Maio, a liberdade precisaria ser reconquistada a cada dia por todos os trabalhadores.

A festa dos libertos – Revista Ilustrada, nº 499, Ano 13, 2 de junho de 1888.

¹ Professora do Departamento de História da UERJ e pesquisadora do LEHMT.

REFERENCIAS:
LARA, Sílvia Hunold. “Escravidão, cidadania e história do trabalho no Brasil”. In: Projeto História: PUC-SP, nº 16, Fevereiro/98.
MENDONÇA, Joseli Nunes. Cenas da Abolição. Escravos e senhores no parlamento e na justiça. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001.
MORAES, Renata Figueiredo. “A festa da abolição do 13 de maio – comemorações, identidade e memória”. In: ABREU, M; XAVIER, G; MONTEIRO, L; BRASIL, E. (orgs). Cultura negra. Festas, carnavais e patrimônios negros. Novos Desafios para os historiadores. Vol. 1. Niterói: Eduff, 2018.
POPINIGIS, Fabiane. Proletários de casaca. Trabalhadores do comércio carioca (1850-1911). Campinas: Editora da Unicamp, 2007.
VITORINO, Artur José Renda. Processo de trabalho, sindicalismo e mudança técnica: o caso dos trabalhadores gráficos em São Paulo e no Rio de Janeiro, 1858-1912. Dissertação de mestrado. Campinas: Unicamp, 1995.

Crédito da imagem de capa: Largo do Paço, multidão saudando a assinatura da lei da abolição. LAGO, Pedro e Bia Correa. Coleção Princesa Isabel. Fotografia do século XIX.

Pesquisadores do LEHMT publicam artigos na Revista Perspectiva Histórica – Leonardo Ângelo e Felipe Ribeiro

Os historiadores Leonardo Ângelo da Silva e Felipe Ribeiro, membros do Laboratório de Estudos de História dos Mundos do Trabalho (LEHMT), acabaram de publicar seus artigos na Revista Perspectiva Histórica, em dossiê intitulado “Histórias de Trabalho: Lutas, subsistência e experiências” (v.9, n.14, jul-dez/2019). O periódico é publicado semestralmente pelo Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas (CEBEP), sediado em Salvador/BA.

O artigo de Leonardo Ângelo, intitulado “Companhia Siderúrgica Nacional (CSN): a construção do discurso de classe trabalhadora como máscara para o racismo estrutural? (1946-1997)”, é baseado na tese de doutoramento do autor sobre os trabalhadores da CSN em Volta Redonda/RJ, no sul fluminense. O trabalho procura analisar o quanto o discurso de e para a classe trabalhadora em formação, nas décadas de 1940-1950, foi motor de perpetuação e continuidade de um ideal de democracia racial. Trata-se de uma contribuição, partilhada mais amplamente por vários campos historiográficos, entre os quais a história social do trabalho, da escravidão e do pós-abolição, de produzir conteúdos para um público amplo e que questionem a naturalidade das disparidades raciais presentes em seus objetos. Assim, a análise de imagens, dados extraídos do periódico da CSN (O Lingote), bem como algumas entrevistas serviram de fontes primárias para os argumentos do artigo.

Já o artigo de Felipe Ribeiro, intitulado “‘Sendo de urgente necessidade a introdução de trabalhadores livres’: as políticas imigratórias do Rio de Janeiro a partir da instalação da Hospedaria da Ilha das Flores (1883-1902)”, analisa os relatórios da Provincia do Rio de Janeiro no período, buscando compreender os debates sobre imigração em território fluminense desde a criação da Hospedaria da Ilha das Flores, administrada pelo governo brasileiro e localizada no atual município de São Gonçalo/RJ. O autor buscou articular suas experiências como auxiliar do Museu da Imigração da Ilha das Flores (2013-2015) e professor-pesquisador de história social do trabalho, tendo como foco o contexto de abolição da escravidão no país.

Por ser um dossiê específico sobre história do trabalho, a revista traz ainda outros importantes artigos e entrevistas sobre a temática. Para conferir, basta acessar o link http://www.perspectivahistorica.com.br/index.php

Crédito da imagem de capa: Centro de Documentação da Companhia Siderúrgica Nacional (CDOC – CSN). Sumário/Ficha: Auto Forno N1 / Volta Redonda. Figura A196-13 – Assentamento de refratário já no fim da rampa. 28.07.1955. 

Labuta #12 O que é história social do trabalho? – Entrevista com Angela de Castro Gomes – Parte 2 (final)


Angela de Castro Gomes é uma das mais reconhecidas historiadoras do país. É pesquisadora 1A do CNPq. Graduada em História pela Universidade Federal Fluminense, com mestrado e doutorado em Ciência Política pelo IUPERJ. É professora titular aposentada de História do Brasil da Universidade Federal Fluminense e é Professora Emérita do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas, onde trabalhou de 1976 a 2013. Foi Pesquisadora Visitante Sênior Nacional na Unirio (2014-2020). Publicou dezenas de livros e artigos, com destaque para Burguesia e Trabalho: política e legislação social no Brasil (1917-1937) (Campus, 1979); A invenção do trabalhismo. (Vértice, 1988); Cidadania e direitos do trabalho (Jorge Zahar, 2002); A Justiça do Trabalho e sua história (com Fernando T. da Silva, Editora Unicamp, 2013); e Trabalho escravo contemporâneo: tempo presente e usos do passado (com Regina Guimarães Neto, Editora FGV, 2018).

A Parte 2 será publicada em maio de 2020.

Direção, Roteiro e Produção: Deivison Amaral, Heliene Nagasava e Paulo Fontes.
Ano de produção: 2020
Duração: 20’34’’

Labuta é um canal de vídeos do LEHMT sobre história, trabalho e sociedade.


Esse é o último episódio da série “O que é história social do trabalho?”, mas o Labuta, o canal de vídeos do LEHMT, voltará em breve com mais uma temporada que trará outras séries temáticas sobre história, trabalho e sociedade.

Produzida pelo Laboratório de Estudos da História dos Mundos do Trabalho (LEHMT-UFRJ) e publicada no Labuta, o canal de vídeos do LEHMT no Youtube, a série é composta por 11 entrevistas com especialistas. Em conjunto, os episódios formam um mosaico de visões sobre o campo de estudos.

Os episódios anteriores tiveram a participação de Fabiane Popinigis, Alexandre Fortes, Marcelo Badaró de Mattos, Álvaro Nascimento, Beatriz Mamigonian, Benito Schmidt, Larissa Rosa Corrêa, Norberto Ferreras, Cristiana Schettini e Antonio Luigi Negro.

Todos os outros episódios estão disponíveis no Labuta, o canal de vídeos do LEHMT.



www.lehmt.org
Produção do LEHMT – Laboratório de Estudos da História dos Mundos do Trabalho da UFRJ

Contribuição especial #04: Panela de pressão: O 1º de maio de 1980 e a greve dos metalúrgicos do ABC, 40 anos de história

Contribuição especial de Luís Paulo Bresciani e Deise Cavignato¹


“É possível saber que um dia será histórico quando você está nele? Ou depende de uma avaliação posterior, baseada em um conjunto de acontecimentos?”, se perguntou Nelson Campanholo ao ver quase cem mil pessoas na praça da Igreja Matriz Nossa Senhora da Boa Viagem, em São Bernardo de Campo. Era 1º de maio de 1980, Dia do Trabalhador, dia de lutar pelos direitos, mas também dia de mostrar a resistência à ditadura militar.

Defender a redução da jornada de trabalho, estabilidade no emprego e aumento salarial significava questionar o governo. E quem não gostaria de vencer uma partida de xadrez contra um regime que controlava o tabuleiro, mas não os peões? Já estava em xeque um novo momento político, as massas entrando no jogo.

Aquele 1º de maio seria um catalisador do descontentamento, a panela de pressão prestes a explodir. A greve servia para denunciar muitas coisas, entre elas, o arrocho salarial, que foi a espinha dorsal que sustentava a política econômica da ditadura militar. O país estava crescendo com a exportação de automóveis e autopeças, e o grau de intensidade de trabalho era absurda, com uma jornada extremamente longa, com 48h normais para época, além das horas extras. Todos tinham algo em comum, antes da greve, as conversas escondidas sobre o encontro do 1º de maio eram normais aos peões, isso revelou o quanto os trabalhadores eram unidos e a ditadura frágil, vulnerável e provisória.

Nelson Campanholo aos 40 anos, idade em que participou do 1º de Maio.

Nelson Campanholo sabia disso, os metalúrgicos do ABC estavam há 30 dias em greve e teriam mais 11 dias pela frente, ainda sem saber disso. Naquele dia, ele não pôde dar um beijo na mulher e nos filhos ao sair de casa, e nem lá ele estava. Um carro estranho, parado há dias em sua porta, fez com que a família rumasse para a casa de parentes, enquanto ele pulava de lar em lar, acolhido por seus companheiros. Campanholo era perseguido pela polícia, que o queria preso junto ao restante da diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema. Os sindicalistas que encabeçavam a greve não puderam participar do ato do 1º de maio, Luiz Inácio Lula da Silva e outros estavam encarcerados há dias pela polícia política, o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social).

As mulheres tiveram um papel fundamental na preparação daquele dia. As esposas de alguns trabalhadores e dirigentes sindicais, que estavam presos, saíram à frente da passeata aos gritos de “a greve continua”. As forças policias, acostumadas a intimidar, intimidadas recuavam diante da força da multidão.

Mesmo com a aglomeração na praça, o exímio soldador na Karmann Ghia, e então secretário-geral do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, encontrou personalidades como o deputado federal Ulysses Guimarães, o senador Teotônio Vilela, o escritor Fernando Moraes, o advogado Almir Pazzianotto e outros apoiadores da causa de toda a categoria. Ali, naquela praça, se escrevia uma história que seria contada por muito tempo depois. E nem o apoio firme da Pastoral da Juventude e das comunidades eclesiásticas de base fez com que os metalúrgicos se sentissem seguros ao lado da igreja ou dentro dela.


Nelson Campanholo lembraria para sempre as palavras de Teotônio Vilela aos oficiais do Exército que tentavam cercar os trabalhadores, mesmo sendo inviável confrontar aquela massa de operários: “Coronel, ontem na Câmara eu deixei bem claro que o que aconteceria aqui hoje seria problema de vocês”. O Exército sabia que os trabalhadores estavam ali e que seria um dia como nenhum outro antes.

Com as palavras de Teotônio Vilela, abriu-se o caminho para os manifestantes saírem em passeata até o velho Estádio da Vila Euclides, hoje orgulhosamente chamado Primeiro de Maio. Aquele seria o único local capaz de caber a gigantesca concentração de pessoas. No entanto, quando Campanholo começou a atravessar a rua Faria Lima, o então deputado Ulysses Guimarães pegou em seu braço e disse: “Entre no meu carro, ‘eles’ querem pegar você”. Sem pensar muito e já sabendo que estava ‘foragido’ há tempos, entrou no carro e foi parar próximo aos antigos estúdios da Vera Cruz. “Fiquei debaixo daquelas árvores sozinho desde manhã até umas 15h e fui para a casa de um amigo. À noite me encontrei com todos novamente, desta vez na casa do senador Severo Gomes, no Morumbi, para discutir as medidas que deveriam ser tomadas, mas não chegamos a um acordo. De qualquer forma, eu sabia que o ato tinha sido grandioso”.

Ironicamente, mesmo sendo um dos organizadores do evento, ele não pôde estar no olho do furacão, no coração pulsante da greve, o velho estádio. O impacto das greves do ABC seria enorme, a pauta econômica andava de mãos dadas com a pauta política, o fim da ditadura estaria próximo, mas Campanholo ainda não sabia o quanto. As palavras autoridade, administração, comando, domínio, governo, liderança e poder eram os sinônimos de controle a cada dia de trabalho, não apenas o controle do feitor, termo que vinha lá da escravidão: o controle também era da ditadura sobre os inúmeros ‘chãos de fábrica’, em cada cidade industrial do Brasil.

“Lutávamos porque não tínhamos liberdade para nada. Às vezes batalhávamos por um refeitório ou um vestiário, não tínhamos nenhum direito de manifestação, nosso trabalho era conquistar direitos”, lembra Campanholo.

Ele viveria a greve do Primeiro de Maio de 1980 pelos olhos de seus companheiros, e não se arrependeu. A História estava feita, a mudança estava plantada, e os 40 anos que se seguiram trazem as marcas daquele dia inesquecível, no gramado da Vila Euclides.

Hoje, aos 80 anos, Nelson tem orgulho de sua história.

¹ Luís Paulo Bresciani é professor da Universidade Municipal de São Caetano do Sul e da Fundação Getúlio Vargas – SP, e Coordenador da Subseção DIEESE no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC.
Deise Cavignato é mestre em Comunicação, professora da pós-graduação da FMU, jornalista e escritora.

Nosso agradecimento à historiadora Luci Praun, e muito especialmente para Osvaldo Cavignato, por nos trazer até aqui.

Crédito da imagem de capa: Fotógrafo Ricardo Alves.

Contribuição especial #03: O grito de justiça de Sacco e Vanzetti ainda ecoa

Contribuição especial de Edilene Toledo¹

Há exatos cem anos, em 15 de abril de 1920, durante um assalto a uma fábrica, um contador e um guarda foram assassinados a tiros na cidade de South Braintree, Massachusetts, Estados Unidos. Nicola Sacco, sapateiro, e Bartolomeo Vanzetti, vendedor de peixes, imigrantes italianos e anarquistas, foram responsabilizados pelo duplo homicídio. Ao fim de um processo muito polêmico, os dois foram condenados à morte e executados, na cadeira elétrica, em 23 de agosto de 1927. Os indícios contra eles eram muito frágeis e manipulados. Mesmo quando o verdadeiro autor dos crimes confessou, Sacco e Vanzetti não tiveram direito a revisão do processo e nem clemência. Desde então, eles se tornaram símbolos da luta contra a intolerância e a injustiça e foram lembrados inúmeras vezes em jornais, canções, poesias, filmes e peças de teatro.

A condenação de Sacco e Vanzetti ocorreu no contexto de uma duríssima campanha contra os trabalhadores organizados e ativistas políticos que o governo dos Estados Unidos desencadeou entre os anos de 1919 e 1921. Era uma resposta, vivida também em muitos outros países, ao ciclo de agitação social global ocorrido a partir de 1917 e em reação às repercussões da Revolução Russa e o temor do avanço das forças de esquerda. Além de milhares de prisões e deportações de centenas de imigrantes, um outro anarquista italiano, Andrea Salsedo, tinha morrido, em circunstâncias misteriosas, caindo da janela de uma delegacia durante um interrogatório. Naqueles anos, mais de 100 sindicalistas da Industrial Workers of the World foram condenados por subversão a 20 anos de prisão.

Nicola Sacco era do sul da Itália, da região da Puglia, enquanto Bartolomeo Vanzetti era do norte, do Piemonte. Ambos tinham chegado nos Estados Unidos no mesmo período, um em 1908 e outro em 1909, com cerca de 20 anos, com a esperança de melhorar as próprias condições de vida, como outros 5 milhões de italianos entre o final do século XIX e a Primeira Guerra, foram “fazer a América”. A maioria deles empregou-se nas ascendentes indústrias norte-americanas. Mas, para muitos, os Estados Unidos mostraram-se uma terra distante dos sonhos de bem-estar e liberdade que tanto atraíam os imigrantes.

A radicalização da posição política de Sacco e Vanzetti ocorreu já em solo americano.  Eles se conheceram em 1916 e juntos passaram a fazer parte de um grupo anarquista. Tinham fugido para o México para escapar da convocação para a Primeira Guerra Mundial. A fé anarquista e a oposição à guerra, que caracterizou a ação libertária nas Américas, fizeram deles os alvos ideais da cruzada americana contra os radicais de esquerda.

Foi também a origem italiana que marcou o destino deles. A retomada da imigração para os Estados Unidos após o fim da guerra acentuou a xenofobia de uma parte da população que considerava alguns grupos imigrantes etnicamente inferiores e inassimiláveis. Os italianos, sobretudo os do sul da Itália, eram acusados de mal-educados, violentos e propensos ao crime. Naqueles anos, linchamentos racistas atingiam os afro-americanos, mas também vitimaram 30 italianos.

Durante todo o processo, sindicatos e grupos de esquerda iniciaram uma enorme campanha para obter apoio da opinião pública e arrecadação de fundos para a defesa de Sacco e Vanzetti. O drama dos dois trabalhadores provocou comoção e indignação entre os trabalhadores de todo o mundo, sendo um catalisador da identidade de classe. Protestos imponentes se multiplicaram em quase todas as capitais do mundo.

O impacto sobre o movimento operário mundial foi muito grande, configurando o mais significativo fenômeno de solidariedade internacional do período. Para além da solidariedade étnico-nacional de trabalhadores italianos, a condenação de Sacco e Vanzetti foi sentida como um processo contra a classe operária em todo o mundo, contribuindo para que os trabalhadores se reconhecessem como membros de uma classe transnacional e sujeitos políticos ao longos dos anos 20.

No Brasil, greves, manifestações e comícios de solidariedade ocorreram em vários estados e principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo, onde foram os sindicatos a organizar comitês de Agitação pró Sacco e Vanzetti, com a colaboração de anarquistas e comunistas. Nos dias que antecederam a execução dos anarquistas, a polícia agiu com violência para reprimir a multidão de trabalhadores que tomaram as ruas em bairros operários da cidade de São Paulo, como o Brás e o Ipiranga. Comícios chegaram a ocorrer duas vezes por semana. O jornal anarquista A Plebe noticiou que no dia da execução houve um comício na praça do Patriarca do qual participou “toda a classe operária da capital”. Outros jornais registraram gritos de vivas à memória de Sacco e Vanzetti  e à solidariedade operária.

Somente 50 anos depois da execução, em 1977, o governador de Massachusetts reabilitou a memória de Sacco e Vanzetti, reconhecendo a inocência e os preconceitos, de várias ordens, que haviam determinado a condenação. Muitos trabalhadores e militantes em todo o mundo esperaram que a morte deles permanecesse como um alerta contra a intolerância e a xenofobia, que, infelizmente, custam a desaparecer e de tanto em tanto reemergem com toda a sua irracionalidade. Antes de morrer, Vanzetti escreveu “Defendi o direito de liberdade de pensamento, inalienável como o direito à vida”.

¹ Edilene Toledo é professora do Departamento de História da UNIFESP, Campus Guarulhos.

Referências:
Coccia, Andrea. Quanto ci mancano Sacco e Vanzetti. Linkiesta, 23 de agosto de 2017.
Fast, Howard. Sacco e Vanzetti. Dois mártires da luta pela liberdade. Rio de Janeiro: Best Seller, 2009.
Franzina, Emilio. Gli italiani al Nuovo Mondo. L´emigrazione italiana in America, 1492-1942. Milão: Mondadori, 1995.
Luconi, Stefano. Sacco e Vanzetti, quando gli italiani erano “bastardi”. Il Manifesto, 22-08-2017.
Moura, Clóvis. Sacco e Vanzetti: o protesto brasileiro. São Paulo: Anita Garibaldi; Fundação Maurício Grabois, 2017.
Renshaw, Patrick. The Wobblies: the story of Syndicalism in the United States. Eyre & Spottiswoode, 1967.

Crédito da imagem de capa: Sacco e Vanzetti. Biblioteca Pública de Boston.

Vale Mais #04 – A Pandemia de 1918 e os mundos do trabalho


Vale Mais é o podcast do Laboratório de Estudos de História dos Mundos do Trabalho da UFRJ. O objetivo é discutir história, trabalho e sociedade, refletindo sobre temas contemporâneos a partir da perspectiva da história social.

O episódio #04 é sobre A Pandemia de 1918 e os mundos do trabalho.

Há pouco mais de 100 anos, a pandemia da Gripe Espanhola, em 1918, aterrorizou o planeta, causando milhares de mortes em todo o globo. Nosso programa hoje procura entender o que foi essa pandemia, como o Brasil lidou com ela e como a gripe espanhola afetou os mundos do trabalho em nosso país.

Quem responde essas perguntas é a historiadora Liane Bertucci, professora da Universidade Federal do Paraná e especialista em história social da saúde.

Produção: Deivison Amaral, Heliene Nagasava, Paulo Fontes e Yasmin Getirana.
Roteiro: Heliene Nagasava e Paulo Fontes.
Apresentação: Yasmin Getirana.

Créditos da Imagem de Capa : Hospital de Campanha no Kansas, Estados Unidos, durante a pandemia da Gripe Espanhola em 1918. Foto: Alamy.