LMT#95: Casa do Trabalhador do Amazonas, Manaus (AM)- César Augusto Queirós



César Augusto Queirós
Professor do Departamento de História da UFAM



Quem hoje, ao transitar pelo agitado centro de Manaus, passa pela rua Marcílio Dias, talvez não perceba, em meio à intensa movimentação dos vendedores ambulantes e dos transeuntes, um pequeno prédio que abriga parte importante da história dos trabalhadores e trabalhadoras amazonenses: a Casa do Trabalhador do Amazonas (CTA). Essa casa, foi palco de importantes lutas travadas pela classe trabalhadora do estado nas últimas sete décadas, tornando-se também espaço de sociabilidade e de intensa formação política.

Até meados da década de 1940, a maioria das entidades sindicais amazonenses não possuía sede própria. Em 1944, cumprindo promessa feita aos trabalhadores amazonenses e seguindo a “política de assistência social do presidente Getúlio Vargas”, o então interventor federal Álvaro Maia adquiriu um imóvel situado na rua Marcílio Dias, 256. As instalações foram cedidas pela Delegacia Regional do Trabalho para a instalação da Casa do Trabalhador do Amazonas (CTA), servindo como sede para diversos sindicatos e associações. Em agosto de 1947, o prédio passaria definitivamente às entidades sindicais, já no governo de Leopoldo Neves.

A Casa do Trabalhador do Amazonas foi criada com a finalidade “servir de sede às entidades sindicais existentes ou que vierem a ser organizadas” no estado. Sua primeira diretoria, eleita em junho de 1947, era presidida por Otavio Teixeira Morais da Câmara, do Sindicato dos Gráficos. Seu lema, “Paz, Trabalho, Pão e Liberdade”, até hoje está inscrito nas paredes da Casa do Trabalhador.


Nos anos 1950, alguns dos principais sindicatos do Amazonas estavam vinculados à CTA, incluindo as Federações dos Trabalhadores das Indústrias  e dos Trabalhadores de Transportes Fluviais. Mais de duas dezenas de entidades sindicais tinham conexão com a Casa.


Além de abrigar as sedes dos sindicatos, a Casa do Trabalhador oferecia ainda assistência médica e gabinete dentário a seus associados. Seus salões, além de servirem de espaço para as diversas assembleias dos trabalhadores, abrigavam ainda bailes de carnaval, festividades, competições esportivas e atividades de formações políticas, caracterizando-se como um importante local de sociabilidade e vivência associativa. Em julho de 1947, por exemplo, o Sindicato dos Taifeiros, Culinários e Panificadores em Transportes Fluviais convidava os trabalhadores para uma “esplendorosa e animada” festa dançante. Frequentemente eram realizados bailes ao som de conhecidas “jazz-bands” com o objetivo de angariar fundos para algum trabalhador enfermo ou necessitado.

A CTA recebia auxílio financeiro do Ministério do Trabalho, por meio da Delegacia Regional do Trabalho (DRT) para os custos de manutenção e para seus projetos sociais. Nos primeiros anos da Casa era evidente a estreita relação entre sua diretoria eleita e a DRT, por meio da figura do delegado Edmundo Fernandes Levy, que atuava diretamente na dotação orçamentária, obtenção de recursos e atividades cotidianas da Casa.

Essa forte aproximação do CTA com a Delegacia Regional do Trabalho, começou mudar em 1958, com a eleição de Manoel Amâncio de Oliveira, do Sindicato dos Portuários, para a presidência da Casa do Trabalhador. A CTA passou a adotar uma postura mais independente, atraindo um novo grupo de sindicalistas. Muitas dessas novas lideranças tinham ligações com o PCB, o que acirrou as disputas políticas no meio sindical, colocando em rota de colisão a nova direção e o grupo ligado ao PTB, que prestava apoio aos governos trabalhistas de Plínio Coelho e Gilberto Mestrinho.

Neste contexto, as eleições de 1960 para a direção da CTA foram bastante conturbadas e ocorreram em um clima de radicalização. Durante a eleição, a proposta de alteração do estatuto da entidade e a não homologação de alguns membros do Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias de Alimentação resultaram em tensas discussões e um conflito físico entre os sindicalistas. Os membros da oposição, ligados ao PTB, se retiraram do pleito e foi eleita a chapa apoiada pelos comunistas e encabeçada por Francisco Washington, do Sindicato dos Garçons. Este episódio representou uma ruptura no movimento sindical amazonense uma vez que os sindicatos descontentes pediram seu afastamento da CTA e inauguraram uma nova sede: a Casa dos Sindicatos de Manaus (CSM). Na solenidade de inauguração da CSM, estavam presentes o Delegado Regional do Trabalho, Nelson Braga; Danilo Areosa, representando o Governador Gilberto Mestrinho (PTB) e algumas autoridades militares. Na ocasião, foi reafirmado o apoio daquelas associações ao governador.

De toda forma, no período que precedeu o Golpe de 1964, a Casa do Trabalhador do Amazonas tornou-se um espaço privilegiado nas lutas sociais da classe trabalhadora amazonense. Foi um lugar de organização e apoio vital para os mais importantes movimentos paredistas deflagrados naqueles anos, como a greve dos Portuários, ocorrida em 1958, as greves dos tecelões e estivadores, em 1962, e a greve dos bancários, em 1963.

A repressão desencadeada pela ditadura instituída em 1964 e uma nova reconfiguração da classe trabalhadora e do movimento sindical nas décadas seguintes enfraquecerem a centralidade da Casa na vida social do Amazonas. No entanto, a despeito de todos os obstáculos, a Casa do Trabalhador do Amazonas resiste e continua abrigando sindicatos, realizando atividades de formação e segue sendo, há sete décadas, o “quartel general dos trabalhadores da terra cabocla”.

Casa do Trabalhador do Amazonas na década de 1950.
Disponível em: 
http://jmartinsrocha.blogspot.com/2013/10/a-casa-do-trabalhador-do-amazonas-cta.html


Para saber mais:

  • QUEIRÓS, César Augusto Bubolz. A Casa do Trabalhador do Amazonas: o quartel general dos trabalhadores da terra cabocla (1944-1964). In: Clarice Gontarski Speranza. (Org.). História do Trabalho: entre debates, caminhos e encruzilhadas. Jundiaí: Paco Editorial, 2019.
  • QUEIRÓS, César Augusto Bubolz. ‘Que fizeram com meu pai?’: sindicalismo e ditadura no Amazonas. Escritas do Tempo, v. 2, 2020. https://periodicos.unifesspa.edu.br/index.php/escritasdotempo/article/view/1204
  • VALENTE, Aviz. CGT: antecedentes e protagonistas. Manaus: Travessia, 2005.

Crédito da imagem de capa: Lema da Casa do Trabalhador do Amazonas inscrito no salão principal da entidade. Foto de César Queiroz, 2021.


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Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

LMT#94: Estação Ferroviária do Brás (Estação do Norte), São Paulo (SP) – Valéria Barbosa de Magalhães e Marilda Menezes



Valéria Barbosa de Magalhães
Professora da EACH/USP

Marilda Menezes
Professora da UFABC




Eu viajo quinta-feira
Feira de Santana
Quem quiser mandar recado
Remeter pacote
Uma carta cativante
A rua numerada
O nome maiusculoso
Pra evitar engano
Ou então que o destino
Se destrave longe.
Meticuloso, meu prazer
Não tem medida,
Chegue aqui na quinta-feira
Antes da partida.

(Correio da Estação do Brás. Tom Zé, 1978)


A antiga Estação do Norte, no bairro do Brás na cidade de São Paulo, foi inaugurada em 1875. Ela tinha como destino a estação de Santo Antônio da Cachoeira que, a partir de 1877, passou a ser o local de ligação entre São Paulo e Rio de Janeiro.

Na segunda metade do século XIX, a construção de complexos ferroviários esteve diretamente associada à expansão da economia cafeeira. Boa parte do investimento nas ferrovias vinha de produtores de café. No final do século XIX, o Estado de São Paulo concentrava 3.471 km nas suas 18 linhas férreas. Localizada na mais importante área industrial e de moradia operária na cidade no início do século XX, a Estação do Norte foi se consolidando como um dos principais entroncamentos ferroviários de São Paulo.

Em 1945, no contexto do final da II Guerra Mundial, a Estação do Norte foi rebatizada como Estação Roosevelt, nome que até hoje carrega. Ao lado dela ficava a Estação do Braz (assim grafada até a década de 1940), que foi inaugurada em 1867 e construída pela São Paulo Railway. O nome Estação Brás é hoje usado pelo Metrô, localizada ao lado dessa ferrovia.

As linhas férreas do Estado de São Paulo foram responsáveis pelo transporte e pela continuidade dos fluxos migratórios ligados à economia cafeeira, tanto no caso dos imigrantes europeus e japoneses, quanto dos migrantes internos. Até a década de 1950, o trem era o principal meio de entrada de nordestinos em São Paulo, por exemplo. O protagonismo das ferrovias no transporte de migrantes para São Paulo só foi derrubado com a expansão da malha rodoviária, nos anos 1950, em especial com a inauguração da Rodovia Rio-Bahia. Nem por isso, no entanto, os trens deixaram de ser usados. A Estação do Norte continuaria a cumprir por muitos anos seu papel de catalisadora da chegada de pessoas do Nordeste em São Paulo.

Na memória dos migrantes, especialmente vindos do Nordeste, a Estação do Norte figura como eixo central. Alguns fatores explicam a relação objetiva e simbólica entre a estação, o Bairro do Brás e os migrantes nordestinos. Primeiramente, destaca-se a conexão entre a linha Central do Brasil e o Norte de Minas, para onde convergiam trabalhadores de diversas partes do Nordeste. Além disso, a Hospedaria dos Imigrantes se localizava ao lado dessa estação. Se antes servia aos imigrantes estrangeiros que se dirigiam às fazendas do interior do estado, a partir da década de 1930, a hospedaria passou a abrigar migrantes de várias partes do Brasil, em especial do Nordeste. Outro elemento que contribuiu para esse elo: a Estação do Norte se localizava na Zona Leste da cidade, cujos bairros concentram até hoje a maior população municipal de nordestinos e descendentes.

Era na Estação do Norte que os migrantes tinham o seu primeiro ponto de chegada em São Paulo, onde amigos, familiares – ou mesmo atravessadores ou intermediários, conhecidos por gatos – os encontrariam. Era ali que os agenciadores buscavam mão de obra tanto para a lavoura paulista, quanto para o setor de construção, indústria e serviços em expansão na região metropolitana de São Paulo, particularmente na segunda metade do século XX.


Nas lembranças de muitos migrantes, a estação era um espaço em que empregos eram negociados. Ela também era o ponto de partida das redes de apoio para a obtenção de trabalho e moradia logo na chegada.


O trem não era o único meio de transporte que trazia pessoas do Nordeste e do Norte de Minas para o Brás. Antes da inauguração da Rodoviária da Luz, nos anos 1960, era comum que as pessoas chegassem de ônibus, desembarcando no bairro do Brás, ao lado da Estação do Norte, o qual se configurava como o principal espaço de recepção dos migrantes na cidade.

O bairro do Brás, nas cercanias da Estação Roosevelt, foi também se tornando um espaço de comércio e sociabilidade dos migrantes. As chamadas “Casas do Norte”, muitas no entorno da Estação, além de comercializarem produtos de origem nordestina, funcionavam também como “postos de correio” informais. Nelas, eram enviados e recebidos pacotes da cidade natal, mandados por  famílias e portados por outros que ali chegavam e partiam, como traduziu a canção de Tom Zé.

Ainda que as migrações se justifiquem por uma heterogeneidade de motivos, era o trabalho que movia esses migrantes para São Paulo. Eram as redes sociais que, na maioria das vezes, propiciavam o encaixe de cada um deles no mercado de trabalho. Era o sonho de uma vida melhor no Nordeste que os impulsionava a migrar. Desta forma, os migrantes subverteram a condição de pura força de trabalho a eles designada pela sociedade, trazendo simbolismos e expectativas próprias muito diferentes daquelas a ele destinadas. A memória que carregam, tanto do lugar de origem quanto de chegada, é complexa e rica, agregando, para além do trabalho, imagens e espaços de histórias subjetivas e familiares.

É este o caso da Estação do Norte, lugar de trabalho, mas também de encontros, de trocas de informações e de produtos simbólicos da cidade de onde vieram. Lugar de saudade, mas também de construção de laços sociais entre os que estão lá e aqui. Ela é, portanto, mais do que um espaço geográfico ou um equipamento urbano de recepção da gente que vinha de outros estados e de outros países. A paragem do Brás e o seu entorno figuram-se como fundamentais lugares de memória dos trabalhadores migrantes na cidade de São Paulo.

A Estação do Norte em seus primórdios, com a Estação do Braz ao fundo. Cartão postal antigo.
Fonte: https://www.rmgouvealeiloes.com.br/peca.asp?ID=969630&ctd=235&tot=572&tipo=
Tabela de horários de saídas de trem da Estação do Norte (sem data). Os horários revelam as diferentes estações té o Rio de Janeiro (a Corte) e o trajeto dos trens entre a Linha Férrea do Norte e a Estrada de Ferro Dom Pedro II (com a conexão em Cachoeira).
Fonte: Estações Ferroviárias. Disponível em: http://www.estacoesferroviarias.com.br/trens_sp_2/efnorte.htm , acesso
em 30/06/2021.


Para saber mais:

  • FONTES, Paulo. Um Nordeste em São Paulo: Trabalhadores migrantes em São Miguel Paulista. Rio de Janeiro: FGV, 2008.
  • MATOS, Odilon Nogueira de. Vias de comunicação. In HOLANDA, Sérgio Buarque de. O Brasil Monárquico: declínio e queda do império. História Geral da Civilização Brasileira. t. 2, v. 4. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,1995.
  • PAIVA, Odair. Territórios da migração na cidade de São Paulo: entre a afirmação e negação da condição migrante.  Ideias. Campinas, 2011.
  • STEFANI, Celia Regina Baider. O sistema ferroviário paulista: um estudo sobre a evolução do transporte de passageiros sobre trilhos. Dissertação (Mestrado em Geografia Humana) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.

Crédito da imagem de capa: Migrantes na Estacão do Norte. Acervo do Museu da Imigração de São Paulo


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Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

LMT#93: Companhia Têxtil Brasil Industrial, Paracambi (RJ): Paulo Keller



Paulo Keller
Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFMA



A cidade de Paracambi, localizada a cerca de 80 km do Rio de Janeiro, num sopé na baixada fluminense e já nos limites do vale do café no sul do estado, tem hoje como seu principal símbolo a imagem da fábrica de tecidos da antiga Cia. Têxtil Brasil Industrial. A implantação pioneira desta grande fábrica de tecidos na década de 1870, nesta região, propiciou o surgimento de uma comunidade de trabalhadores têxteis que foi o núcleo principal aglutinador da população que hoje constitui o município de Paracambi. 

Os fundadores desta antiga Companhia eram otimistas em relação à escolha do local de implantação da fábrica. O espaço apresentava um conjunto de vantagens, como a facilidade e comodidade de tráfego,  a existência de um serviço telegráfico e do correio diário, a proximidade do grande mercado da capital (apenas 1h 30min de viagem em via-férrea), a abundância e altura das águas aproveitáveis para moverem o maquinismo da fábrica, além da povoação já existente no local. Todos esses fatores justificavam a escolha das terras da antiga fazenda do Ribeirão dos Macacos, no então município de Itaguay, para sede deste empreendimento industrial. Distava apenas 1 km da Estação Ferroviária de Macacos (inaugurada em 1861), um ramal da Estrada de Ferro D. Pedro II.

A fábrica de tecidos de algodão da Companhia Têxtil Brazil Industrial foi estabelecida inicialmente em 1870. Foi montada em um imponente edifício com 500 pés de comprimento sobre 50 de largura, com 3 andares, além das lojas, com alicerces de pedra e grossas paredes de pedra rústica até o vigamento do 1.o andar; e com paredes de tijolos daí para cima. Contudo, a Companhia não pode ir avante e foi dissolvida. Sendo que, no ano seguinte, em 1871, ela foi reorganizada, idêntica em tudo à primeira, com apenas ligeiras modificações em seus estatutos aprovados em 6 de setembro de 1871. A primeira diretoria eleita era composta pelos fundadores da empresa: Francisco de Assis Vieira Bueno, Zeferino de Oliveira e Silva e Joaquim Dias Custódio de Oliveira, capitalistas de origem portuguesa que haviam acumulado recursos no comércio da capital. 


Essa foi a primeira grande(e até o final da década de 1880 a maior) fábrica de tecidos de algodão do Brasil. A Fábrica Brasil Industrial era equipada com 24.000 fusos e 400 teares, empregando inicialmente 400 pessoas. Neste período a cidade e a província do Rio de Janeiro tornaram-se o principal centro da indústria têxtil de algodão do Brasil.


A falta de uma vila operária estruturada no início do empreendimento gerava dificuldades para superar a escassez de operários. Assim, em 1886, a companhia já havia providenciado casas para os trabalhadores, constituindo uma vila operária. Em 1888 foram concluídas as “obras de saneamento da localidade”. A iluminação elétrica da vila ocorreu em 1919. À medida que se configurava o sistema de fábrica com vila operária, surgia uma ampla rede de serviços que incluía escola, armazém, clube social e esportivo, além de um posto de saúde e de uma capela. Estes serviços oferecidos na vila, tanto funcionavam como mecanismos de controle quanto espaços de sociabilidade dos operários e operárias em sua vida cotidiana, reforçando uma identidade cultural operária expressiva nesta comunidade de trabalhadores.

Essa forte identidade de classe compartilhada foi fundamental em momentos de crise como o vivido em 1918, quando uma grande greve colocou em xeque as formas de dominação e controle social da empresa. Liderados pelos anarco-sindicalistas da União dos Operários em Fábricas de Tecido do Rio de Janeiro, os cerca de 2 mil e 500 operários e operárias de Paracambi paralisaram seu trabalho por vários dias reivindicando a redução das extensas jornadas de trabalho. Apesar de fortemente reprimida, a greve logrou a extinção do trabalho aos domingos e legou uma cultura de resistência que se manifestaria, tanto no cotidiano fabril quanto no espaço público, em diversos momentos nas décadas seguintes.

Na segunda metade do século XX, a Cia. Têxtil Brasil Industrial passaria a enfrentar momentos de crise econômica e, a partir dos anos 1960, um contínuo declínio de seu antigo sistema fabril. Inicialmente com o transbordamento urbano da antiga vila operária, que resultou no surgimento do município de Paracambi, emancipado em 1960.  Na década de 1970, as casas da vila foram vendidas e a rede de serviços foi sendo desativada. Nos anos 1980, o empreendimento industrial entrou em uma crise definitiva que levaria ao encerramento das suas atividades em 1996.           

O tombamento deste sítio industrial como patrimônio histórico e cultural ocorreu ainda durante o funcionamento da fábrica em 1985 pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (INEPAC). O conjunto fabril tombado incluiu  o edifício central (fábrica),  a usina de força, a casa do diretor (casarão), a capela de Nossa Senhora da Conceição e edificações complementares, importantes espaços de memória local.

A transformação do prédio da fábrica em Centro de Ensino Público Integrado – Fábrica do Conhecimento ocorreu em 2002, passando a sediar diversas instituições educacionais tecnológicas e superiores públicas. Em 2020 foi criado o Centro de Memória e Museu da Indústria Têxtil projeto ligado ao IFRJ/Campus Paracambi, que funciona no prédio da antiga fábrica. O Centro de Memória constituí hoje um espaço de preservação deste valioso patrimônio industrial e de reflexão e de debate público sobre a memória da indústria e dos lugares de memória do trabalho fabril têxtil. 

 Trabalhadores de seções diversas (1912). Acervo de Paulo Keller.
A foto foi uma doação da Sra. Silvia Fernandes, ex-funcionária da antiga Cia. Têxtil Brasil Industrial.


Para saber mais:

  • CIAVATTA, Maria (org.) Memória e Temporalidades do Trabalho e da Educação. Rio de Janeiro: Lamparina/FAPERJ, 2007.
  • KELLER, Paulo. Cultura do trabalho fabril. São Luís: EdUFMA, 2019.
  • http://www.edufma.ufma.br/index.php/produto/cultura-do-trabalho-fabril/
  • STEIN, Stanley. Origens e Evolução da Indústria Têxtil no Brasil: 1850/1950. Rio de Janeiro, Campus, 1979.
  • SUZIGAN, Wilson. Indústria Brasileira: Origem e Desenvolvimento. São Paulo, Brasiliense, 1986.
  • Site: Núcleo de Estudos do Centro de Memória Têxtil de Paracambi: https://memoriaoperariaparacambi.com.br/

Crédito da imagem de capa: Cia. Têxtil Brasil Industrial – Mestres, contramestres e encarregados – 1950. Acervo de Paulo Keller. Fotógrafo anônimo


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Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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LMT #92: Colônia de Férias do Sindicato dos Trabalhadores Têxteis de São Paulo, Praia Grande (SP) – Paulo Fontes



Paulo Fontes
Professor do Instituto de História da UFRJ e Coordenador do LEHMT/UFRJ 



Desde os anos 1950, o balneário de Praia Grande, no litoral paulista, foi se consolidando como um dos principais destinos turísticos e de veraneio dos trabalhadores de São Paulo. Praia Grande tornou-se sinônimo de praia popular e, não por acaso, diversas entidades sindicais construiriam ali suas colônias de férias entre as décadas de 60 e 80. Atualmente com cerca de 160 colônias, muitas delas na famosa Avenida dos Sindicatos, a cidade é considerada o maior centro de lazer sindical da América Latina.

A colônia de férias do tradicional Sindicato dos Trabalhadores Têxteis de São Paulo em Praia Grande entraria para a história não apenas como um espaço de recreação, mas por sediar um dos mais importantes encontros da história do movimento sindical brasileiro. Projetada pelo renomado arquiteto Vilanova Artigas, cujas conexões com o movimento operário vinham de sua militância no Partido Comunista Brasileiro, a sede da colônia começou a ser construída em 1969, mas levaria vários anos para ser concluída. De toda forma, já era utilizada ao longo da década de 1970.

O ciclo de greves iniciado pelos metalúrgicos do ABC em 1978 colocou o sindicalismo no centro da arena política do processo de redemocratização do país. Naquele contexto, iniciativas para coordenar e unificar as várias lutas e demandas dos mundos do trabalho ganhavam espaço e voltava à baila uma antiga proposta de criação de uma central sindical única.

Unificar o movimento sindical, no entanto, não era tarefa simples. Além das diversas diferenças regionais e entre categorias, as divisões políticas tornavam-se acentuadas. Dois grandes blocos chamavam a atenção. De um lado, os chamados sindicalistas “autênticos”, que reuniam dirigentes de sindicatos e de oposições sindicais que se auto intitulavam parte de um “novo sindicalismo”. Muitos deles eram fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT), criado em 1980. De outro, o grupo “Unidade Sindical”, que reunia sindicalistas vinculados a partidos de esquerda como o PCB e o PCdoB, além de dirigentes sindicais considerados moderados, alguns deles antigos interventores. Dois metalúrgicos, Lula, de São Bernardo do Campo e Joaquinzão, de São Paulo, eram as figuras de maior destaque de cada um desses setores.

Apesar dessas diferenças, o protagonismo dos trabalhadores na luta contra a ditadura militar e os fortes efeitos recessivos da crise econômica que tomava conta do país levaram as variadas correntes do sindicalismo brasileiro a organizar um grande evento unificado que superasse as divisões e avançasse a organização dos trabalhadores. Esse evento foi a  1ª Conferência da Classe Trabalhadora (Conclat), realizada entre 21 e 23 de agosto de 1981 na Colônia de Férias do Sindicato dos Têxteis em Praia Grande.

 Ainda em construção, a colônia já tinha um amplo salão de reuniões e dez apartamentos. Hugo Perez, líder sindical dos eletricitários e um dos idealizadores do evento, lembraria anos depois que “muitos sindicatos não quiseram ceder a colônia para fazer a Conclat por receio da ditadura”. Não era para menos. Três meses antes, agentes do governo tentaram explodir o Riocentro em uma ação desastrada. 

A Conclat foi um dos maiores encontros sindicais da história do país. Compareceram 5.036 delegados e delegadas, representando 1.091 entidades sindicais de todo o país e das mais variadas categorias profissionais urbanas e rurais. A efervescência sindical brasileira também chamava a atenção do sindicalismo internacional e centrais sindicais de países como Estados Unidos, Alemanha, Portugal e França, entre outros, enviaram representantes. Em um contexto de luta contra a ditadura e prestígio do movimento sindical, diversas lideranças políticas de oposição como Luís Carlos Prestes, Teotônio Vilela, Ulysses Guimarães, Mário Covas compareceram ao evento.


O grande afluxo de sindicalistas provocou dificuldades para a logística. Hugo Perez lembra que “aqueles que não tinham acomodações, dormiram na praia. De manhã cedo, estava aquela turma parada, olhando o mar. Aí, de repente um pega a água do mar, põe na boca: ‘Salgado’. Não conheciam o mar!”. 


Apesar dos debates acalorados, o ambiente geral era festivo. No dia 22 de agosto, quando foi anunciada a morte do cineasta Glauber Rocha, um emocionante minuto de silêncio tomou conta do plenário, seguido de aplausos aos “artistas trabalhadores”, como lembraria Clara Ant, uma das delegadas da Conclat.  As imediações da colônia de férias lembravam uma quermesse popular, onde se vendia comida, livros e jornais de variadas correntes políticas, além de camisas de times de futebol.

A agenda de debates era extensa. A estrutura sindical corporativa brasileira foi um dos temas mais polêmicos, colocando “autênticos” e a “Unidade Sindical” em polos opostos. Táticas de como enfrentar a ditadura militar e os desafios da redemocratização também eram divergentes, embora tenha sido possível construir uma agenda comum de luta contra a carestia e o desemprego e a defesa da redução da jornada de trabalho e de uma Assembleia Nacional Constituinte Livre e Soberana. Foi formada uma Comissão Pró-CUT, mas a desejada unidade organizativa não se concretizou e nos anos seguintes seriam formadas duas centrais sindicais, a CUT e a CGT.

A Conclat foi um momento central de afirmação da identidade dos trabalhadores e de demonstração de força do movimento sindical na construção da democracia brasileira. A agenda política ali construída marcaria fundamentalmente a ação do sindicalismo nas décadas seguintes. E a Colônia de Férias do Sindicato dos Têxteis de São Paulo foi o cenário desse encontro memorável da história dos trabalhadores e trabalhadoras em nosso país.

Delegados e delegas durante a Primeira Conclat. Fotografia de Jesus Carlos
 Lula discursa na I Conclat em Praia Grande. Acervo CEDOC/CUT

Para saber mais:

  • ALMEIDA, Maria H. Tavares de. Crise econômica e organização de interesses: as estratégias do sindicalismo brasileiro nos anos 80. Tese de Livre-Docência. São Paulo, USP, 1992.
  • GIANNOTTI, Vito & LOPES NETO, Sebastião. CUT ontem e hoje — o que mudou das origens ao IV Concut. Petrópolis, Vozes, 1991.
  • MERCADANTE, Aloísio; RAINHO, Luis Flavio. CUT e Conclat: a divisão política do movimento sindical. Aconteceu Especial – Trabalhadores urbanos no Brasil 82/84. São Paulo/Rio de Janeiro: CEDI, 16, 1986.
  • OLIVEIRA, Roberto Véras. Sindicalismo e Democracia no Brasil: Do Novo Sindicalismo ao Sindicato Cidadão. São Paulo: AnnaBlume/Fapesp, 2011.
  • Filme documentário: 1a CONCLAT: Conferência Nacional da Classe Trabalhadora. Diretor Adrian Cooper, 2011. https://www.youtube.com/watch?v=xpFx4GjHOII

Crédito da imagem de capa: Reprodução do cartaz da I Conclat


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LMT#91: John Grant & Company, Maraú (BA) – Rute Andrade Castro



Rute Andrade Castro
Professora de História da UNEB – Campus XIV



Maraú hoje faz parte de uma das mais apreciadas zonas turísticas do litoral da Bahia. Em 1884, porém, o que atraiu pessoas para a região foi a fábrica que os britânicos John Cameron Grant e Lord Walsinghan montaram na fazenda João Branco, para beneficiamento dos minérios extraídos das margens do rio que banha a península. O alvoroço foi grande, pois empregou um expressivo contingente – que ficou conhecido como “os trabalhadores da turfa”, principal matéria prima da fábrica –, abalou a economia e se eternizou na memória local por ter sido palco de um famoso crime.

A região já despertava interesse por conta das descobertas iniciais de xisto betuminoso, carvão de pedra e petróleo, e houve uma pioneira iniciativa nacional para promover sua extração, porém nada que se comparasse à dimensão do que foi visto a partir de 1884. A destilação da turfa – substância similar ao petróleo – era feita através de 12 alambiques de 14 mil litros cada um, e 52 retortas Henderson, maquinário importado da Inglaterra e da Escócia. Em 1885 já estava a todo vapor, produzindo sobretudo querosene para iluminação e empregando 116 trabalhadores. Nos anos seguintes, a fábrica seguiu ampliando sua capacidade, importando novos equipamentos e aumentando o contingente de mão de obra. Em 1889, já eram mais de 300, todos homens, em sua maioria negros, mas  não há registro de utilização de escravizados.

O carro chefe da fábrica, que produzia óleos lubrificantes, velas de parafina, sabão e ácido sulfúrico, era o “petróleo nacional inexplosivo”, chamado Brazoline – que na verdade era um tipo de querosene usado para iluminação – registrado pela John Grant & Cia industriais na Junta Comercial da Bahia em 1888.

Naquela década de 1880, o que a vila de São Sebastião de Maraú tinha de mais próximo a uma indústria era a produção de farinha de mandioca, bastante significativa na época, ligada a pequenas propriedades e de fabricação predominantemente familiar. Com a instalação da fábrica, a farinha começou a escassear até para consumo local, e seu preço subiu porque as lavouras estavam sendo abandonadas, já que os lavradores, como disse o delegado na época, “correram” para o “trabalho na turfa no João Branco”. A mão de obra local não foi suficiente, e trabalhadores de outras regiões foram atraídos para o empreendimento justamente na década em que se acirravam os conflitos em torno da abolição da escravidão.


A fábrica  certamente foi vista por livres e libertos como uma oportunidade de nova vida. Um deles foi Bernardino Moreira de Sousa.


Na manhã do dia 7 de dezembro de 1889 , junto com outros companheiros,  Bernardino descarregava um dos vagões que transportavam mercadorias no interior da fábrica, quando se desentendeu e agrediu o maquinista Gaudêncio da Costa Silva. Depois de promover verdadeiro tumulto na fábrica,  Bernardino disse que não queria mais trabalhar lá e foi “pedir suas contas”.

Desconfiado de ter sido ludibriado no valor recebido, Bernardino voltou ao escritório da empresa, profundamente irritado e armado com uma garrucha. Após agredir alguns funcionários apontou sua arma para um dos patrões britânicos, Even Cattanach. A garrucha, no entanto, falhou, permitindo a fuga de Cattanach. Bernardino tentou então atingir outro britânico, Jorge Anderson, que, no entanto estava armado e atirou quase ao mesmo tempo em que John Cameron Grant, gerente da fábrica, desferia um segundo tiro contra Bernardino, que caiu morto.

O processo que se originou desse crime conta muito sobre a fábrica.  Além de revelar aspectos sobre as relações de trabalho e do cotidiano da empresa,  ele nos diz como os conflitos de classe também adquiriam colorações de rivalidades étnicas. Quando, por exemplo, um dos engenheiros britânicos da empresa, MacDonald, tentou conter Bernardino, os trabalhadores teriam reagido, afirmando que seria um desaforo prenderem “um brasileiro patrício” diante deles. Além disso, muitos teriam dito que Bernardino “queria matar um inglês”, indistintamente. Essa generalização permanece inclusive na argumentação do promotor, para quem Anderson poderia ter fugido, mas preferiu ficar onde estava, matando Bernardino “com a fleuma e sangue frio próprios de sua nação”.

Muito provavelmente este foi o assunto principal da localidade por meses ou até anos.  Anderson e Grant foram absolvidos por terem agido em legítima defesa. No entanto, permaneceu na memória local a ideia de que um trabalhador brasileiro descontente foi assassinado por patrões estrangeiros, e que isso teria tornado insustentável a presença dos britânicos na região

De toda forma, dois anos depois do incidente, a fábrica foi vendida para a Companhia Internacional de Maraú, de propriedade de um outro britânico, Frank George Williamson. Nos anos seguintes, a empresa entrou em decadência e acabou penhorada em 1898, quando já estava em ruínas. O local foi tomado pelo mato, restando atualmente apenas poucos indícios da existência da fábrica, como um poço – de onde se diz que era retirada a turfa – , uma estrutura que parece ter sido de um aqueduto, tijolos antigos e objetos diversos espalhados. Mais de um século depois do seu fechamento, no entanto,  as lembranças da “fábrica dos ingleses” ainda permanece viva na memória local.

 
Trabalhadores empurrando carro sobre trilho e provável alojamento dos britânicos
Fonte: Ubaldo Senna, acervo particular


Para saber mais:

  • CASTRO, R. A. Vestígios de uma fábrica britânica em fotografias de seus trabalhadores. Transversos: Revista de História, 10, 2017.
  • CASTRO, R. A. Conflitos étnico-raciais nos mundos do trabalho baiano: “valentes, viciados e perigosos”. ODEERE: Revista do Programa de Pós-Graduação em Relações Étnicas e Contemporaneidade – UESB. Volume 4, número 7, 2019.
  • SANTOS, Cristiane Batista da Silva. Histórias de africanos e seus descendentes no sul da Bahia. Ilhéus: Editus, 2019.
  • TEIXEIRA, CID. História do Petróleo na Bahia. Salvador: Editora Fernando José Caldas Oberlaender, 2010.

Crédito da imagem de capa: John Grant ao centro cercado por equipamentos e trabalhadores britânicos e brasileiros Fonte: Ubaldo Senna, acervo particular


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Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

LMT#90: Santo Antônio do Rio Madeira, Porto Velho (RO) – Tyrone Cândido




Tyrone Cândido
Professor de História da Universidade Estadual do Ceará, campus de Quixadá



Quem anda pelas ruas de Santo Antônio, hoje um bairro da cidade de Porto Velho às margens do Rio Madeira, tem poucas evidências de um passado protagonizado por trabalhadores e trabalhadoras que ali viveram nos tempos de construção da lendária Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (EFMM). Eram pessoas provenientes dos mais diversos lugares, uns atraídos pelos empregos da ferrovia, outros para lá enviados à força.

Santo Antônio foi sede das primeiras expedições de construção da EFMM na década de 1870. À época, não passava de um precário posto militar, somente acessado pelas águas do Madeira. Era também um marco de uma mal definida fronteira entre o Brasil e a Bolívia. A emergente exploração da borracha na região era a principal motivação para a construção da ferrovia.

A primeira tentativa de construção da EFMM deu-se em 1872, quando, técnicos, engenheiros e operários para lá foram enviados por George Earl Church, agente norte-americano autorizado pelos governos brasileiro e boliviano a explorar a via-férrea. Foi um grande fracasso. As dificuldades de ali se estabelecer, os desafios da mata fechada, os ataques de indígenas, terríveis e mortais doenças, tudo fez com que logo se percebesse que aquele era um empreendimento extremamente perigoso.

Em 1878 a Comissão Collins, com sede na Filadélfia, Estados Unidos, conseguiu iniciar a construção da linha, porém teve de manter o recrutamento de milhares de operários que substituíam os que morriam ou abandonavam as obras em fugas temerárias. De início, as turmas eram compostas por imigrantes alemães, irlandeses, italianos, que viviam nos EUA. Depois vieram retirantes do Ceará, refugiados da grande seca de 1877. Indígenas eram também agenciados junto a seringalistas locais. Somavam quase 1.500 trabalhadores.


Apesar de suas diferenças culturais, aquela composição multinacional de operários promoveu em março de 1878 uma greve contra o atraso de salários e as indignas condições de trabalho e estadia. Agentes da Comissão Collins reprimiam os operários com dureza, compondo um cotidiano de forte tensão.


Anos depois, foram arregimentados para a ferrovia membros de famílias norte-americanas que viviam no Brasil, descendentes de antigos confederados da Guerra Civil. Construtores desligados do Canal do Panamá foram também para ali enviados (eram, nesse caso, antilhanos, espanhóis, norte-americanos). De Cuba chegaram trabalhadores galegos que construíam ferrovias naquela ilha. Estima-se que quase 30 mil pessoas de mais de 40 nacionalidades diferentes trabalharam na construção, entre 1907 e 1912. Habitantes da bacia amazônica formavam uma menor parcela dos contratados, mas não podemos deixar de lado a participação dos indígenas que prestavam serviços no transporte pelas corredeiras ou na obtenção de recursos da floresta.

Uma das cláusulas do Tratado de Petrópolis, assinado em 1903 após os conflitos de fronteira no Acre, previa a efetiva conclusão da EFMM até Guajará-Mirim. Foi então que o empresário Percifal Farquhar assumiu a concessão, em pleno auge dos negócios da borracha. Momento decisivo para o futuro de Santo Antônio, pois então a sede da construção foi transferida para Porto Velho, hoje a capital do estado de Rondônia, dali distante uns sete quilômetros rio abaixo. Neste último ponto seria construída a estação central, depósitos, almoxarifado e o porto. Também ali seriam erguidos escritórios e residências dos administradores, engenheiros e empreiteiros. As casas de Porto Velho eram amplas, feitas de madeira pintada, com telhados de zinco tratado, soalhos de madeira calafetada e varandas com telas que protegiam dos mosquitos. Mas isso era privilégio para uma minoria.

A maior parte dos que trabalhavam continuavam a viver em Santo Antônio. Oswaldo Cruz, quando ali esteve para orientar medidas sanitárias, registrou um quadro em tudo contrastante ao que se via em Porto Velho. Na cidadela de cerca de dois mil trabalhadores não havia esgoto, água canalizada ou iluminação. O lixo era atirado na rua. Terrenos no centro do povoado formavam pântanos. As poucas crianças logo morriam.

Administradores da EFMM adotavam uma política de proibição da presença feminina, mas elas estavam lá. Além de lavadeiras e enfermeiras que serviam no Hospital da Candelária, mulheres faziam os serviços domésticos nas casas de Porto Velho e residiam com suas famílias em Santo Antônio. Marcante foi a chegada de quarenta mulheres trazidas como prisioneiras no vapor Satélite, que trazia ainda centenas de homens da Casa de Detenção do Rio de Janeiro, afora marinheiros punidos por terem participado da Revolta da Chibata, em 1910. As mulheres estavam em estado de abatimento extremo, desnudas da cintura para cima e foram oferecidas como criadas para as famílias ricas. A maioria foi levada à prostituição.

A Madeira-Mamoré foi concluída em 1912, exatamente quando a exportação da borracha amazônica entrava em crise ante a concorrência dos novos produtores asiáticos. Os trens circularam desde então até 2000, contando com interrupções e retomadas, quando foram definitivamente desativados. Uma parte dos trabalhadores ali ficou, constituindo a população mais pobre na nova cidade. A maioria partiu para sempre. A construção da EFMM deixou o saldo de 8 a 10 mil mortos, o que originou a lendária máxima de ter havido uma morte para cada dormente assentado. Hoje as pedras do Rio Madeira de frente a Santo Antônio sustentam as comportas de uma usina elétrica que podemos entender como uma versão atualizada do antigo empreendimento. Em Santo Antônio, nem tudo mudou.

Viagem de inspeção durante a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré.
Fonte: https://www.brasil-turismo.com/rondonia/madeira-mamore.htm
Trabalhadores orientais em Santo Antônio do Rio Madeira (1910). Fotografia de Dana B. Merril,
Acervo do Museu Paulista da USP.


Para saber mais:

  • CANDIDO, Tyrone Apollo P. Nas fronteiras do trabalho: trânsitos e resistências numa expedição de construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. Revista Territórios e Fronteiras, Cuiabá, vol.12, n. 2, 2019.
  • CRUZ, Oswaldo Gonçalves. Madeira Mamoré Railway Company: considerações gerais sobre as condições sanitárias do Rio Madeira. Rio de Janeiro: Papelaria Americana, 1910.
  • FOOT HARDMAN, Francisco. Trem fantasma: a modernidade na selva. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1991.
  • PAIVA, Ana Carolina Monteiro. Trabalho e cotidiano na Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (1907-1919). Dissertação de Mestrado em História. João Pessoa: PPGH-UFPB, 2020.
  • SOUZA, Marcio. Mad Maria. 5ª edição. Rio de Janeiro: Record, 2002.

Crédito da imagem de capa: Rua de Santo Antônio do Rio Madeira(1910). Fotografia de Dana B. Merril, Acervo do Museu Paulista da USP.


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LMT#89: Arsenal de Marinha, Rio de Janeiro (RJ) – David Lacerda



David Lacerda
Doutor em História Social pela Unicamp



Quem circula pela região entre a Praça Mauá e a Igreja da Candelária, ou caminha até a Praça Quinze para tomar a barca e atravessar a baía de Guanabara, já deve ter avistado a Ilha das Cobras e sua paisagem rodeada por guindastes, navios armados, submarinos, porta-aviões, edifícios e galpões. Ali funciona um grande complexo industrial denominado Arsenal de Marinha, cuja história remonta à fundação do Arsenal Real de Marinha em 1763, ano em que a sede da governança colonial foi transferida de Salvador para o Rio de Janeiro.

Erguido nos arredores do mosteiro de São Bento, o Arsenal serviria para a fabricação e o reparo das embarcações da esquadra lusitana, reforçando o poder militar e econômico que o porto do Rio vinha adquirindo desde o século XVII, quando passou a integrar as rotas atlânticas do tráfico negreiro e do contrabando de metais preciosos envolvendo Lisboa, Luanda e o Rio da Prata.

No início do século XIX, a capacidade produtiva do estabelecimento foi beneficiada pela oferta de madeiras e fibras vegetais nos arredores da cidade. A pesca de baleia, a navegação de cabotagem, as guerras de Independência (1821-1824), a Guerra Cisplatina (1825-1828) e a continuidade do tráfico (ilegal de 1831 a 1850) também estimularam o desenvolvimento de suas atividades, bem como a abertura de oficinas, armazéns e repartições administrativas.

Nas décadas seguintes, o Arsenal tornou-se o principal centro de construção e reparo naval da Armada brasileira e um dos principais complexos militares localizados à margem sul-americana do Atlântico. Sua área foi se expandindo pela zona portuária em direção à Prainha (atual Praça Mauá, região de fronteira com os bairros da Saúde e da Gamboa) e ao Cais dos Mineiros e à Ilha das Cobras, para onde suas instalações foram transferidas no final dos anos 1940.

O Arsenal engloba os mais diversos serviços e afazeres relacionados ao mundo do trabalho marítimo. De 1810 a 1820 funcionavam cerca de doze oficinas, como as de ferreiros, calafates, cordoaria, carpinteiros de machado, pedreiros e canteiros. A partir de meados do século, a difusão mundial de tecnologias navais impactou a organização do espaço e das relações de trabalho. Em 1875 havia ali 2.367 trabalhadores distribuídos por vinte e duas oficinas. Ofícios tradicionais como calafates e carpinteiros navais, antes majoritários, passaram a dividir mais espaço com ocupações especializadas em fundição, tornearia, caldearia, forja de metais, manejo e conservação de armamentos e máquinas a vapor.


As oficinas reuniam expressivo contingente de trabalhadores e eram atravessadas por diferenças e desigualdades de classe e étnico-raciais, assim como outros espaços do Arsenal. Neles circulavam marinheiros, indígenas, colonos chineses, trabalhadores sentenciados, artífices militares, operários nacionais e estrangeiros, escravizados e livres, adultos e crianças – uma multidão diversa que compartilhava vivências e situações de exploração distintas.


Não à toa a rotina de trabalho no Arsenal era marcada por conflitos e tensões sociais. Contra a ameaça dos castigos físicos, do recrutamento forçado, das péssimas condições de trabalho e da violência dos costumes senhoriais e militares ergueram-se tentativas de fuga, deserção, levante e rebelião – cuja expressão mais eloquente no contexto mais amplo da Marinha de Guerra foi a revolta dos marinheiros negros de 1910 e que teve o Arsenal como um de seus principais palcos. Incontáveis queixas, clamores e petições também foram dirigidas às autoridades navais, contestando a ordem estabelecida. Algumas chegaram às páginas dos jornais da cidade. Em 1862, o Jornal dos Artistas veiculou pedido da “classe artística” do Arsenal por aumento e pagamento de seus vencimentos, enquanto a Gazeta dos Operários denunciou em 1875 o atraso do pagamento dos trabalhadores.

Além disso, quando adoeciam ou sofriam acidentes no trabalho, muitos empregados e operários de oficina reclamavam auxílios pecuniários para si e suas famílias. Outros tantos organizaram mutuais, caixas econômicas e montepios. Algumas associações fundadas no período da escravidão prosseguiram após a abolição. A Sociedade Beneficente dos Artistas do Arsenal de Marinha funcionou de 1856 a 1909 e a Associação Beneficente dos Fundidores do Arsenal de Marinha permaneceu ativa entre 1884 e 1908. Os trabalhadores do Arsenal também participaram junto a portuários, marítimos e operários de estaleiros privados da Federação Marítima Brasileira, criada em 1912, do Círculo dos Operários da União e do movimento grevista deflagrado pelos marítimos em 1920.

Durante o século XX, o Arsenal alternou momentos de expansão e declínio na construção naval militar. De toda forma, seus trabalhadores mantiveram uma longa tradição de organização e lutas por direitos. Nos anos 1930 e 1940, o Partido Comunista do Brasil (PCB) chegou a ter uma célula no Arsenal e a organizar, apesar da proibição oficial da Marinha, uma Sociedade de Defesa dos Trabalhadores daquele local de trabalho. Em 1945, o presidente dessa Sociedade, Joaquim Batista Neto, seria eleito deputado federal constituinte. No mais recente contexto da redemocratização, os trabalhadores ousaram desafiar a Marinha novamente em uma importante greve realizada em 1985 que, além de melhores salários, exigia o reconhecimento da categoria como metalúrgicos e o direito de organizarem um sindicato próprio.

A história do trabalho no Arsenal de Marinha confunde-se com a própria trajetória de lutas dos trabalhadores do Rio de Janeiro. Ele é um lugar de memória fundamental da história da cidade e do país.

Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro visto a bordo de uma embarcação
(11/04/2013, acervo pessoal).


Para saber mais:

  • BRAGA, Sérgio Soares; COSTA, Henri Randel. Dos movimentos de base à Assembleia Constituinte de 1946: entrevista com Joaquim Batista Neto. Revista de Sociologia e Política, nº 6/7, 1996. https://revistas.ufpr.br/rsp/article/view/39343/24159.
  • LACERDA, David P. Trabalho, política e solidariedade operária: uma história social do Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro (c.1860-c.1890). Tese (Doutorado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas/SP, 2016.
  • NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. Cidadania, cor e disciplina na revolta dos marinheiros de 1910. Rio de Janeiro: Mauad X; FAPERJ, 2008.
  • RIBEIRO, Silene Orlando. “Exímios remadores do Arsenal da Marinha”: recrutamento e trabalho indígena no Rio de Janeiro (1763-1820). Tese (Doutorado em História) – Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica/RJ, 2019.
  • Greve no Arsenal de Marinha (1985): https://www.youtube.com/watch?v=COClA_5TXHY

Crédito da imagem de capa: Diploma de sócio da Sociedade Beneficente dos Artistas do Arsenal de Marinha da Corte. Fonte: Biblioteca Nacional, Divisão de Iconografia, Diplomas de sociedades, acervo não catalogado.


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LMT# 88: Praça Luiza Mahin, Brasilândia, São Paulo (SP) – Andrew G. Britt



Andrew G. Britt
Professor do Departamento de História da University of North Carolina School of the Arts




Luiza Mahin está na praça
pela dignidade da raça.
Qual o segredo
da linguagem dos espaços
e estátuas?
Entre o ser que passa
desligado
e a pedra imóvel ou placa
a mensagem assobia
contra o silêncio da farsa.

O que tem o passado
de tão secreto
para serem selecionados nomes de ruas e praça
s?


Em 1985 o escritor e poeta Cuti compôs as linhas acima para comemorar a inauguração da Praça Luíza Mahin no distrito da Brasilândia, na zona norte da cidade de São Paulo. Em um contexto de redemocratização do país e de participação de lideranças do movimento negro nos governos de oposição recém eleitos, como era o caso do estado e da cidade de São Paulo, a ONG  Coletivo de Mulheres Negras liderou a iniciativa de dar o nome de Luíza Mahin àquele espaço público. Um dos mais importantes ícones de feminismo negro contemporâneo, Mahin é comumente lembrada por seu envolvimento em revoltas de africanos e afrodescendentes libertos e escravizados na Bahia nos anos 1830. Ela foi a mãe de Luiz Gama, um dos mais famosos abolicionistas brasileiros. Apesar de, até hoje, constar na praça apenas uma placa simples com o nome de Mahin, sem maiores informações históricas, o ato de nomeação daquele espaço refletia e também colaborava com o processo de produção da Brasilândia como um centro de resistência e autodeterminação negra na cidade de São Paulo.

Atualmente um dos mais populosos distritos da capital paulista, a Brasilândia formou-se a partir do loteamento Vila Brasilândia em 1947. O crescimento rápido do bairro tem relação direta com as grandes intervenções urbanísticas do prefeito Prestes Maia, que começaram nos anos 1930 e continuaram até a década de 1960. O seu ambicioso projeto, o “Plano de Avenidas”, demoliu cortiços e outras moradias populares no centro da cidade. O projeto teve grande impacto em distritos como Bela Vista e Liberdade, locais de grande concentração de afrodescendentes até os anos 1940. Nas décadas seguintes, uma nova memória sobre essas regiões seria construída, invisibilizando o papel dos negros na formação desses bairros, que se se tornariam conhecidos como territórios de imigrantes: a Bela Vista “italiana” e a Liberdade “japonesa.” Muitos dos ex-moradores dessas áreas, inclusive uma população significativa de afrodescendentes, foram viver no novo loteamento de Vila Brasilândia.

Como a vasta maioria de bairros de trabalhadores pobres criados na periferia paulistana em meados do século XX, os próprios residentes autoconstruíram suas moradias e o espaço físico em geral da Vila Brasilândia. A população expandiu-se rapidamente após a abertura do loteamento em 1947, atingindo 30.000 mil residentes em menos de uma década. Esse crescimento continuaria nos anos seguintes e novos loteamentos atrairiam tanto outros residentes deslocados do centro urbano quanto a imensa leva de migrantes do Minas Gerais e do Nordeste que chegava a São Paulo naquele período. Alguns dos moradores do bairro trabalhavam nas duas pedreiras da região, enquanto outros cruzavam o rio Tietê diariamente para trabalhar na São Paulo industrial, ocupando postos em diversos setores, como no emprego doméstico, na construção civil e nos transportes.

A falta de investimento público, práticas oportunistas das imobiliárias, e a demanda incessante por moradia contribuíram para tornar a Vila Brasilândia um dos bairros mais urbanisticamente irregulares da capital paulista. A partir dos anos 1970, por exemplo, a região passou a ter a maior concentração de favelas na cidade.  


Entretanto, a Brasilândia forjou-se como um espaço de afirmação de identidades e de luta contra as desigualdades étnico-raciais e sociais em São Paulo. No contexto de uma cidade definida por um projeto de branqueamento e pelo mito da branquitude, onde os corpos negros têm sidos sistematicamente deslocados, silenciados e/ou invisibilizados, os residentes autoconstruíram a Brasilândia como um lugar de sobrevivência, resistência e autodeterminação negra.


Fizeram isso através de vários projetos e práticas, inclusive a construção de territórios de religiões de matriz africana e a criação da escola de samba Rosas de Ouro. Embora sempre habitada por uma população multirracial, a Brasilândia tornou-se uma das regiões de maior porcentagem de trabalhadores afrodescendentes na cidade e passaria a ser chamada a “Pequena África” paulista.

Nomear lugares foi uma prática marcante na construção da Brasilândia como uma “Pequena África.” Entre meados do século XIX até 1960, por exemplo, a via principal da região era chamada de Estrada do Congo, em uma referência direta à alta presença de africanos e afrodescendentes escravizados e libertos no norte da região da Freguesia do Ó (atual Brasilândia). É provável que esse nome tenha sido popularizado pelos residentes negros indicando a região como um lugar de refúgio a pessoas escravizadas e fugidas. Novos capítulos dessa história estão sendo escritos atualmente. A apenas 3km ao norte da Praça Luíza Mahin, uma nova praça foi recentemente batizada como Marielle Franco.

Esses nomes na paisagem do bairro demonstram a luta de sucessivas gerações de trabalhadores(as) negros(as) que construíram a Brasilândia como um local de resistência em meio a uma sociedade marcada por graves desigualdades e violência raciais. Lugares como a Praça Luiza Mahin reafirmam a autodeterminação negra da Brasilândia e são fundamentais nas batalhas pela memória social. Como disse o poeta Cuti há três décadas, esses são espaços “contra o silêncio da farsa” promulgado pelo projeto de branqueamento do país.

Estrada do Congo em um mapa de 1954.
 Fonte: “Mapeamento 1954 – Vasp Cruzeiro,” GeoSampa, www.geosampa.prefeitura.sp.gov.br.


Para saber mais :

  • BONDUKI, Nabil. Origens da Habitação Social no Brasil: Arquitetura Moderna, Lei do Inquilinato e  Difusão da Casa Própria, 7ª edição. São Paulo: Estação Liberdade, 2013.
  • BRITT, Andrew Graham. “‘I’ll Samba Someplace Else’: Constructing Neighborhood and Identity in São Paulo, 1930s-1980s.” PhD diss., Emory University, 2018.
  • DOMINGUES, Petrônio. Uma história não contada: negro, racismo, e branqueamento em São Paulo no pós-abolição São Paulo: Editora SENAC, 2004.
  • OLIVEIRA, Reinaldo José de. “Segregação Urbana e Racial na Cidade de São Paulo: as periferias de Brasilândia, Cidade Tiradentes e Jardim Ângela.” Tese de Doutorado, PUC-SP, 2000.
  • ROLNIK, Raquel. A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo. São Paulo: FAPESP/Studio Nobel, 1997.

Crédito da imagem de capa: Cartaz da inauguração da Praça Luíza Mahin.  Fonte: Schuma Schumaher, ed. Mulheres Negras no Brasil (São Paulo: Senac, 2014).


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LMT#87: Empresa Industrial Garcia e Amazonas Esporte Clube, Blumenau (SC) – Cristina Ferreira



Cristina Ferreira
Professora do Departamento de História da Universidade Regional de Blumenau



Blumenau tornou-se nacionalmente conhecida como o principal polo têxtil em Santa Catarina. Seu processo de industrialização, um dos mais antigos do país, possui vínculos estreitos com o fluxo imigratório no Vale do Itajaí, iniciado na década de 1840. As primeiras fábricas têxteis da cidade foram iniciativas de artesãos estrangeiros ligados às atividades de fiação e tecelagem.

A Johann Heinrich Grevsmuhl & Cia, por exemplo, era uma pequenina manufatura têxtil, de propriedade de imigrantes alemães, incrustada no vale cortado pelo Ribeirão Garcia, tendo iniciado suas atividades por volta de 1868. Em 1918, passou a ser denominada Empresa Industrial Garcia, contando com acionistas de Curitiba. A maioria de seus trabalhadores tinha ascendência germânica. Na década de 1930, tornou-se uma das principais fábricas têxteis de Santa Catarina, com sua produção em roupas de cama e toalhas de mesa, atraindo trabalhadores de várias regiões, em particular do litoral do estado. Em 1974 foi incorporada pela Fábrica de Artefatos Têxteis Artex S/A,  e o patrimônio de ambas formou um amplo complexo industrial que, ainda hoje, atua como alicerce da economia na cidade.

A presença de fábricas têxteis marcou profundamente a geografia social de  Blumenau. Por volta dos anos de 1960, dois bairros concentravam a maioria dos trabalhadores da cidade. Um deles era o Garcia, na região sul, onde se localizava a Empresa Industrial Garcia com cerca de 2.700 trabalhadores à época. O outro era o Bom Retiro, situado na região oeste, nas proximidades do centro, bairro da  Hering com seus 1.800 operários. Nesses bairros predominaram vilas operárias, formadas por pequenas casas de madeira construídas pelos estabelecimentos fabris e alugadas por preços um pouco mais acessíveis aos operários. A proximidade dos locais de trabalho favorecia tanto a pontualidade e a assiduidade, quanto o controle social do cotidiano dos trabalhadores e suas famílias.


Mas, essa proximidade entre o local de trabalho e a moradia também fortificou os laços de sociabilidade entre os trabalhadores. Associações de moradores e clubes desportivos de bairros foram organizações importantes que expressaram uma forte dinâmica comunitária em Blumenau.


O Amazonas Esporte Clube foi um dos mais expressivos exemplos dessa cultura associativa. Iniciou suas atividades por volta de 1919 e conquistou a posição de um dos clubes de futebol mais queridos entre os trabalhadores têxteis de Blumenau, atraindo muitos torcedores em seus torneios dominicais. Seu estádio era considerado um dos melhores de Santa Catarina e foi construído nas imediações da fábrica, tornando-se o único clube de futebol amador a integrar a liga profissional da cidade. Todos os seus jogadores trabalhavam na Empresa Industrial Garcia ou na Cooperativa de Consumo dos Empregados. Durante a maior parte de sua história, a maioria dos jogadores era de origem étnica alemã, mas nas décadas de 1950 e 60, predominaram os descendentes de portugueses oriundos do litoral catarinense. Apesar de uma prática esportiva eminentemente masculina, os jogos congregavam, num ambiente geralmente festivo, as famílias operárias, com forte presença de mulheres e crianças. O clube demarcava um ideal de que ser trabalhador na Garcia significava, literalmente, vestir a camisa da empresa em todas as ocasiões.

Segundo Norberto Gonçalves, antigo tecelão da Garcia, a participação no time de futebol do Amazonas não estava ligada ao complemento da renda e sim a um sentimento de prazer e identificação social. Afinal, “não recebia nada, a gente treinava porque gostava do esporte. Eles davam o material, davam chuteira, davam tudo, uniforme. Então, a gente ia lá e treinava”. Em 1957 o Amazonas Esporte Clube venceu de forma invicta a segunda divisão da Liga Blumenauense de Futebol e passou a disputar, no ano seguinte, a divisão profissional da cidade, permanecendo nesta condição até 1965. De maneira geral, nas memórias dos trabalhadores, o time do Amazonas Esporte Clube é lembrado de forma saudosa, como um importante espaço de autonomia e identidade operária.. Dário Cunha, também trabalhador do setor de tecelagem afirmava com orgulho que aquele era um time “só de operários e que contava com a presença de mecânicos, contramestres, tecelões e trabalhadores de todas as especialidades técnicas do setor têxtil.”

O Amazonas Esporte Clube foi campeão em diversos torneios municipais e estaduais e seu estádio estava sempre repleto de fiéis torcedores. Seu último título aconteceu em 1974, quando conquistou a Taça Governador Colombo Machado Salles. Após a incorporação da Empresa Industrial Garcia pela Artex, o Amazonas Esporte Clube foi desativado, por ordem dos novos dirigentes da companhia, o que causou imensa revolta e indignação entre os torcedores e pessoas ligadas ao clube. A sede do Amazonas chegou a ser saqueada, com a perda de documentos, imagens, medalhas e troféus.

Ao longo de sua existência, o Amazonas Esporte Clube foi um importante espaço de lazer e agência dos trabalhadores. Suas conexões com outros pequenos clubes de futebol, como o Canto do Rio, com outras associações comunitárias e também com o Sindicato dos Trabalhadores da Indústria de Fiação e Tecelagem de Blumenau fizeram do clube um polo fundamental da vida organizativa na cidade. Sua história está articulada aos melhores sentidos de uma cultura associativa operária: diversão, vínculos identitários e laços de solidariedade capazes de congregar os interesses de classe, tornando-se um símbolo de pertencimento dos trabalhadores em Blumenau.

Time do Amazonas Esporte Clube, campeão da segunda divisão do futebol catarinense em 1957
Vila Operária nas proximidades da Empresa Industrial Garcia, composta por aproximadamente 200 moradias. 
Acervo do Arquivo Histórico José Ferreira da Silva (AHJFS), Blumenau – SC.


Para saber mais:

  • ANNUSECK, Ellen. Nos bastidores da festa: outras histórias, memórias e sociabilidades em um bairro operário de Blumenau (1940-1950). 2005. 163 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2005.
  • FERREIRA, Cristina. Contrastes e prazeres da sociabilidade dos trabalhadores têxteis de Blumenau (1958-1968). Blumenau: Edifurb, 2018.
  • SINGER, Paul. Desenvolvimento econômico e evolução urbana: análise da evolução econômica de São Paulo, Blumenau, Porto Alegre, Belo Horizonte e Recife. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968.
  • Site http://adalbertoday.blogspot.com/2009/09/amazonas-esporte-clube-90-anos-de.html

Crédito da imagem de capa: Complexo da Empresa Industrial Garcia com o campo do Amazonas Esporte Clube (1971). Acervo do Arquivo Histórico José Ferreira da Silva (AHJFS), Blumenau – SC.


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Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

LMT#86: Engenho Matapiruma, Escada (PE)- José Marcelo Ferreira Filho



José Marcelo Ferreira Filho
Professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE)



O Engenho Matapiruma localiza-se em Escada, município da chamada Zona da Mata Sul de Pernambuco. Em diversos sentidos, é um típico exemplar das centenas de unidades produtivas dispersas no que podemos chamar “mundo dos engenhos” no Nordeste açucareiro do Brasil.

Os engenhos foram as unidades básicas que sustentaram a economia dessa região por meio milênio. Eles eram domínios quase completamente fechados a qualquer interferência do “mundo externo”: possuíam suas próprias regras, moralidade, linguagem, economia e, em alguns casos, até sua própria moeda. Os engenhos eram a essência a uma só tempo prática e simbólica do poder secular da classe patronal latifundiária. Eles eram projeções de poder sobre o espaço.


Moradores de engenho eram todos aqueles, que além de trabalhar, nasciam e moravam (viviam), praticamente toda sua vida, no interior dessas comunidades; e morar, nesse contexto, não significava apenas o fato de “habitar” uma casa, mas, sobretudo, estar totalmente à disposição dos senhores de engenho.


A morada, enquanto modelo dominante de organização da força de trabalho, remete ao período que marcou o fim da escravidão legal; foi uma etapa intermediária que sucedeu a escravidão e antecedeu o momento atual da plantation em que os canavieiros são assalariados que vivem fora dos engenhos. A abolição transformou os escravos em moradores. Sem qualquer opção fora dos limites da cana, a maior parte dos libertos permaneceu nos engenhos porque não havia qualquer outro lugar para ir, seja em razão do monopólio sobre a terra nas mãos dos senhores, seja por falta de oferta de empregos nas cidades.

Como para a maioria dos engenhos, sabe-se muito pouco sobre detalhes específicos da vida no Matapiruma. Erguido ainda no período colonial às margens do rio homônimo, o engenho foi adquirido por Henrique Marques Lins, grande proprietário de uma das mais proeminentes famílias de Escada, em 1841. Ao longo do século XIX, anúncios de escravos fugidos do Matapiruma aparecem no Diario de Pernambuco, mas sem detalhes sobre a quantidade total de cativos, a área produtiva ou o cotidiano de trabalho. Famosa por ter sido uma das residências do Barão de Suassuna, a casa-grande do Matapiruma hospedou, em 1859, o próprio imperador D. Pedro II e sua comitiva, fato que dá certa dimensão de sua importância no contexto local.

As relações de trabalho e os níveis de violência não eram exatamente as mesmas em todos os engenhos; e ainda que tudo que se passasse em seu interior fosse alvo das tentativas de controle patronal – como as práticas religiosas; o ensino escolar (nos raros casos em que havia escolas); as atividades de lazer e festas; as rodas de conversas entre os homens nos finais de semana; a organização das mulheres durante a lavagem de roupa ou qualquer outro ato banal do cotidiano – eles foram lugares de lutas por parte de uma classe trabalhadora perspicaz, criativa e autoconsciente. Em Matapiruma, como em outros engenhos, foram frequentes as resistências e solidariedades cotidianas, que afloravam depois de um acidente de trabalho mais grave; partos mais complicados; em greves espontâneas, entre outras situações percebidas como intoleráveis.

Ao longo da segunda metade do século XX, insatisfações como essas foram muitas vezes expressas na constituição de organizações como as Ligas Camponesas.  Após a promulgação do Estatuto do Trabalhador Rural (ETR), em 1963; da fundação dos sindicatos de trabalhadores rurais e da instalação das Juntas de Conciliação e Julgamento (JCJs), ligadas à Justiça do Trabalho, os proprietários de engenhos de fogo morto passaram a expulsar os moradores para as “pontas de rua” (periferias das pequenas cidades) a fim de, com a ajuda dos “gatos” (empreiteiros de mão-de-obra), explorá-los com mais segurança jurídica e sem inconvenientes legais. Esse também foi o destino dos moradores do Matapiruma.

Foi nesse contexto, que em 5 de outubro de 1972, no auge da ditadura militar, o engenho foi palco do célebre “Massacre de Matapiruma”, quando policiais do Departamento de Ordem Política e Social de Pernambuco (DOPS/PE), abriram fogo contra moradores que trabalhavam no corte da cana. O resultado foram dois mortos, vários feridos e um clima de medo e terror crescente. Um ano antes, uma ação coletiva – aberta na JCJ de Escada por setenta e dois trabalhadores que reclamavam férias, 13º salário e outros direitos estabelecidos no ETR, mas descumpridos pelos patrões – havia sido o motivo para a escalada de terror promovida por vigias e capangas armados que passaram a ameaçar os reclamantes para que retirassem os processos que haviam sido julgados procedentes pelo órgão do Tribunal Regional do Trabalho. Prevendo o pior, os trabalhadores encaminharam um documento pormenorizando o caso à Delegacia Regional do Trabalho; Polícia Federal; Secretaria de Segurança Pública e outras autoridades civis e militares. Nada disso, entretanto, evitou o massacre que faria do Engenho Matapiruma ao mesmo tempo um símbolo da luta e resistência de uma classe trabalhadora rural capaz de se organizar em um território tão fechado e violento (cujas formas, pode-se dizer, compunham padrões espaciais de longa duração) e do arbítrio patronal na mitológica “civilização do açúcar”.

Hoje, imagens do antigo Engenho Matapiruma podem sem vistas em blogs e site de turismo rural. Suas ruínas escondem uma longa e invisível história de trabalho, exploração, lutas  e solidariedades.

 Localização do Engenho Matapiruma. Carta da Sudene. Vitória de Santo Antão
(fotografias aéreas, escala 1: 100 000, de 1970/1971).


Para saber mais:

  • ANDRADE, Manuel Correia de. A terra e o homem no Nordeste. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1963.
  • DABAT, Christine Rufino. Moradores de engenho: estudo sobre as relações de trabalho e condições de vida dos trabalhadores rurais na zona canavieira de Pernambuco, segundo a literatura, a academia e os próprios atores sociais. 2ª Ed. Recife: Editora da UFPE, 2012.
  • FERREIRA FILHO, José Marcelo Marques. Arquitetura espacial da plantation açucareira no Nordeste do Brasil (Pernambuco, século XX). Recife: Editora da UFPE, 2020.
  • ROGERS, Thomas D. As feridas mais profundas: uma história do trabalho e do ambiente do açúcar no Nordeste do Brasil. São Paulo: UNESP, 2017.
  • SIGAUD, Lygia. Os clandestinos e os direitos: estudo sobre trabalhadores da cana-de-açúcar de Pernambuco. São Paulo: Duas cidades, 1979.

Crédito da imagem de capa: Engenho Matapiruma. Escada, PE. Foto de Julien Mandel. 1930-1940. Coleção Gileno de Carli. Acervo Fundação Joaquim Nabuco. Ministério da Educação.


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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