Chão de Escola #14: Flavia Fernandes (UFF) fala sobre o trabalho doméstico e suas reflexões para professores da Educação Básica



Nos últimos anos, nós assistimos a um crescimento das pesquisas que enfatizam as trabalhadoras e trabalhadores domésticos no Brasil. Como você avalia esse crescimento?

Primeiramente, agradeço ao convite do LEHMT-UFRJ, em especial aos coordenadores(as) da seção “Chão de Escola”, pelo convite para esta entrevista.
Respondendo à pergunta, avalio que esse crescimento é muito positivo e necessário, pois nas duas últimas décadas a história do trabalho/serviço doméstico definitivamente passou a ser reconhecida como um tema de relevância para o campo da História Social do Trabalho no Brasil. Se até o final do século XX eram raros os estudos históricos acadêmicos desenvolvidos em torno dessa temática, nas primeiras décadas do século XXI observamos o surgimento de várias dissertações e teses produzidas em diferentes programas de pós-graduação em história do país – muitas das quais já viraram livros –, além da publicação de inúmeros artigos científicos e papers sobre o assunto. E no meu entendimento esse processo se deve a um conjunto de fatores, entre os quais se encontram elementos de ordem acadêmica e social. 
Do ponto vista acadêmico, vimos que a partir da virada para este século, o campo da história do trabalho passou por um processo que envolveu uma ampliação de temas, abordagens e enfoques. Nesse sentido, um dos aspectos dessas mudanças foram as problematizações em torno da composição da classe trabalhadora brasileira, sobretudo em sua formação histórica. Durante muito tempo esse processo foi entendido como limitado às esferas produtivas, principalmente no que diz respeito à constituição do operariado fabril – o qual foi tradicionalmente estudado como sendo restrito a trabalhadores homens, adultos, de ascendência europeia, em sua maioria organizados em sindicatos. Com o reconhecimento de outras relações sociais que atravessam e integram as relações de classe, como as que envolvem as dimensões de gênero, raça e origens étnicas e nacionais, os(as) estudiosos(as) passaram, cada vez mais, a recuperar as experiências de outros sujeitos da história do trabalho no Brasil, como foi o caso das mulheres trabalhadoras brasileiras, jovens e crianças, negros e mestiços, que poderiam ou não estar engajados politicamente. Tal dinâmica necessariamente direcionou o interesse dos historiadores para esferas de trabalho como as que envolvem os domínios da domesticidade e da reprodução social. 
Além disso, é importante lembrar que alterações no perfil dos(as) alunos(as) que frequentaram as universidades públicas do país entre os anos 2000 e os primeiros anos da década de 2010 – muitos dos quais filhos de trabalhadores e que acessaram o ensino superior por meio de políticas de ações afirmativas – trouxeram também novos temas de interesse para a pauta dos estudos acadêmicos. Sendo esse um fator que se associa a própria dinâmica social. Nas últimas décadas ocorreu uma intensa mobilização, resultante de uma trajetória de lutas das(os) trabalhadoras(es) domésticas(os) organizadas(os), para construção de um instrumento legal que definitivamente garantisse à categoria os mesmos direitos trabalhistas dos demais trabalhadores assalariados brasileiros – o que aconteceu com a Emenda Constitucional de n.º 72, de abril de 2013, e com a sua regulamentação em 2015. Vale lembrar que internacionalmente a temática também ganhou relevância com a atuação da própria Organização Internacional do Trabalho (OIT), que fez do trabalho doméstico remunerado o tema central de suas conferências, em 2010 e 2011.

A sua tese de doutorado defendida pelo Programa de Pós-Graduação da UFF no ano de 2017 e que foi recentemente publicada pelo Arquivo Nacional, com o título “Criados, escravos e empregados: o serviço doméstico e seus trabalhadores na cidade do Rio de Janeiro (1850-1920), procurou pensar o trabalho doméstico dentro de um processo de expansão do trabalho livre e assalariado, de estímulo à imigração (sobretudo europeia) e de declínio e fim da escravidão no Brasil. De acordo com os dados coletados pela sua pesquisa, “quem” era esse trabalhador doméstico e qual foi o seu papel na construção da modernidade brasileira?

Um dos objetivos que orientaram a minha pesquisa de doutorado foi recuperar o perfil dos trabalhadores domésticos da cidade do Rio de Janeiro entre a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do século XX. A ideia era compreender como, em diferentes conjunturas históricas, presentes naquele longo recorte temporal, ocorreu uma série de mudanças na composição da força de trabalho empregada na prestação de serviços domésticos nos domicílios urbanos – que não era homogênea como comumente se entende o assunto do ponto vista histórico, ao se associar as criadas e os criados domésticos unicamente aos escravos. 
Assim, observei que se em meados do Oitocentos havia uma tendência para a predominância de trabalhadores escravizados no setor (de ambos os sexos, já que eram numerosos os homens escravizados como serviçais), pouco a pouco, no decorrer das décadas de 1860 a 1870, o serviço doméstico passou a ser exercido também por trabalhadores livres, muitos dos quais libertos e estrangeiros, e com relativo equilíbrio numérico entre mulheres e homens. Entre os estrangeiros se destacavam, naquele período, indivíduos oriundos do território insular português (arquipélagos de Açores e Madeira), que vinham para o Brasil por meio de redes de translado de imigrantes que começaram a operar após o término do tráfico de africanos. Já na conjuntura abolicionista e de imediata pós-abolição, dos anos 1880 e 1890, o número de libertos atuando no setor foi enorme, embora os estrangeiros tivessem participação ativa nessa parcela do mercado de trabalho, com o desenvolvimento de políticas de imigração para a vinda de europeus. Todavia, desde então, se desenvolveu o fenômeno da chamada feminilização do serviço doméstico, pois se antes as mulheres constituíam – às vezes por pouca diferença em relação aos homens – a maioria da criadagem doméstica na cidade do Rio de Janeiro, a partir daquele momento esse setor foi sendo ocupado exclusivamente por mulheres. Além disso, no decorrer da primeira metade do século XX, observamos um crescente número de mulheres classificadas racialmente nos censos como “pretas” e “pardas” atuando como trabalhadoras domésticas. 
Esse rápido panorama já traz alguns elementos para pensarmos em “quem” eram os(as) trabalhadores(as) domésticos(as) no recorte temporal estudado. A pesquisa revelou que a força de trabalho empregada no serviço doméstico era bastante diversificada e se modificou ao longo do tempo e esse fato fornece pistas sobre o papel daqueles sujeitos na construção da chamada modernidade. Como sabemos, o período que caracteriza o final do Império e o início da Primeira República foi marcado pela disputa de diferentes projetos sociais, fruto de muitas expectativas, tensões e conflitos entre as classes e grupos sociais então existentes. No caso da esfera laboral composta pelo chamado serviço doméstico aquele foi um momento marcado por uma crise, que era, inclusive, constantemente noticiada na imprensa e debatida entre intelectuais e autoridades públicas. Patrões e patroas, muitos dos quais antigos senhores de escravos, por meio de seus porta-vozes, lamentavam a escassez de “bons criados”, afirmando que a criadagem disponível não seria mais como a antiga. Enquanto, de outra parte, as(os) trabalhadoras(es) domésticas(os) e seus aliados procuravam, fosse por meio vias institucionais e públicas ou em resistências privadas e cotidianas, estabelecer limites para as interdições sociais que lhes eram impostas, de modo a conquistar garantias e direitos em seus contratos e relações de trabalho, bem como liberdade em seus modos de vida.

Muitos livros didáticos de História, quando lançam luz à questão dos negros no pós-Abolição, o fazem sob ótica da marginalidade, passividade e exclusão social, não levando em conta os estudos acadêmicos mais recentes que trazem novas perspectivas sobre esse tema. Qual é a importância de trabalhos como o seu para pensar as relações sociais e de trabalho dos negros no pós-Abolição?

A pesquisa que desenvolvi sobre a história dos trabalhadores domésticos na cidade do Rio de Janeiro dialogou com uma já consolidada e relevante tradição historiográfica voltada para a investigação da pós-emancipação no Brasil. Tratam-se de estudos fundamentais que, em linhas gerais, buscaram resgatar a formação de uma sociedade pós-escravista e, sobretudo, a agência de sujeitos históricos subalternizados, como era o caso da população negra, em grande parte ligada ao passado escravista. 
Todavia, a pesquisa procurou também, em consonância, pensar nas dinâmicas estruturais que orientaram as ações dos diferentes sujeitos históricos naquele contexto. Isso porque acredito, como defendido há muitos anos pela historiadora Emília Viotti da Costa, que para um maior entendimento e uma análise mais aprofundada de qualquer tema é preciso articular as dimensões de agência e de estrutura no estudo dos processos históricos, pois as ações humanas tendem a se encontrar constantemente na tensão existente entre a liberdade e a necessidade.
Tendo em vista isso, considero que ambas as perspectivas são complementares na ampliação e na complexificação da forma como a situação dos negros na pós-abolição pode ser abordada em livros didáticos de História voltados para a Educação Básica. Isso porque, ao meu ver, se por um lado é preciso recuperar e compreender lógicas sistêmicas que produzem e reproduzem vulnerabilidades, divisões, hierarquias, discriminações, exclusões e desigualdades, presentes especialmente nas relações sociais dos mundos do trabalho, principalmente no período posterior ao fim da escravidão; por outro lado, não se pode perder de vista a ação, coletiva e individual, dos sujeitos oprimidos frente a tais estruturas perversas, seja na resistência e/ou na construção de outros caminhos para o futuro em liberdade. 
No caso da história do serviço doméstico, no período estudado, esse pressuposto auxilia, por exemplo, no entendimento do processo de estigmatização e de criminalização que esteve em curso na virada do século XIX para o século XX em relação às(aos) trabalhadoras(es), quando das primeiras tentativas de regulamentação, de caráter municipal e policial. Esse foi um processo voltado para o controle social daquele segmento profissional – e não para garantir direitos no âmbito do trabalho –, e que era orientado por mecanismos de coerção de liberdade, assentados em princípios de suspeição baseados em critérios patriarcais e raciais. Porém, o desenrolar desse processo não significou que as mulheres e os homens que trabalhavam como criados domésticos naquele contexto não tenham se colocado, em várias situações e por meio de diferentes vias, na resistência e na defesa de seus interesses.

Quando – por iniciativa docente – o debate em torno do trabalho doméstico alcança a sala de aula, é comum fazermos correlações entre o serviço doméstico e a escravidão, sugerindo que o primeiro ainda carrega fortes “marcas” do segundo. Você considera esse ponto de partida para refletir sobre o tema? Em que medida narrativas como “pessoa da família” e “mãe preta” (que remontam ao período da escravidão e estão presentes até hoje) impactam nessa discussão?

Acredito que não é possível estudar a história do serviço doméstico no Brasil sem se recuperar aspectos da história da escravidão, em especial em sua modalidade doméstica. Então, sem dúvidas, estudar esse tema por meio das “marcas” deixadas pela escravidão é fundamental, pois para além de narrativas como essas apontadas, o que essa discussão envolve, na verdade, é a permanência de valores e de práticas de cunho escravistas nas relações de trabalho estabelecidas entre amos e criados, em contextos como os do final do século XIX, e entre patrões e empregados no decorrer do século XX e no início do século XXI.
Não por acaso, quando estudamos períodos como os das décadas imediatamente posteriores à Abolição notamos, claramente, como esse era um elemento de conflito entre as partes envolvidas nas relações de trabalho e nos discursos elaborados sobre o serviço doméstico. As fontes documentais disponíveis dão indícios de que grande foi a luta de trabalhadoras(es) ex-escravizadas(os) que atuavam como criadas(os) domésticas(os) para negociar novas condições de trabalho, como no caso da escolha do domicílio em que iriam trabalhar, o valor dos salários ou os horários de entrada e saída nos empregos, por exemplo. Isso ocorria, em grande medida, porque permanecia entre a classe patronal uma ideologia escravista, que sentia nostalgia do passado, e que desejava que as relações de trabalho, em especial no âmbito privado, continuassem a ser orientadas pelas tradicionais políticas de dominação senhorial, como era o caso do paternalismo.
No entanto, ao meu ver, embora seja muito importante identificar as relações de continuidades/permanências entre o passado e o presente em torno desse tema – como essa que envolve as “marcas” da escravidão existentes no trabalho doméstico remunerado contemporâneo –, esse tipo de análise não deve apagar outros elementos igualmente presentes na história do trabalho/serviço doméstico no Brasil. Até porque em outras sociedades, que não tiveram escravidão ou onde a escravidão possuía características diferentes da brasileira, as relações de trabalho doméstico na história e na atualidade também se colocaram ou se colocam em termos de invisibilidade, desvalorização, dependência, subordinação, feminilização, racialização etc.
Geralmente, o esforço para a identificação das “marcas” da escravidão passa por noções de “herança”, “legado”, “resquício” e acredito que esse tipo de explicação, por vezes, pode levar a um entendimento simplista se não for realizado com cuidado e crítica. Primeiro porque se pensamos o trabalho doméstico remunerado exclusivamente nesses termos, ficamos com a falsa impressão de justificativa para os problemas existentes, bem como de ausência de transformações. Segundo porque perdemos de vista os movimentos históricos que levaram as coisas a serem como são. Por essa razão, entendo que tão importante quanto recuperar os elos que ligam o presente ao passado, é fundamental, também, historicizar os processos. 
Isso significa pensar em coisas como: por que o trabalho doméstico remunerado continua existindo em nossa sociedade, com a magnitude que tem no mercado de trabalho? Por que no decorrer do século XX grande parte das mulheres trabalhadoras, e principalmente das mulheres negras, foram direcionadas, sem outras alternativas, para esse tipo de trabalho em espaços urbanos? Por que até o início deste século as empregadas domésticas ficaram sem o amparo completo de uma legislação trabalhista? E por que toda vez que a questão dos direitos dessa categoria profissional foi discutida houve inúmeras resistências? Analisar e refletir sobre questões desse tipo unicamente em termos de um passado que sobrevive no presente limita a compreensão, pois desconsidera as formas como mecanismos de exploração e de opressão operam historicamente e conformam as relações sociais no mundo em que vivemos.

Laudelina de Campos Melo e Nair Jane de Castro Lima foram trabalhadoras domésticas negras e lideranças sindicais fundamentais para compreendermos a história de luta dessa categoria. Qual é a importância para um estudante da Educação Básica conhecer um pouco da trajetória dessas e de outras mulheres que configuram uma das maiores categorias de trabalhadores do país?

Sabemos que a maior parte dos alunos e alunas das escolas públicas brasileiras pertencem a famílias de baixa renda, sendo filhos e filhas de trabalhadores. Certamente boa parte desses estudantes são descendentes de mulheres que exercem essa profissão ou já a exerceram em algum momento de suas trajetórias. Trazer, portanto, ao conhecimento desses estudantes a história daquelas personagens, e outras ainda pouco conhecidas, dialoga diretamente com experiências de vida do público estudantil. E esse é um elemento essencial para a realização do processo de ensino-aprendizagem.
Porém, mais do que se aproximar da história pessoal de muitos alunos e alunas da Educação Básica, o conhecimento da trajetória de mulheres como Laudelina de Campos Melo e Nair Jane de Castro Lima é fundamental para um entendimento mais amplo e crítico da nossa história, da história “vista a partir dos de baixo”, da história dos trabalhadores e subalternos, em especial da maioria das mulheres trabalhadoras brasileiras. Uma história que, para além da dominação, da exploração ou das opressões, foi marcada também por experiências de resistências e lutas constantes, por meio de organizações e mobilizações pela conquista de direitos e que traz exemplos ricos sobre o papel de lideranças e de agentes participativos e construtores exercidos por mulheres negras na história do Brasil. Até porque, durante muito tempo, na própria historiografia brasileira, por vários motivos, não houve muitos investimentos para que esse tipo de memória fosse resgatada e essas histórias fossem recuperadas. Então, é necessário que tais trajetórias de vida sejam conhecidas e valorizadas nos diferentes espaços de construção do saber.
Além disso, as histórias de figuras como Laudelina e Nair Jane possibilitam o trabalho com alunos e alunas da Educação Básica em torno da compreensão da integração ou do cruzamento das dimensões de classe, gênero e raça nas experiências históricas de homens e mulheres, em especial nas sociedades contemporâneas. Afinal, ao conhecermos histórias de mulheres negras, trabalhadoras domésticas, que estiveram engajadas em lutas políticas e sociais que envolviam causas sindicais, feministas e antirracistas, podemos não só compreender um pouco mais da complexidade das relações sociais em que estamos envolvidos, da forma como se estruturam as desigualdades, e da história de movimentos sociais, como também podemos buscar inspirações para os enfrentamentos do presente. E tudo isso é importante se quisermos construir uma educação realmente transformadora.


Flavia Fernandes de Souza é doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Atualmente, desenvolve estágio pós-doutoral na mesma universidade, junto ao Programa de Pós-Graduação em História (PPGH), por meio de bolsa PNPD-Capes; sendo também pesquisadora do Observatório da História da Classe Trabalhadora (UFF). É autora do livro “Criados, escravos e empregados: o serviço doméstico e seus trabalhadores na cidade do Rio de Janeiro (1850-1920)”, publicado em 2019, como parte da coleção Prêmio Arquivo Nacional de Pesquisa. Desenvolve pesquisas no campo da História Social do Trabalho, em relação à história do trabalho doméstico, atuando também como docente no ensino superior de História do Brasil, especialmente em áreas como história do trabalho, história da escravidão e da pós-abolição e história social urbana.


Crédito da imagem de capa: Uma família brasileira e sua escravas domésticas, c 1860. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Escravid%C3%A3o_no_Brasil#/media/Ficheiro:Family_and_slave_house_servants_by_Klumb_1860.png


Chão de Escola

Nos últimos anos, novos estudos acadêmicos têm ampliado significativamente o escopo e interesses da História Social do Trabalho. De um lado, temas clássicos desse campo de estudos como sindicatos, greves e a relação dos trabalhadores com a política e o Estado ganharam novos olhares e perspectivas. De outro, os novos estudos alargaram as temáticas, a cronologia e a geografia da história do trabalho, incorporando questões de gênero, raça, trabalho não remunerado, trabalhadores e trabalhadoras de diferentes categorias e até mesmo desempregados no centro da análise e discussão sobre a trajetória dos mundos do trabalho no Brasil.
Esses avanços de pesquisa, no entanto, raramente têm sido incorporados aos livros didáticos e à rotina das professoras e professores em sala de aula. A proposta da seção Chão de Escola é justamente aproximar as pesquisas acadêmicas do campo da história social do trabalho com as práticas e discussões do ensino de História. A cada nova edição, publicaremos uma proposta de atividade didática tendo como eixo norteador algum tema relacionado às novas pesquisas da História Social do Trabalho para ser desenvolvida com estudantes da educação básica. Junto a cada atividade, indicaremos textos, vídeos, imagens e links que aprofundem o tema e auxiliem ao docente a programar a sua aula. Além disso, a seção trará divulgação de artigos, entrevistas, teses e outros materiais que dialoguem com o ensino de história e mundos do trabalho.

A seção Chão de Escola é coordenada por Claudiane Torres da Silva, Luciana Pucu Wollmann do Amaral e Samuel Oliveira.

LMT#86: Engenho Matapiruma, Escada (PE)- José Marcelo Ferreira Filho



José Marcelo Ferreira Filho
Professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE)



O Engenho Matapiruma localiza-se em Escada, município da chamada Zona da Mata Sul de Pernambuco. Em diversos sentidos, é um típico exemplar das centenas de unidades produtivas dispersas no que podemos chamar “mundo dos engenhos” no Nordeste açucareiro do Brasil.

Os engenhos foram as unidades básicas que sustentaram a economia dessa região por meio milênio. Eles eram domínios quase completamente fechados a qualquer interferência do “mundo externo”: possuíam suas próprias regras, moralidade, linguagem, economia e, em alguns casos, até sua própria moeda. Os engenhos eram a essência a uma só tempo prática e simbólica do poder secular da classe patronal latifundiária. Eles eram projeções de poder sobre o espaço.


Moradores de engenho eram todos aqueles, que além de trabalhar, nasciam e moravam (viviam), praticamente toda sua vida, no interior dessas comunidades; e morar, nesse contexto, não significava apenas o fato de “habitar” uma casa, mas, sobretudo, estar totalmente à disposição dos senhores de engenho.


A morada, enquanto modelo dominante de organização da força de trabalho, remete ao período que marcou o fim da escravidão legal; foi uma etapa intermediária que sucedeu a escravidão e antecedeu o momento atual da plantation em que os canavieiros são assalariados que vivem fora dos engenhos. A abolição transformou os escravos em moradores. Sem qualquer opção fora dos limites da cana, a maior parte dos libertos permaneceu nos engenhos porque não havia qualquer outro lugar para ir, seja em razão do monopólio sobre a terra nas mãos dos senhores, seja por falta de oferta de empregos nas cidades.

Como para a maioria dos engenhos, sabe-se muito pouco sobre detalhes específicos da vida no Matapiruma. Erguido ainda no período colonial às margens do rio homônimo, o engenho foi adquirido por Henrique Marques Lins, grande proprietário de uma das mais proeminentes famílias de Escada, em 1841. Ao longo do século XIX, anúncios de escravos fugidos do Matapiruma aparecem no Diario de Pernambuco, mas sem detalhes sobre a quantidade total de cativos, a área produtiva ou o cotidiano de trabalho. Famosa por ter sido uma das residências do Barão de Suassuna, a casa-grande do Matapiruma hospedou, em 1859, o próprio imperador D. Pedro II e sua comitiva, fato que dá certa dimensão de sua importância no contexto local.

As relações de trabalho e os níveis de violência não eram exatamente as mesmas em todos os engenhos; e ainda que tudo que se passasse em seu interior fosse alvo das tentativas de controle patronal – como as práticas religiosas; o ensino escolar (nos raros casos em que havia escolas); as atividades de lazer e festas; as rodas de conversas entre os homens nos finais de semana; a organização das mulheres durante a lavagem de roupa ou qualquer outro ato banal do cotidiano – eles foram lugares de lutas por parte de uma classe trabalhadora perspicaz, criativa e autoconsciente. Em Matapiruma, como em outros engenhos, foram frequentes as resistências e solidariedades cotidianas, que afloravam depois de um acidente de trabalho mais grave; partos mais complicados; em greves espontâneas, entre outras situações percebidas como intoleráveis.

Ao longo da segunda metade do século XX, insatisfações como essas foram muitas vezes expressas na constituição de organizações como as Ligas Camponesas.  Após a promulgação do Estatuto do Trabalhador Rural (ETR), em 1963; da fundação dos sindicatos de trabalhadores rurais e da instalação das Juntas de Conciliação e Julgamento (JCJs), ligadas à Justiça do Trabalho, os proprietários de engenhos de fogo morto passaram a expulsar os moradores para as “pontas de rua” (periferias das pequenas cidades) a fim de, com a ajuda dos “gatos” (empreiteiros de mão-de-obra), explorá-los com mais segurança jurídica e sem inconvenientes legais. Esse também foi o destino dos moradores do Matapiruma.

Foi nesse contexto, que em 5 de outubro de 1972, no auge da ditadura militar, o engenho foi palco do célebre “Massacre de Matapiruma”, quando policiais do Departamento de Ordem Política e Social de Pernambuco (DOPS/PE), abriram fogo contra moradores que trabalhavam no corte da cana. O resultado foram dois mortos, vários feridos e um clima de medo e terror crescente. Um ano antes, uma ação coletiva – aberta na JCJ de Escada por setenta e dois trabalhadores que reclamavam férias, 13º salário e outros direitos estabelecidos no ETR, mas descumpridos pelos patrões – havia sido o motivo para a escalada de terror promovida por vigias e capangas armados que passaram a ameaçar os reclamantes para que retirassem os processos que haviam sido julgados procedentes pelo órgão do Tribunal Regional do Trabalho. Prevendo o pior, os trabalhadores encaminharam um documento pormenorizando o caso à Delegacia Regional do Trabalho; Polícia Federal; Secretaria de Segurança Pública e outras autoridades civis e militares. Nada disso, entretanto, evitou o massacre que faria do Engenho Matapiruma ao mesmo tempo um símbolo da luta e resistência de uma classe trabalhadora rural capaz de se organizar em um território tão fechado e violento (cujas formas, pode-se dizer, compunham padrões espaciais de longa duração) e do arbítrio patronal na mitológica “civilização do açúcar”.

Hoje, imagens do antigo Engenho Matapiruma podem sem vistas em blogs e site de turismo rural. Suas ruínas escondem uma longa e invisível história de trabalho, exploração, lutas  e solidariedades.

 Localização do Engenho Matapiruma. Carta da Sudene. Vitória de Santo Antão
(fotografias aéreas, escala 1: 100 000, de 1970/1971).


Para saber mais:

  • ANDRADE, Manuel Correia de. A terra e o homem no Nordeste. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1963.
  • DABAT, Christine Rufino. Moradores de engenho: estudo sobre as relações de trabalho e condições de vida dos trabalhadores rurais na zona canavieira de Pernambuco, segundo a literatura, a academia e os próprios atores sociais. 2ª Ed. Recife: Editora da UFPE, 2012.
  • FERREIRA FILHO, José Marcelo Marques. Arquitetura espacial da plantation açucareira no Nordeste do Brasil (Pernambuco, século XX). Recife: Editora da UFPE, 2020.
  • ROGERS, Thomas D. As feridas mais profundas: uma história do trabalho e do ambiente do açúcar no Nordeste do Brasil. São Paulo: UNESP, 2017.
  • SIGAUD, Lygia. Os clandestinos e os direitos: estudo sobre trabalhadores da cana-de-açúcar de Pernambuco. São Paulo: Duas cidades, 1979.

Crédito da imagem de capa: Engenho Matapiruma. Escada, PE. Foto de Julien Mandel. 1930-1940. Coleção Gileno de Carli. Acervo Fundação Joaquim Nabuco. Ministério da Educação.


MAPA INTERATIVO

Navegue pela geolocalização dos Lugares de Memória dos Trabalhadores e leia os outros artigos:


Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

Livros de Classe #01: A Formação da Classe Operária Inglesa, de E. P. Thompson, por Alexandre Fortes

No primeiro vídeo da série Livros de Classe, Alexandre Fortes, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), apresenta o clássico A formação da Classe Operária Inglesa, de Edward P. Thompson. Dividida em três volumes, a obra foi publicada em 1963. A primeira edição brasileira, lançada em 1987, foi fundamental para a renovação, em forma e conteúdo, das análises sobre as classes trabalhadoras no Brasil.


Livros de Classe

Os estudantes de graduação são desafiados constantemente a elaborar uma percepção analítica sobre os diversos campos da história. Nossa série Livros de Classe procura refletir justamente sobre esse processo de formação, trazendo obras que são emblemáticas para professores/as, pesquisadores/as e atores sociais ligados à história do trabalho. Em cada episódio, um/a especialista apresenta um livro de impacto em sua trajetória, assim como a importância da obra para a história social do trabalho. Em um formato dinâmico, com vídeos de curtíssima duração, procuramos conectar estudantes a pessoas que hoje são referências nos mais diversos temas, períodos e locais nos mundos do trabalho, construindo, junto com os convidados, um mosaico de clássicos do campo.

A seção Livros de Classe é coordenada por Ana Clara Tavares.

Artigo “Trajetória Híbrida: as contribuições de Oduvaldo Vianna para a inserção brasileira no circuito do mercado de entretenimento Latino-Americano (1923 – 1946)” – Flavia Veras


O trabalho artístico de Oduvaldo Vianna no teatro, no cinema e no rádio foi fundamental para a inserção do Brasil nos circuitos artísticos comerciais da América Latina. Suas produções são carregadas de uma profunda noção de brasilidade em um estilo que antecipa em muito as produções consideradas modernas. Contudo, o trabalho de Oduvaldo Vianna é marcadamente popular e comercial. Ele tinha como objetivo agradar o público de maneira instrutiva e, com os ganhos de suas produções, sustentava sua família. Oduvaldo se reconhecia como um escritor de profissão e circulava nos meios intelectuais, políticos e populares. Flavia Veras, pesquisadora do LEHMT-UFRJ, no artigo “Trajetória Híbrida: as contribuições de Oduvaldo Vianna para a inserção brasileira no circuito do mercado de entretenimento Latino-Americano (1923 – 1946)” procura desvendar os caminhos profissionais trilhados por Oduvaldo Vianna e sua contribuição para a produção artística brasileira com enfoque transnacional.

 O link para acesso ao artigo é https://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/169176/171933


Crédito da imagem de capa: Almoço de despedida para Oduvaldo Vianna, 1936. Estavam presentes Jayme Costa, Vicente Celestino e Gilda Abreu, entre outros. Fotógrafo não identificado. Cedoc-Funarte. Disponível em: http://portais.funarte.gov.br/brasilmemoriadasartes/acervo/familia-vianna/oduvaldo-vianna-um-inovador-no-teatro-no-radio-e-no-cinema-brasileiros/

LMT#85: Imperial Companhia Seropédica Fluminense, Seropédica (RJ) – Vinícius Andrade Brito



Vinícius Andrade Brito
Mestrando em História Social pela UNIRIO



“A amoreira vegeta neste município maravilhosamente e torna aproveitável o terreno que a deu e que não dá vantajosamente o café”. Assim os vereadores da câmara de Itaguaí descreviam as etapas da produção da seda desenvolvida na região, em ofício ao presidente da Província do Rio de Janeiro datado de 1849. Referiam-se a uma fábrica de seda localizada na freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Bananal, distrito do município de Itaguaí. Construída em finais dos anos 1830 por José Pereira Tavares, a fábrica foi incorporada em uma sociedade anônima em 1854, sob a alcunha de Imperial Companhia Seropédica Fluminense, tendo como primeiro acionista e protetor o imperador D. Pedro II.

A fábrica reunia em torno de si todo o necessário para produzir a seda: do espaço para plantação da amoreira, que servia de alimento ao bicho da seda, às instalações equipadas com o material necessário para a extração dos fios dos casulos, além de alojamentos destinado aos trabalhadores. Devido a estrutura física da propriedade, que contava com os edifícios apropriados, e as expectativas de sucesso da indústria da seda em solo nacional, Tavares assinou contrato com a província recebendo verba pública para manutenção e desenvolvimento do estabelecimento. Após a incorporação em sociedade anônima, contou com a presença de importantes personalidades da época entre seus acionistas como Irineu Evangelista da Silva, o barão de Mauá, que atuou junto ao governo na criação de medidas favoráveis às fábricas em meados do século XIX.


Ao longo de sua trajetória, a Imperial Companhia Seropédica Fluminense abrigou um quadro de trabalhadores de variados perfis chegando a contar com 108 pessoas no ano de 1858. Homens, mulheres e crianças, livres e escravizados, nacionais e estrangeiros foram empregados.


Esses sujeitos foram dispostos em diferentes modalidades e arranjos de trabalho. Assim, conviviam na empresa, trabalhadores livres estrangeiros (portugueses em sua maioria) contratados sob as leis de locação de serviço por tempo determinado em vigência no período;  nacionais e estrangeiros que recebiam por jornada de trabalho; menores desvalidos (órfãos enviados ao estabelecimento pelo chefe da polícia da corte) cujo soldo era depositado mensalmente na Caixa Econômica em seus nomes, escravizados alugados para obras que recebiam por jornada e escravizados do próprio estabelecimento.

Os estrangeiros contratados e os escravizados da Imperial Companhia, em particular, viviam nas dependências da Imperial Companhia Seropédica Fluminense. Os primeiros se mantinham no estabelecimento até a finalização dos seus contratos de 15 meses. A diretoria da companhia estimulava a substituição dos escravizados por trabalhadores estrangeiros livres. A ideia de que o trabalhador europeu livre seria mais apto ao serviço, cara à elite da época, não se traduzia, no entanto, em condições de trabalho dignas. As leis que regulavam os contratos de locação de serviço da época possuíam mecanismos de coerção ao trabalho que, em muitas ocasiões, amarravam o trabalhador a dívidas e instituíam a prisão em casos de abandono dos contratos. Não obstante, diante de um regime de trabalho compulsório, diferentes formas de resistência foram postas em prática pelos trabalhadores — livres e escravizados.

A Imperial Companhia Seropédica Fluminense foi palco de variados conflitos. Em 1861, por exemplo, portugueses naturais do Porto, recém chegados à empresa, logo ficaram descontentes com as condições de trabalho existentes. Nove dos quinze homens do grupo fugiram, mas rapidamente foram localizados pelas autoridades policiais da região, e depois de encarcerados por alguns dias foram enviados de volta aos postos de trabalho. Meses depois, no entanto, parte desse grupo voltou a fugir. “Crápulas, imprudentes e bandidos” foram alguns dos adjetivos utilizados pelo presidente da companhia para caracterizá-los. Em agosto de 1861, a diretoria pôs fim ao que chamou de “incessantes lutas contra a má vontade e imprudência de tais perversos”, rescindindo o contrato de todos os portugueses que permaneceram no estabelecimento, até daqueles que não haviam fugido. Diferentemente dos livres, os escravizados ali ficaram durante todo o período de funcionamento da fábrica. Esses homens e mulheres escravizados criaram laços, constituíram famílias, tiveram filhos e construíram uma rede de sociabilidade sólida na região, o que certamente contribuiu para a permanência. Por vezes, eram eles que instruíam os trabalhadores livres estrangeiros contratados, uma vez que, frequentemente, tinham maior experiência nos processos de produção.

A Imperial Companhia Seropédica Fluminense entrou em processo de liquidação em 1862. A queda do número de acionistas e as dificuldades em gerir os trabalhadores tornaram impossível o prosseguimento da produção. Em 1866, a propriedade foi vendida ao capitão Luiz Riberio de Souza Resende, que chegou a aproveitar a estrutura para produção da seda, mas se dedicou prioritariamente à produção de cana. A estrutura física que impressionara as autoridades políticas oitocentistas já não existe mais. Desde 2013, os terrenos onde a fábrica de seda esteve localizada pertencem a uma empresa do ramo da mineração. As ruínas já não existem, mas a memória da empresa sobreviveu de alguma forma. O município hoje é nomeado de Seropédica, cujo significado é “lugar onde se trata ou se fabrica seda”, e é conhecido por ter abrigado a primeira grande fábrica de seda do Brasil.

 Nota assinada pelo secretário da Imperial Companhia Seropédica Fluminense, José Júlio de Freitas Coutinho, publicada no Correio Mercantil, chamando os acionistas a darem entrada de parte do valor das ações.
Fonte: Correio Mercantil, 20 de fevereiro de 1855, p. 3.

Relação dos escravizados da Imperial Companhia Seropédica Fluminense elaborado pela comissão formada pelo presidente da província do Rio de Janeiro em 1862. 
Fonte: Relatório de Presidente da Província do Rio de Janeiro, 1862.


Para saber mais:

  • FROÉS, José Nazareth de Souza. O Brasil na rota da seda: uma contribuição para a recuperação, o enriquecimento e a divulgação da memória de Seropédica, Itaguaí e do Estado do Rio de Janeiro. Seropédica: EDUR, 2000.
  • MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Leis para “os que se irão buscar” – imigrantes e relações de trabalho no século XIX brasileiro. In: História: Questões & Debates, Curitiba, n. 56, p. 63-85, jan/jun 2012.
  • OLIVEIRA, Geraldo Beauclair Mendes de. Raízes da Indústria no Brasil: a pré-indústria fluminense 1808-1860. Rio de Janeiro: Studio F&S ed., 1992.
  • SOARES, Luiz Carlos. A manufatura na formação econômica e social do Sudeste: um estudo das atividades manufatureiras na região fluminense (1840-1880). Dissertação (Mestrado). Universidade Federal Fluminense. Niterói, 1995.
  • TAVARES, José Pereira. Memoria sobre a sericultura no Imperio do Brazil. Rio de Janeiro: Typografia Imp. e Const. de J. Villeneuve E C, 1860.

Crédito da imagem de capa: Panorama da Imperial Companhia Seropédica Fluminense,  estabelecimento de José Pereira Tavares, em 1854.Fonte:  FRÓES, José Nazareth de Souza. O Brasil na rota da seda: uma contribuição para a recuperação, o enriquecimento e a divulgação da memória de Seropédica, Itaguaí e do Estado do Rio de Janeiro. Seropédica: EDUR, 2000. p. 34.


MAPA INTERATIVO

Navegue pela geolocalização dos Lugares de Memória dos Trabalhadores e leia os outros artigos:


Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

Vale Mais #12 – Trabalhadores e Favela





Vale Mais é o podcast do Laboratório de Estudos de História dos Mundos do Trabalho da UFRJ, que tem como objetivo discutir história, trabalho e sociedade, refletindo sobre temas contemporâneos a partir da história social do trabalho.

O episódio #12 do Vale Mais é sobre Trabalhadores e Favela. 

Este é o quarto episódio da segunda temporada de Vale Mais, o podcast do site do LEHMT-UFRJ. Nesta temporada, conversamos com recém doutores/as no campo da História Social do Trabalho sobre seus temas de pesquisa e processos de elaboração de suas teses. Neste episódio, entrevistamos Mariana Barbosa Carvalho da Costa, doutora em História Social da Cultura pela PUC-Rio e pesquisadora do LEHMT-UFRJ. Em outubro de 2019, Mariana defendeu a tese “A Rocinha em construção: a história social de uma favela na primeira metade do século XX”, sob orientação de Leonardo Pereira. A pesquisa analisou o processo histórico de formação da Rocinha, uma das favelas de maior visibilidade do Rio de Janeiro, abordando as experiências dos moradores daquela região com base nas discussões em torno do diálogo entre a história urbana e a história social do trabalho. Mariana enfatiza como esses moradores são sujeitos ativos do processo de formação da Rocinha, que se inicia nos primeiros anos do século XX e se encerra no final da década de 1950, quando é consolidada a concepção de favela carioca para a localidade em questão.

Dica da entrevistada: Museu Sankofa Rocinha – Memória e História

Produção: Heliene Nagasava e Larissa Farias 
Roteiro: Heliene Nagasava e Larissa Farias 
Apresentação: Larissa Farias 

Vale Mais #30: A cultura de luta antirracista e o movimento negro do século 21, por Thayara Lima Vale Mais

Nesta temporada, convidamos pesquisadoras e pesquisadores para discutir projetos, livros e teses recentes que aprofundam debates interdisciplinares sobre os mundos do trabalho. No terceiro episódio, conversamos com Thayara de Lima, doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autora do livro A cultura de luta antirracista e o movimento negro do […]
  1. Vale Mais #30: A cultura de luta antirracista e o movimento negro do século 21, por Thayara Lima
  2. Vale Mais #29: The Second World War and the Rise of Mass Nationalism in Brazil, por Alexandre Fortes
  3. Vale Mais #28: O poder e a escravidão, por Bruna Portella e Felipe Azevedo
  4. Vale a Dica #14: Orgulho e Esperança, de Matthew Warchus
  5. Vale a Dica #13: 2 de Julho: a Retomada, de Spency Pimentel e Joana Moncau

Chão de Escola #13: “A quem cabe a grita?” – Laudelina de Campos Mello e a luta das trabalhadoras domésticas no Brasil República



Fernanda Nascimento Crespo, professora de História (SME-RJ e Celso Lisboa), mestre em Ensino de História (ProfHist-UERJ) e doutoranda em Educação (PPGE-UFRJ)



Apresentação da atividade

Segmento: 9º Ano

Unidade temática: O nascimento da República no Brasil e os processos históricos até a metade do século XX

Objetivos gerais:

– Refletir sobre as conquistas e limitações da CLT na Era Vargas.
– Relacionar marcadores sociais de raça, classe e gênero para compreender processos históricos no Brasil República.
– Relacionar as conquistas de direitos políticos, sociais e civis à atuação de movimentos sociais. 

Habilidades a serem desenvolvidas (de acordo com a BNCC)

(EF09HI09) Relacionar as conquistas de direitos políticos, sociais e civis à atuação de movimentos sociais.
(EF09HI07) Identificar e explicar, em meio a lógicas de inclusão e exclusão, as pautas dos povos indígenas, no contexto republicano (até 1964), e das populações afrodescendentes
(EF09HI04) Discutir a importância da participação da população negra na formação econômica, política e social do Brasil.

Duração da atividade:  3 aulas de 50 minutos

Aulas Planejamento
01Etapa 1 e 2
02Etapa 3
03Etapa 4 e 5

Conhecimentos prévios:

– Processos de exclusão acionados sobre a população afro-brasileira no pós-abolição. 
– Ascensão de Getúlio Vargas ao poder.


Atividade

Propomos a abordagem das lutas, conquistas e limitações em relação aos direitos trabalhistas em nosso país a partir de agências e articulações de Laudelina de Campos Mello, mulher negra, trabalhadora doméstica e fundadora da primeira Associação de Trabalhadoras Domésticas do Brasil (1936). Professor(a), conheça um pouco a história de Laudelina de Campos Mello.

Texto 1. Laudelina de Campos Mello

Em 12 de outubro de 1904, em Poços de Caldas, Minas Gerais, berrara sua nascença Laudelina de Campos Mello, bem como ainda berrava a recém-nascida República. Estava em curso a chamada Primeira República, inicialmente sob o comando das espadas dos militares e posteriormente sob o cabresto da aristocracia rural brasileira. Neta de um ventre livre, a pequena Nina deu seus primeiros passos em descompasso com um projeto de Brasil que se pretendia branco. Este período foi marcado pela elaboração de projetos nacionais que sustentavam o Brasil como uma nação branca em seu cerne e os africanos e seus descendentes recém-libertos como elementos estrangeiros a essa nação. Em diálogo com certas apropriações da eugenia, tais projetos previam solucionar os problemas da sociedade brasileira eliminado as “raças inferiores”, ou seja, planejavam o embranquecimento para a regeneração de um Brasil que consideravam “atrasado” na perspectiva positivista de progresso. Assim, a cidadania, intrínseca a qualquer república de fato, não fora pensada para recém libertos e afrodescendentes. (…)
A situação da mulher negra no pós-abolição, então, era ainda mais peculiar. Como reflete Bebel Nepomuceno, em Mulheres Negras – protagonismo ignorado, apesar de a virada do século XIX para o XX ser marcada por uma série de conquistas das mulheres, fosse no mundo do trabalho, na esfera política ou mesmo no que tangia à sexualidade e aos direitos reprodutivos, tais avanços não podem ser levados em conta plenamente para pensar mulheres como Laudelina. 
(…)
Enquanto mulheres brancas, de grupos sociais privilegiados, conquistavam gradativamente os espaços públicos e um mercado de trabalho ocupado quase que exclusivamente pelos homens brancos até então, mulheres negras como Laudelina, já eram íntimas das ruas e não foram absorvidas por um mercado de trabalho formal. Como um legado dos tempos de escravidão -quando eram muito comuns as cenas de mulheres negras vendendo quitutes nas ruas, trabalhando como lavadeiras ou prestando serviços domésticos de toda sorte -, no pós-abolição, delas se esperava a presença nos espaços públicos e a prestação de serviços, porém a elas eram oferecidas as oportunidades de menor prestígio, menor remuneração e que não contavam com nenhum tipo garantias ou direitos. (…)
O mercado de trabalho no pós-abolição, para Nepomuceno, apresentava-se como um dos campos em que o preconceito racial mais ficava latente. O critério racial de seleção dos empregadores ia ao encontro das políticas oficiais de branqueamento. Os negros eram preteridos pelos imigrantes europeus e seus descendentes, mesmo para a execução de atividades subalternas. Havia grande euforia entre as patroas brasileiras em contratar domésticas de pela clara, por exemplo; porém a presença da mulher negra nos serviços domésticos permaneceu predominante, visto que poucas eram as imigrantes europeias dispostas a enfrentar as humilhações, o salário ínfimo, as extensas jornadas de trabalho e os abusos sexuais recorrentemente cometidos contra estas trabalhadoras. As dificuldades vividas pelas trabalhadoras domésticas foram vivenciadas por nossa protagonista desde cedo. Apesar de aos 16 ou 17 anos ter começado a exercer trabalho doméstico remunerado, desde os 7 anos, aproximadamente, a pequena Nina já desempenhava funções em sua própria casa enquanto sua mãe trabalhava como lavadeira em um hotel. Com 12 anos já desempenhava a função de pajem esporadicamente, além de cuidar dos próprios irmãos.
Chamada pelo ministro do trabalho Jarbas Passarinho, no ano de 1967, de o “terror das patroas”, Laudelina teve sua vida marcada pela luta por melhores condições de trabalho para as domésticas e pelos direitos da população negra em nosso país. Sua atuação política fora marcada pelas relações com diversos militantes negros, comunistas e sindicalistas e o contato e interlocução com as várias organizações políticas distintas como a Frente Negra Brasileira, o Partido Comunista e o Teatro Experimental do Negro fizeram parte das suas histórias.  Organizações recreativas e educativas voltadas para a afirmação do povo negro, como o concurso de beleza Pérola Negra, o Clube 13 de Maio e a Escola de Bailados Santa Efigênia, foram obras de sua criação e articulação. A ela é conferida a primeira organização de domésticas do Brasil, criada em 1936 em Santos/SP e fechada em 1942 pelo Estado Novo; a fundação da Associação de Domésticas em Campinas, na década de 1960, também é atribuída à sua luta a conquista da sindicalização desta categoria profissional, ocorrida em 1988. 
Aos 87 anos, Vó Nina finalizou sua longa caminhada repleta de lutas e negociações e, a esta altura, a República já colecionava projetos e feições. Nossa personagem, por sua vez, colecionava histórias sobre racismo, afirmação e resistência; sobre negação e conquista de cidadania; sobre a luta e a conquista de diretos trabalhistas; sobre a assimetria inerente às relações de gênero e às táticas desenvolvidas frente a isso. Até mesmo uma participação no movimento de defesa passiva e auxiliar na II Guerra Mundial – e a sobrevivência a um tiro – constam nessas experiências de vida!  Laudelina de Campos Mello traz em suas histórias as marcas dos diversos tempos em que viveu, assim como a história do Brasil é marcada pelos agenciamentos por ela protagonizados.

Trecho adaptado de O Brasil de Laudelina: usos do biográfico no ensino de história, de Fernanda N. Crespo, 2016. Disponível em: https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/trabalhoConclusao/viewTrabalhoConclusao.jsf?popup=true&id_trabalho=3845861. Acesso em 14/06/2021

Texto 2. Questão social

“Durante a Primeira Guerra Mundial a indústria brasileira registrou alto índice de expansão, fruto do declínio do comércio internacional e da consequente necessidade de substituição das importações. Com o aumento das atividades industriais, aumentou o contingente de trabalhadores organizados, o que fortaleceu o movimento operário. Entre 1917 e 1920 inúmeras greves foram decretadas nos principais centros urbanos do país. Em decorrência, o debate sobre a questão social e sobre as medidas necessárias para enfrentá-la ganhou considerável espaço no cenário político nacional. O mesmo acontecia no plano internacional, tanto que o Brasil participou da Conferência do Trabalho de Washington, em 1919. Esse foi um ano de eleições presidenciais aqui, e o tema foi bastante explorado pelo candidato de oposição Rui Barbosa. Mesmo sem apoio de uma máquina eleitoral, Rui conseguiu cerca de um terço dos votos e saiu vitorioso no Rio de Janeiro, então capital da República.
O objetivo central da classe operária era melhorar as condições de vida, de trabalho e salário. Já o empresariado considerava a possibilidade de fazer algumas concessões ao operariado para garantir o processo de produção e de acumulação de capital e, simultaneamente, fazer frente às críticas anti-industrialistas que acusavam o setor de ser o causador da alta do custo de vida além de estimulador de graves problemas sociais com sua intransigência.
Enquanto a classe trabalhadora negociava com os empresários através dos seus sindicatos legalmente organizados, o patronato também se reunia em associações. (…)
O Poder Legislativo deu início a um debate com vistas a encaminhar a aprovação de um Código de Trabalho, o que não chegou a acontecer. Dois deputados destacaram-se na defesa das demandas da classe trabalhadora: Mau
rício de Lacerda e Nicanor Nascimento. É bem verdade que, para a maioria dos políticos da época, a questão social não era percebida como sendo de natureza econômica ou mesmo social, mas sim como um problema de moral e higiene. Daí, portanto, a tendência a tratá-la em conjunto com os temas de educação e saúde. Com o tempo, entretanto, a questão educacional e a questão sanitária ganharam sua área própria, e abriram-se novas discussões, sobre as reformas educacionais e o movimento sanitarista.
Aos poucos começaram a ser tomadas algumas iniciativas para a criação de normas jurídicas de regulação e controle dos contratos de trabalho. Dava-se início à formação de uma legislação social no país. A primeira dessas leis foi a relativa a acidentes de trabalho, de 1919. Para se precaver, o patronato criou companhias seguradoras, responsáveis pelo pagamento dos benefícios, mas igualmente fontes de acumulação de capital. Em 1920 foi criada a Comissão Especial de Legislação Social da Câmara dos Deputados, com a função de analisar toda e qualquer iniciativa legislativa na área trabalhista. A lei de criação das Caixas de Aposentadorias e Pensões, de 1923, é considerada a primeira lei de previdência social. Também conhecida como Lei Elói Chaves, nome do autor do projeto, ela concedia aos trabalhadores associados às Caixas ajuda médica, aposentadoria, pensões para dependentes e auxílio funerário. A Lei Elói Chaves beneficiou de início apenas os trabalhadores ferroviários. Só três anos mais tarde seus benefícios foram estendidos aos trabalhadores das empresas portuárias e marítimas.
Em 1922 inaugurou-se o governo de Artur Bernardes, que seria marcado por uma grande instabilidade política devido ao movimento tenentista, e por uma forte repressão ao movimento operário. Uma das principais correntes deste último movimento, a dos anarquistas, além de enfrentar a polícia, passou a sofrer a concorrência dos comunistas, que fundaram em 1922 o Partido Comunista do Brasil. O enfraquecimento do poder de pressão da classe trabalhadora, juntamente com a desaceleração do ritmo da produção e o aumento das importações, fez com que setores do empresariado retrocedessem em seu relativo apoio as demandas sociais e trabalhistas. Além disso, o patronato sentia-se, dia a dia, mais lesado em seus direitos e liberdades com o crescente intervencionismo do Estado no campo trabalhista.
Ainda assim, duas leis importantes foram introduzidas na segunda metade dos anos 20: a Lei de Férias (1925) e a Lei de Regulamentação do Trabalho de Menores (1926/27). A primeira visava a obrigar os empresários a concederem 15 dias de férias a seus empregados, sem prejuízo do ordenado, mas foi sistematicamente desrespeitada. Já o Código do Menor estipulava a maioridade a partir dos 18 anos e propunha uma jornada de trabalho de seis horas. Ao contrário da Lei de Férias, enfrentou uma reação apenas parcial, com relação aos limites de idade (de 14 anos) e ao horário de trabalho estipulados.
O cumprimento da legislação social, entretanto, deixava muito a desejar devido à ausência de fiscalização adequada. Apenas os trabalhadores mais organizados e de maior peso político conseguiram, assim mesmo com muita luta, garantir sua aplicação. Isso também se restringia aos grandes centros do país, São Paulo e Distrito Federal, não tendo, portanto, um caráter nacional. Mesmo a criação do Conselho Nacional do Trabalho em 1923, concebido como um órgão específico para tratar de questões dessa natureza, não resolveu o problema. O Conselho teve uma atuação de caráter meramente consultivo, não chegando a operar como planejador de uma legislação social. Só a partir de 1928 o órgão adquiriu poderes para atuar como árbitro de conflitos trabalhistas.
Até a inauguração da Era Vargas o direito social brasileiro só abrangia alguns poucos aspectos da questão trabalhista e menos ainda da questão previdenciária. Seja como for, a implantação de uma legislação social como um todo após a Revolução de 1930 tem suas raízes nessas iniciativas pioneiras e na luta dos trabalhadores desse período.”

Fonte: https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/anos20/QuestaoSocial, acessado em 09 de junho de 2021.

Professor(a), observe que o texto acima apresenta um breve contexto dos avanços de uma legislação trabalhista no Brasil ainda na década de 1920 abordando uma série de categorias da classe trabalhadora, operários, ferroviários, portuários e marítimos. Ressaltamos que além da profissão de doméstica não aparecer no texto, ela sequer era reconhecida como profissão no pós abolição. Isso acontece por uma série de questões que essa atividade propõe debater e refletir com os estudantes.  O texto a seguir trata da ampliação dos direitos das empregadas domésticas em 2013.

Texto 3. O Trabalho Doméstico no Brasil

  “O trabalho doméstico no Brasil é emblemático. Classe, raça, gênero, entre outras dimensões da vida social, interagem na geração de desigualdades persistentes. Em que pese algumas importantes modificações ao longo dos últimos anos, tais como redução do trabalho doméstico infantil, diminuição do número de trabalhadoras domésticas que dormem no domicílio, envelhecimento da categoria profissional, menor entrada de jovens até 29 anos nesta ocupação etc., o trabalho doméstico ainda continua sendo uma importante categoria ocupacional para milhares de mulheres, especialmente mulheres negras. 
A categoria profissional dos trabalhadores domésticos empregava, em 2009, 7,2 milhões de pessoas, das quais 93% (ou 6,7 milhões) eram mulheres. Dessas, 61,6% eram negras e 38,4% brancas. A sobrerrepresentação de trabalhadoras domésticas negras torna-se mais evidente quando se percebe que, para cada conjunto de 100 mulheres brancas ocupadas, 12 são trabalhadoras domésticas, enquanto para cada 100 mulheres negras participantes da População Economicamente Ativa (PEA), 21 são trabalhadoras domésticas (Pinheiro, Fontoura & Pedrosa, 2011).
Em recente estudo realizado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT, 2013) em 117 países, excluindo a China devido a imprecisões metodológicas nas pesquisas demográficas daquele país, o Brasil apresenta-se como o país do mundo com maior número de trabalhadores domésticos. Múltiplas são as razões para a forte presença do trabalho doméstico na sociedade brasileira, a partir mesmo de seu enraizamento profundo na formação de nossa sociedade – da ausência de equipamentos públicos (creches, escolas integrais, lavanderias públicas, restaurantes a preço acessível etc.) à forte concentração de renda. 
A existência do trabalho doméstico depende, em grande medida, da alta concentração de renda, o que, obviamente, se conjuga com a existência de uma massa de trabalhadores destituída de recursos materiais e dispostas a vender sua mão de obra. A partir da Pesquisa de Orçamentos Familiares de 2008-2009, constata-se que quase 70% das famílias pertencentes ao décimo mais rico da população contratam uma trabalhadora doméstica, o que significa que cerca de 58% das trabalhadoras domésticas do país são empregadas por famílias situadas entre os 10% mais rico da população (Pinheiro, Gonzales & Fontoura, 2012).
O trabalho doméstico na sociedade brasileira traz inúmeros desafios na construção da igualdade social ou, se quisermos, para a redução da desigualdade a níveis aceitáveis do ponto de vista ético. Um dos principais desafios que se coloca é em relação à formalização do contrato de trabalho ou, como diz Robert Castel (1995), a superação do contrato de “trabalho labial” entre trabalhadora e empregador e o estabelecimento, em seu lugar, de um estatuto coletivo. Atualmente, apenas 26,3% das trabalhadoras domésticas possuem carteira de trabalho assinada, pré-requisito para o usufruto de direitos sociais de há muito consolidados, como férias anuais, aposentadoria, direito ao salário mínimo. Significa dizer que cerca de 5 milhões de trabalhadoras domésticas estão destituídas de qualquer direito. Diante não somente deste quadro atual, mas do quadro histórico de desigualdades, as trabalhadoras domésticas, juntamente com outras organizações e movimentos sociais, têm oferecido uma resposta explicitada por seu ativismo.
A resposta mais recente a este quadro de desigualdades sociais foi a colocação na pauta de discussão do país da chamada PEC das Domésticas, Proposta de Emenda à Constituição que redundou na Emenda Constitucional 72, que alterou o Parágrafo Único do artigo 7º da Constituição Federal, passando a estabelecer a equidade entre os trabalhadores domésticos e os demais trabalhadores urbanos e rurais do país. Com essa alteração, as trabalhadoras domésticas, que eram contempladas apenas por nove dos 34 direitos sociais previstos no Capítulo dos Direitos Sociais da Constituição Federal, passaram a ter uma equiparação legal aos demais trabalhadores do país.
Sabe-se que esta conquista legal não é o fim da luta, mas apenas o começo de uma nova fase, num país historicamente caracterizado pelo não cumprimento de leis, o que explica que apenas 26% das trabalhadoras domésticas terem assinadas suas carteiras de trabalho, um direito no entanto assegurado desde 1972. Da mesma forma, sabe-se que os avanços legais não são resultantes exclusivamente do ativismo das trabalhadoras domésticas, mas que para tal feito foram estabelecidas alianças, cooperações e redes entre diversos atores políticos nacionais e internacionais, tais como: movimentos classista-sindicais, movimentos feministas, movimentos negros, agências internacionais, sindicalismos internacionais, parlamentares etc. Todavia, esquecer o ativismo das trabalhadoras domésticas diante destas conquistas seria escrever uma história sem as principais protagonistas.”

Trecho de Decolonialidade e interseccionalidade emancipadora: a organização política das trabalhadoras domésticas no Brasil, de Joaze Bernardino-Costa, 2014. Disponível em: https://www.scielo.br/j/se/a/tjznDrswW4TprwsKy8gHzLQ/?lang=pt&format=pdf. Acesso em: 14/06/2021


Etapa 1: Laudelina de Campos Mello, o Trabalho Doméstico e a CLT

Divisão da turma em grupos e atribuição de materiais a serem analisados:

Material 1:  Fotografia de Laudelina de Campos Mello

O grupo ficará responsável por identificar de que tipo de documento se trata, que informações expressa e traçar um perfil hipotético da personagem histórica retratada. Professor(a), solicite aos estudantes do grupo que ficará com o material 1 que observem a imagem de Laudelina de Campos Mello e em uma folha de papel respondam às questões a seguir:
a) Onde viveu?
b) Em que tempo viveu?
c) Que profissão exerceu?
d) Que elementos da fotografia que mais chamaram a atenção do grupo?

Foto do Acervo CASA LAUDELINA de Campos Mello

Material 2: Transcrição de trechos do depoimento de Laudelina de Campos Mello à pesquisadora Elisabete Aparecida Pinto entre 1990 e 1991. 

O grupo ficará responsável por identificar de que tipo de documento se trata, que informações expressa e traçar um perfil hipotético da depoente.
Professor(a), solicite aos estudantes do grupo que ficaram com o material 2 a leitura atenta do trecho ressaltado. Em seguida peça que destaque no caderno as questões a seguir:
a) Explique a relação estabelecida por Laudelina de Campos Mello entre o trabalho doméstico no Brasil das primeiras décadas do século XX e a escravidão.
b) Identifique de que modo trabalhadoras domésticas reagiram à situação em que se encontravam na década de 1930?
c) O presidente Getúlio Vargas é mencionado por Laudelina de Campos Mello. Por quê?

Material 3:  Fragmento da Constituição de 1934

O grupo ficará responsável por identificar de que tipo de documento se trata, quando foi produzido e que informações expressa.
Professor(a), solicite aos estudantes do grupo que ficaram com o material 3 que analisem o trecho do documento destacado e destaquem no caderno as questões a seguir:
a) De que documento se trata? Em que ano foi publicado? E qual é a sua importância?
b) Quais direitos aparecem garantidos no documento?

Material 4:  Fragmento do Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943 (CLT)

O grupo ficará responsável por identificar de que tipo de documento se trata, quando foi produzido e que informações expressa.
Professor(a), oriente os estudantes desse grupo a fazerem uma leitura atenta dos artigos e responderem a seguinte questão: 
a) De que documento se trata? Em que ano foi publicado? E qual é a sua importância?
b) Quais grupos foram excluídos dessa conquista de direitos?


Etapa 2: Quem sou eu nessa História?

Professor(a), a partir da exposição coletiva dos resultados da etapa anterior e montagem final do perfil da personagem a explorando a interface entre as fontes, ressalte junto aos estudantes:
– As condições precárias por ela relatadas em relação ao trabalho doméstico nas primeiras décadas do século XX relacionando-as com as assimetrias raciais rearticuladas no contexto de pós-abolição.
– As conquistas das leis trabalhistas na Era Vargas.
– A articulação das trabalhadoras domésticas através da fundação da Associação em busca de direitos e melhores condições de vida e trabalho, relacionando-a com as lutas e resistências empreendidas pela população afro-brasileira no pós-abolição.
– A exclusão de “empregados domésticos” e “trabalhadores rurais” na CLT (Artigo 7 do Decreto)


Etapa 3:  Uma vida, nossas histórias

Exibição de vídeo Laudelina, Suas Lutas e Conquistas, docudrama produzido pelo Museu da Cidade de Campinas.

Duração: 37`18

– Propor que os estudantes identifiquem nas histórias de vida de Laudelina de Campos Mello assimetrias de raça, gênero e classe, ficando cada grupo responsável pelo registro de evidências relacionadas a um desses marcadores sociais. 
– Estimular que refletiam sobre a interseção destas questões nas experiências abordadas e em experiências do tempo presente.

Glossário:
Docudrama: também chamado de drama documentário, é um estilo de documentário que apresenta de forma dramática a reconstituição de fatos, utilizando-se atores para isso.


Etapa 4: “O Terror das Patroas”*: ataques à luta das trabalhadoras domésticas

Professor(a), nessa etapa, projete ou distribua uma cópia do documento e leia com os estudantes o trecho destacado da carta anônima enviada à Laudelina de Campos Mello em 1961, logo após a fundação da Associação de Empregadas Domésticas de Campinas naquele mesmo ano. 
Após a leitura, solicite que os estudantes,
– Identifiquem críticas e argumentos utilizados pela(o) remetente para a deslegitimação da luta das trabalhadoras domésticas.

Carta anônima destinada à Laudelina de Campos Mello. Acervo CASA LAUDELINA de Campos Mello.
Transcrição do fragmento da carta anômina a ser lido e analisado.

*“Terror das Patroas” foi uma expressão utilizada por Jarbas Passarinho, ministro do trabalho em 1967, durante a ditadura militar, para se referir à Laudelina de Campos Mello segundo notícia do Jornal da Cidade do dia 03/07/1967 (PINTO, 1993).


Etapa 5:  Prezada(o) patroa(ão), nós te respondemos

Elaboração, em grupos, de resposta à carta anônima destacando os motivos pelos quais as trabalhadoras domésticas passaram a se articular politicamente em busca de direitos. Os estudantes mobilizarão conhecimentos construídos através do estudo das fontes nas etapas anteriores.


Bibliografia e Material de apoio:

CRESPO, Fernanda. O Brasil de Laudelina: Usos do biográfico no ensino de história. Dissertação (PROFHISTORIA) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Formação de Professores, 2016.
PINTO, Elisabete Aparecida. Etnicidade, gênero e educação: a trajetória de vida de Laudelina de Campos Mello (1904-1991). São Paulo: Anita Garibaldi, 2015. 
___________.Etnicidade, Gênero e Educação: A Trajetória de Vida de Dª Laudelina de Campos Mello (1904-1991). Vol 1- Dissertação de Mestrado. Universidade Estadual de Campinas/Faculdade de Educação, 1993. 493 pp.


Créditos da imagem de capa: https://casalaudelinadecamposmello.wordpress.com/quem-foi-a-lider-laudelina-de-campos-mello/ acessada em 21 de junho de 2021 no Blog Casa de Laudelina.


Chão de Escola

Nos últimos anos, novos estudos acadêmicos têm ampliado significativamente o escopo e interesses da História Social do Trabalho. De um lado, temas clássicos desse campo de estudos como sindicatos, greves e a relação dos trabalhadores com a política e o Estado ganharam novos olhares e perspectivas. De outro, os novos estudos alargaram as temáticas, a cronologia e a geografia da história do trabalho, incorporando questões de gênero, raça, trabalho não remunerado, trabalhadores e trabalhadoras de diferentes categorias e até mesmo desempregados no centro da análise e discussão sobre a trajetória dos mundos do trabalho no Brasil.
Esses avanços de pesquisa, no entanto, raramente têm sido incorporados aos livros didáticos e à rotina das professoras e professores em sala de aula. A proposta da seção Chão de Escola é justamente aproximar as pesquisas acadêmicas do campo da história social do trabalho com as práticas e discussões do ensino de História. A cada nova edição, publicaremos uma proposta de atividade didática tendo como eixo norteador algum tema relacionado às novas pesquisas da História Social do Trabalho para ser desenvolvida com estudantes da educação básica. Junto a cada atividade, indicaremos textos, vídeos, imagens e links que aprofundem o tema e auxiliem ao docente a programar a sua aula. Além disso, a seção trará divulgação de artigos, entrevistas, teses e outros materiais que dialoguem com o ensino de história e mundos do trabalho.

A seção Chão de Escola é coordenada por Claudiane Torres, Luciana Pucu Wollmann do Amaral e Samuel Oliveira

LMT#84: Indústrias Wallig, Porto Alegre (RS)- Fernando Pureza



Fernando Pureza
Professor do Departamento de História da UFPB



Quem anda pela Zona Norte de Porto Alegre nos dias de hoje deve conhecer o shopping Bourbon Wallig, localizado na avenida Assis Brasil. Não obstante carregue o sobrenome do proprietário das indústrias Wallig, a estrutura do shopping em nada lembra aquela que foi uma das maiores metalúrgicas do Rio Grande do Sul.

A trajetória da Wallig confunde-se em grande medida com a própria história da classe trabalhadora porto-alegrense. Indústria metalúrgica importante, reconhecida em especial pela produção de fogões, foi fundada em 1904 por Pedro Wallig, imigrante alemão que destinara o empreendimento para a construção de camas de ferro. Foram seus filhos, Guilherme e, em especial, João, que deram o rosto “moderno” da empresa. Em 1921 transferiram a Wallig para o bairro Navegantes, onde foi convertida na maior fábrica de fogões do Brasil, mantendo um modelo paternalista de gestão empresarial, tão comum ao empresariado teuto-brasileiro de Porto Alegre. Desta forma, criaram sistemas de socorro mútuo e cooperativas de crédito e consumo que permitiam aos patrões controlar a vida dos operariado, majoritariamente masculino, para além das fábricas.

Nos antecedentes da Segunda Guerra Mundial, a Wallig seria referência não apenas pelos fogões, mas por desenvolver cozinhas industriais inteiras sob demanda – sendo efetivamente favorecida pela legislação trabalhista da época, que instituiu a obrigatoriedade de que empresas com mais de 500 funcionários tivessem refeitórios instalados. Na década de 1940, como muitas outras indústrias, ela deixa Navegantes, fugindo das grandes enchentes, como a de 1941. Instalou-se no bairro do Cristo Redentor, na Zona Norte de Porto Alegre, no famoso Quarto Distrito. Foi ali, na rua Francisco Trein, que a empresa expandiu ainda mais seus negócios. O sucesso da Wallig foi tanto que ela patrocinou um dos primeiros programas de TV no Rio Grande do Sul, o “Grande Show Wallig”, exibido pela extinta “TV Piratini” em 1961.

Talvez não por acaso, o Sindicato dos Metalúrgicos de Porto Alegre se instalou na mesma rua da metalúrgica. A sede sindical, inaugurada em 1953, segundo relato do antigo presidente do sindicato, José Cézar de Mesquita, dava de frente para os portões da Wallig. Na memória extraoficial do sindicato, Mesquita é lembrado como um de seus maiores nomes, o principal organizador das atividades sindicais dos metalúrgicos e um dos principais líderes sindicais do Estado. Nas décadas de 1950 e 60, para além da mobilização e das greves, o sindicato promovia atividades de teatro, cinema, esporte, arte-coral, Centro de Tradições Gaúchas, o jornal Folha Metalúrgica, a colônia de férias e o Instituto Educacional – que posteriormente se tornaria a escola técnica José Cézar de Mesquita.


A Wallig tornou-se uma das principais bases do Sindicato. Ao atravessar a rua, o operário fabril que se sentisse injustiçado ou simplesmente quisesse se organizar, encontrava um dos sindicatos mais fortes do Rio Grande do Sul até a intervenção dos militares em 1964.


Mesmo depois do golpe, a adesão dos operários daquela fábrica à entidade continuou relativamente alta. Em 1968, dos 1.556 funcionários da Wallig, 537 ainda eram associados ao sindicato. Contudo, o período da ditadura não foi propriamente próspero para a empresa. Em 1964 o patrono João Wallig faleceu e seu filho Werner Pedro recebeu a incumbência de instalar uma filial da Wallig em Campina Grande, na Paraíba. Alegando que o volume de investimento era excessivo e que faltava mão de obra especializada, a Wallig passou a perder parte significativa de seu capital. Em 1981, após inúmeras perdas, a empresa desativou suas funções em Porto Alegre.

Entre idas e vindas, nos despojos da empresa, duas cooperativas, com o apoio do Sindicato dos Metalúrgicos, passaram a ocupar o espaço da fábrica: a Coomec (Cooperativa Industrial Mecânica dos Trabalhadores na Wallig Sul Ltda) e a Coofund (Cooperativa Industrial de Fundidos dos Trabalhadores na Wallig Sul Ltda). Elas mantiveram a empresa funcionando por meio de uma autogestão operária que perduraria até 1991.  A Coofund ainda permaneceria até o ano de 1997, mas sem exercer produção direta na fábrica, fechada por ordem judicial em 1993.

As cooperativas foram o último sopro de vida e de luta que a Wallig conheceu. Com a empresa obrigada pela Justiça a vender sua massa falida e com os antigos donos bloqueando as ações das cooperativas, ocorreu o canto de cisne da fábrica. O terreno abandonado, de frente para o Sindicato dos Metalúrgicos, virou uma espécie de ruína arquitetônica na Zona Norte de Porto Alegre e assim foi até maio de 2012, quando o grupo Zaffari comprou o espaço e lá instalou o shopping Bourbon Wallig, o seu maior empreendimento, alterando profundamente a paisagem da região.

Em 2019 o Sindicato dos Metalúrgicos deixou sua antiga sede e instalou-se na escola José Cézar de Mesquita, algumas quadras mais distante do shopping. O espaço urbano de Porto Alegre modificou-se completamente. O local onde antes as lutas de classes ocorriam no atravessar das ruas era agora ocupado pelo templo do consumo. Mas recuperar a memória dessas lutas e desses trabalhadores pode, quem sabe, inspirar a nova classe trabalhadora que percorre o antigo terreno da Wallig.

IV Congresso dos Trabalhadores Gaúchos em 10 de abril de 1960.
Foto do acervo do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Metalúrgica da Grande Porto Alegre.


Para saber mais:

  • FORTES, Alexandre. Nós do quarto distrito: a classe trabalhadora porto-alegrense e a Era Vargas. Caxias do Sul: EDUCS, 2004.
  • HOLZMANN, Lorena. Operários sem patrão: gestão cooperativa e dilemas da democracia. São Caetano: EDUFSCAR, 2001.
  • JAKOBY, Marcos André. A organização sindical dos trabalhadores metalúrgicos de Porto Alegre no período de 1960 a 1964. Dissertação de Mestrado. Niterói: PPG-História UFF, 2008.
  • SILVA, Nauber Gavski. O “mínimo” em disputa: Salário mínimo, política, alimentação e gênero na cidade de Porto Alegre (c. 1940 – c. 1968). Tese de Doutorado. Porto Alegre: UFRGS, 2014.
  • PUREZA, Fernando Cauduro. “Isso não vai mudar o preço do feijão”: as disputas em torno da carestia em Porto Alegre (1945 a 1964). Tese de Doutorado. Porto Alegre: UFRGS, 2016.

Crédito da imagem de capa: Fachada da Wallig da janela da antiga sede do Sindicato dos Metalúrgicos de Porto Alegre. Abril de 2008. Foto de Fernando Pureza.


MAPA INTERATIVO

Navegue pela geolocalização dos Lugares de Memória dos Trabalhadores e leia os outros artigos:


Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

LMT#83: Largo de São Francisco da Prainha e Pedra do Sal, Rio de Janeiro (RJ) – Erika Arantes



Erika Arantes
Professora de Ensino de História da UFF – Campos dos Goytacazes



Em 14 de novembro de 1883, o subdelegado da freguesia de Santa Rita, na cidade do Rio de Janeiro, efetuou uma prisão em massa em uma casa de cômodos no Largo da Prainha, alegando que ali se encontrava um zungú. Os zungús, muito comuns no século XIX, eram pontos de encontro de trabalhadores negros escravizados ou libertos, que se reuniam para comer, batucar ou praticar sua religião, sendo de grande importância para a sobrevivência cultural e religiosa dos negros. No entanto, aquele zungú também era formado por homens brancos, incluindo estrangeiros, revelando o papel desses espaços coletivos nas trocas culturais que ocorriam na cidade entre o final do século XIX e o início do XX, principalmente entre imigrantes portugueses e a população negra. Quase todos os 33 homens presos nesse dia trabalhavam no porto.

Nessa época, o Largo de São Francisco da Prainha era conhecido como ponto de encontro dos portuários. Esses trabalhadores, que no início do século XX se organizariam em sindicatos fortes e combativos como a União Operária dos Estivadores e a Sociedade de Resistência dos Trabalhadores em Trapiche e Café, eram em sua maioria negros. Frequentemente enfrentavam a ação repressiva da truculenta polícia republicana, que não raro os prendia por vadiagem enquanto esperavam uma chamada para o trabalho na estiva.

Localizado no bairro da Saúde, na zona portuária, e mais especificamente na Rua Sacadura Cabral, onde também está a Praça Mauá, o Largo de São Francisco da Prainha recebe esse nome pela proximidade com a Igreja de São Francisco da Prainha. Até fins do século XIX, havia ali uma pequena praia – a Prainha – que começa a ser aterrada nesse momento e também sofre transformações com a modernização do porto, entre 1904 e 1910. Toda região da Prainha tinham “má fama”.

O medo que despertava associava-se, principalmente, à forte presença negra na região. Foi também nessa mesma área que, no século XVIII, encontravam-se o mercado de escravos do Valongo e a Cadeia do Aljube, onde eram aprisionados os escravizados acusados de crimes e os quilombolas. No início do século XX esta memória e a imagem negativa da região ainda eram muito fortes. O temor que o local despertava nas elites foi expresso nas crônicas de João do Rio, que se referiu à Saúde como “o bairro onde o assassinato é natural” e apontou que a Prainha, à noite, “causava uma impressão de susto”.

Contigua ao Largo da Prainha, está a Pedra do Sal. Local de descarregamento de sal, entre outros gêneros, desde o século XVI, a Pedra do Sal ficou conhecida como reduto de músicos negros, que entraram para história como precursores do samba e dos ranchos carnavalescos. Foi o caso de Hilário Jovino, que morou nos arredores da Pedra do Sal e fundou, no final do XIX, o primeiro rancho carnavalesco que se tem notícia: o Rei de Ouros. O Lalau de Ouro, como era conhecido, trabalhou no cais do porto ao lado de sambistas famosos como João da Baiana e Elói Antero Dias – o Mano Elói. Estes, além das atividades carnavalescas, participaram ativamente nos sindicatos portuários. 


Em fins de século XIX e início do XX, trabalho, atuação política e diversão se encontravam na zona portuária e era bastante comum que trabalhadores sindicalizados, muitas vezes dirigentes sindicais, estivessem também à frente das associações carnavalescas, como nos casos de Cypriano José de Oliveira, Antenor dos Santos, Horácio de Souza Moreira e o próprio Mano Elói – que mais tarde fundaria a Escola de Samba Império Serrano.


O rancho Recreio das Flores se ligava diretamente à Sociedade de Resistência dos Trabalhadores em Trapiche e Café e à União dos Operários Estivadores. Muitos outros trabalhadores do porto, mas também das mais variadas profissões – sindicalizados ou não – certamente frequentavam ranchos como o Rosa Branca, Prazer da Prainha, Filhos da Prainha, Rancho Pedra do Sal, entre outros.

A Pedra do Sal foi constantemente associada à história do samba carioca. Tia Ciata, cuja casa ficou conhecida como reduto de sambistas, referia-se à Pedra do Sal como ponto de referência para os negros que deixavam a Bahia rumo ao Rio no pós-abolição. O ambiente festeiro e religioso do lugar marcou a experiência daqueles que frequentavam o local. O sambista Heitor dos Prazeres deu à região uma definição que ficou na memória da cidade: “Era a Pequena África no Rio de Janeiro”. O apelido, embora não dê conta da diversidade étnico-racial e cultural da região, resiste nos dias de hoje. No Rio de Janeiro, a Pedra do Sal é o coração da Pequena África e a memória ligada às manifestações culturais e religiosas dos negros permanece viva.

Em 1984, a Pedra do Sal foi tombada pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico do Rio de Janeiro. Em 2004, o projeto cultural “Sal do Samba”, criado por moradores da região, associou-se a Associação dos Moradores da Saúde (AMAS-RJ) para resistirem às constantes desapropriações que estavam ocorrendo, frutos da crescente especulação imobiliária na região. Desse encontro surgiu a Associação de Resistência Quilombola da Pedra do Sal (ARQPEDRA), da qual faziam parte moradores ameaçados de despejo – entre eles, trabalhadores do porto – e comprometidos com a preservação da memória negra. Reconhecendo-se e reivindicando-se uma comunidade remanescente de quilombo, a luta dos moradores resultou, em 2005, na emissão, pela Fundação Cultural Palmares, da certidão de autorreconhecimento da região que engloba a Pedra do Sal e o Largo de São Francisco Prainha como um quilombo urbano: o Quilombo da Pedra do Sal.

João da Baiana na Pedra do Sal.
Acervo casa do Choro
(https://acervo.casadochoro.com.br/Images/index)
s/data
Placa localizada na Pedra do Sal.
Fonte: http://visit.rio/que_fazer/pedra-do-sal/


Para saber mais:

  • ARANTES, Erika B. O Porto Negro: cultura e associativismo dos trabalhadores portuários no Rio de Janeiro na virada do XIX para o XX. Tese de Doutorado: UFF, 2010.
  • CUNHA, Maria Clementina Pereira, Ecos da Folia: uma história social do Carnaval carioca entre 1880 e 1920. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
  • MATTOS, Hebe; ABREU, Regina. Relatório histórico-antropológico sobre o quilombo Pedra do Sal em torno do samba, do santo e do porto. Relatório Técnico de identificação e delimitação da comunidade remanescente de quilombo Pedra do Sal. Rio de Janeiro: MDA/Incra, 2007.
  • DO RIO, João do. A Alma Encantadora das Ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
  • SOARES, Carlos Eugênio Líbano. Zungú: rumor de muitas vozes. Rio de Janeiro: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 1998.

Crédito da imagem de capa: “Largo da Prainha”. Foto de Augusto Malta, c.1900. Fonte “A Praça Mauá na memória do Rio de Janeiro”, de Paulo Bastos Cezar e Ana Rosa Viveiros de Castro. 


MAPA INTERATIVO

Navegue pela geolocalização dos Lugares de Memória dos Trabalhadores e leia os outros artigos:


Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

Contribuição Especial #21: Celebrando Marco Aurélio Garcia



Alexandre Fortes
Professor do Instituto Multidisciplinar da UFRRJ
Paulo Fontes
Professor do Instituto de História da UFRJ e coordenador do LEHMT-UFRJ



Marco Aurélio Garcia faz, e continuará a fazer, muita falta. Falta do refinado intelectual engajado e humanista. Falta do militante político e dirigente partidário profundamente comprometido com o combate às desigualdades sociais e com a construção de um socialismo democrático. Falta do brilhante historiador do trabalho e das esquerdas que encantava seus alunos com sua erudição e desprendimento. Falta do gestor público fundamental para a construção de uma política externa que encheu de orgulho os brasileiros e colocou o país no centro da agenda internacional. Falta do cáustico senso de humor que deliciava amigos e desconcertava adversários.

Marco Aurélio Garcia, o MAG, como era conhecido, nasceu em 22 de junho de 1941. Militante do movimento estudantil, aderiu ao Partido Comunista do Brasil (PCB) no final dos anos 1950. Foi vice-presidente da União Nacional dos Estudantes entre 1961 e 62. Após o golpe de 1964, aderiu à Dissidência do Partido Comunista no Rio Grande do Sul e, em seguida foi um dos fundadores do POC (Partido Operário Comunista). Em 1967, ele e a socióloga Elizabeth Lobo, com quem era casado, partiram para a França. Chegaram a voltar para o Brasil e depois foram para o Chile durante o governo da Unidade Popular liderado por Salvador Allende. Com o golpe de 1973, exilaram-se definitivamente na França, onde completaram sua formação acadêmica.

De volta ao Brasil, com a Anistia em 1979, MAG passou a lecionar no Departamento de História da Unicamp, onde foi figura fundamental na constituição do Arquivo Edgard Leuenroth como principal centro de documentação da história do trabalho brasileira. Marco Aurélio também foi um dos grandes divulgadores das obras dos historiadores marxistas britânicos como Eric Hobsbawm e E.P.Thompson. No contexto da redemocratização brasileira, foi fortemente impactado pelas greves metalúrgicas do ABC paulista e pela emergência dos movimentos sociais de uma maneira geral.

Inauguração do novo prédio do Arquivo Edgard Leuenroth na Unicamp, novembro de 2009. Da esquerda para a direita: Hélio da Costa, Marco Aurélio Garcia, Michael Hall, Alexandre Fortes, Fernando Teixeira da Silva, Paulo Fontes e Antonio Luigi Negro. Acervo de Alexandre Fortes.

Foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores, tornando-se um de seus principais intelectuais e dirigente políticos. Atuou particularmente na área das relações internacionais, tendo papel destacado na construção do Foro de São Paulo. Foi também Secretário de Cultura de governos petistas nas prefeituras de Campinas e de São Paulo. Com a vitória de Lula em 2002, Marco Aurélio tornou-se Assessor Especial de Relações Internacionais da Presidência da República e foi um dos pilares da política exterior do país nos governos de Lula e Dilma. Tornou-se, assim, um dos principais articuladores e um dos nomes mais conhecidos e admirados da esquerda latino-americana no início do século XXI. Um infarto fulminante tirou a vida de Marco Aurélio Garcia na manhã dia 20 de julho de 2017.

Marco Aurélio Garcia, o Ministro das Relações Exteriores Celso Amorim e o Presidente Lula em evento no Palácio do Planalto em 2009. Fotografia de Wilson Dias, Acervo Jornal Grande Bahia.

A entrevista inédita de MAG que o site do LEHMT-UFRJ agora publica foi feita no âmbito da segunda fase projeto de história oral do Centro Sérgio Buarque de Holanda da Fundação Perseu Abramo. Os depoimentos da primeira fase foram reunidos no livro “Muitos Caminhos Uma Estrela: Memórias de Militantes do PT” organizado pelos então coordenadores do projeto, Alexandre Fortes e Marieta de Moraes Ferreira

Marco Aurélio Garcia foi entrevistado por Alexandre Fortes em 18 de novembro de 2009 na Associação Atlética do Banco do Brasil de Brasília, que sediava provisoriamente a Assessoria Especial da Presidência da República durante uma reforma no Palácio do Planalto. A entrevista foi acompanhada por um grupo de servidores, que se deliciavam com a riquíssima trajetória e com o conhecido talento narrativo do entrevistado, dentre eles seu braço direito, o assessor de imprensa Bruno Gaspar. Problemas técnicos com a gravação retardaram o processo de transcrição e edição. Dificuldades de agenda também levaram a sucessivos adiamentos das novas sessões de gravação que seriam necessárias, já que uma hora e meia do precioso tempo de um dos principais atores da política externa brasileira só tinham possibilitado tratar dos seus primeiros 23 anos de vida. Infelizmente, a continuidade da entrevista nunca ocorreu.

O depoimento é um delicioso relato daquela que é, provavelmente, a fase menos conhecida da vida e da atuação política de Marco Aurélio Garcia. Além de suas origens familiares, MAG fala sobre o rico clima político e cultural de Porto Alegre nos anos 1950 e 60, conta sobre sua militância no movimento estudantil e no PCB, além da sua experiência como dirigente da UNE em um dos momentos mais turbulentos da história brasileira que desembocaria no Golpe de 1964.

Trecho da Entrevista com Marco Aurélio Garcia

Ao publicar essa entrevista no dia em que Marco Aurélio faria 80 anos celebramos sua vida e seu legado. MAG foi figura chave na formação política e intelectual de muitas pessoas, inclusive dos autores desse texto, que tiveram a honra e satisfação de com ele conviver em diferentes espaços como o Instituto Cajamar, a Fundação Perseu Abramo e o Programa de Pós-Graduação em História Social do Trabalho da Unicamp. Fica aqui, mais uma vez, nosso agradecimento e homenagem. Viva Marco Aurélio Garcia!


Seminário promovido pelo Instituto Cajamar no Sindicato dos Trabalhadores Químicos de São Paulo, 1992. Gilberto Carvalho, Marco Aurélio Garcia, Alexandre Fortes e Eric Hobsbawm (da esquerda para a direita). Acervo de Alexandre Fortes

Entrevista com Marco Aurélio Garcia
Os anos de formação: 1941 -1964

Depoimento concedido a Alexandre Fortes (18/11/2009)

Contexto familiar

Fale um pouco da tua trajetória, contexto familiar, infância…

MAG – Eu nasci em 1941, no dia da invasão da União Soviética [pela Alemanha Nazista]. Minha família era de classe média. O pai era advogado, veio do interior, de Santa Maria para Porto Alegre. Minha mãe, antes de casar, funcionária público, e depois ficou “do lar”, como se diz, bem classe média. O meu avô materno era um advogado também e que teve participação política. Depois, eu acho que, talvez, até por um temperamento muito particular – perdia o amigo mas não perdia a piada – foi se afastando do centro da política. Ele formou-se em 1912, se não me engano, na Faculdade de Direito, em Porto Alegre, tinha sido amigo de Getúlio, tinha sido amigo do Maurício Cardoso1 … e dos outros do borgismo2 de uma maneira geral. Eu me lembro dele ter voltado à política nos anos 1950, tentando, infrutiferamente, ser eleito vereador pelo PSD, em São Paulo. Ele era um homem de ideias conservadoras, mas de uma personalidade muito afável. Um homem com preocupações culturais. E uma das imagens que eu tenho, muito forte, é a biblioteca do meu avô, a qual eu frequentava muito…

No interior?

MAG – Não, não. Meu avô é portoalegrense. Eu nunca me preocupei muito com minhas origens familiares, mas, até onde eu sei, não houve nenhum estrangeiro na família. Meu tataravô foi escritor. Tem até uma rua na Glória [bairro de Porto Alegre] com o nome dele, Bibiano de Almeida. E, segundo se diz, tinha sido também um escritor de obras pornográficas. O que eu acho muito simpático. Metade do século XIX, em Porto Alegre, alguém que fosse latinista e ao mesmo tempo escritor de obras pornográficas, eu acho muito divertido. O meu avô paterno eu não conheci. Ele morreu muito cedo. Era um homem muito ligado ao Flores da Cunha3. Quando meu pai foi para Porto Alegre, junto com a minha avó, viúva com quatro filhos, de uma certa forma, foi protegido do Flores. E a proteção que o Flores ofereceu ao meu pai foi de conseguirem uma matrícula na Faculdade de Direito e um emprego no Tesouro, aos dezesseis anos de idade. Foi procurador fiscal do estado. Foi colega de turma do [João Goulart, o] Jango, mas não se lembrava dele. O Jango parece que era uma pessoa meio ausente. E meu avô fez carreira como procurador fiscal, chegou a diretor do Tesouro. Eu acho que num determinado momento foi até subsecretário (da Fazenda). Tem uma particularidade da minha família: minha família é laica. Meus pais não casaram no religioso, eu não sou batizado, eu não casei no religioso, meu filho não é batizado. Laicidade. O meu avô materno era espírita, mas se comportava como um laico, de uma maneira geral. E, de uma certa maneira, tinha um certo componente anticlerical na família. Acho que é um fenômeno que em Porto Alegre se vê com uma certa frequência, como a gente vê no Uruguai.

O “Batalhão Nacionalizador” e o fim da Segunda Guerra Mundial

MAG – Outra coisa interessante é que logo depois que meus pais casaram, antes de eu nascer, houve a guerra e o meu pai, que tinha feito CPOR, foi convocado como oficial do Exército. Ele serviu quatro anos como oficial do Exército em Santa Maria, onde ele ficou sob o comando do então general Henrique Teixeira Lott4. E depois serviu em Santa Cruz do Sul, que era uma cidade muito germanizada. Então, o batalhão que foi enviado para Santa Cruz, sintomaticamente, era chamado Batalhão Nacionalizador. Porque em Santa Cruz, grande parte da população naquela época falava alemão ou uma coisa parecida com alemão. Inclusive a população negra da cidade falava alemão.  A imagem mais antiga que eu tenho na cabeça de um fato histórico é o final da Segunda Guerra Mundial. Evidentemente, sendo filho de um oficial do Exército, de um batalhão nacionalizador… E meu pai, pelo fato de ser um advogado, era invariavelmente chamado para fazer os discursos… Virou o intelectual do batalhão. E a alemoada, como chamava na época, de Santa Cruz resistia muito à ideia de que a Alemanha tinha sido derrotada também pela União Soviética. Isso é uma coisa que meu pai contava. Mas eu me lembro que fizeram um palanque no centro da cidade, ali defronte aquela catedral gótica, e pintaram as bandeiras das tropas aliadas. Meu pai passou por lá e disse “E a bandeira da União Soviética?”  Disseram: “O padre não quer que pinte essa.” (risos)  Meu pai disse: “Não. Pinte aí.”  Tinha aquelas coisas nas festas: “Viva Roosevelt!”, “Viva Churchill!”. Aí meu pai: “-Viva Stalin!”.  Ele era um homem, de uma certa forma, de centro-esquerda. Tenho a impressão que votou no [Yedo] Fiúza, em 1945 [candidato presidencial do PCB]. No entanto, seguiu uma trajetória que era comum naquela época, de simpatia pelas ideias de esquerda, mas uma antipatia muito grande pelo PTB, pelo getulismo… Então, isso fazia com que essa gente se aproximasse um pouco do udenismo. Eu não sei em quem ele votou em 1950. Não me lembro. Não excluiria que tivesse votado no Brigadeiro [Eduardo Gomes, candidato presidencial da UDN]. E ele teve uma inflexão para uma posição mais explicitamente de esquerda, já nos anos 1950 e 1960. Nessa época eu já estava com uma influência política maior. Mas, enfim, na minha casa havia livros de esquerda, havia o “Manifesto Comunista”, o “Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico”, livros do Plekhanov, coisas desse estilo. E, de uma maneira geral, era um ambiente bastante arejado. Na minha casa, também, havia uma boa biblioteca, para os padrões daquela época, evidentemente.

Tu tens irmãos?

MAG – Tenho uma irmã, que é dez anos mais moça que eu. Dizem que nós somos dois filhos únicos… Em 1945, quando terminou a guerra, meu pai deu baixa do Exército e voltou de Santa Cruz para Porto Alegre. Foi um período um pouco difícil, porque estando fora da Procuradoria Fiscal, muita gente passou na frente dele. Então, obviamente, ele tinha um salário mais modesto. Se estabelecer como advogado também não era uma coisa fácil. Mas ele foi tocando e com o tempo, foi tendo, digamos, um reconhecimento funcional necessário. Nós fomos morar na rua Azenha [no tradicional bairro Azenha em Porto Alegre]. 

Programa de Rádio, Viagem a Paris e militância no “Julinho”

MAG – Eu estudei num grupo escolar que naquela época era própria na rua Azenha, e hoje parece que é na General Caldwell, ali perto da igreja. Naquela época eram cinco anos primários, quatro de ginásio, três de colegial. Quando eu terminei o quarto ano primário acharam que eu poderia fazer diretamente o exame de admissão, pulando o quinto ano. Eu fiz o exame e entrei no Cruzeiro do Sul. Colégio muito simpático, lá em Teresópolis [bairro na Zona sul de Porto Alegre]. Eu soube recentemente que o colégio fechou. Tive alguns antecessores ilustres lá: [os escritores] Josué Guimarães e Érico Veríssimo. Foi um período feliz, sabe, porque eu tinha muitos amigos… Mas, do ponto de vista de atividade política, praticamente nada. Eu tinha sido um excelente aluno no curso primário. Era sempre o primeiro aluno da turma. E no ginásio, eu fui perdendo o “peso”. Fui perdendo peso. Quando eu terminei o ginásio, eu já tinha mais ou menos a ideia de fazer direito. Era uma coisa meio inercial. Eu cometi um erro. Eu deveria ter ido para o curso clássico, mas eu gostava tanto do Cruzeiro do Sul, que só tinha curso científico, e fiquei lá. O resultado é que eu levei bomba, repeti o primeiro ano científico. Para mim foi um abalo muito… muito grande. Aí eu decidi fazer a seleção para o Colégio Júlio de Castilhos [popularmente conhecido em Porto Alegre como “Julinho”]. Nesse… a minha vida começou a mudar do ponto de vista político. (ri)  Tem um episódio interessante nesse período. Eu gostava muito de literatura. E nessa época havia muito esses programas de perguntas e respostas, tipo “O Céu é o Limite”. Havia um programa lá em Porto Alegre, na Rádio Guaíba, que era um grande sucesso, e eu terminei me inscrevendo. Participei de treze programas e ganhei. O prêmio foram duas viagens para Paris. Então fui com meu pai. Uma coisa interessante, porque eu nunca tinha saído de Porto Alegre. Eu não conhecia nem São Paulo nem o Rio de Janeiro.

Em que ano foi isso?

MAG – O programa em 1957, 1958. Aí o pai disse: “Bom. Então de presente tu vais estudar na Aliança Francesa”.  No primeiro ano que eu estive no Júlio de Castilhos, eu tinha aulas de tarde, e ia todas as manhãs, por duas, três horas, para a Aliança Francesa. Fiz um curso intensivo. Isso me deu uma base de francês, que me foi muito útil… Gostaria de ter tido a mesma base em inglês, que eu não tive. Bom. Eu fui a Paris em janeiro de 1959, passei um mês, fui a Lisboa. Quando voltei entrei no Júlio de Castilhos, no ano em que o colégio mudou de prédio, depois do incêndio do que hoje é a Faculdade de Economia. No primeiro dia de aula, o Julinho, como se chamava na época, estava de greve. Greve. Uma agitação… Eu já fiquei excitadíssimo. (risos) Eu me lembro que nesse dia, um aluno do curso secundário, que estava em pé numa caminhonete lá, com um megafone na mão, era o Marcos Faerman (o Marcão). Ele depois se transformou num jornalista de primeira linha, nacionalmente. Morreu há poucos anos. A minha turma no clássico era uma turma pequena, tinha uma diversidade muito expressiva. Um dos meus colegas, com quem eu me aproximei rapidamente, ficamos amicíssimos e somos até hoje amigos, foi o [ator] Paulo César Pereio. Que era, já naquela época, um pouco o personagem que ele é hoje. O Pereio tentou me levar para o teatro. Eu comecei na época, a ensaiar e coisa desse tipo. Num determinado momento o Teatro de Equipe, que tinha sido fundado e era uma coisa muito promissora na cidade, foi para o Rio de Janeiro, fazer uma longa temporada. E o Pereio queria que eu fosse; claro, com um papel bem pequeno. Mas o meu pai teve a sabedoria, naquela época, de dizer: “Não, senhor. Vá se dedicar aos seus estudos”. (risos) Então eu não fui. Mas eu me dediquei muito à política estudantil, no grêmio estudantil. Foi um ano que houve eleições. A esquerda apresentou uma chapa encabeçada por um sujeito, um pouco mais velho do que nós, chamado Nissim Castiel, irmão daquele Alberto Castiel que foi da USP. Já faleceu também. Eles eram de uma dessas famílias de judeus comunistas. Nós fizemos uma boa amizade. Quando ele foi eleito, eu fui ser secretário do grêmio.

O PCB e os judeus progressistas de Porto Alegre

Isso em que ano?

MAG – Isso, acho que ainda em 1959. É importante mencionar o seguinte. O ambiente, a cultura política da esquerda naquele momento estava muito, muito influenciada pelo nacionalismo econômico. O tema do petróleo era um tema muito forte. De maneira que nós criamos o movimento nacionalista, como uma espécie de uma grande frente política. Naquela época, nós construímos a Torre do Petróleo na praça da Alfândega. Eu passei a ler um jornal chamado O Semanário, no qual escreviam autores muito ligados ao movimento nacionalista. O mais eminente de todos era um sujeito chamado Gondin da Fonseca, que havia escrito um livro que foi um best-seller no país, chamado Que sabe você sobre petróleo? E eu era muito atraído pelo estilo polêmico que ele tinha. Mas tinha outros que escreviam: Osnir Duarte Pereira, Nelson Werneck Sodré, que escrevia com pseudônimo porque como coronel do Exército ligado ao Partido Comunista não podia aparecer. Ele tinha uma coluna literária. Eu lia muito o Semanário. Depois, passei a ler, quando começou a aparecer, o Novos Rumos, que já era um jornal do Partido Comunista. Um belo dia, eu estava na casa do Nissim, lembro perfeitamente, um sábado, em agosto de 1959, e ele disse: “Olha. Eu vou a uma reunião do Partidão…” Na época não chamava Partidão, não. “Eu vou a uma reunião do PC. Você não quer ir?”  Eu digo: “Ah. Eu vou.”  Foi uma reunião sui generis, porque havia poucas pessoas. Um deles era o Marcos Faerman, que estava ingressando naquele dia no partido. Estavam o Nissim, eu e mais duas pessoas: o Elói Martins e o João Amazonas. E eu decidi que ia ingressar no partido e pronto. Aí nós criamos uma célula do Partido Comunista lá no Júlio de Castilhos, que teve, rapidamente, uma grande irradiação. É interessante observar que um número muito expressivo de militantes do Partido naquela época era judeu. Judeus comunistas. Era um fenômeno político muito interessante: o progressismo dos judeus. Grande parte desses judeus eram frequentadores do Clube de Cultura de Porto Alegre. Porque em Porto Alegre havia duas… digamos, vertentes da comunidade judaica. Uma mais social e provavelmente reunindo gente mais moderada, que era a Hebraica, como existia em outras partes do país, depois eu vim descobrir. Mas o Clube de Cultura reunia [pessoas] como os Scliar…  O Wremyr Scliar foi meu contemporâneo lá. O Nelson Kanter, o Flavio Kanter, o Isaac Einhorn, o Moisés Pontremoli… Enfim, tinha uma comunidade judaica muito grande. Quando chegou no final do meu período lá, eu cometi uma insanidade, que foi me candidatar a presidente do grêmio. Eu estava no final do curso, era uma coisa absurda. Mesmo assim, insistiram na candidatura. A eleição se realizou, mas nunca foi apurada, então nós nunca ficamos sabendo qual foi o resultado eleitoral. (ri) 

O DCE da URGS e a luta pela Reforma Universitária

MAG – Eu fiz exame vestibular, naquele ano, para a Faculdade de Direito e não passei. Levei bomba em latim. Mas fiz também para Filosofia e passei. E no ano seguinte eu passei para Direito. Então, eu frequentei as duas faculdades na URGS. Aí nós já estávamos já constituindo o Partido Comunista na universidade. Havia muito poucas pessoas. Tinha um velho quadro do Partido Comunista, o Honório Peres. Acho que está vivo ainda. É uma figura adorável, muito respeitável. Nós tivemos algumas brigas em algum momento, mas isso não afetou a estima que eu tenho por ele. Grande parte da leva do Júlio de Castilhos terminou indo para a universidade, e nós começamos a vertebrar o Partido Comunista. E no segundo ano da Filosofia, em realidade, o meu primeiro ano do Direito, nós ganhamos a eleição do DCE. O Fulvio Petracco, que depois se transformou em dirigente do Partido Socialista foi o candidato… É um sujeito muito inteligente, com muito carisma. Uma das questões que estava muito em voga naquele momento era o tema da reforma universitária. Você sabe que a reforma universitária no Brasil é um fenômeno tardio. Na Argentina, o grande movimento da reforma, que teve uma influência decisiva sobre a esquerda de toda a América Latina, é de 1919.  E no Brasil, o movimento pela reforma universitária apareceu só em 1960. Houve um seminário latino-americano de reforma universitária em Salvador, organizado pela UNE. E no ano seguinte houve o primeiro seminário nacional de reforma universitária. Eu era secretário de Cultura do DCE, e o Nelson Kanter, que era o secretário de Reforma Universitária disse: “Olha. Vai ter um seminário na Bahia e eu acho que você deveria ir também.”  Eu terminei indo e conheci muita gente. Eu tinha ido, um pouco antes, a uma reunião de dirigentes comunistas, em janeiro, que depois me valeu incomodações muito grandes, porque uma pessoa dessa reunião caiu nas mãos da polícia em 1964. Mas eu fui à Bahia e para mim foi uma coisa extraordinária. Porque era um momento em que se viajava muito pouco pelo Brasil. Hoje é diferente. Hoje, qualquer quatorze, quinze anos, o sujeito está viajando pelo mundo, etc.. Naquela época, não.

A UNE Volante

MAG – Nesse seminário de Salvador se consolidou um pouco um grupo de pessoas ligadas ao Partido Comunista com quem nós convivemos durante muito tempo. Na reunião do Rio de Janeiro, uns meses antes, estava o Alberto Goldman5, para você ter uma ideia, que era um estudante da Politécnica. Na reunião de Salvador estava a Liana Maria Aureliano6, hoje casada com o João Manuel Cardoso de Mello7, também economista. Tinha o Ivan Otero Ribeiro8, um economista também muito importante, que morreu naquele acidente do avião do Marcos Freire9, que explodiu. Tinha o Aluísio Oliveira. Uma grande figura, que depois participou do governo Collor, mas com quem eu sempre mantive uma relação muito forte, independentemente dessas opções. Tão forte que, tempos depois, eu descobri que o filho dele se chamava Marco Aurélio, em homenagem à a nossa amizade. O Moacir Andrade, que era um jornalista do Rio de Janeiro, que eu perdi a pista nos últimos anos… Enfim, esse grupo, de uma certa forma, se manteve mais ou menos coeso por muitos anos. Aí surgiu um pouco a ideia de que eu viesse para a diretoria da UNE. De tal maneira que, uns meses depois, em julho de 1961, eu fui eleito vice-presidente da UNE… Aldo Arantes10 presidente, Roberto Amaral11, nosso ex-ministro, era um dos vice-presidentes. Eu era vice-presidente da Reforma Universitária e Cultura… Tinha alguém mais, ligado à Polop [Organização Revolucionária Marxista Política Operária]…  O presidente e um vice-presidente eram ligados à JUC [Juventude Universitária Católica] na época, que pouco depois, se transformou em Ação Popular (AP). E tínhamos um número razoável de comunistas. Eu acho que éramos cinco. Porque o Amaral terminou se incorporando ao partido… Esse foi um período da minha vida que eu aproveitei muito, mas também, em que eu deixei de fazer uma série de coisas que eu deveria ter feito, do ponto de vista de formação intelectual, etc. etc.. (ri) Mas eu vivi um ano no Rio de Janeiro, e foi um momento que eu conheci o Brasil. Salvador tinha me chamado muito a atenção. O Aldo era um sujeito muito inventivo, com muita determinação, e decidiu que nós teríamos que fazer com que a UNE viajasse por todo o país. Daí surgiu a ideia da UNE Volante. Então nós fomos para Manaus, Belém do Pará, Piauí… Na época, o Piauí era uma coisa espantosamente… Quer dizer, não tem nada a ver não com o Brasil, para não fazer propaganda do governo Lula, mas com o Brasil de dez, quinze anos atrás. Era um outro país. Mas um país muito, muito interessante. Para mim foi uma descoberta do Brasil. Foi um período em que nós estávamos, por um lado, empurrando muito a questão da reforma universitária. Quer dizer, do ponto de vista conceitual, nós preparamos coisas muito mais consistentes. Nós organizamos a greve do 1/3, que foi uma greve que paralisou as universidades brasileiras, todas, sem exceção (Todas! Isso é uma coisa espantosa) durante quase dois meses. No segundo seminário que nós fizemos se publicou a famosa Carta de Curitiba.12

O Centro Popular de Cultura

MAG – Por outro lado, eu me ocupava também daquilo que me dava mais prazer ainda, que é o CPC, o Centro Popular de Cultura. Eu era uma espécie de responsável, na diretoria. O [sociólogo] Carlos Estevam [Martins],  era o diretor do CPC, e nós tínhamos reuniões diárias, que iam até duas, três da manhã, com [o dramaturgo] Oduvaldo Vianna Filho, de quem eu fiquei amigo, o [dramaturgo] Armando Costa, o [cineasta] Leon Hirszman, o [cineasta] Cacá Diegues. O Cacá também fazia movimento estudantil naquela época. O Afonso Beato, que hoje é um dos maiores fotógrafos do cinema mundial, é fotógrafo do [cineasta espanhol Pedro] Almodóvar e de outros, estava lá. O [cineasta] Arnaldo Jabor, [o músico] Carlos Lira, o próprio [sociólogo] Luiz Werneck Vianna, que não é propriamente da área artística mas… enfim, dava os seus pitacos lá. Então foi um período extremamente interessante. A ideia da UNE Volante era de que não bastava só o discurso político. Tinha que se usar, concretamente, as manifestações artísticas como uma arma de politização. Nós fizemos, naquela época, (foi a minha incursão no teatro, tardia) o Auto dos 99%, durante noites e noites e noites. Foi um instrumento decisivo para preparar a greve de 1/3. O êxito da peça era uma coisa impressionante… É a época também em que nós estávamos filmando o Cinco Vezes Favela. Só ficou pronto, em realidade, no ano seguinte. Foi um período muito, muito intenso. Evidentemente, a minha vida acadêmica decaiu consideravelmente… Nós tínhamos feito um pacto da diretoria de que, salvo o vice-presidente de Relações Internacionais, que era o Clemente Rosas, um sujeito muito simpático, também ligado ao Partido Comunista naquela época, ninguém de nós viajaria para o exterior. Porque a UNE tinha ficado um pouco desgastada com os dirigentes viajando… Claro, tinha muito convite para viajar, mas nós dissemos: “Só quando terminar a gestão”.

Leningrado

MAG. – Quando terminou a gestão, nós fomos para o congresso da União Internacional do Estudantes, que era em Leningrado, hoje São Petersburgo. O Aldo Arantes, eu e outros lá. Isso, já em agosto de 62. Pegamos as noites brancas de São Petersburgo. É interessante observar que quando nós estávamos lá eu ouvi pela primeira vez alguns rumores sobre a crise dos foguetes.

Esse era o período de surgimento do PCdoB, da POLOP, e também da AP. Em que isso afetava o ambiente na UNE?

MAG. – Na UNE, afetava pouco, porque o que nós tínhamos, basicamente, era o Partidão, que era nessa época bastante forte do ponto de vista nacional, ainda que minoritário. Porque, quando a AP se formou, ela exerceu uma atração muito grande não só sobre a geração de católicos de esquerda, de uma formação mais sofisticada (o [filósofo francês Emmnauel] Mounier, [o padre dominicano] Louis Joseph Lebret, coisas desse tipo) mas ela, de uma certa forma, arrebanhou quase toda a base da JUC, que era, muitas vezes, uma base sem uma formação tão clara, mas que se viu atraída por aqueles jovens que eram seus líderes: o Betinho13 era uma figura importante…

O Vinícius Caldeira Brandt14

MAG. – O Vinícius… Ainda que o Vinícius fosse mais introspectivo. O próprio Aldo, evidentemente. Quando eles montaram a AP, ela ainda era beneficiada pela presença de Henrique Vaz15, o Almino Afonso16 esteve vinculado nesse momento… Enfim, ela teve um poder de atração muito grande e se transformou numa força hegemônica no movimento estudantil. Mas nós tínhamos estabelecido uma espécie de “condomínio”, no qual, evidentemente, o Partido Comunista era menos importante, mas era muito importante de qualquer maneira, e a AP tinha mais peso. E havia a Polop, que era muito pequena. Mas a AP sempre fazia uma graça de que a Polop tinha o direito de indicar alguém para a diretoria. Na nossa diretoria, por exemplo, foi um mineiro, muito simpático, o Mário Lúcio. Parece que hoje ele é psiquiatra em São Paulo. Mas eu nunca mais o vi depois disso. A Polop tinha mais base em São Paulo, um pouco em Minas também, um núcleo menor no Rio, com o Moniz Bandeira17, alguma coisa na Bahia…

 A UNE na crise da renúncia de Jânio Quadros

MAG – Ah! Mas, evidentemente, a coisa mais importante, é que nós fomos eleitos para a diretoria da UNE, em 1961 e em julho eclodiu a crise da renúncia do Jânio. O Jânio já estava se engalfinhando contra o [Carlos] Lacerda [governador da Guanabara] naquele momento. E, evidentemente, uma das coisas que incomodava muito a direita, naquele momento era a política externa independente. Então nós viemos aqui a Brasília para fazer duas coisas. Em primeiro lugar, para arrumar dinheiro para o CPC, para uma série de projetos, então trouxemos pastas com projetos etc. etc… Em segundo lugar, para convidar o Jânio para ir à UNE. O nosso encontro foi hilário, absolutamente hilário, porque foi no dia 23 de agosto de 1961. Jânio nos recebeu e o encontro começou da forma mais tempestuosa possível. Nós ficamos esperando lá, aquele chá de cadeira normal… Aí entramos na sala. Eu sempre tento identificar que sala era, mas como o Planalto passou por muita mudança, eu não consigo. Era uma sala totalmente escura, e o Jânio estava, furiosamente, digitando num aparelho de telex.  Uma sala escura, com uma lâmpada assim. E ele nos deixou uns dez minutos em pé. Lá pelas tantas, ele parou, dramaticamente, se virou para nós e disse assim: “Ontem, assinei o abono de faltas para os estudantes que foram no seminário de reforma universitária. É a última vez que eu faço isso!” Eu me dei conta de uma coisa espantosa: o presidente da República assinava abono de faltas para os estudantes. (risos) Você imagina o que era o Brasil nessa época. Muito  bem. Aí… Quer dizer, ele já começou nos dando uma putchada, assim, total. Aí o Aldo, que era uma pessoa muito educada, disse: “Presidente, nós viemos aqui falar com o senhor…” E o Jânio disse: “Não. Excelência. O primeiro ministro da Inglaterra é Excelência e o presidente do Brasil é Excelência”.  Outra mijada em cima do Aldo… (risos) Aí… “Bem, Excelência, então nós viemos cá para lhe comunicar a eleição da nova diretoria da UNE”. E passa para o Jânio uma folha circular impressa, que nós tínhamos mandado para todos os centros acadêmicos. “Mas vocês não têm um protocolo? Como é possível que mandem, entreguem para o presidente da República uma circular impressa?” (risos) A essa altura eu digo, nós vamos sair presos daqui. (risos)  Bom. A coisa foi se compondo aos poucos… Ah! Estávamos o Aldo, eu, um cara negro, ligado à Umbanda, presidente da UME, União Metropolitana do Estudantes, do Rio de Janeiro, que era uma figura fantástica. E estava a presidenta do Diretório Central dos Estudantes, que era uma mulher muito bonita, muito charmosa, um pouco mais velha que nós, em quem o Jânio, evidentemente, imediatamente botou o olho. (risos) Então, foi uma espécie de um lubrificante para a conversa. Aí a conversa começou a rolar, fluir mais… E quando o Aldo disse: “Nós queríamos que Vossa Excelência fosse nos visitar na UNE”, o Jânio disse: “Não. Mas o Lacerda não gosta de mim”. Aldo respondeu: “O Lacerda não manda lá. O senhor é o presidente”. Enfim, subitamente, ficou tudo bem. E nós começamos a passar os projetos. E ele despachava nos projetos. “Autorizo”, não sei quê, não sei quantos milhões. “Autorizo” e tal. E a gente pegando aquela…

A famosa caneta. (ri)

MAG – E eu explicando para ele as partes que eram do CPC… “Aqui, nós queríamos fazer um circo”. “Circo. Muito importante”. “Autorizo”. (risos) Bom. Aí… ficamos um tempo impressionante lá dentro. Culminou… “Bem, presidente, então, muito obrigado por tudo”… Ele diz: “Eu quero falar com os senhores amanhã.”  A gente com passagem de volta marcada, mas tudo bem. “Às seis da manhã”. (risos) Seis da manhã!  Está bem. Nós dormimos em cinco no mesmo quarto, para economizar. (risos) Bom. No dia seguinte, quatro e meia da manhã, acordamos, todo mundo com um sono tremendo… A gente, de lá, via o Alvorada. Aí, cinco e meia da manhã, a gente vê o Jânio saindo. Fomos lá falar com ele. E ele não perdeu cinco minutos conosco… Eu digo: “Esse cara é doido”… (ri) Nós voltamos… O Aldo foi para o Rio e eu ia para uma tarefa qualquer da UNE em Belo Horizonte. No dia seguinte, eu ainda ia ficar mais um dia em Belo Horizonte. Aí chega a notícia da renúncia. Eu tentei imediatamente ir para o Rio. Os aviões lotados. Eu me lembro que na época eu, muito provinciano, andava com uma mala enorme, rapaz, uma coisa… Eu desembarco no Rio, no Galeão e vou direto para a UNE. Quando eu cheguei, uma multidão na frente da UNE. Porque nós morávamos na UNE. Nós tínhamos um apartamento lá nos fundos da Praia do Flamengo, 132. Eu fui lá e enchi a minha mala de livros, roupas, etc. e fui para a casa de um tio meu que morava em Copacabana. Deixei a mala lá e voltei. Quando eu voltei a UNE já estava cercada pela polícia. E aí começamos a viver a primeira experiência de clandestinidade. Depois, inclusive, a gente ficou sabendo que havia ordem de prisão nominal contra nós. O livro daquele Mario Vitor, Cinco anos que abalaram o Brasil, traz a ordem de prisão.

A Campanha da Legalidade

MAG – Bom. A gente teve as primeiras notícias de que o [Leonel] Brizola [então governador do Rio Grande do Sul] estava resistindo. Então decidiu-se, no comando, que se reunia clandestinamente… Aquele negócio todo: você pegava um táxi, descia num ponto, pegava outro táxi, para não ser seguido, etc. Então, o comando, que estava reunido, decidiu que dois de nós iríamos para o Sul, para acertar a transferência da sede da UNE para lá. E escolheram os dois gaúchos que iriam, que eram o Nei Sroulevich, presidente da Associação Metropolitana de Estudantes Secundários, a AMES, que foi, depois, figura organizadora do festival de cinema, depois, muito ligado ao Ruy Guerra. Ele morreu há poucos anos, e eu. O Rio já estava meio ocupado, meio em estado de sítio assim. Embarcamos lá no Galeão. Eu me lembro que para chegar no Galeão, tinha fileiras com policiais, o Exército… E tomamos um Caravelle para Porto Alegre. Chegamos tarde da noite em Porto Alegre. Eu fui para o Palácio Piratini para tentar falar com Brizola, mas estava difícil falar com ele. Foi, coincidentemente, aquela noite em que o Palácio ia ser bombardeado, etc. Bom. Não foi bombardeado. Nós fomos para casa dormir. No outro dia, quando levantamos, o Machado Lopes18 estava indo para o Palácio, falar com o Brizola. Meu pai já ficou todo excitado: “Eu vou para lá, para defender o Palácio”. (Ri).  Bom. E houve a conciliação do Brizola com Machado Lopes. Portanto, criou-se uma base forte para o chamado movimento da Legalidade. E eu, à tarde, consegui falar com o Brizola. Eu disse: “Olha, nós queremos vir para cá, etc. etc. E eu preciso de dinheiro para trazer esse pessoal”.  Aí o Brizola deu o dinheiro para a gente comprar as passagens. E nós, para desespero da minha mãe, voltamos para o Rio de Janeiro. Aí, parte do pessoal já tinha vindo de qualquer maneira, outros ficaram lá, alguns foram presos… Eu fiquei uns dias, também, meio clandestino no Rio de Janeiro. Até que desanuviou a situação. E a UNE ficou com muita visibilidade naquele momento. O Aldo foi para Porto Alegre, e ele falava todos os dias pela Cadeia da Legalidade, que era ouvida no Brasil inteiro, conclamando o movimento estudantil à resistência… Nós realizamos um conselho extraordinário da UNE no Rio Grande do Sul… O Brizola estava muito irritado com a solução que tinha sido dada, do parlamentarismo. Era o atrito dele com o Jango… E nós ficamos com uma relação muito boa com Brizola naquele momento. Até que voltamos todos para o Rio de Janeiro e, obviamente, começou uma série de movimentos. A gente tinha conversas regulares com o Jango nessa época. Mas enfim, nesse momento, evidentemente, a UNE começou a participar de forma muito intensa do quadro político nacional. Além da greve do 1/3, que foi uma greve muito forte, foi também o momento em que começou a produzir-se um movimento mais amplo em torno do que, mais tarde, em 1963, 1964, iria ser chamado de reformas de base…

A UNE no governo Jango

MAG. – A UNE tinha um prestígio tal, que… Eu conto um episódio aqui, que é muito significativo. Quando houve o parlamentarismo, o primeiro-ministro foi o Tancredo [Neves]. Depois, o Tancredo saiu, e a ideia do Jango era propor o San Tiago Dantas19 como… como… O San Tiago Dantas estava preparando o seu programa de governo, ministério, etc. e nos convocou. Eu fui a casa dele com o Aldo. Ele morava numa casa ali em Botafogo, uma casa daquelas muito… aristocrata brasileira. Ele de robe de chambre, com uma dama servindo o café, e fez toda uma série de considerações sinalizando para a esquerda, etc. e perguntou o seguinte: “Bom. Eu queria saber quem é que vocês querem de ministro da Educação. Aí nós, evidentemente, muito (radicais) mas desavisados, nós dissemos: “Nós queremos o Álvaro Vieira Pinto”. Álvaro Vieira Pinto20 era um filósofo que tinha publicado um livro na nossa coleção. Com o dinheiro que o Jânio liberou, a UNE lançou uma editora, cadernos… E o primeiro livro que nós lançamos foi A Questão da Universidade, que era uma série de artigos do Álvaro Vieira Pinto. Parecia coisa de gaúcho, assim, muita filosofia e pouca… (risos) Bom. E aí… Os dois devem ter sido companheiros da Ação Integralista nos anos 30, (ri) então devia se conhecer: “Mas o Álvaro não dá. É muito pesado, muito difícil”. Bom. Resulta que San Tiago foi chumbado, não teve voto de confiança. Uma sessão do Congresso memorável. Me lembro de ter ouvido a noite inteira no rádio. Tentaram o gabinete Aldo de Moura Andrade21, que durou menos de um dia, porque o Jango pediu que ele entregasse a carta de demissão. E teve aquela solução gaúcha, que foi o Brochado da Rocha22. Brochado da Rocha era um homem para os padrões da época, de centro-esquerda, um jurista, e que nomeou um governo também sintonizado com a esquerda. E nomeou para o Ministério da Educação, teve a esperteza de nomear para ministro da Educação uma mãe para o movimento estudantil, que era o secretário-executivo do Ministério, que era o dr. Julio Sambaqui23. Aí a UNE… Teatro…Todas aquelas coisas que depois foram queimadas no dia Primeiro de Abril, vieram desse período aí. Eu estou dando alguns fatos, para reconstituir um pouco o que é que era o ambiente, o que era o environment politique da época e como que nós nos movíamos, com intensidade impressionante. Só aqui na Presidência é que tem uma coisa assim, que cada dia é um dia novo, novos problemas… A UNE foi atacada pela direita… Houve um atentado contra a UNE quando nós morávamos lá, metralharam a UNE, puseram uma bomba incendiária… Para um sujeito como eu, provinciano, que vinha de Porto Alegre, estar convivendo com presidente da República, com [o líder das Ligas Camponesas Francisco] Julião, com a área cultural… O Rio era uma cidade muito agradável naquele momento. Eu sei que quando eu digo isso tem que medir muito, porque essa ideia de que o Rio era uma cidade muito agradável nos anos 1960 é um pouco a utopia da classe média do Rio de Janeiro: “Era muito agradável, porque os pobres estavam se ferrando e não protestavam”… Mas era uma cidade onde você podia caminhar horas durante a noite. Era uma cidade sem a menor preocupação.

No Leste Europeu

MAG. – Quando nós fomos para o congresso de Leningrado, no final do período, surgiram infinitos convites. Nós fomos convidados para visitar a Polônia, visitar a Romênia, que é um espetáculo… A Polônia era o lugar mais simpático porque os poloneses eram muito sofisticados e muito críticos ao governo. Quando nós estávamos em Varsóvia, fomos visitar o Palácio da Cultura, que é um prédio stalinista, e o cara que nos levou lá em cima disse: “Essa é a vista mais bonita de Varsóvia. Dá para ver toda a cidade, menos o Palácio do Governo.” E coincidiu um pouco que a Polônia vivia naquele momento um certo impacto da crise de 1956, lá não teve um desfecho como na Hungria. Na Romênia não, era diferente. Não era ainda o Ceausescu, mas era um daqueles stalinistas clássicos, o Gheorghe Gheorghiu-Dej. Mas era um lugar simpático. Depois fomos, sempre passando por Praga, fomos por mais quinze dias à Iugoslávia. O país que eu visitei um e agora são vários. Fomos a Zagreb, que hoje é a capital da Croácia. E aí terminamos a visita com o convite mais simpático de todos, que não era aquela mordomia dos países do Leste, mas que foi o da União Nacional dos Estudantes da França, que nos convidou para passar oito dias por lá. E aí cada um voltou de um jeito para o Brasil. Voltamos. Foi muito engraçado porque Aldo desembarcou em Lisboa para trocar de avião, a PIDE tinha a ficha dele. E ele foi devolvido para Praga. E ele chegou em Praga nos dias que antecederam a crise dos mísseis… No dia depois do discurso do [presidente dos EUA, John] Kennedy sobre o bloqueio. Então disse que era uma coisa, o pessoal comprando alimento, se preparando para a guerra nuclear… (ri) Quando eu voltei ao Brasil, eu cheguei no Rio e depois fui para Porto Alegre e já tinha uma manifestação em apoio a Cuba. Aí, nesse momento, começou uma nova fase. Quando eu terminei o período da UNE, que foi um período muito intenso, eu estive um ano, mas do ponto de vista político, intelectual, cultural foi como se fosse muito mais, tinha várias opções. Uma era continuar na UNE, para ser o responsável pelo CPC, não mais como dirigente… Outra: ir trabalhar na Novos Rumos, como jornalista. E até, lá pelas tantas me disseram: “Mas por que você não vai para um posto na Federação Mundial da Juventude Democrática?” Que era uma entidade de fachada, comunista, sediada em Budapeste. Eu tive um dos meus poucos momentos de sensatez. Decidi: “Olha, eu vou para Porto Alegre, terminar a faculdade, que é a melhor coisa que eu faço”. (ri) E, ao mesmo tempo, eu tinha uma grande preocupação naquele momento, porque eu achava que eu tinha acumulado uma experiência política muito grande, e o Partido estava muito dividido em Porto Alegre, no movimento estudantil, brigas… Eu digo: “Olha, eu vou chegar como um cara de fora, um cara que não esteve metido nessas mesquinharias todas, vou poder ajudar um pouco a reconstruir”.  E foi, e foi efetivamente o que eu fiz.

Reorganizando o PCB em Porto Alegre

MAG. – Eu voltei para Porto Alegre com uma aguda consciência da minha ignorância, sobretudo em matéria política. Então, naquele período a minha atividade era basicamente o seguinte: eu frequentava aulas na Faculdade de Direito e de Filosofia. Não eram muito intensas as atividades. E eu estudava marxismo. Eu li grande parte das leituras que um militante naquela época deveria fazer, mas, ao mesmo tempo, também coisas sobre história do Brasil. Levantava às oito da manhã e estudava até meio-dia, meio-dia e meia, todos os dias, disciplinadamente. E à noite ia organizar o Partido. Então, fim de 1962, começo de 1963, eu tive um período relativamente… mais organizado. Quer dizer, confrontado com aquele…

Turbilhão…

MAG – Turbilhão do Rio de Janeiro, de andar pelo país inteiro ou dos três meses que nós passamos pela Europa. Tinha, na época, um empecilho: eu não podia fazer duas faculdades inteiras. Então, eu fazia Direito inteiro e fazia duas cadeiras na Filosofia… É importante dizer que eu me aborrecia de forma devastadora. Mas eu resolvi, disciplinadamente: não, eu vou fazer isso. Eu já comecei, já fiz até agora. Eu preciso, depois, sair com um diploma daqui. Isso me dará embocadura. E eu acho que foi uma coisa boa, comparando com a trajetória de outros contemporâneos amigos meus e com muitíssimo mais talento até, eu acho que eu fiz uma coisa acertada. Aí em 1963 houve uma coisa interessante. Nós tínhamos conseguido montar o movimento estudantil do Partido. Nessa época, eu conheci várias pessoas, uma das quais o Flávio Koutzii.24 Tem um episódio muito divertido, que o Flávio conta, até hoje, com muito humor… Alguém me disse: “Olha esse rapaz que veio do Colégio de Aplicação é um cara muito promissor”. Então eu fui conversar com ele e convidei-o para entrar no Partido Comunista. Não sabia de todos os antecedentes. O pai do Flávio tinha sido comunista, era uma figura adorável, foi o primeiro crítico de cinema de Porto Alegre… Depois eu o conheci muito.  Mas aí, quando eu convidei o Flávio para entrar no Partido Comunista, ele, com aquele ar solene que ele tem às vezes, mas hoje ele evoca isso com enorme auto-ironia, disse: “Isto corresponde exatamente aos meus interesses”. (risos) Muito bem. O Flavio entrou e nós começamos a crescer muito na Filosofia. Dois lugares onde nós tínhamos grandes células, eram na Filosofia, onde havia uns cinquenta, mais ou menos, e na Arquitetura. Beneficiados, inclusive, pelo fato de que muitos professores da Arquitetura eram do Partido.

O conservadorismo acadêmico no início dos anos 1960

MAG – E eu acho que aqui vale também um parêntesis, uma nota de pé de página importante. As pessoas, hoje, não têm noção do quão conservadora era a universidade brasileira naquele momento. A universidade no Rio, ela tinha ainda alguns bolsões de progressismo. Álvaro Vieira Pinto tinha sido professor da Filosofia, mas foi afastado, ferrado pelo diretor da faculdade, que depois, expulsaria muitos estudantes também. Dentre eles o [jornalista] Elio Gaspari.

O tal do Eremildo?

MAG – Eremildo [Luiz Vianna]. Razão pela qual quando eu li pela primeira vez o personagem Eremildo, o idiota, eu digo: “Isso aí só pode ser a revanche que o Elio fez com Eremildo”. Outros que foram afastados: o [sociólogo] Carlos Estevam [Martins], o [filósofo] José Américo Pessanha, o [cientista político] Wanderley Guilherme. O ambiente era muito, muito conservador. Em São Paulo, tinha um núcleo um pouco mais à esquerda, o [sociólogo Octávio] Ianni, o [sociólogo] Florestan Fernandes. Mas, mesmo assim, o Florestan também não era lá esses esquerdismos naquele momento. Mas no Rio Grande do Sul, não. As exceções eram, por exemplo, o Gerd Bornheim, que tinha sido nosso professor e era um cara intelectualmente muito bom. Além do que, era uma pessoa com quem nós saímos para beber no sábado à noite… Eu, tempos depois, entendi um pouco o alcance disso quando eu li muitos testemunhos, li a biografia do [filósofo francês Jean Paul] Sartre feita pela [socióloga argelina Annie] Cohen-Solal, que ela dizia que o grande atrativo dele era que saía com alunos para tomar cerveja ou beber vinho, etc. Por sinal, a Cohen-Solal veio ao Brasil, então o cônsul organizou um almoço dela com os supostos amigos do Sartre. Eu, na realidade, não tinha sido amigo do Sartre coisa nenhuma, só fiz uma entrevista com ele. É importante dizer que a leitura de Sartre teve uma enorme influência sobre a nossa geração. Não só pelas ideias, eu diria, muito mais por um certo paradigma de intelectual, etc. Mas estava nessa reunião aquele filósofo, o Michel Debrun, que era uma figura encantadora, e ele disse: “Olha, eu não fui aluno do Sartre. Eu fui aluno no liceu onde o Sartre dava aula. E eu ficava puto porque o Sartre não era nosso professor. Como eu era bom aluno, eles puseram um professor careta para dar aula para nossa turma. E o rebotalho do liceu, os alunos mais atrasados eram alunos do Sartre. E eles saíam com ele, iam encher a cara, fazer farra e tudo mais”. (ri) E aqui em Porto Alegre, o Gerd tinha isso. Era um sujeito heideggeriano, com grande formação, as aulas dele eram uma coisa espetacular. E a gente, nos sábados à noite, ia beber num bar que tinha numa esquina da Borges de Medeiros… Je reviens. Um bar espetacular, extraordinário. A gente ia encher a cara, e o Gerd, um sujeito muito sofisticado… Mas isso era a esquerda. No resto, a faculdade era muito conservadora, mas muito, muito, muito conservadora. Evidentemente, isso se chocava com os alunos, que eram alunos mais progressistas, por um lado, e que, ademais, viviam aquele clima de enorme efervescência que o país estava vivendo, não só política, como cultural. Quer dizer, o Brasil vivia uma mudança econômica, social e política e vivia isso tudo sob um guarda-chuva cultural e de ideias muito fortes, que batiam por baixo na universidade, mas não batiam na hierarquia universitária. Nesse período que eu conheci a Elizabeth [Lobo], com quem eu casei depois. Ela era estudante de letras e que era muito amiga da Sonia Pilla, que é a atual companheira do Flávio. Eram amigas inseparáveis. Era todo um grupo que tinha vindo do Colégio de Aplicação. Outra nota de pé de página: o Colégio de Aplicação formou, no Brasil inteiro, gerações de pessoas engajadas. Quer dizer, todo o pessoal do sequestro do [embaixador estadunidense, Charles] Elbrick no Rio de Janeiro [em 1969], os cariocas, grande parte era aluno do Colégio de Aplicação. Inclusive, um dos sequestradores do Elbrick no Rio de Janeiro era do Colégio de Aplicação de Porto Alegre, o Cláudio Torres.  Ele foi fazer economia no Rio de Janeiro.

1964

MAG – Ora, todo esse movimento, ele levou a 1964. A minha expectativa pessoal de 64, era uma expectativa falsa, que se fundava um pouco numa certa experiência recente que eu tinha. Apesar de eu não ter vivido intensamente a Legalidade, porque a maior parte do tempo eu estive no Rio de Janeiro, eu vi um pouco, quer dizer, a cidade em estado insurrecional, milhares de pessoas se inscrevendo para lutar, gente para doar sangue, aquelas histórias todas. Eu achava que se houvesse uma tentativa de golpe, nós, provavelmente, teríamos uma coisa tipo uma guerra civil. Ou que não se materializaria uma guerra civil se a correlação de forças na sociedade e nas Forças Armadas fosse suficientemente favorável para o governo… (Estou tentando reconstituir a minha perspectiva daquela época. Não vou querer projetar o que eu penso hoje). E que isso permitiria uma inflexão do governo mais para a esquerda. Evidentemente, muito de nós temíamos não só uma ofensiva da direita, a candidatura do Lacerda para presidente da República em 1965. Evidentemente não nos animávamos com JK 1965, também… Eu me lembro, na época, uma das alternativas que eu tinha era [o então governador de Pernambuco, Miguel Arraes]. A Liana [Maria Aurelino], ela é pernambucana, me mandou um cartão de Natal em 1963 dizendo: “Feliz 64. Arraes 65”. Evidentemente, nisso tudo tinha uma dose de wishful thinking… Mas a crise se precipitou, ainda que nós tivéssemos a expectativa de que estava em curso um processo de radicalização. Evidentemente que hoje, retrospectivamente, eu não posso deixar de reconhecer que eu estava com uma solene ilusão sobre as possibilidades que a esquerda tinha. Diga-se de passagem, essa ilusão, era em grande medida alimentada pela imagem que o governo fazia transparecer, de que dispunha de um esquema de sustentação, o chamado dispositivo militar, que impediria um golpe. Um pouco pela experiência de 1961, e também um pouco pelo discurso irresponsável da própria esquerda naquele momento, que refletia, por um lado, o despreparo, mas, por outro lado, uma certa embriaguez com as próprias palavras. Lamento dizer, mas um fenômeno parecido ocorreria quase dez anos depois, na minha experiência pessoal, que foi o golpe no Chile, onde houve, também, a mesma coisa. Apesar de que eu achasse que a situação chilena era muito grave. Quer dizer, nos dois episódios, eu achei que haveria uma possibilidade de reverter a situação. Uma expectativa que eu não deveria ter tido, porque, quando você leva uma porrada de uma vez tem que aprender. E nós não revertemos. Até hoje, se for analisar isso, eu não descarto o peso que a iniciativa política da direita teve naquele momento. Mas acho que a houve um elemento de derrota da esquerda, do movimento popular, que corresponde em grande medida a um certo despreparo, uma certa irresponsabilidade com que as coisas eram tratadas naquele momento. Eu não digo isso só na base daqueles argumentos, que o Partidão usou durante muito tempo para se autocriticar, (em realidade, para se distanciar mais de uma posição de esquerda), que havia uma tendência golpista dentro do Partidão, que o Partidão sempre cultivou uma ideia golpista. É possível que isso houvesse também. Mas eu acho que houve, sobretudo, um despreparo, uma subestimação, completamente, dos efeitos que uma mobilização da direita poderia ter. Naquela época, eu me lembro que eu fiquei muito impressionado por uma série de artigos que foram publicados no [jornal O] Estado de São Paulo, que eu recortei e guardei. Eu tenho, desde longa data, o vício de recortar jornais, hoje, com menos eficácia, porque eu não tenho tempo para recortar tudo. Mas nessa época, o Estadão publicou uma série de artigos do [jornalista] José Stacchini, que ele reuniu num livro primoroso, extremamente inteligente, chamado Março de 64: Mobilização da audácia. Onde ele, como o título diz, credita em grande medida o êxito do golpe a essa “mobilização da audácia”. Eu lembro muito bem do dia do golpe. Eu era diretor e professor do cursinho pré-vestibular da Filosofia. Cheguei para dar aula, no dia 31, à noite, e me disseram: “Olha, a coisa está meio preta no Rio de Janeiro”… Bom. Eu dei uma aula e saí, um pouco abatido já, mas mobilizado para o que desse e viesse. Mas ficamos até altas horas, em vários lugares, reunindo gente, conversando, mobilizando, etc. O golpe, em Porto Alegre, só se materializou no dia 2 de Abril, efetivamente. No dia primeiro, a gente não tinha muita notícia do Rio de Janeiro. As notícias começaram a chegar porque, entre outras coisas, as rádios lá foram sendo ocupadas pela esquerda. Estavam tentando reeditar a Rede da Legalidade, etc. E eu fui com um grupo de pessoas e tomamos a rádio da Universidade. Que, evidentemente, ninguém escutava. (risos) O diretor da rádio da Universidade era o Lauro Hagemann, e ele nos recebeu na porta: “Podem ocupar à vontade”… (rindo)

Ele era do Partido. Já era nessa época?

MAG – Ele era… Sim, sim. Ah! Eu me esqueci de dizer que em 1963 eu disputei a eleição, como candidato a vereador

Em 1963 já?

MAG – 1963, é. Mas eu omiti. Deve ter, freudianamente, alguma razão para isso. (risos) Mas eu vou encerrar rapidamente esse espetáculo. Vou fazer um flashback. Depois, na edição, a gente resolve esses assuntos. Mas nós tomamos a rádio e tal, ficamos lá, mobilizando, etc. Na noite do dia primeiro, já a UNE tinha sido incendiada, o golpe estava já materializado. Na noite do dia primeiro, tem três coisas que eu me lembro, que marcaram claramente. No final da tarde, houve um megacomício na frente da Prefeitura. E arengava, com absoluta violência, para as massas o coronel Pedro Alvarez, tio do César Alvarez.25 Que era um coronel do Exército, deputado estadual, membro do Partido Comunista e um cabeça de bala, mas daqueles… Ele dizia: “Vamos resistir… Acabamos de mandar uma instrução para os sargentos da Base Aérea de Canoas”. A instrução era a seguinte: “Impeçam que os aviões decolem. Se os oficiais insistiram, prendam e fuzilem.” (risos) Bom. Isso foi a primeira coisa. A segunda coisa, eu me lembro é da chegada do Jango, indo com tanques para perto da casa do comandante do 3° Exército, para a reunião que foi quando ele decidiu ir para o exílio… A terceira foi uma reunião do Conselho da UEE, que nós fizemos ali no terraço, no primeiro andar da Faculdade de Arquitetura. E já estavam passando os tanques de guerra por ali. Nessa reunião, eu defendi que nós usássemos métodos mais radicais. Só que tinha um idiota que fez uma ata da reunião e depois perdeu a ata. E, evidentemente, quando criaram a Comissão Geral de Investigação da Universidade a ata apareceu… E essa noite eu já não dormi mais em casa, dormi num aparelho, na casa de um do Partido lá. No dia seguinte, nós fomos para a universidade e começamos a botar aqueles bancos de concreto no caminho, para impedir que os tanques eventualmente chegassem. Depois fomos para uma reunião, numa sala redonda que tinha ali na Reitoria. Nessa reunião eu lembro do Baltazar Barbosa Filho, um sujeito brilhante, mas um cara meio cáustico assim, se transformou num filósofo, parece que é um sujeito muito… muito talentoso. Mas ele entrou dizendo: “Pessoal. Não sei o que vocês estão discutindo. Acabou a farrinha nacionalista. O Jango acaba de fugir para o Uruguai. Carlos Araújo, que depois viria a ser marido da Dilma [Rousseff], partiu para cima do Baltazar, dizendo: “Farrinha nacionalista? Seu filho da puta!”… (ri)  E aí, meu caro, todo mundo…

Caiu fora.

MAG  – Confirmamos a notícia e caímos fora…

1Político gaucho aliado de Getulio Vargas. Foi Minsitro da Justiça no início dos anos 1930 e Interventor no Rio Grande do Sul em 1938.
2Corrente política vinculada a Borges de Medeiros. Também conhecidos como ximangos.
3Político gaucho. Foi Interventor e governador do Rio Grande do Sul na década de 1930.
4Influente militar e politico brasileiro entre as décadas de 1940 e 60. Foi Ministro da Guerra e candidato derrotado à presidência da República em 1960.
5Político paulista. Foi Governador de São Paulo entre abril e dezembro de 2010.
6Economista e professor universitária. Foi uma das responsáveis pela implantação do Instituto de Economia da Unicamp.
7Economista e professor universitário. Autor de O capitalismo tardio, livro de referência no pensamento econômico brasileiro.
8Economista e professor do CPDA da UFRRJ.
9Político pernambucano e ministro da Reforma Agrária, falecido em acidente aéreo em1987. 
10Político goiano, foi presidente da UNE, coordenador da Ação Popular, dirigente do PCdoB e deputado federal pelo PMDB.
11Político cearense. Foi Presidente do PSB e Ministro da Ciência e Tecnologia  entre 2003 e 2004.
12Documento aprovado no II Seminário Nacional de Reforma Universitária, em Curitiba, para reivindicar a regulamentação, nos estatutos das universidades, da participação dos estudantes nos órgãos colegiados, na proporção de um terço, com direito a voz e voto.
13Herbert José de Souza, sociólogo e ativista de direitos humanos. Foi um dos fundadores e líderes da Ação Popular (AP). Foi um dos fundadores do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase).
14Sociólogo, economista e professor universitário. Foi presidente da UNE e um dos líderes da Ação Popular (AP).
15Padre Jesuíta, filósofo e humanista mineiro.
16Político amazonense. Foi Ministro do Trabalho em 1963 e vice-governador de São Paulo entre 1987 e 1990.
17Cientista politico baiano, especializado em relações internacionais. Foi um dos líderes da Polop nos anos 1960.
18Militar brasileiro. Comandante do III Exército em Porto Alegre durante a chamada campanha da Legalidade em 1961.
19Chanceler e Ministro da Fazenda durante o governo de João Goulart (1961-1964). Era tido como um dos líderes da chamada “esquerda moderada” no governo.
20Filósofo, um dos principais nomes do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB).
21Político paulista. Senador pelo PSD e Presidente do Congresso por ocasião da renúncia de Jânio Quadros.
22Político gaúcho ligado ao PSD, foi Primeiro-Ministro entre julho e setembro de 1962.
23Político e educador paulista. Foi Ministro da Educação entre outubro de 1963 e abril de 1964.
24Militante politico gaucho do Partido dos Trabalhadores. Foi vereador em Porto Alegre e deputado estadual no Rio Grande do Sul.
25Militante politico gaucho do Partido dos Trabalhadores. Foi assessor especial da Presidência e Ministro das Comunicações.


Crédito da imagem de capa: Marco Aurélio Garcia em 2010. Foto Orlando Brito, Revista Piauí.