LMT #75: Museu Estadual do Carvão do Rio Grande do Sul, Arroio dos Ratos (RS) – Clarice Speranza



Clarice Speranza
Professora do Departamento de História da UFRGS



À distância, as ruínas já parecem majestosas. Quanto mais nos aproximamos, os prédios que abrigaram a  primeira termoelétricas do país a usar carvão mineral revelam uma dimensão quase indecifrável. Estamos diante do Museu Estadual do Carvão, em Arroio dos Ratos, município riograndense próximo a Porto Alegre. Situado em meio a um parque de 11 hectares, o Museu tornou-se parte inseparável da vida desta comunidade orgulhosa de seu passado, na cidade que se intitula Berço da Indústria Carbonífera Nacional.

A história da exploração do carvão na região se iniciou em meados do século XIX. Em 1872, foi fundada a primeira empresa de exploração de carvão no Brasil, a Brazilian Collieries Company Limited, com capital inglês. A partir de então, uma série de empresas mineradoras atuaram na  região.

Em 1885, a princesa Isabel batizou com seu nome um poço da Companhia das Minas de Carvão de Pedra Arroio dos Ratos. A herdeira do trono imperial chegou a descer ao subsolo e assustou-se: “Perguntei-me se poderia suportar isso muito tempo”, confessou em carta aos pais, na qual lamentava “a sorte penosíssima dos mineiros obrigados a 8 horas de trabalho por dia, nessas profundezas apertadas”.

A princesa pode ter ficado impressionada, mas foi muito comedida em seu comentário. Se em meados dos anos 1940, havia relatos de mineiros trabalhando 16 horas por dia no subsolo, pode-se imaginar que uma jornada de apenas 8 horas em 1885 era uma ilusão. De fato, no dissídio coletivo apresentado em 1943 pelo Sindicato dos Mineiros era relatado que a prática do “doble”, ou seja, do turno dobrado, era cotidiana. À época boa parte dos operários recebiam por produção e deixavam parte de seus ganhos nos armazéns de propriedade das empresas.

Em plena II Guerra Mundial, o Cadem (Consórcio Administrador de Empresas de Mineração, que reunia as duas principais mineradoras: a Companhia Estrada de Ferro e Minas de São Jerônimo e a Companhia Carbonífera Minas de Butiá) liderava a produção nacional. Foi neste momento que a região alcançou o auge de sua produção, empregando cerca de 7 mil operários.

A vida nas profundezas marcou, de fato, a existência de milhares de trabalhadores mineiros que extraíram carvão da terra durante as oito décadas de funcionamento das minas subterrâneas em Ratos e também nos hoje municípios vizinhos de Butiá, Minas do Leão e Charqueadas. A eles coube suportar uma rotina de trabalho que incluía não apenas o medo da escuridão, mas também o adoecimento e a degradação física pela aspiração de pó de sílica, quando não a morte por desabamentos. Um “suicídio lento e inexorável”, definiu o mineiro Manoel Jover Telles em 1947, quando era deputado estadual eleito pelo PCB.


As minas também foram um centro importante de mobilização e organização dos trabalhadores. A primeira greve teria ocorrido já em 1895 e foi seguida por diversas paralisações. As mobilizações de 1933 e 1934 levaram à formação de um sindicato mineiro unificando os trabalhadores de todas as vilas. Nas paralisações de 1945 e 1946, as vilas foram alvo de intervenção militar. O movimento de 1946 durou 36 dias e estancou completamente a produção de carvão, deixando Porto Alegre às escuras. Entre as décadas de 1940 e 1960,  o PCB e o PTB disputavam a hegemonia do movimento operário local.


Para tornar possível o contínuo crescimento da produção, as mineradoras investiram na criação de uma infraestrutura de bem estar que incluía postos de saúde e um grande hospital, escolas, igrejas, lojas de comércio, clubes de futebol e cinemas, além de moradias com aluguel subsidiados.  Por outro lado, não havia abastecimento de água nas casas nos anos 1940, e os trabalhadores padeciam de péssimas condições de trabalho, o que levava a altos índices de abandono do emprego. A estrutura de proteção e controle das vilas-fábricas tinha como contraponto uma estrita vigilância, a partir de uma estreita colaboração entre as empresas e a polícia, e o acionamento do Exército quando necessário.

Toda a geografia de Ratos e das demais vilas mineiras, nascida das planilhas das empresas mineradoras, foi apropriada pela luta política. Os nomes das ruas homenageiam os executivos da mineração, mas também líderes trabalhistas como Alberto Pasqualini. Também trazem as marcas dos grupos étnicos e raciais que formaram a classe mineira, como a Avenida Espanha, em Arroio dos Ratos, ou a Praça Paraíba, em Butiá, cujo nome cultua o apelido de um líder religioso negro.

As minas de Ratos foram fechadas nos anos 1950. A produção foi transferida integralmente para Butiá e Charqueadas. Atualmente ainda há mineração de carvão na região, mas somente em minas de superfície. As cidades, de toda forma, são tomadas por campos de rejeitos de carvão e por ruínas dos locais de produção. Em Butiá, o mais conhecido é o “Esqueleto”, um conjunto de vigas com dois andares onde funcionava o lavador do poço 2, onde o carvão era “lavado” e escolhido. Hoje o “Esqueleto” é patrimônio histórico do município.

Em meio a esta geografia de lutas e trabalho, o Museu Estadual do Carvão, criado em 1986 (no governo do trabalhista Alceu Collares), parece ser uma síntese. Administrado em conjunto pelos governos estadual e municipal, é um símbolo da exploração subterrânea do carvão, mas também dos embates de classe lá travados. Além de uma exposição de objetos e máquinas da mineração, abriga também o Arquivo Histórico da Mineração, um mais importantes centros de documentação operária da América Latina. É, assim, um fundamental lugar de memória dos mineiros gaúchos e um espaço de reflexão sobre a história do trabalho no Brasil.

No parque onde está localizado o museu ficam as ruínas dos prédios onde o carvão era processado depois de extraído do subsolo.
Foto de Felipe Klovan.

Agradeço aos comentários de Tassiane Melo Freitas e Alexsandro Witkowski.


Para saber mais:

  • CIOCCARI, Marta. Do gosto da mina, do jogo e da revolta: um estudo antropológico sobre a construção da honra numa comunidade de mineiros de carvão. Tese de doutorado em Antropologia – PPGAS Museu Nacional, Rio de Janeiro, 2010.
  • FREITAS, Tassiane M. De complexo carbonífero a museu: o processo de patrimonialização dos remanescentes do antigo complexo carbonífero de Arroio dos Ratos, RS, Brasil (1983-1994). Dissertação de mestrado – PPG em Memória Social e Patrimônio Cultural, UFPel, 2015.
  • SILVA, Cristina Ennes da. Nas profundezas da terra: um estudo sobre a região carbonífera do Rio Grande do Sul. Tese de Doutorado – PPG em História, PUCRS, Porto Alegre, 2007.
  • SPERANZA, Clarice G. Cavando direitos: As leis trabalhistas e os conflitos entre os mineiros de carvão e seus patrões no Rio Grande do Sul (1940-1954). São Leopoldo/Porto Alegre: Oikos/ANPUHRS, 2014
  • WITKOWSKI, Alexsandro. Da luz no fim do túnel ao Arquivo Histórico do Museu Estadual do Carvão: o acervo documental da mineração na região carbonífera do baixo Jacuí, RS (2009-2016). Dissertação de mestrado – PPG em Museologia e Patrimônio, UFRGS, 2019.

Crédito da imagem de capa: No subsolo das minas, operários de diversas origens trabalhavam lado a lado extraindo e transportando carvão, década de 1940. Crédito: Acervo Documental Museu Estadual do Carvão.



Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

LMT #74: Vila Operária Maria Zélia, São Paulo (SP) – Simone Scifoni



Simone Scifoni
Professora do Departamento de Geografia da USP



A Vila Maria Zélia é testemunho dos modos de morar do operariado e das relações de trabalho do início do século XX, na cidade de São Paulo. Ela guarda, ainda, memórias ligadas à violação dos direitos humanos dos trabalhadores em momentos políticos do país marcados pelo autoritarismo, nos anos 1930 e nos anos 1970.

Contando com 198 casas de 6 diferentes tipos e tamanhos e equipamentos de uso coletivo, tais como 2 escolas (uma para meninos e outra para meninas), creche, jardim de infância, farmácia, capela, campo de futebol, salão para bailes, sapataria, armazém e restaurante, a Vila Maria Zélia é um exemplar único de habitação operária, existente ainda hoje naquele lugar que era chamado de “outra cidade”, os bairros a leste do embrião central da capital, como o Belenzinho.

A vila foi construída entre 1912 e 1916 compondo o espaço fabril da Companhia Nacional de Tecidos de Juta, do empresário Jorge Street. O nome da vila foi uma homenagem à filha de Jorge Street, falecida no começo do século XX. Crises econômicas e endividamento levaram a empresa a mudar de proprietários em 1924, mantendo-se a produção até 1934, quando veio a falência. A partir daí a fábrica e a Vila Maria Zélia passaram para o controle do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários (IAPI), sucedido pelo atual INSS. Em 1969, as casas da vila começaram a ser vendidas aos seus inquilinos, por meio de financiamento do BNH (Banco Nacional de Habitação).

As formas de morar dos operários em São Paulo, nessas primeiras décadas do século XX, tinham no pagamento do aluguel uma característica em comum. As casas de vila eram construídas por investidores privados ou por industriais e contavam com incentivos do poder público, como a isenção de impostos para construção. A habitação tinha um papel no que se entendia ser a moralização da vida do trabalhador. Jorge Street destacava que as casas da vila garantiam a moradia sã, com sol, luz e cômodos de acordo com o tamanho da família. Além disso, exercia a função de impor a disciplina e controlar a vida do trabalhador; na Vila Maria Zélia uma série de normas e regulamentos regulavam a vida do operariado, como a proibição de dormir na sala, fixação de horários para circulação e acesso de visitantes e proibição de permanência de pessoas que não eram da família moradora na casa.


Além de negócio lucrativo pela obtenção da renda de aluguel, a produção de casas para operários funcionava como mecanismo de manutenção de baixos salários e como estratégia de enfraquecimento da organização operária e da luta de classes. Isso se constata no discurso do empresário Jorge Street que colocava em evidência o papel da vila e de seus equipamentos coletivos como capazes de “tocar o coração do operário vencendo-o do instinto de revolta”.


Por esses motivos, a Vila Maria Zélia aparecia, no começo do século XX, no centro da crítica do movimento operário, justamente pelo seu caráter de empreendimento modelo, que isolava o trabalhador em uma espécie de cidadela fechada, um feudo, como chamou o jornal anarquista “A Plebe”. No entanto, para além do controle, a moradia na vila também gerava formas específicas de sociabilidade e solidariedade que frequentemente significavam burlas aos mecanismos de dominação empresarial. Uma cultura e identidade própria aos trabalhadores tinha nas vilas operárias um espaço privilegiado de desenvolvimento, a despeito da vontade e intenções dos patrões.

Por sua vinculação à história dos trabalhadores e à temática da habitação operária, a Vila Maria Zélia e a fábrica foram declaradas patrimônio cultural do município de São Paulo, em 1992, no governo de Luiza Erundina. Mas é preciso, ainda, somar a esse patrimônio as memórias de violação de direitos humanos dos trabalhadores.

Após a Revolta Comunista de 1935 e a decretação do Estado de Sítio por Getulio Vargas, a fábrica fechada no Belenzinho foi adaptada para funcionar como presídio político. Cerca de 700 sindicalistas, trabalhadores, professores e intelectuais considerados como comunistas foram encarcerados no presídio Maria Zélia. Durante os dois anos em que ficaram ali, os presos e presas organizaram como forma de resistência a Universidade Popular Maria Zélia, com aulas de alfabetização, línguas, anatomia e higiene. Produziram revistas e jornais e realizavam peças teatrais encenadas pelo Teatro Popular Maria Zélia.

Outra memória da vila, vinculada à repressão e perda de direitos dos trabalhadores, foi a da prisão do operário Olavo Hansen. Treze sindicatos e oposições sindicais convocaram uma manifestação no dia 1o de maio de 1970, no campo de futebol da Vila Maria Zélia. Olavo, conhecido militante sindical, foi preso enquanto distribuía panfletos. Levado para o DOPS, sofreu constantes sessões de tortura, falecendo dez dias após sua prisão. Para a Comissão Nacional da Verdade o episódio configura-se como caso comprovado de morte decorrente de tortura durante a ditadura militar.

A Vila Maria Zélia ainda hoje se destaca como lugar de moradia do trabalhador, muito embora não sejam mais eles operários de indústrias, como no passado. Entretanto, ainda estão presentes os conteúdos sociais que conferem significado a esse bem cultural tombado. Nos últimos anos, instituições culturais como o grupo XIX de Teatro e a Associação Cultural Vila Maria Zélia também têm se empenhado na valorização e divulgação da história da vila. A Vila Maria Zélia não seria patrimônio cultural sem seus moradores e suas memórias, sem as vivências e experiências humanas que dão sentido àqueles edifícios do passado.

Vila Maria Zélia com fábrica ao fundo, em 1918.
Fonte: periódico A Vida Moderna.

Para saber mais:

  • ALAMINO, Carolina A.M. Presídio Maria Zélia: repressão política no governo constitucional de Getúlio Vargas. Tese (Doutorado) – Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2018.
  • BLAY, Eva A. Eu não tenho onde morar. Vilas operárias na cidade de São Paulo. São Paulo: Nobel, 1985.
  • BRASIL. COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Relatório. Vol. 1. Brasília: CNV, 2014.
  • JUCÁ, Ana Lúcia Almeida de Oliveira; LOPES, Arzelinda Maria. A vida numa vila operária. Informativo Arquivo Histórico Municipal, 4 (19): jul/ago.2008 <http://www.arquivohistorico.sp.gov.br>
  • TEIXEIRA, Palmira Petratti. A fábrica do sonho. Trajetória do industrial Jorge Street. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.

Crédito da imagem de capa: Aspecto geral da Vila Maria Zélia em 1918. Fonte: Periódico A Vida Moderna.



Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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LMT #73: Palácio do Metalúrgico, Rio de Janeiro (RJ) – Rafael Ioris



Rafael Ioris
Professor de História da University of denver



Sede de um dos sindicatos mais combativos da história do Brasil, o Palácio do Metalúrgico foi palco de lutas operárias que ajudaram a definir a história social e mesmo os rumos políticos do Brasil contemporâneo. Foi lá, na rua Ana Neri, bairro do Rocha, no Rio de Janeiro, onde não só metalúrgicos, mas trabalhadores em geral, além de personalidades políticas e culturais frequentemente se reuniram para entender as complexidades de um país em rápida transformação na segunda metade do século XX, assim como lutar por uma sociedade mais inclusiva e justa.

A construção do prédio, inaugurado em 1959, resultou de uma ampla campanha de recrutamento de novos associados e de arrecadação de fundos junto a base do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro, categoria em expansão naquele momento. A nova sede era também o resultado de um crescente ativismo dos metalúrgicos cariocas, fruto em grande medida de uma aliança entre trabalhistas, nacionalistas de esquerda e comunistas que passou a ser hegemônica na direção da entidade.

Assim, essa estabilidade administrativa permitiu que o sindicato oferecesse um maior leque de serviços e atividades sociais e culturais aos seus membros, inclusive e de maneira crescente às mulheres trabalhadoras. Liderados por dirigentes como Eurípedes Aires de Castro, Ulisses, Lopes, José Lellis da Costa, Izaltino Pereira e, especialmente, Benedito Cerqueira, o renovado ativismo sindical metalúrgico foi capaz de organizar mobilizações e lutar por demandas concretas dos trabalhadores, como aumentos salariais, melhores condições de trabalho e ampliação do acesso a tratamento médico. No contexto que antecedeu o golpe de 1964, os metalúrgicos cariocas se tornaram uma das categorias mais importantes e influentes na vida sindical do país, colaborando para a construção da agenda política que ficou conhecida como “Reformas de Base”.

A partir de meados dos anos 1950, a entidade ampliava suas taxas de sindicalização e seu fortalecimento político e financeiro. A conexão com as bases operárias através de conselhos de empresas e a criação de subsedes regionais colaboravam para o fomento de um novo senso de coesão e identidade operária. Nesse contexto emergiu a ideia da construção de uma nova sede, materializada em um imponente prédio de seis pisos, no bairro do Rocha, na Zona Norte do Rio, próximo a diversos bairros industriais e comunidades operárias da cidade.

As obras do prédio, que seria batizado com o orgulhoso e pomposo nome de Palácio do Metalúrgico, foram iniciadas em 1956. Após três anos, a sede, quando inaugurada, contava com ginásio, gráfica, consultórios médicos, biblioteca, lanchonete  e um auditório. O espaço logo se tornou um local fundamental de sociabilidade e organização dos metalúrgicos.


Mas seu impacto foi muito além da categoria, tornando o prédio um dos mais importantes centros da vida política carioca no início da década de 1960. Outros sindicatos, associações de moradores e organizações populares frequentemente usavam o moderno e amplo auditório para realizar sua assembleias e festividades. Foi também um dos principais espaços utilizados pelo Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE para realização de debates, peças teatrais e exibição de filmes. O Palácio chegou mesmo a ser tornar palco obrigatório de visitas de personalidades internacionais como o cosmonauta soviético Yuri Gagarin em 1961.


O Palácio do Metalúrgico foi o palco de um dos momentos mais dramáticos do início dos anos 1960. No dia 25 de março de 1964, liderados por Cabo Anselmo, mais de dois mil marinheiros reuniram-se no auditório da sede metalúrgica para comemorar o segundo aniversário de sua Associação, considerada ilegal pelo comando da Marinha. O ato contou com a participação de sindicalistas, líderes estudantis, do deputado Leonel Brizola, além da presença emblemática de João Cândido, líder da Revolta da Chibata de 1910. Apesar da ordem de prisão emitida pelo Ministro da Marinha, os marinheiros resistiram e permaneceram no prédio. Apenas após um acordo, que implicou na anistia dos revoltosos concedida pelo presidente Jango, que os marinheiros decidiram desocupar o Palácio. O episódio é considerado por muitos um dos estopins do golpe de 1964. No dia seguinte à deposição de Jango, o Palácio foi invadido e vandalizado de forma brutal, simbolizando de forma veemente o novo ciclo repressivo que se iniciava para os trabalhadores.

Esvaziado de sua vocação política durante boa parte da ditadura, o Palácio dos Metalúrgicos viveria um novo momento de mobilização quando, em 1979, uma nova onda grevista colocou os operários e operárias metalúrgicos no centro das lutas sociais no Rio de Janeiro. Ao longo dos anos 1980, os metalúrgicos cariocas manteriam uma presença ativa no cenário de organização dos trabalhadores que marcou a redemocratização do país. De toda forma, durante a maior parte desse período uma Escola Metalúrgica manteve-se atuante na sede sindical, formando milhares de trabalhadores.

A crise política e econômica do Rio de Janeiro nas últimas décadas afetou fortemente os metalúrgicos, que sofreram com a intensa desindustrialização da cidade e viram sua base e presença pública serem drasticamente reduzidas, apesar da resistência sindical e da importante, porém efêmera, recuperação da indústria naval no início do século XXI. O Palácio do Metalúrgico foi tombado em 1999 pelo governo estadual e apesar das ameaças recentes de que poderia ser vendido, permanece como um lugar de memória fundamental para os trabalhadores brasileiros.   

Metalúrgicos em assembleia na sede do sindicato decidem pela greve em 11/09/1979.
Foto de A. Philot Acervo da Fundação Perseu Abramo.


Para saber mais:

  • IORIS, Rafael. Qual Desenvolvimento? Os Debates, Sentidos e Lições da Era Desenvolvimentista. São Paulo: Paco Editorial, 2017.
  • IORIS, Rafael “’Fifty Year in Five’ and What’s in It for Us? Development Promotion, Populism, Industrials Workers and ‘Carestia’ in 1950s Brazil.” Journal of Latin American Studies, v. 44, no. 2, 2012.
  • JORDAN, Thomas. “Redefinindo o sindicalismo corporativo nos anos 1950: o caso do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro.” Cadernos AEL, v.11, n. 20, 2004
  • SANTANA, Marco  Aurélio. Bravos companheiros: comunistas e metalúrgicos no Rio de Janeiro (1945/1964). Rio de Janeiro:7Letras, 2012.
  • LOPES, Ulisses. 2015. Depoimento. Rio de Janeiro, CPDOC/Fundação Getulio Vargas, (8h 50min).

Crédito da imagem de capa: Hércules Corrêa, do Comando Geral dos Trabalhadores, discursa no Auditório do Palácio do Metalúrgico em março de 1964, durante as celebrações do segundo ano de fundação da Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais. À sua esquerda, o cabo Anselmo. Acervo: Iconographia.



Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

LMT #72: Manganês Esporte Clube, Serra do Navio (AP) – Adalberto Paz



Adalberto Paz
Professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amapá



No interior da floresta, a cerca de 200 quilômetros da foz do rio Amazonas, um campeonato de futebol era anualmente organizado, entre as décadas de 1960 e 90, por operários do primeiro empreendimento de mineração industrial da região Norte do país, em atividade desde os anos 1950. Chamado “o Serrano”, o torneio reunia equipes formadas por trabalhadores da Indústria e Comércio de Minérios S.A (ICOMI), empresa privada responsável pela exploração das jazidas de manganês no Amapá. O nome do campeonato fazia alusão à região denominada Serra do Navio, local que havia se tornado internacionalmente famoso pelo anúncio da existência de minério de manganês de alto teor, num momento em que a URSS havia suspendido o fornecimento desse material aos Estados Unidos em pleno contexto da Guerra Fria.

Criada em 1942, a ICOMI possuía sede em Minas Gerais e tinha como proprietário Augusto Trajano de Azevedo Antunes. Em 1947, a mineradora venceu a concorrência pública pelos depósitos manganíferos amapaenses. Em contrapartida, a ICOMI pagaria royalties a serem investidos no Amapá, além de se comprometer a repassar ao Estado toda a infraestrutura construída para o empreendimento, após o esgotamento das jazidas. Para viabilizar a extração do manganês, a ICOMI associou-se à Bethlehem Steel, maior empresa siderúrgica do mundo, e obteve um empréstimo do EXIMBANK. Em troca, a ICOMI assumiu o compromisso de vender no mínimo 5,5 milhões de toneladas de manganês aos Estados Unidos.

A infraestrutura montada pela ICOMI no Amapá foi inédita em termos de planejamento e magnitude. Incluía um porto, uma ferrovia, duas company towns (cidades construídas e mantidas pela empresa), além de sofisticada logística de abastecimento, contratação de trabalhadores, programas de saúde, educação e lazer. A maior parte dos trabalhadores denominados “braçais”, isto é, sem especialização profissional, tinha origem nas populações extrativistas moradoras nas margens dos rios, igarapés e matas, comumente designadas como “caboclas”. Os solteiros eram hospedados em alojamentos específicos nas company towns, enquanto os casados e suas famílias recebiam casas planejadas exclusivamente para as diferentes categorias de operários.

Desde que a extração do minério teve início, em 1957, toda a atividade produtiva foi caracterizada pela utilização de alta tecnologia e rígidos procedimentos de gestão administrativa. Isso era um diferencial em relação a atividades frequentemente mais insalubres como a extração de carvão mineral. Nesse sentido, muitos dos frequentes acidentes de trabalho estavam relacionados com o uso de maquinário pesado ou o manuseio de produtos químicos no processo industrial.

O Manganês Esporte Clube (MEC) era sediado na company town de Serra do Navio, próximo à escola e ao centro comercial, espaço situado entre as residências de operários casados e solteiros. Essa “agremiação”, conforme definição da própria ICOMI, tinha à sua disposição quadra poliesportiva, campo de futebol e piscina para prática de esportes, competições e entretenimento. Embora se tratasse de um clube vinculado à empresa, os operários de Serra do Navio souberam se apropriar do MEC, criando para si um espaço próprio de sociabilidade. A mensalidade arrecadada entre os sócios gerava um montante que permitia certa autonomia econômica, o que, do ponto de vista dos trabalhadores instituía uma clara noção de direitos e autogestão em relação à mineradora.


Não por acaso, o Campeonato Serrano de Futebol era um dos principais momentos de interatividade e lazer operário organizado pelo MEC. A maioria das equipes envolvidas na competição era formada por membros de um mesmo setor ou ofício, como o time da Divisão da Mina (Senta a pua), Setor de Transporte (Desvio e Ferroviário), Divisão de Saúde (Esparadrapo), Divisão de obras (Sarrafo), entre outros.


A diversão e sociabilidade motivados pelo futebol reforçavam os laços de amizade e companheirismo da comunidade operária de Serra do Navio. Quando, nas décadas de 1970 e 80 emergiram protestos e greves na cidade, o espaço físico e as redes sociais articuladas em torno do MEC foram, provavelmente, de vital importância para a organização do movimento.

Além do futebol, havia outros momentos de entretenimento promovidos pelo clube. Os bailes temáticos e comemorativos, em especial, obedeciam a um calendário de datas representativas para a comunidade e para a companhia. No mês de maio ocorria o Baile das Flores, uma espécie de confraternização geral da mineradora, ocasião em que era escolhida a “Rainha das Flores”. No mesmo mês, no dia 8, acontecia o baile comemorativo de fundação da ICOMI, evento carregado de valor e gestos simbólicos, como a outorga de honras e benefícios aos funcionários em Serra do Navio.

Após quase meio século de ininterrupta exploração das reservas de manganês do Amapá, a ICOMI encerrou suas atividades em Serra do Navio em 1997. Em 2011, a company town foi tombada pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional (IPHAN). O reconhecimento oficial, contudo, não evitou a deterioração e destruição do Manganês Esporte Clube. Em 10 de março de 2016, depois de anos de abandono e ausência de reparos em sua estrutura, parte do teto do clube desabou, expondo suas ruínas interiores cobertas de mato, entulhos e alagamento. Dessa forma, o renomado clube operário simboliza não apenas um acelerado processo de desindustrialização amazônico, mas também tornou-se um monumento do desprezo pelos lugares de memória e sociabilidade dos trabalhadores.

Time do Manganês Esporte Clube. Junho de 1965.
Revista ICOMI Notícias, Rio de Janeiro, n.18, junho de 1965.


Para saber mais:

  • BRITO, Daniel Chaves de. Extração mineral na Amazônia: a experiência da exploração de manganês em Serra do Navio no Amapá. Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Pará. Belém, 1994.
  • DRUMMOND, José Augusto; PEREIRA, Mariângela de Araújo Povoas. O Amapá nos tempos do Manganês: um estudo sobre o desenvolvimento de um estado amazônico 1943-2000. Rio de Janeiro: Garamond, 2007.
  • MONTEIRO. Maurílio de Abreu. A ICOMI no Amapá: meio século de exploração mineral. Novos Cadernos NAEA, n. 2, v. 6, 2003.
  • PAZ, Adalberto. Os mineiros da floresta: modernização, sociabilidade e a formação do caboclo-operário no início da mineração industrial amazônica. Belém: Paka-Tatu, 2014.
  • RIBEIRO, Benjamin Adiron. Vila Serra do Navio: comunidade urbana na serra amazônica: um projeto do arq. Oswaldo Bratke. São Paulo: Pini, 1992.

Crédito da imagem de capa: Vista aérea de Serra do Navio. Revista ICOMI Notícias, Rio de Janeiro, n.9, setembro de 1964.



Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

LMT #71: Igreja do Glorioso Patriarca São José, Rio de Janeiro (RJ) – Beatriz Catão Cruz Santos



Beatriz Catão Cruz Santos
Professora do Instituto de História da UFRJ



Quem hoje passa na Rua 1º de março em direção à Avenida Presidente Antônio Carlos pode observar à direita a Igreja de São José, um dos mais antigos templos da cidade do Rio de Janeiro. A antiga capela é de 1608, reconstruída em 1633 e o edifício atual foi concluído em 1842. A história do templo é também a da Irmandade de São José, que reunia carpinteiros, marceneiros, pedreiros e canteiros no século XVIII e inícios do século XIX. Esses ofícios, mais acessíveis a homens livres, eram também praticados por escravos e libertos.

É possível dizer que a instituição católica e leiga era uma irmandade de ofícios e não somente de devoção ao santo. A irmandade regulava a aprendizagem, a produção e o comércio de seus produtos. Com isso, garantia uma certa honra e privilégios dos irmãos, mas só dos ofícios vinculados a ela. Ela tinha apoio das autoridades, um reconhecimento que se expressava nas festas religiosas.

Em 1752, D. Antônio do Desterro, bispo do Rio de Janeiro, num relatório enviado à Santa Sé descrevia em detalhes o estado da diocese. Nele, mencionava a Freguesia de São José, onde se situava a igreja e a irmandade. A freguesia fora criada pelo mesmo em 1749, quando então a cidade passou a ter quatro paróquias: Sé, Nossa Senhora da Candelária, Santa Rita e São José.

A história dessa irmandade se confunde com a de sua congênere homônima de Lisboa. Em 1744, os artífices que administravam a irmandade do Rio de Janeiro enviaram ao reino um requerimento para fazer uso de mesmo compromisso dos carpinteiros e pedreiros de Lisboa. Solicitavam o direito de eleger seus próprios juízes.


Os juízes eram um dos principais cargos da irmandade, com poder de auto-regulação do ofício e na sociedade, de avalizar as obras e peticionar a Câmara, por exemplo.


A demanda foi parcialmente atendida e o compromisso lisboeta de 1709 foi adotado no Rio. Algumas normas sobre o trabalho dos carpinteiros, pedreiros e ofícios anexos foram questionadas pelas autoridades judiciais como, a proibição de tomar ofício alheio, a obrigatoriedade de exame do ofício e um número máximo de 2 aprendizes por mestre. Alguns pontos ainda seriam alvo de disputa entre a Irmandade de São José e a Câmara Municipal, responsável por controlar o trabalho e o comércio dos ofícios na cidade. Além disso, a irmandade não conquistou o direito de eleger seus juízes, prerrogativa pela qual continuariam a lutar nos anos seguintes.

O culto de São José se difundiu na Europa a partir de fins do século XV. Durante esse período, sua imagem foi reabilitada: de santo secundário, por vezes, o cornudo ou aquele dedicado a tarefas domésticas, tornou-se central, modelo de pai protetor e membro da Sagrada Família. Nos países ibéricos, seu culto foi difundido pela Igreja e pela monarquia, passando a nomear pessoas e instituições de caridade. Isso ocorreu com a confraria de carpinteiros e pedreiros que o adotou como patrono. A partir do século XVIII, a ideia de trabalho honesto e honroso também passaria a ser associada ao santo.

A irmandade de São José gozava de grande prestígio no Rio de Janeiro, assim como em Portugal. Em Lisboa, por sua antiguidade, tinha precedência na ordenação de Corpus Christi. Na procissão ocorrida no Rio de Janeiro em 1772 participavam 28 irmandades, organizadas em “alas” de cada freguesia, com seus estandartes e símbolos. Entre elas, com destaque, a irmandade de São José, a dos pedreiros, carpinteiros, marceneiros e canteiros, o que não excluía a presença da elite colonial na associação. A procissão de Corpus Christi era um rito político religioso obrigatório, sancionado pela própria irmandade. O rito previa a participação das autoridades leigas e religiosas, das comunidades religiosas e das irmandades, ordenando-se do menos ao mais importante socialmente.

As disputas em torno do controle do ofício eram recorrentes. Em 1758, por exemplo, a Câmara Municipal, criou uma série de normas que esvaziava o poder da irmandade e de seus juízes. A certidão do mestre para o aprendiz deixou de ser exigida; os juízes deixaram de realizar vistorias e desmanchar as obras, prerrogativas que garantiriam a qualidade das obras e excluíam os não membros da irmandade de concorrerem com produtos similares. Além disso, foi criada a possibilidade de que os aprendizes pudessem trocar de mestres, sob o argumento de ampliar a “liberdade” dos artífices.

Conflitos ocorriam entre os próprios artífices e por várias razões. No início do XIX, há petições de marceneiros e pedreiros para ingressarem na irmandade, que recupera norma de 1730 proibindo o ingresso de mulatos, mouros e judeus na irmandade e abertura de lojas. O acesso é facultado a pardos, mediante o exame de ofício, ficando impedidos de ocupar cargos administrativos. Os irmãos também reclamam dos produtos de má qualidade vendidos por ambulantes, indicando a concorrência com artífices, auxiliados por seus escravos na produção e venda pela cidade.

Os artífices da cidade do Rio de Janeiro tinham origens, status e até religiões diversas. Algumas pesquisas em curso informam que eles lutavam e circulavam na Monarquia portuguesa, em busca de melhores condições de trabalho e saúde. Mas, ainda há muito a saber sobre sua história. Atualmente, a Igreja de São José, localizada ao lado da Assembleia Legislativa, está próxima a um dos palcos das disputas políticas contemporâneas. Mas nem todos sabem que a Igreja e sua irmandade, ainda ativa, é também um lugar de memória dos pedreiros e marceneiros da cidade.

Igreja do Glorioso Patriarca São José em 2020.
Acervo de Beatriz Catão Cruz Santos.


Para saber mais:

  • MARTINS, João Furtado. Os carpinteiros na Inquisição de Lisboa no século XVIII: trabalho, sociabilidades e cultura material. Librosdelacorte.Es, n. 6, 2017. Disponível em: https://doi.org/10.15366/ldc2017.9.m6.013
  • MARTINS, Monica de Souza Nunes. Entre a cruz e o capital: as corporações de ofícios no Rio de Janeiro após a chegada da família real (1808-1824). Rio de Janeiro: Garamond, 2008.
  • SANTOS, Beatriz Catão Cruz. Catolicismo, cor e governança da terra no Rio de Janeiro no século XVIII. In: João Fragoso; Antonio Carlos Jucá de Sampaio. (Org.). Monarquia Pluricontinental e a governança da terra no ultramar atlântico luso: séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Mauad X, 2012
  • SANTOS, Beatriz Catão Cruz. As irmandades de ofícios e os ritos político-religiosos (Rio de Janeiro, século XVIII). In: OLIVEIRA, Anderson José Machado de; MARTINS, William de Souza. (Org.). Dimensões do catolicismo no império português (séculos XVI-XIX). Rio de Janeiro: Garamond, 2014.
  • BARROS, Miguel Sérgio da Costa Ferreira Monteiro de. São José, Bairro Tridentino. Universidade Nova, (Tese de Doutoramento, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas), Lisboa, 2017.

Crédito da imagem de capa: Planta topográfica da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro tirada e executada pelo Capitão André Vaz Figueira, Acadêmico da Aula Militar, Anno d’ 1750”. A antiga Igreja de São José está assinalada em vermelho. “Seção de Mapoteca e Iconografia do Ministério das Relações Exteriores no Rio de Janeiro, sob a notação: “BR_BSBMRERJ_CAR_Map116.



Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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LMT #70: Cervejaria Catharinense, Joinville (SC) – Tiago Castaño Moraes



Tiago Castaño Moraes
Mestre em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina



Em 1938 com o título ‘Bons patrões, vendendo boa cerveja, fabricada por operários bem tratados‘, o jornal carioca O Radical publicou uma matéria sobre a situação dos funcionários na Cervejaria Catharinense, localizada na rua XV de novembro, uma das principais vias de acesso ao centro de Joinville. O jornal, conhecido por realizar coberturas sobre o sindicalismo e as reivindicações operárias, destacou algumas qualidades dos industriais da Cervejaria, referidos na matéria como “estudiosos das questões sociais”.

A ascendência germânica e os ideais de ascensão econômica professados pela religião luterana, construíram na cidade um discurso voltado para o trabalho e o progresso que envolvia industriais e operários. Os aproximadamente 80 funcionários da Cervejaria recebiam aumento salarial e gratificações de acordo com os lucros da empresa, seguro coletivo contra acidentes e auxílio na “aquisição da casa própria, sem juros e a longo prazo”. Segundo o jornal, havia empregados menores de idade, “mas perfeitamente enquadrados na legislação em vigor”. A produção na época alcançava 18 mil hectolitros de cerveja com o maquinário avaliado em 1,300 conto de réis.

A fabricação de cerveja teve início ali em fins do século XIX, com o imigrante alemão Alfred Tiede. O cervejeiro chegou na Colônia Dona Francisca (atual Joinville) em 1881, e começou sua produção nos fundos de sua residência em 1884. Sua fabriqueta foi ampliada ao longo do século XX e tornou-se uma das maiores produtoras de cerveja da região sul brasileira. Após a morte de Tiede em 1904, seu filho adotivo de mesmo nome e a esposa assumiram a produção, e por um período os rótulos das cervejas traziam a inscrição Viúva de A. Tiede. A cerveja chegou a ser premiada em exposições estaduais e nacionais, sendo considerada uma das melhores do país.

Inserida em um movimento de industrialização e urbanização da cidade, a cervejaria assumiu durante a década de 1920 uma posição de destaque entre as indústrias catarinenses, particularmente após a fusão com o cervejeiro Karl Seybolth em 1925. Nessa época a cervejaria empregava 30 operários, em uma produção de 20 mil garrafas semanais. O trabalho manual, no processo de pasteurização, já havia sido substituído por máquinas para lavagem e enchimento das garrafas. A produção na cervejaria seguia os padrões de grandes fábricas europeias, com técnicos treinados e alguns até formados em Munique como o próprio Karl Seyboth.

O movimento trabalhista na cidade caracterizava-se por uma forte divisão étnica entre os imigrantes germânicos (teuto-brasileiros, que utilizavam o idioma alemão) e os brasileiros, incluindo descendentes de portugueses e afro-brasileiros. Refletindo-se na organização sindical, as divisões étnicas e linguísticas dificultaram a ação coletiva nas primeiras décadas do século XX.


O sentimento de superioridade entre os trabalhadores de ascendência alemã em relação aos brasileiros foi um elemento fundamental de divisão da classe operária em Joinville e que pode explicar a predominância na Cervejaria Catharinense de trabalhadores homens e de famílias germânicas.


Transformada em Sociedade Anônima em 1931, a Cervejaria alcançou mercados importantes no Rio de Janeiro e em São Paulo. Aumentou o investimento em campanhas publicitárias e estratégias para se aproximar do público, como a realização de concursos para a escolha popular de um nome para sua nova marca de cerveja e o patrocínio de uma marchinha de carnaval em 1935.

Em 1948, a Companhia Antarctica Paulista comprou a Cervejaria Catharinense, mas conservou o nome original da cervejaria até 1973, quando foi criada a Companhia Sulina de Bebidas Antarctica. Assim como acontecia em outras filiais da Cervejaria Antarctica, a empresa fortalecia laços com seus empregados e familiares, principalmente através da ARCA (Associação Recreativa da Cervejaria Antarctica). Os funcionários demonstravam um certo orgulho em trabalhar na cervejaria, e aqueles com mais anos de casa eram homenageados. A Antarctica manteve sua produção no local até 1998, mas ainda hoje é comum ouvir histórias de ex-funcionários e consumidores sobre a qualidade da cerveja produzida ali.

A Cervejaria Catharinense criou laços simbólicos profundos no imaginário social de Joinville. Da participação no álbum do centenário do município em 1951, às festas de quermesse na cidade, a cervejaria tinha presença garantida em festas populares com stands para distribuição de cervejas e refrigerantes e sua lembrança ainda é presente na memória popular local.

Após o fechamento definitivo da fábrica em 2001, a prefeitura de Joinville adquiriu o complexo e foram idealizados museus e usos culturais para o espaço. Ao longo de quase 20 anos, alguns galpões e prédios administrativos da cervejaria foram utilizados por entidades culturais da cidade, mas a ala principal com suas máquinas, ferramentas, mobílias e até documentos, permaneceu abandonada, sofrendo furtos e degradações constantes. Sem os devidos cuidados com a conservação dos espaços, o belo exemplar de patrimônio industrial da cidade, mesmo sendo tombado como patrimônio histórico, arquitetônico e paisagístico, vem se deteriorando. Por isso, em 2020 as áreas, até então, utilizadas do complexo foram desocupadas e a chamada Cidadela Cultural Antarctica se encontra atualmente em desuso. Sua chaminé, vista de longe, é agora um marco do passado, uma recordação daqueles que tomaram ou ouviram falar da famosa “faixa azul” da Antarctica de Joinville.

Prédio da Cervejaria em 1940.
Fonte: Fotografia de Fritz Hofmann. Coleção Particular.


Para saber mais:

  • “Bons patrões, vendendo boa cerveja, fabricada por operários bem tratados”. O Radical. Rio de Janeiro. n. 2017, 10 nov. 1938, p. 19. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/830399/15618>
  • COSTA, Iara Andrade. A cidade da ordem: tensões sociais e controle (Joinville:1917/1943). Curitiba, 1996. Dissertação de mestrado em História apresentada à Universidade Federal do Paraná, UFPR.
  • MORAES, Tiago Castaño. Patrimônio, indústria e cerveja: olhares sobre a antiga Cervejaria Antarctica em Joinville/SC, Brasil. Cadernos do Arquivo Municipal. Lisboa. vol. 2, n.13, 2020. pp. 97-122.
  • “Onde era feita a melhor”. A Notícia. Joinville. 01 mar. 2009.
  • QUEIROZ, Walter. Resenha histórica da companhia sulina de bebidas Antárctica de Joinville. 2008. Acervo Coordenação do Patrimônio Cultural.

Crédito da imagem de capa: Rótulo com a imagem do prédio da cervejaria entre final da década de 1920 e início de 1930. Fonte: Acervo AHJ – Livro de rótulos, Typographia Otto Boehm.



Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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Lugares de Memória dos Trabalhadores #69: Fábrica de Fiação e Tecelagem Bernardo Mascarenhas, Juiz de Fora (MG) – Luís Eduardo de Oliveira



Luís Eduardo de Oliveira
Professor do IF Sudeste MG, Campus Juiz de Fora



O prédio original da Tecelagem Mascarenhas, na área central de Juiz de Fora, foi construído ao longo do ano de 1887 e sua inauguração festiva ocorreu justamente no primeiro “dia útil” seguinte à abolição da escravidão: 14 de maio de 1888, uma segunda-feira. Como denunciariam lideranças operárias nos anos seguintes, um “novo cativeiro” se iniciava. Polo mercantil e manufatureiro do complexo cafeeiro da Zona da Mata mineira, Juiz de Fora experimentava uma fase de ascenso e diversificação de suas atividades urbano-industriais que, no limiar do século XX, lhe renderia o epíteto de “Manchester Mineira”.

Inicialmente, a fábrica a vapor de Bernardo Mascarenhas (1847-1899), membro proeminente de uma das famílias mais ricas de Minas Gerais, possuía uma estrutura relativamente modesta: apenas 30 teares, operados não mais do que por 75 trabalhadores, que teciam zefires e brins de algodão e de linho, com fios importados da Inglaterra, para serem comercializados local e regionalmente. A intensa exploração de sua força de trabalho somada à uma demanda crescente por tecidos relativamente baratos propiciou a ampliação contínua da capacidade produtiva desse estabelecimento fabril nas primeiras décadas da República.

Em agosto de 1898, a Tecelagem Mascarenhas já contava com o dobro de teares e com uma força de trabalho de quase 150 pessoas, “a maior parte moças e meninas, umas brasileiras, outras espanholas e italianas”, como relatam O Pharol e o Jornal do Commercio. A área central de Juiz de Fora assumia funções de uma típica cidade-fábrica capitalista e nesse cenário a arquitetura inglesa do prédio original daquela unidade fabril se destacava em meio a outras edificações mais modestas, muitas delas convertidas em cortiços para abrigar famílias proletárias numerosas – cujos membros, para escaparem da miséria absoluta, e da não menos temida pecha de vadios, se submetiam a jornadas diárias de até 16 horas, pagas a preços baixíssimos, quer seja no comércio quer seja em obras, oficinas e fábricas.

É bem provável, nesse sentido, que fosse moradora de um desses cortiços a “moça de nacionalidade italiana” Albina Bartolosso, que de acordo com o Jornal do Commercio de 22 de dezembro de 1907 ficou cega de um dos olhos após ser atingida por uma peça que se desprendeu do tear em que trabalhava diariamente na Tecelagem Mascarenhas. Acidentes graves como esse se tornaram mais frequentes no decurso das décadas de 1900 e 1910, quando a fábrica praticamente dobrou sua área construída e passou a contar com a extraordinária força de 526 trabalhadoras e trabalhadores para produzir anualmente cerca de 1,6 milhões de metros de tecidos em 1914.

Nos cinco anos seguintes, quando a carestia atingiu um nível insuportável em Juiz de Fora e os serões não remunerados se tornaram ainda mais frequentes, o contraste entre a enorme prosperidade desfrutada pelos capitalistas locais e as terríveis condições em que subsistiam os seus empregados levou à deflagração da segunda greve geral da história da cidade. Assim como ocorreu em agosto de 1912, centenas de operárias e operários da Tecelagem Mascarenhas paralisaram completamente a produção e se incorporaram a outros cerca de seis mil assalariados (sobretudo dos setores de fiação e tecelagem, gráfico, mecânico-metalúrgico e da construção civil) num vigoroso movimento paredista.


Entre os dias 02 e 06 de janeiro de 1920, as trabalhadoras e trabalhadores juizforanos emergiram novamente na cena pública para denunciar o tratamento desumano que recebiam de seus patrões e reivindicar 8 horas de trabalho, aumento de 50% sobre os salários dos serões e de 25% do ordenado da jornada normal.


Entre as décadas de 1930 e 1960, reafirmando reivindicações sociais históricas e lutando para que a legislação trabalhista fosse cumprida e ampliada, os operários e operárias da Tecelagem Mascarenhas tiveram ainda um papel destacado nas lutas sociais e políticas daquele período e no processo de formação e consolidação do Sindicato dos Operários Têxteis e Classes Anexas. Em  agosto de 1954, por exemplo, estiveram na linha de frente da greve geral que paralisou a cidade e conquistou um aumento de cerca de 150% no valor do salário-mínimo local.

Por mais três décadas o trabalho operário continuaria intenso nos amplos salões da Tecelagem Mascarenhas, que desligou definitivamente o seu maquinário em janeiro de 1984. Foi uma das últimas grandes fábricas de fiação e tecelagem formadas em Juiz de Fora entre os séculos XIX e XX a parar de produzir.

Durante anos a antiga fábrica esteve sob ameaça de demolição. Em grande medida, sua preservação pode ser atribuída ao movimento “Mascarenhas, meu amor”, que reuniu no início dos anos 1980 diversos setores sociais em torno de uma campanha pelo tombamento do conjunto arquitetônico da centenária fábrica de tecidos, o que acabou ocorrendo em 1987. Desde então, funcionam naquele espaço, sob a gestão da prefeitura, o Centro Cultural Bernardo Mascarenhas, onde são desenvolvidas atividades artísticas e culturais, a Biblioteca Municipal Murilo Mendes e a Secretaria Municipal de Educação, além de um movimentado mercado de produtos naturais e artesanais.

A praça pública que integra o sítio histórico em que se localiza o antigo prédio da Tecelagem Mascarenhas, é hoje um dos principais espaços de concentração política da cidade. É um local de história e memória fundamental, cujo simbolismo maior parece ser a sua capacidade de conectar as reivindicações e movimentos sociais do presente às inúmeras e hercúleas lutas operárias travadas em Juiz de Fora ao longo de todo o século XX.

Fac-símile da notícia publicada pelo periódico A Razão acerca do início de uma greve geral em Juiz de Fora – MG em 1920. A imagem destaca a fachada principal da Tecelagem Mascarenhas.
Fonte / crédito: “As 8 horas de Trabalho. 6.000 operários em greve”. A Razão, Rio de Janeiro, 03 de Janeiro de 1920, p. 05. Hemeroteca Digital Brasileira / Biblioteca Nacional.

Fachada do Centro Cultural Bernardo Mascarenhas atualmente.
Fonte: Site da Prefeitura de Juiz de Fora.


Para saber mais:

  • ANDRADE, Sílvia Maria B. Vilela de. Classe Operária em Juiz de Fora: uma história de lutas (1912-1924). Juiz de Fora: UFJF, 1987.
  • DUTRA, Eliana de Freitas. Caminhos Operários nas Minas Gerais. Um estudo das práticas operárias em Juiz de Fora e Belo Horizonte na Primeira República. São Paulo / Belo Horizonte, Hucitec / UFMG, 1988.
  • OLIVEIRA, Luís Eduardo de. Os trabalhadores e a cidade: a formação do proletariado de Juiz de Fora e sua lutas por direitos (1877-1920). Juiz de Fora / Rio de Janeiro, Funalfa / Editora da FGV, 2010.
  • PREFEITURA DE JUIZ DE FORA. “Centro Cultural Bernardo Mascarenhas: Histórico”. Disponível em: https://www.pjf.mg.gov.br/administracao_indireta/funalfa/ccbm/historico.php

Crédito da imagem de capa: Vista parcial da área central de Juiz de Fora no final da década de 1890, destacando-se num dos extremos da antiga rua XV de Novembro (atual Avenida Getúlio Vargas) o prédio original da Tecelagem Mascarenhas (canto inferior direito). Fonte / Crédito: OLIVEIRA, Luís Eduardo de. Os trabalhadores e a cidade – a formação do proletariado de Juiz de Fora e suas lutas por direitos (1877-1920). Tese (Doutorado), Niterói, Universidade Federal Fluminense, 2008, p. 113.



Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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Lugares de Memória dos Trabalhadores #68: Instituto Cajamar, Cajamar (SP) – Valter Pomar e Paulo Fontes



Valter Pomar
Professor da Universidade Federal do ABC. Foi Formador do Instituto Cajamar

Paulo Fontes
Professor do Instituto de História da UFRJ. Foi Formador do Instituto Cajamar



Via Anhanguera km 46,5. Durante muitos anos, funcionou neste endereço o Instituto Cajamar, conhecido também por Inca, fundado em 17 de julho de 1986 como uma “entidade sem fins lucrativos, voltada a aumentar o nível de formação e informação da classe trabalhadora”. Era uma iniciativa política conjunta do Partido dos Trabalhadores, da Central Única dos Trabalhadores e de outros movimentos sociais atuantes no país entre o final dos anos 1970 e início dos 1980. 

O Instituto funcionava numa sede própria, um terreno com 46 mil metros quadrados, no qual existia um hotel, uma pequena capela, uma piscina, um campo de futebol, áreas de estacionamento, alojamentos para funcionários e algumas outras edificações, que foram sendo adaptadas às necessidades de uma escola. Além de recursos próprios dos movimentos que o apoiavam, o Instituto recebia financiamento de projetos internacionais, em particular, do sindicalismo europeu.

Na época, as “casas de encontros” onde se realizavam atividades de educação popular eram geralmente de propriedade de igrejas; o Instituto Cajamar se diferenciava como um grande espaço laico, dedicado às atividades de formação política. Rapidamente ganhou fama. A imprensa o chamava de “Universidade dos Trabalhadores” e sua existência não passou despercebida pela espionagem militar. No dia 24 de junho de 1987, um relatório confidencial do Comando Militar Sudeste informava detalhes sobre os propósitos do Inca e previa fantasiosamente que a escola de formação de quadros também daria lições sobre “a ação de sabotagem e colocação de bombas, piquetes violentos e até a luta armada”.

Paulo Freire era o presidente do conselho diretivo, integrado também por dirigentes sindicais como Jorge Coelho, Luiz Gushiken, Arlindo Chinaglia, Avelino Ganzer, lideranças políticas como Lula, Luiza Erundina, Olívio Dutra, além de intelectuais e figuras públicas como Frei Betto, Francisco Weffort, Marco Aurélio Garcia, Paul Singer e Walter Barelli, entre outros. No dia a dia, o Inca era gerido por uma coordenação executiva composta por nomes como Osvaldo Bargas, Wander Prado, Aloízio Mercadante, Pedro Pontual e Wilson Santarosa. Wladimir Pomar foi de fato o coordenador geral do Instituto até 1989, quando foi substituído por Gilberto Carvalho. Em 1993, Augusto Campos assumiu essa função.

A primeira atividade do Instituto foi realizada em dezembro de 1986, tendo como tema a participação popular na Constituinte. Em 1987, dois outros eventos tiveram grande repercussão na esquerda, os seminários internacionais intitulados “70 anos de experiências de construção do socialismo” e “Poder local e participação popular”.  

Em janeiro de 1987 tiveram início os chamados cursos de capacitação. Na década seguinte, centenas de cursos e atividades formativas voltadas para ativistas sindicais, partidários e de movimentos populares atingiram milhares de militantes de todo o país. Uma equipe própria de formadores elaborava os currículos e conduzia os cursos, que muitas vezes contavam com professores convidados (tanto acadêmicos, quanto dirigentes políticos e de movimentos sociais).

Militantes e intelectuais estrangeiros também participaram de atividades. O famoso historiador britânico Eric Hobsbawm, por exemplo, visitou o Inca duas vezes, quando deu palestras para os alunos. Na segunda visita, em 1992, chegou a fazer uma apresentação exclusiva para os dirigentes da Executiva Nacional da CUT. O Inca contou em algumas de suas atividades com diversas lideranças históricas da esquerda brasileira, como Luiz Carlos Prestes e Apolônio de Carvalho, entre outros. Comumente, os cursos duravam 5 dias, muitas vezes em várias etapas, proporcionando intensa sociabilidade e valiosos intercâmbios entre militantes de diferentes movimentos e regiões do país.


Além da preocupação com a qualidade dos conteúdos, havia um enorme esforço pedagógico de formação de educadores. Nesse sentido, o Inca também foi uma impressionante experiência de troca de saberes entre o mundo acadêmico, as diferentes tradições políticas das esquerdas e das práticas e reflexões dos movimentos sociais.


Além dos inúmeros cursos, debates, seminários e publicações, o Instituto Cajamar sediou atividades diversas realizadas por sindicatos, pela CUT, pelo PT, pelo MST, por entidades religiosas e por outros centros de formação. Este conjunto de atividades colaborou para o salto de qualidade experimentado na atividade política do PT, da CUT e da luta política e social dos trabalhadores em geral, preparando o terreno para a quase vitória de Lula na eleição presidencial de 1989 e para a importante presença da esquerda no cenário público ao longo dos anos 90.

Por volta de 1996, problemas de financiamento, diferentes visões sobre o papel do Instituto e da formação política em geral, combinados aos debates e mudanças então em curso na esquerda brasileira e mundial, resultaram no fechamento do Instituto Cajamar. As instalações passaram a ser alugadas por quem quisesse fazer atividades, formativas ou não (inclusive casamentos e festejos).

A gestão cotidiana do espaço foi transferida para uma cooperativa de antigos funcionários da infraestrutura e do serviço de hotelaria, a Cooperinca, que funcionou até o dia 26 de fevereiro de 2021. A história do Instituto Cajamar ainda está por ser escrita, com base na documentação guardada no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e na memória de seus dirigentes, funcionários, educadores e dos milhares de militantes que passaram pelo Instituto, ao longo de um quartel de século.

Curso de Formação de Formadores do Movimento Sindical no Instituto Cajamar, 1991.
Acervo pessoal de Paulo Carvalho.



Para saber mais:

  • AZIBEIRO, Nadir Esperança. A criação de relações de saber, poder e prazer na vida e nos processos educativos : a experiência do FFMP-INCA. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Federal de Santa Catarina, 1994.
  • FONSECA, Maria Isabel. Instituto Cajamar: recuperando sua trajetória, visões e concepções de Educação. Dissertação (Mestrado em Filosofia). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1996.
  • PONTUAL, Pedro. “Educacion Popular y Formación de Trabajadores: La Experienca del Instituto Cajamar de Brasil”. Convergence; Toronto Vol. 22, n. 2, 1989. 
  • POMAR, Wladimir. O nome da vida. São Paulo: Editora da Fundação Perseu Abramo, 2018.
  • SILVA, Carmem Sílvia Maria. Contribuições para uma Análise da Política de Formação do Partido dos Trabalhadores. Dissertação (Mestrado em História e Filosofia da Educação). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1996.

Crédito da imagem de capa: Participantes do Seminário “70 anos da Experiência de Construção do Socialismo” posam nos jardins do Instituto Cajamar em 1987. Entre eles, Lula, Luiz Carlos Prestes, Apolônio de Carvalho, Perseu Abramo e diversos sindicalistas. Crédito: Vera Jursys. Acervo da Fundação Perseu Abramo.



Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

Lugares de Memória dos Trabalhadores #67: Fábrica Chapéus Mangueira, Rio de Janeiro (RJ) – Lyndon de Araújo Santos



Lyndon de Araújo Santos
Professor do Departamento de História da Universidade Federal do Maranhão



O chapéu foi parte essencial da vestimenta dos brasileiros durante décadas. Dentre as marcas mais conhecidas, os Chapéus Mangueira disputaram o mercado consumidor da moda e do vestuário no Brasil até fins da década de 1960. A sua fábrica, localizada na região do morro da Mangueira, subúrbio da cidade do Rio de Janeiro, marcou as vidas de gerações de trabalhadores e de trabalhadoras além de integrar a paisagem da cidade e a memória da população carioca.

Fundada em 1857 por imigrantes portugueses naturais da freguesia de Sampaio de Merelim, em Braga, Portugal, a fábrica teve sua primeira sede no largo de Santa Rita e na Rua de São Pedro, no centro da capital do Império. Depois de um incêndio ocorrido em 1896, a fábrica foi reconstruída dois anos depois, à beira da Rua 8 de dezembro, ao lado da frondosa mangueira e da estação de trem que deram nome à região. Em 1910, a fábrica adotou o nome fantasia Chapéus Mangueira, àquela altura já bastante popular na cidade.

Os trens que partiam da estação Central do Brasil rumo aos subúrbios faziam a sua primeira parada na estação da Mangueira, futuro nome da famosa escola fundada em 1928. A região era bastante procurada por uma numerosa população pobre, majoritariamente negra, que buscava moradia barata, em particular após as reformas urbanas do prefeito Pereira Passos no início do século XX. Considerada um lugar aprazível, a localidade era também chamada ironicamente  de “a Petrópolis dos pobres”.

Muita gente foi ocupando o conjunto de morros próximos daquele entroncamento da linha férrea. O conjunto de morros dos Telégrafos, do Pendura Saia, da Matriz, e do Faria ficariam conhecidos como Morro da Mangueira. Os conflitos e as ameaças de desocupações eram constantes e a luta pelo direito à moradia seria uma das marcas daquela população, composta por ex-escravos e seus descendentes, além de migrantes do interior do Rio e outras regiões. Rapidamente, a Mangueira tornou-se um dos espaços mais importantes da cultura e religiosidade afro-brasileira no Rio de Janeiro. Era também um lugar marcado pelo trabalho árduo e duro.

Os moradores da Mangueira encontravam serviço nas diversas fábricas que, ao longo das primeiras décadas do século XX, se fixaram no entorno da estação de trem, na continuidade da Quinta da Boa Vista e no bairro de São Cristóvão. Por ali também se espalharam pequenas oficinas e manufaturas de sapatos, de chapéus, olarias e cerâmicas. Além disso, os pequenos serviços informais de baixa remuneração, os “bicos”, sempre foram uma importante alternativa de rendimentos para os trabalhadores locais.


Até a década de 1950, a Fábrica Chapéus Mangueira foi uma referência simbólica e uma relevante empregadora naquela região. Em seu ápice, chegou a ter mais de 400 trabalhadores. Embora contasse com operários estrangeiros, a maioria dos(as) trabalhadores(as) era de brasileiros(as), majoritariamente negros e negras, moradores(as) das imediações.  


A fabricação de um chapéu obedecia a uma complexa linha de montagem, seguindo várias etapas, desde o processamento das peles importadas (de lebre e de castor) até ao seu armazenamento e comercialização. Mesmo outras modalidades como os chapéus de palha, mais simples, baratos e populares, exigiam igual rigor de procedimentos. Isto exigia um fluxo constante de operários(as) exercendo muitas funções. Embora sendo em boa parte mecanizado, o processo produtivo dependia do trabalho manual em suas fases finais, principalmente de operárias que chegaram a ser, em dados momentos, mais da metade dos trabalhadores, embora tivessem os ganhos menores que os homens. Junto com as costureiras e as chapeleiras que faziam o acabamento refinado dos chapéus, menores aprendizes também integravam uma pequena parte da força de trabalho como auxiliares e ajudantes. Os homens, por sua vez, exerciam tarefas pesadas como o manuseio e a manutenção das máquinas a vapor e elétricas, a produção e o tingimento dos tecidos feitos de peles de animais, o empacotamento das unidades prontas e a distribuição pelas vendas.

As duras condições de trabalho, os baixos salários e o controle de importante áreas do processo produtivo por parte dos(as) trabalhadores(as) resultaram em mobilizações operárias, que seriam recorrentes na Chapéus Mangueira. Em 1903 e 1906, sob a liderança da Associação de Chapeleiros, greves generalizadas paralisaram a fábrica. Décadas mais tarde, nos anos 1940 e 50, o Partido Comunista do Brasil (PCB) teria uma presença significativa entre os(as) operários(as) da Chapéus Mangueira e o partido chegou a liderar o sindicato da categoria. Em 1947, a fábrica foi novamente paralisada com protestos dos trabalhadores por aumento salarial, melhores condições de trabalho e instalação de creches.

Com o declínio do uso de chapéus, mudanças do mercado da moda e o envelhecimento dos antigos chapeleiros e chapeleiras, a Chapéus Mangueira entrou em declínio e a acabou por encerrar sua produção no final da década de 1960. No entanto, ficaria marcada na memória dos moradores da Mangueira, da história das lutas sociais do Rio de Janeiro e mesmo na paisagem da cidade, já que a comunidade do Morro do Chapéu Mangueira, no Leme, deve seu nome a uma propaganda feita pela empresa naquele local no final dos anos 1940.

Operários e operárias da Chapéus Mangueira. s/d.
Acervo da família Fernandes Braga.


Para saber mais:

  • LIMA, Sérgio Prates. 2016. Uma Ética Protestante Tropical: José Luiz Fernandes Braga e a Fábrica de Chapéus Mangueira (1858 a 1920). Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2016.
  • SANTOS, Lyndon de A. “Os Brácaros Chapeleiros Mundos e representações dos chapéus no Rio de Janeiro (1825-1898)”. Vária História. (Belo Horizonte). n. 57, 2015.
  • SANTOS, Lyndon de A. “O mundo do trabalho carioca: chapeleiras e chapeleiros na Fábrica de Chapéus Mangueira (1920-1940)”. Revista Mundos do Trabalho (Florianópolis). v. 12, 2020.
  • SANTOS, Lyndon de A. “Essa fina gente do morro: ocupação, conflitos e representações da Mangueira (1910-1930)”. In: ABREU, Martha; XAVIER, Giovana; MONTEIRO, Lívia & BRASIL, Eric. Cultura negra: festas, carnavais e patrimônios negros. Niterói: Eduff, 2018.
  • Filme-Documentário: O samba que mora em mim (Longa-metragem). Direção de Georgia Guerra-Peixe, Bossanovafilms, 2002. Ver: https://vimeo.com/315237430

Crédito da imagem de capa: Fachada da Fábrica de Chapéus Mangueira. s/d. Acervo Privado da família Fernandes Braga.



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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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Lugares de Memória dos Trabalhadores #66: Vila Operária de Luiz Tarquínio, Salvador (BA) – Marilécia Oliveira Santos



Marilécia Oliveira Santos
Professora da Universidade do Estado da Bahia – UNEB



No dia 14 de março de 1891 foi inaugurada a Companhia Empório Industrial do Norte – CEIN, no então subúrbio da Boa Viagem na cidade de Salvador. Seus principais acionistas foram o Banco Mercantil e os idealizadores do projeto Luiz Tarquínio, Leopoldo José Silva e Miguel Francisco Rodrigues de Moraes. Foi um empreendimento que ousou no investimento do maquinário e na produção de zephyrs de quadros, brins e cassinetas, tecidos até então não fabricados no Brasil empregando fios de algodão importados. Teve grande sucesso no final do século XIX e primeiras décadas do XX, chegando a ser a maior indústria têxtil do Norte-Nordeste e uma das dez maiores do país.

Cinco anos após sua inauguração a empresa empregava 697 operários (171 homens e 526 mulheres) sendo apenas 28 estrangeiros. Os trabalhadores eram recrutados principalmente em outros estados do Nordeste e no interior da Bahia e a proporção maior de mulheres se manteve por longos anos. Em 1938, por exemplo, do total de 1.121 trabalhadores da CEIN, 402 eram homens e 719 eram mulheres. A empresa também empregava aprendizes e o seu contingente era diversificado.

No ano seguinte a implantação da fábrica, a CEIN inaugurou a primeira etapa da vila operária vinculada à empresa, composta por 258 casas residenciais de dois pavimentos. Logo em seus primeiros anos a vila já contava com água canalizada, esgoto, luz elétrica e gasogênio. Gradativamente também foram implantados serviços como escola, gabinete médico, farmácia, loja, creche, campo de futebol, armazém, entre outros. A infraestrutura da vila operária e as condições de moradia eram, assim, bastante superiores às dos demais trabalhadores pobres da cidade.

Para atrair trabalhadores os administradores da empresa buscaram divulgar os benefícios de trabalhar na CEIN e principalmente de morar na vila. Apesar disso, nem todos os operários da fábrica ali viviam. Para morar na vila era preciso atender as exigências de ordem moral estabelecidas nos regimentos internos e com fiscalização sistemática ao seu cumprimento, afinal nela também residiam alguns chefes. Os aluguéis das casas eram subsidiados e, após dez anos, os trabalhadores e suas famílias ficavam isentos do pagamento.

Além das publicações de matérias jornalísticas que divulgavam positivamente a vila destacando um cotidiano marcado por festas dominicais e atividades de lazer, os empreendedores investiram na produção de cartões-postais como forma de divulgação e aliciamento dos trabalhadores. Os cartões eram amplamente divulgados e os operários eram incentivados a encaminhá-los para parentes e amigos.


A reiterada divulgação contribuiu também para consolidar uma imagem idílica da vila operária e de seu principal idealizador, Luiz Tarquínio. Expressões como “ilha de ordem”, “Cidade do Bem”, “Cidade Operária”, “Cidade do Trabalho”, buscavam perenizar a memória daquele espaço como um lugar tranquilo, ordeiro e, sobretudo, sem conflito entre trabalho e capital.


Para além dessa memória idealizada, sobreviveram outras que revelam as tensões e conflitos de natureza social e racial. Tanto na vila quanto na fábrica havia prêmios e punições aos trabalhadores que atendiam ou infringiam as regras de condutas previstas nos regimentos internos. A vila era gradeada com rígido controle da entrada e saída dos moradores e seus parentes que vinham visitá-los. Muitos são os registros que relatam os meios empregados para burlar essa vigilância incluindo narrativas de crianças enganando inspetores para poder jogar bola em áreas proibidas e de jovens driblando o controle para namorar nos jardins internos da vila. Cabe também destacar a participação dos operários da empresa em greves, como a de 1907 quando a vila operária foi palco de mobilizações e negociações sobre os rumos do movimento.

Ao longo da sua existência, a CEIN enfrentou dificuldades que impactaram na conformação do espaço físico da vila e na vida dos seus moradores. Em 1929 a empresa deixou de receber isenções de impostos que foram repassados aos aluguéis das casas da vila. Os problemas com a importação de algodão e de peças para reposição do maquinário nos anos de 1930 obrigaram a empresa a vender quarteirões inteiros de casas para outras companhias como a Souza Cruz (1935) e Coca–Cola (1941) promovendo mudanças significativas nos espaços internos da vila operária.

A CEIN funcionou até 1977, quando foi decretada sua falência. Entretanto, a vila operária permaneceu como espaço de moradia de 1.500 pessoas, que passaram a enfrentar diversos problemas para se manterem em suas residências. A prefeitura de Salvador não dava manutenção nas áreas coletivas por não reconhecer a localidade como espaço público e os ex-trabalhadores da fábrica, por sua vez, não tiveram suas propriedades reconhecidas oficialmente. Uma longa batalha pela posse das casas foi travada pelos antigos operários e seus descendentes, que conquistaram seus direitos efetivamente em 1982, por força de um decreto estadual. Um incêndio, em 1987, destruiu parte das instalações da fábrica modificando ainda mais as características da vila. Em 2009, por iniciativa de moradores, houve uma tentativa de tombamento da área que, no entanto, não avançou.

Muitas e diversificadas foram as experiências vivenciadas pelos que habitaram e ainda habitam aquele local, marcado pela presença da fábrica e da vila. Seus registros materiais e simbólicos são fundamentais para a história da cidade e para a identidade do bairro. A vila operária de Luiz Tarquínio, a CEIN e outras fábricas no seu entorno ajudaram a conformar a região da Boa Viagem, na cidade baixa de Salvador, como um importante lugar de memória dos trabalhadores baianos.

Fotografia de uma das ruas internas da vila operária. Autor desconhecido, s/d.
Fonte: CEDOC / Bahia.


Para saber mais:

  • CARDOSO, Luiz Antonio Fernandes. Entre vilas e avenidas: habitações proletárias em Salvador, na Primeira República. 1991. 206f. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura, Universidade Federal da Bahia.
  • PINHO, Péricles Madureira de. Luiz Tarquínio, pioneiro da justiça social no Brasil. Bahia: Imprensa Vitória, 1944.
  • SAMPAIO, José Luiz Pamponet. A evolução de uma empresa no contexto da industrialização brasileira: A Companhia Empório Industrial do Norte, 1891-1973. 1975. 236f.  Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia e Ciências humanas, Universidade Federal da Bahia.
  • SANTOS, Marilécia Oliveira. O viver na “cidade do bem”: tensões, conflitos e acomodações na Vila Operária de Luiz Tarquínio, na Boa Viagem – Bahia (1892-1946/47). Salvador: EDUFBA, 2017.
  • SANTOS, Mario Augusto. A república do povo: sobrevivência e tensão – Salvador (1890-1930). Salvador: EDUFBA, 2001.

Crédito da imagem de capa: Cartão-postal da vila operária colorido manualmente datado de 1908. Fonte: fotografia do acervo pessoal da pesquisadora.



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