LMT#82: Fábrica de Tecidos de Marzagão, Sabará (MG) – Andréa Casa Nova Maia



Andréa Casa Nova Maia
Professora do Instituto de História da UFRJ



Instalada em 1878, numa antiga fazenda local, a Fábrica de Tecidos de Marzagão em Sabará foi uma das primeiras a se dedicar à atividade industrial têxtil em Minas Gerais. Para se ter uma ideia da grandiosidade do empreendimento, a fábrica já tinha, em 1885, uma das maiores produções anuais em metros de tecidos e consumo de algodão da província. Sua vila operária chegou a contar com cerca de 2.000 moradores. Além de casas, a vila contava com uma escola primária, correio, cartório, açougue, padaria, posto médico, pensionato para moças e rapazes, além da Igreja Sagrado Coração de Jesus. Para o lazer dos operários, foi formada uma banda de música, um time de futebol, um grupo de escoteiros e mesmo um cinema. As origens rurais da fábrica, em uma das principais regiões escravistas do país, marcou fortemente a composição do operariado local, formado em grande medida por negros e negras.

O cotidiano dos trabalhadores e a estrutura da vila operária de Marzagão foi matéria da revista Belo Horizonte em 1933. Vale a pena destacar como o controle e fiscalização das atividades de trabalho eram exercidas pelo empresário e político do Partido Republicano Mineiro, Manoel Carvalho de Brito, que adquiriu a tecelagem em 1915. Brito implementou um modelo de gestão com intenso controle e intervenção dos patrões na vida cotidiana de seus empregados e forte disciplina dentro e fora da fábrica. Segundo a revista, os moradores eram gente “simples, ordeira e trabalhadora” e a rotina do lugar era como a de outras vilas do interior, com o movimento dos trens de subúrbio, das missas, do cinema mudo e do footing.

Os cerca de mil operários e operárias de Marzagão trabalhavam das cinco da manhã, “quando um apito forte os acordavam, até que o outro apito mandava parar à tardinha”. Ainda de acordo com a reportagem, os trabalhadores locais “gozavam de todas as regalias possíveis”, todos “com ótimos salários”, mesmo antes das leis trabalhistas e criação da estrutura corporativista da Era Vargas. Além do trabalho na fábrica, havia uma escola de tecelagem anexa onde trabalhavam 50 aprendizes e cerca de 150 casas “confortáveis e espaçosas” para as famílias de trabalhadores. Havia ainda uma pensão para moças solteiras onde as operárias moravam e faziam suas refeições. Como em outras empresas têxteis do período, o trabalho de mulheres e crianças era disseminado, sendo comuns os relatos de emprego de meninas de até 10 anos. Em 1946, a população da Vila de Marzagão era de cerca de 2.400 pessoas, praticamente todos trabalhadores/as da fábrica e suas famílias.

Apesar de todo o controle empresarial, os operários e operárias de Marzagão tornaram-se um dos grupos que mais lutaram por direitos em Minas Gerais, particularmente entre o final da década de 1950 e o início dos anos 60.  O movimento operário local teve forte influência da Igreja Católica, em particular nas comissões de fábrica que se formaram na empresa de forma independente do sindicato oficial e de partidos políticos como o PCB ou o PTB.


Um exemplo  de mobilização ainda forte na memória local foi a famosa greve de mais de 30 dias realizada pelos trabalhadores, após meses sem receberem seus salários, entre dezembro de 1960 e janeiro de 1961. A “Passeata da Panela Vazia” que reuniu milhares de operários e seus familiares, que contou com um vasto apoio político e sindical, foi um dos momentos marcantes daquele movimento, tendo ampla repercussão nacional.


A vila operária e as condições de vida dos(as) trabalhadores(as) da fábrica de Marzagão não passaram despercebidas aos olhos atentos de Guimarães Rosa. A vila é cenário de “Sinhá Secada”, um dos contos do livro Tutaméia, Terceiras Estórias, de 1967. O narrador do conto leva Sinhá para “aquele intato lugar.” Empregados na fábrica, ambos moravam “numa daquelas miúdas casas pintadas, pegada uma a outra, que nem degraus da rua em ladeira, que a Sinhá descia e subia, às horas certas, devidamente, sendo a operária exemplar que houve, comparável às máquinas, polias e teares, ou com o enxuto tecido que ali se produz.”

Desde 1950, a produção de tecidos, o principal produto oferecido ao mercado pela fábrica do Marzagão, foi sendo substituída pela fabricação de lonas e cordonéis para a Indústria de Pneus Brasil, localizada no Rio de Janeiro, também de propriedade da família Carvalho de Brito. Neste momento, o empreendimento em Sabará não era mais o principal negócio do grupo empresarial e uma longa crise se abateu sobre o empreendimento. Em 1972, a indústria estava em uma situação irrecuperável e a fábrica foi vendida para o grupo Paraopeba Industrial S/A. A família Carvalho de Brito, através da empresa União Rio Empreendimentos manteve a propriedade das casas da vila operária, das quais continuava a cobrar aluguéis .

A Tecelagem, no entanto, continuou em decadência. Em 1983 os galpões da antiga fábrica foram ocupados pelas confecções Marcel Phillipe, mas cerca de 80% se encontravam vazios, sem utilização. A comunidade de moradores da vila, formada por antigos trabalhadores/as da fábrica e seus descendente sofreu, desde então um acelerado processo de empobrecimento. A Vila do Marzagão se encontra bastante descaracterizada, mas os moradores mantêm viva a memória da vida operária de tempos atrás.

O tombamento estadual do Conjunto Arquitetônico e Paisagístico da Vila Elisa, Vila Operária e Antiga Fábrica de Tecidos de Marzagão foi aprovado pelo Conselho Curador do IEPHA/MG em 2004 e colocou definitivamente toda aquela paisagem, fincada entre as montanhas de Minas, como um lugar de memória de trabalhadores e do trabalho no Brasil. Mesmo em ruínas, Marzagânia, como era chamada, continuará reverberando suas histórias de vida e de luta por direitos.

Vista do setor de teares em meados da década de 1920
Fonte: Associação dos Amigos e Moradores de Marzagão – ACAMM


Para saber mais:

  • ÁVILA, Rodrigo Pletikoszits de. “A Centralidade Do Trabalho Na Formação Social Da Vila De Marzagão“. Revista Mundos do Trabalho, vol.1, n. 1, janeiro-junho de 2009.
  • DELGADO, Lucília de Almeida Neves. LE VEN. Michel Marie. “Marzagânia: Fábrica operária e movimento sindical”. Revista Brasileira de Estudos Políticos. Belo Horizonte: UFMG, Nº 73, 1991.
  • MATEUS, Adalberto Andrade. & GUIMARAES, Silvio Tadeu. “Conjunto Arquitetônico da Vila Elise, Vila Operária e Antiga Fábrica de Tecidos de Marzagão” Guia dos Bens Tombados pelo IEPHA-MG. Volume 2. Disponível em http://www.iepha.mg.gov.br/index.php/publicacoes/guia-dos-bens-tombados/Publication/7-Guia-dos-Bens-Tombados-Volume-2
  • REVISTA BELLO HORIZONTE. “O parque industrial do Marzagão, uma grande uzina de trabalho”. Belo Horizonte, ano1, nº 6, 30 set. 1933.
  • Manoel Tomás De Carvalho Brito II – Fábrica De Tecidos Marzagão (Sabará-mg) – Sua História, Curiosidades, Fotos E Depoimentos . http://euamoipatinga.com.br/personagens/noticias.asp?codigo=847 .

Crédito da imagem de capa: Vista do Conjunto Arquitetônico nos anos 80. Fonte: IEPHA-MG.



Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

LMT#81: Fábrica de Tecidos Rio Tinto, Rio Tinto (PB) – Eltern Campina Vale



Eltern Campina Vale
Professor do Curso de História da UFAL (Campus do Sertão – Delmiro Gouveia)



Edificada entre 1917 e 1924, a Fábrica de Tecidos Rio Tinto no litoral norte da Paraíba, era filial da Companhia de Tecidos Paulista, sua matriz em Pernambuco. Fazia parte do projeto de ampliação dos negócios têxteis da família Lundgren, impulsionado por incentivos fiscais do governo paraibano. Desde sua fundação, um  intenso processo migratório e de recrutamento de mão-de-obra transformou milhares de famílias de agricultores, de variadas regiões da Paraíba e estados vizinhos, em operários e operárias regidos pela disciplina e tempo fabril. Imigrantes alemães também foram contratados como técnicos ou chefes de seções. Frederico João Lundgren capitaneava todo o processo de contratação.

A estrutura da fábrica era distribuída entre cargos e seções internas ou subsidiárias, com um corpo heterogêneo de trabalhadores e trabalhadoras, chegando a 12 mil no fim dos anos 1950. Assim como em sua matriz em Pernambuco, a fábrica exerceu enorme poder político e simbólico sobre a comunidade operária em seu entorno. Uma ampla infraestrutura urbana e equipamentos assistências foram construídos pela empresa em Rio Tinto, incluindo, entre outros escolas, hospital, um porto e uma estrada de ferro próprios e até um hipódromo.


Se a dominação empresarial extrapolava os muros da fábrica, o cotidiano da vila operária, com 2.500 casas, praças, clubes de lazer, cinema e botequins, tornou-se um espaço crucial nas relações de sociabilidade, que também forjava um forte processo de construção de uma identidade e cultura operária.


No contexto dos primeiros decretos trabalhistas do governo Getúlio Vargas, foi criado em 1932, o Sindicato dos Trabalhadores Têxteis de Rio Tinto. Seria o marco de uma tradição de lutas sindicais que duraria décadas. Na vibrante cena trabalhista no estado do início da década de 1930, o sindicato logo articulou-se com a Federação dos Trabalhadores da Paraíba e a  União Geral dos Trabalhadores da Parahyba do Norte. A imprensa sindical local, com o Jornal dos Operários, foi decisiva na consolidação da organização e identidade operária, além de denunciar os desmandos patronais. O Partido Comunista do Brasil (PCB) teve um papel fundamental neste processo. A “Célula Rio Tinto”, criada em fins de 1932 era uma das maiores do partido na Paraíba. Em 1933, no entanto, uma intensa repressão comandada pelo DOPS abateu-se sobre Rio Tinto, resultando no fechamento do sindicato, prisões e fugas.

Em 1943, o sindicato foi recriado, ficando, no entanto, sob estrito controle da direção da fábrica. João Batista Fernandes, presidente da entidade, era funcionário de inteira confiança dos Lundgren. A contenção do sindicato não significou, no entanto, ausência de lutas por direitos. No final da Segunda Guerra Mundial, as tensões entre os trabalhadores e os técnicos alemães explodiram num “quebra-quebra”, quando as casas dos chefes de seção germânicos foram depredadas. A Justiça do Trabalho foi outro meio importante usado pelos trabalhadores para reivindicar reajustes salariais, férias remuneradas, melhores condições de trabalho e a reintegração e manutenção de posse das casas da vila operária.

A vitória da chapa presidida por Antônio Fernandes nas eleições sindicais de 1960 marcaria um novo período de incremento das lutas operárias e presença dos trabalhadores no cenário público. Logo, o sindicato articulou-se à Confederação dos Trabalhadores da Paraíba e, a partir de 1962, ao Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) em nível nacional. Em abril de 1962, Rio Tinto foi a sede do Congresso Paraibano dos Trabalhadores Urbanos e Rurais. Todo esse ativismo e mobilização levaram à eleição de Antônio Fernandes (numa aliança entre o PSB, PCB e PTB) à prefeitura de Rio Tinto em 1963, desbancando o histórico  domínio empresarial na municipalidade.

O golpe militar foi bravamente enfrentado em Rio Tinto com uma greve geral decretada no dia 1 de abril de 1964. A resistência, no entanto, foi brutalmente reprimida e o  sindicato sofreu intervenção governamental. O período ditatorial, no entanto, também significou um progressivo declínio econômico, político e simbólico da fábrica e do poder dos Lundgren.

Ao longo das década de 1970 e 1980, crises externas e contendas familiares abalaram a produção da fábrica até o encerramento de suas atividades em 1990. Desde então, parte importante da resistência e luta do trabalhadores consistiu na demanda pelo pagamento de indenizações e pela permanência de moradia na vila operária. Recentemente, parte das antigas dependências da tecelagem foi  alugada à Universidade Federal da Paraíba.

No centenário do início da construção da fábrica em 2017, Nilson Lundgren, herdeiro dos fundadores, capitaneou a reativação de uma linha de produção, renomeando a tecelagem como “Rio Tinto Têxtil S/A”. A empresa ainda é proprietária de grande parte do patrimônio imobiliário da cidade e são constantes as reivindicações e lutas de ex-trabalhadores pela posse das casas da antiga vila operária. Muitos moram há mais de 60 anos nas mesmas residências. Se, mesmo passados tantos anos, um certo sentimento de “medo” da Companhia ainda persiste em Rio Tinto, também é possível perceber na memória local as “saudades do tempo do trabalho” ao lado da “saudade de convivência dos companheiros” como exemplos da solidariedade que marcou decisivamente a história dos trabalhadores e trabalhadoras de Rio Tinto.

Parte interna da tecelagem da Fábrica de Tecidos Rio Tinto em 2018.
Fonte: Acervo de Eltern Campina Vale.


Para saber mais:

  • FERNANDES, João Batista. O extinto Rio Tinto. Recife: Imprensa Universitária, 1971.
  • GÓES, Raul de. Herman Lundgren: Pioneiro do Progresso Industrial do Nordeste. Rio de Janeiro: A Noite, 1949.
  • MACÊDO, Maria Bernadete Ferreira de. Inovações Tecnológicas e Vivência Operária –O caso de Rio Tinto 1950-1970. Dissertação (Mestrado). Departamento de Economia da UFPB. João Pessoa, 1986.
  • PANET, Amélia et al. Rio Tinto: estrutura urbana, trabalho e cotidiano. João Pessoa: UNIPÊ, 2002.
  • VALE, Eltern Campina. “Operários! Uni-vos!”: experiência e formação de classe na Fábrica de Tecidos Rio Tinto (Paraíba, 1924-1945). Tese (doutorado). Universidade Federal de Pernambuco, CFCH. Programa de Pós-Graduação em História, Recife, 2018.

Crédito da imagem de capa: Tecelã em manuseio de máquina da Fábrica de Tecidos Rio Tinto na década de 1940.  Acervo Antônio Luiz, Rio Tinto.


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Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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LMT#80: Centro Municipal de Educação Adamastor, Guarulhos (SP) – Roger Camacho



Roger Camacho
Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul



A chaminé da Casimiras Adamastor se destaca na paisagem do bairro do Macedo em Guarulhos, na região metropolitana de São Paulo, podendo ser vista tanto do centro da cidade quanto da rodovia Presidente Dutra. Aquela edificação, contudo, não foi somente um local de produção, mas também um espaço de convivência, conflito e construção de laços sociais, deixando marcas não apenas no ambiente urbano, mas também na memória coletiva local.

Guarulhos se expandia no começo do século XX devido à chegada de trabalhadores estrangeiros e ao crescimento da demanda por tijolos e materiais de construção para atender às obras de urbanização de São Paulo. A cidade já contava com olarias, mas surgiam agora indústrias mecanizadas, como a Cerâmica Remy (1913), no bairro da Vila Galvão, e a Cerâmica Brasil (1923), no Macedo. Esta última foi construída onde antes havia um pomar e muito próxima ao centro, atraída, assim como a Remy, pelo Ramal Guarulhos do Trem da Cantareira, inaugurado em 1915 para agilizar o transporte de pessoas e produtos com São Paulo.

Parte expressiva dos trabalhadores da Cerâmica Brasil provavelmente era de migrantes italianos, japoneses e sírio-libaneses (bem como seus descendentes), moradores do seu entorno ou do centro da cidade (ali próximo). Tal composição étnica foi sofrendo modificações, já que Guarulhos passou de 8 mil habitantes em 1914, para cerca de 30 mil em 1945. A partir dos anos 1940 chegavam também trabalhadores nordestinos, muitos dos quais atraídos pelo incentivo à contratação de brasileiros, pelas barreiras à entrada de estrangeiros durante a Segunda Guerra Mundial.


O perfil industrial da cidade também vinha mudando, fazendo com que os setores metalúrgicos, químicos, entre outros, passassem a predominar, transformando Guarulhos em um dos principais polos industriais do país na década de 1950.


Se as indústrias têxteis e alimentícias predominavam nas décadas de 1910 e 1920 (4 edificações de 6 abertas no período), a metal-mecânica passou a ser a maioria das novas instalações (5 de 8 entre 1930 e 1945). A inauguração da Cidade Satélite Industrial de Cumbica (1945) e a abertura da Rodovia Presidente Dutra (1951) contribuíram para essa transformação. Em meio a esse processo, a Cerâmica Brasil foi desativada e transformada numa tecelagem: a Casimiras Adamastor (1946), iniciando suas atividades com cerca de 400 trabalhadores (as). O trabalho feminino, expressivo na nova indústria, permanece na memória local: “Não tinha menina desempregada, todas trabalhavam no Adamastor! ” relembra Eva dos Santos ao programa “Relatos da Memória”, da Prefeitura Municipal de Guarulhos.

No entorno da Casimiras Adamastor havia lojas, uma igreja (a Capela Bom Jesus) e um conjunto de casas destinadas a abrigar seus operários, o que se manteve nas lembranças de quem conviveu com a fábrica. Nadir Aparecida da Silva, por exemplo, fala que sua casa ficava dentro do terreno da tecelagem e que passou sua infância brincando naquele salão, pois seu pai trabalhava ali. As moradias erguidas pela fábrica foram demolidas para a construção de uma ponte estaiada em 2006.

Guarulhos contava com mais de 500 mil habitantes quando a Adamastor foi desativada em 1980. O encerramento de suas atividades foi decorrente de um processo de êxodo fabril iniciado nos anos 1970 com a supressão de incentivos fiscais e a inauguração da Zona Franca de Manaus (1967). A tecelagem acabou sendo transformada em uma loja de estofados e depois numa pista de kart. Desgastada e abandonada, ela foi tombada por decreto municipal (2000), desapropriada (2001) e se tornou um Centro Cultural em 2003. Um dos motivos para a sua preservação foi o fato de ser a última fábrica com uma chaminé de tijolos nos arredores do centro. Havia também a preocupação da gestão Elói Pietá (PT) em fomentar a cultura e a memória operárias guarulhenses.

Algumas pessoas (em sua maioria mulheres) acompanharam as obras daquilo que viria a ser o Centro Municipal de Educação e falaram bastante do contramestre e dos chefes, lembrados como autoritários, pois proibiam as conversas durante o expediente e vira e mexe descumpriam a promessa de recompensas pelo excedente de trabalho. Lucília Rita de Sá chegou a dizer que o espaço parecia uma prisão. Maria Falabela recordou que se escondia em caixotes posicionados perto das máquinas para contrariar a vontade de seus patrões, reduzindo propositalmente a produção do dia. Ela disse também que havia poucos homens dentre os trabalhadores e que aqueles presentes eram mais velhos, fazendo com que a busca por namorados fosse uma tarefa hercúlea.

O Centro Cultural ainda passou por uma ampliação e atualmente abriga o Arquivo Histórico Municipal, um teatro, uma biblioteca e um centro de convenções. O Adamastor é o principal espaço de cultura da cidade, pois, dentre os demais, é aquele que reúne o maior número de eventos e atividades, além de sediar a Secretaria Municipal de Cultura em um anexo. Ao olhar para a chaminé da antiga cerâmica/tecelagem remetemos a um passado operário, além das lembranças compartilhadas entre aquelas (es) que trabalharam, riram e choraram naquele local.

Casimiras Adamastor , década de 1950.
Fotografia de  Massami Kishi, Arquivo Histórico Municipal de Guarulhos SP.


Para saber mais:

  • AZEVEDO, Mikael. “Adamastor: fábrica de casimiras se transformou em centro cultural.” Patrimônio Cultural – Associação Amigos do Patrimônio e Arquivo Histórico (AAPAH), Arquivo Histórico Municipal de Guarulhos. nº 1, 2016.
  • BARRERO JUNIOR, Roger Camacho; LANZELLOTTI, Tuanny Folieni Antunes; SANTANA, Alessandra Silva de; SILVA, Giorgia Burattini Saad Medeiros; SILVA, Wagner Pereira. “Em torno da ferrovia e da rodovia: o processo de industrialização de Guarulhos e seu patrimônio industrial (1910-1960).” In: BORGES, Augusto César Maurício; OMAR, Elmi El Hage (orgs.). Signos e significados em Guarulhos: identidade, urbanização e exclusão. São Paulo: Navegar, 2014.
  • SALES, Telma Bessa. Patrimônio industrial: palavras, imagens e práticas. Historiar, vol. 7, n. 13, 2015.
  • TOLEDO, Edilene Teresinha. “Guarulhos, cidade industrial: aspectos da história e do patrimônio da industrialização num município da Grande São Paulo.” Revista Mundos do Trabalho, vol. 3, n. 5, 2011.
  • PREFEITURA de Guarulhos. Relatos da memória. Youtube. Canal Guarulhos Tem. Teatro Adamastor (9 m 57 s). Postagem: 28 de maio de 2007. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=HzOKDVdveAc  

Crédito da imagem de capa: Centro de Educação Municipal Adamastror. Fotografia de Roger Camacho, 14/12/2020.


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A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

Vale Mais #11 – Trabalhadores livres e escravizados



Vale Mais é o podcast do Laboratório de Estudos de História dos Mundos do Trabalho da UFRJ, que tem como objetivo discutir história, trabalho e sociedade, refletindo sobre temas contemporâneos a partir da história social do trabalho.

O episódio #11 do Vale Mais é sobre Trabalhadores livres e escravizados. 


Este é o terceiro episódio da segunda temporada de Vale Mais, o podcast do site do LEHMT-UFRJ. Nesta temporada, conversamos com recém doutores/as no campo da História Social do Trabalho sobre seus temas de pesquisa e processos de elaboração de suas teses. Neste episódio, entrevistamos Rute Andrade Castro, professora da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e de Educação de Jovens e Adultos (EJA) em Salvador. Em agosto de 2020, Rute defendeu a tese “Mundos do trabalho no seu fazer-se. Britânicos, livres, libertos e escravizados (Brasil, 1880-1905)”, sob orientação de Antonio Luigi Negro, no Programa de Pós-Graduação em História Social da UFBA. Por meio de fontes produzidas por britânicos em território brasileiro, a pesquisa analisou as discussões em torno do trabalho escravizado e “livre” entre os fins do século XIX e início do XX, abordando relações de trabalho pouco conhecidas e abordadas pela historiografia. Rute enfatiza a diversidade de sujeitos que compõem os mundos do trabalho, em particular nas regiões rurais do Nordeste brasileiro, e mostra a relevância de pesquisas que mobilizam perspectivas transnacionais na análise da história social do trabalho.

Produção: Heliene Nagasava e Larissa Farias 
Roteiro: Heliene Nagasava e Larissa Farias 
Apresentação: Larissa Farias 



Vale Mais #30: A cultura de luta antirracista e o movimento negro do século 21, por Thayara Lima Vale Mais

Nesta temporada, convidamos pesquisadoras e pesquisadores para discutir projetos, livros e teses recentes que aprofundam debates interdisciplinares sobre os mundos do trabalho. No terceiro episódio, conversamos com Thayara de Lima, doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autora do livro A cultura de luta antirracista e o movimento negro do […]
  1. Vale Mais #30: A cultura de luta antirracista e o movimento negro do século 21, por Thayara Lima
  2. Vale Mais #29: The Second World War and the Rise of Mass Nationalism in Brazil, por Alexandre Fortes
  3. Vale Mais #28: O poder e a escravidão, por Bruna Portella e Felipe Azevedo
  4. Vale a Dica #14: Orgulho e Esperança, de Matthew Warchus
  5. Vale a Dica #13: 2 de Julho: a Retomada, de Spency Pimentel e Joana Moncau

Chão de Escola #12: O trabalho na economia canavieira e a questão indígena



Professor Adauto Santos da Rocha (PPHR-UFRRJ; GPHIAL-UNEAL)



Apresentação da atividade

Segmento: 9º Ano do Ensino Fundamental; 1º, 2° e 3° Ano do Ensino Médio

Objetivos gerais:

– Compreender a exploração da mão de obra indígena no mundo do trabalho;
– Refletir sobre o esbulho territorial e avanço das plantações de cana-de-açúcar no antigo aldeamento do Cocal, território Wassú-Cocal em Joaquim Gomes-AL, e na utilização da mão de obra Xukuru-Kariri, habitantes em Palmeira dos Índios-AL, para o corte de cana.  

Habilidades a serem desenvolvidas (de acordo com a BNCC)

(EM13CHS401) Identificar e analisar as relações entre sujeitos, grupos, classes sociais e sociedades com culturas distintas diante das transformações técnicas, tecnológicas e informacionais e das novas formas de trabalho ao longo do tempo, em diferentes espaços (urbanos e rurais) e contextos.

(EM13CHS402) Analisar e comparar indicadores de emprego, trabalho e renda em diferentes espaços, escalas e tempos, associando-os a processos de estratificação e desigualdade socioeconômica.

(EM13CHS404) Identificar e discutir os múltiplos aspectos do trabalho em diferentes circunstâncias e contextos históricos e/ou geográficos e seus efeitos sobre as gerações, em especial, os jovens, levando em consideração, na atualidade, as transformações técnicas, tecnológicas e informacionais.

(EM13CHS502) Analisar situações da vida cotidiana (estilos de vida, valores, condutas etc.), desnaturalizando e problematizando formas de desigualdade e preconceito, e propor ações que promovam os Direitos Humanos, a solidariedade e o respeito às diferenças e às escolhas individuais.

Duração da atividade: 

Aulas (50 minutos)Planejamento
01Etapa 1 e 2
02Etapa 3
03Etapa 4
04Etapa 5

Conhecimentos prévios:

– Conceituação sobre trabalho, direitos e expansão capitalista no mundo rural no século XX.
– Contextualização acerca do trabalho indígena na ocupação do território brasileiro.

Atividade

Recursos: projetor; som; fotocópias.

Etapa 1: Essa etapa apresenta a exploração da cana-de-açúcar no estado de Alagoas e questiona a forma como os estudantes imaginam os trabalhadores rurais. No roteiro de perguntas, os estudantes são estimulados a imaginar a desigualdade na estrutura fundiária e relacioná-la com o latifúndio dos usineiros. Sugere-se ao professor que indique os Textos 1 e 2 para leitura e realização de atividade em casa, e, em sala de aula, faça uma leitura coletiva dos dois fragmentos e corrija as respostas dos estudantes, preparando a realização da Etapa 2

Texto 1

No estado do Alagoas, o cultivo da cana de açúcar iniciou-se no século XVI, no processo de colonização portuguesa no Brasil. Na década de 1950, ganhou novo impulso na região do agreste até o litoral. No livro Cana, casa e poder (2009), no qual, Cícero Ferreira de Albuquerque, sociólogo e professor da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), é enfático ao expor a extrema desigualdade fundiária no estado:

A presença da cana é tão preponderante em Alagoas que ainda hoje parece impossível pensar o estado sem ela. Mesmo nos momentos de crise dessa atividade não se buscam com firmeza alternativas econômicas para substituí-la. A cana tem um doce que cativa. Mais de 60% das terras de Alagoas concentram-se nas mãos de 3% de proprietários, enquanto cerca de 40% das terras pertencem a quase 97% de pequenos e médios proprietários. Na zona canavieira, o domínio é do latifúndio. A concentração de terras é a matriz da pobreza e das perversas condições de vida a que estão submetidas as maiores parcelas da população local.

Fonte: ALBUQUERQUE, Cícero Ferreira de. Cana, casa e poder. Maceió: EdUFAL, 2009. p.29; 37. Adaptado.

Texto 2

Lúcio Veçorsa, pesquisador da Universidade Federal de São Carlos, analisou as condições de trabalho no cultivo da cana de açúcar nas usinas em Alagoas (AL). Em reportagem para a Revista Fapesp explicou o processo de exploração da força de trabalho na região:

Em Alagoas, desde os anos 1950, a cana-de-açúcar é explorada nas zonas dos tabuleiros, do agreste até o litoral. A região alcança até 200 metros de altitude e inclina-se de forma abrupta em direção ao mar. “A produtividade por hectare é mais baixa, já que o solo é menos fértil – o Estado planta cana desde o século 16 – e poucas usinas adotaram a mecanização, algumas em razão da topografia”, afirma Verçoza.
A baixa produtividade é, em parte, compensada pela “superexploração” do trabalho. “Os safristas selecionados devem ser dotados de habilidade e resistência física máxima para atingir as metas fixadas pelo capital agroindustrial”, afirma Verçoza. Entre essas habilidades está “agarrar com um dos braços a touceira de cana, ao mesmo tempo em que se agacha e, com o outro braço, golpeia com o podão* para cortar a cana o mais rente possível do solo; depois é preciso se erguer e carregar a cana cortada até o centro do eito”. E isso tudo em meio à fuligem e um calor “inimaginável”.
O salário é calculado por tonelada de cana que cada trabalhador corta diariamente. Esse cálculo tem como base a quantidade de cana cortada (…). “Eles ganham R$ 6,72 por tonelada cortada”, diz Verçoza. (…)
Para alcançar o máximo de produtividade, as usinas ainda adotam um sistema de premiação – cestas básicas, bicicletas, fogões e rádio – que alimenta a competição entre os cortadores de cana e se traduz em mais esforço no trabalho. “Isso sem falar dos roubos na pesagem da cana, o que rebaixa ainda mais os salários.

Fonte: Os homens-cangurus do interior do Alagoas. Disponível em: Fonte: http://agencia.fapesp.br/os-homens-cangurus-dos-canaviais-de-alagoas/24099/ Acesso em 28/04/2020. Adaptado.

*Podão: Instrumento de metal e madeira com uma longa e espessa lâmina, utilizado para o corte de cana. Também conhecido como: facão, foice, “foiçita”, etc.

Leia os textos 1 e 2, e responda as perguntas abaixo:

  1. Descreva a estrutura fundiária do estado de Alagoas.
  2. A produção de cana-de-açúcar ocupa expressiva áreas do agreste ao litoral do estado, localidade com baixa produtividade do solo. Como os usineiros compensam a baixa produtividade canavieira?
  3. Cite e explique três estratégias para a exploração do trabalhador rural na economia canavieira.


Etapa 2: Ainda durante a aula 1, sugere-se a divisão da sala em duplas ou trios. Os Textos 1 e 2 discutem as condições do trabalho rural na economia canavieira, sem abordar a forma como a cana-de-açúcar afeta os povos indígenas. Nessa etapa, o professor deve estimular os estudantes a relacionar o trabalho agrícola e a condição de vida do indígena no estado.
Para realizar essa tarefa, leia coletivamente o Texto 3 e desafie o estudante a propor hipóteses sobre quem seria e como vive o trabalhador abaixo. Ao final das hipóteses dos estudantes, explique que o relato é de um indígena da Aldeia Fazenda Canto, em Palmeira dos Índios, município interiorano de Alagoras.

Texto 3

No verão, as roças aqui eram naquela serra ali, aí meu pai não tinha […] a gente trabalhava para o fazendeiro, ganhava um trocadinho, a diário do fazendeiro era muito barata aqui, e lá na usina eu ganhava uma diarinha maior, aí eu ia né?! Até quando eu me casei, que eu tinha dezenove anos, eu ainda fui uns dois anos, em setenta e cinco foi que eu deixei, que fui trabalhar de fichado em usina.

 Fonte: Entrevistado: Sebastião Cosme de Oliveira, “Basto Cosme” [65 anos]. Entrevistador: Adauto Santos da Rocha. Aldeia Fazenda Canto, Palmeira dos Índios, AL, 09 fev. 2019. Adaptado

Discuta em dupla ou trio e escreva uma pequena síntese sobre as seguintes questões:

  1. Como você imagina um indígena?
  2. Você consegue imaginar o indígena como um trabalhador rural?  Justifique.
  3. Como a indústria canavieira pode afetar os povos indígenas?

Etapa 3: Apresente em sala os Textos 4 e 5, e o mapa 1 e discuta sobre como a vida da etnia Wassu-cocal é afetada pela economia canavieira. Abaixo, há perguntas para direcionar o debate e a discussão.

Mapa 1 – Terra Indígena (TI) Wassu-Cocal, no estado de Alagoas (AL)

Fonte: GRISOLIA, Lucas Guimarães. Mapa Terra Indígena Wassú Cocal. apud FUNAI. Brasília: Boletin Informativo CGGAM, n. 4, 2019. p. 3 Adaptado

Texto 4

Em 1979, o professor Clóvis Antunes escreveu um relatório intitulado Etnografia do Brasil: estudo das Aldeias Indígenas de Alagoas. Ele descobriu um grupo remanescente da antiga Aldeia Cocal, no norte do estado de Alagoas (ver Mapa 1). O texto foi escrito para a FUNAI, órgão da política indigenista criado em 1967 e que continua a existir nos dias de hoje. No documento, o mencionado professor descreveu:

Tendo tido notícia de que havia um grupo humano provavelmente de remascente indígenas no lugar denominado Cocal, situado no município de Joaquim Gomes, Estado de Alagoas, fiz uma visita de reconhecimento, dia 18 de setembro de 1978. Constatei pelas informações colhidas com as famílias em entrevista que:

  1. Os habitantes de Cocal afirmam que são descendentes de índios da antiga aldeia, denominada Aldeia Cocal.
  2. Receberam “nos tempos antigos do Imperador quatro léguas de terras como doação pela participação na Guerra do Paraguai, que lhes foram aos poucos usurpada pela população branca”. Hoje, estão completamente ilhados pelo latifundiário dos canaviais, possuindo tão somente uma meia légua de terra.
  3. A população chega a 80 famílias, num total de 300 a 400 pessoas.

Fonte: Jornal de Notícias. Maceió, 03/1979, ano I, nº 3, p. 4. Disponível no acervo do Grupo de Pesquisas em História Indígena de Alagoas (GPHIAL). Adaptado

Texto 5

Os estudiosos, no entanto, são unânimes em afirmar que após o assentamento dos Wassu-Cocal naquelas terras teve início um processo sistemático de invasão por parte dos grandes proprietários rurais, plantadores de cana-de-açúcar. As terras férteis e irrigadas por diversos rios acirraram os conflitos entre índios e fazendeiros (…) Boa parte do sustento econômico das famílias vem do trabalho no corte de cana nas usinas de cana-de-açúcar que circundam a terra indígena.

Fonte: PEREIRA, Jéssika Danielle dos Santos. A educação escolar indígena entre os Wassu-Cocal: algumas pistas sobre a concepção da educação escolar a partir de seus professores. Maceió: UFAL, 2014 (Dissertação Mestrado em Educação). p.59; 62.

Após a leitura dos fragmentos e do texto 4 e 5, responda:

  1. Quem são o povo Wassú-Cocal?
  2. Observe o mapa e também pesquise na internet (ver site: Terras Indígenas no Brasil. Disponível em: https://terrasindigenas.org.br. Acesso 21/05/2021), e identifique os vários municípios que fazem fronteira com o território Wassu-Cocal.
  3. Como os Wassu-Cocal se relacionam com as plantações de cana na área próxima das terras indígenas?
  4. Os indígenas são cortadores de cana nos territórios que lhes pertencem e que foram invadidos pelos usineiros. É possível afirmar que o reconhecimento das terras indígenas coloca em xeque a estrutura latifundiária no estado de Alagoas? Justifique.

Etapa 4: Agora, leiamos os recortes de entrevistas realizadas com indígenas Xukuru-Kariri habitantes no município Palmeira dos Índios, Semiárido/Agreste alagoano. O território indígena foi reconhecido pelo Estado em 1952, passando a ser denominado de Aldeia Fazenda Canto, uma terra indígena demarcada que se encontrava em disputa com os latifundiários da região.
Sugira que os/as alunos/as leiam criticamente os recortes de entrevistas e analisem o mapa, atentando-se para os detalhes sobre as discussões fundiárias e o uso da mão de obra indígena Xukuru-Kariri na zona canavieira alagoana. Não devamos esquecer que são narrativas e memórias de trabalhadores que atuaram em diversas funções nos complexos canavieiros em Alagoas: cultivo; corte; transporte; pesagem e moenda de canas.
Utilize o Mapa 2 para identificar onde Palmeida dos Índios está geograficamente localizada, levando em conta as rotas de deslocamentos dos indígenas para a zona canavieira. 

Entrevista 01

Teve um tempo que eu tive uma necessidade maior aí saí daqui, trabalhei ali na usina Coruripe, trabalhei 3 meses, aí queriam me botar em um serviço muito perigoso, eu não quis, saí e voltei pra cá de novo. (…)Usina é bom, usina tem todo tipo de serviço, depende da função do cabra que trabalha, sabe? Porque tem tanta coisa que não dá nem para o cabra explicar dentro de um usina como é. Aí o cara disse: “olha Sebastião, você vai trabalhar 24 horas debaixo dessa esteira”, eu digo: não, quero nada. Eu trabalhava em todo serviço dentro da usina, era juntando taco de pau para encher carroção, era juntando caco de tijolo, tudo no mundo, serviço geral. Eu fui trabalhar na usina, rapaz, porque tem hora que a gente que trabalha assim no campo, tem hora que a gente acha, mas tem hora que o ganho é muito pouco, aí a gente tem que partir pra um canto, vê se arruma uma coisinha mais aumentada

Fonte: Entrevistado: Sebastião Ricardo da Silva, “Dato” [62 anos]. Entrevistador: Adauto Santos da Rocha. Aldeia Fazenda Canto, Palmeira dos Índios, AL, 06 fev. 2019.

Entrevista 02

Trabalhei no corte de cana, trabalhei um tempo, rapaz, na usina Ouricuri, trabalhava com uma turma daqui. Na usina todo ano eu ia, um mês, dois, e voltava, não ia mais. Às vezes […] a gente pegava um cabra ruimm um empeleiteiro* ruim infeliz para não pagar o povo, o cabra duro, ali tem cabra matador de gente. Às vezes o cara não recebia nem o dinheiro, corria e vinha simbora, para não morrer. Todo ano a gente ia, todo ano, passava um mês, dois, três e voltava. Todo ano a gente ia, trabalhava no inverno aqui quando terminava a safra da gente aí, ia ao corte de cana no “Sul”, era todo ano essa brincadeira. Eu fui para Camaçari, trabalhamos na Camaçari trabalhamos na Uruba, não tinha canto não, Uruba, Camaçari, trabalhamos na Utinga, trabalhamos naquela usina que tem perto de Cajueiro, trabalhei em um bocado de canto, não tinha canto não para trabalhar na usina, agora tudo des-fichado, sem ganhar nada, só trabalhava mesmo para ganhar… Essas usinas para cortar cana não ficham ninguém, você cortava no móio*. o empeleiteiro já ganha do usineiros, aí ele fazia aquela empeleitada com usineiros aí pega um bocado de homem e leva para lá, chega lá já vai para o barracão dele, ele já leva aquilo ali mode prender o cara lá naquele barracão, tudo caro pela hora da morte, você tem que comprar que tá lá, senão morre de fome agora se você fosse sabendo não, que nem eu quando ia mais a minha família – que foi eu e o meu sogro, […] aí nós comprava o peixe, comprava farinha, comprava o feijão de passara semana, quando era no fim da semana…”.

Fonte: Entrevistado: Francisco Félix da Silva, “Chico Aleixo” [63 anos]. Entrevistador: Adauto Santos da Rocha. Aldeia Fazenda Canto, Palmeira dos Índios, AL, 05 fev. 2019.

*Empreiteiro, “gato” ou turmeiro: trabalhador de confiança dos usineiros, designado para selecionar, organizar turmas de trabalhadores e efetuar os pagamentos pelos serviços prestados. 
*Móio: conjunto de canas cortadas que seriam medidas ou pesadas pelos cabos de turma a fim de efetuarem os pagamentos aos cortadores.
*Caba: expressão utilizada pelos indígenas para se auto referirem como trabalhadores resistentes à insolação e intempéries climáticas, sobretudo, em atividades rurais. Possíveis sinônimos da expressão evidenciados nas pesquisas foram “pinhão” e “cabra”.

Mapa – Os principais destinos Xukuru-Kariri na lavoura canavieira em Alagoas 

Fonte: Datum SIRGAS 2000; Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Autoria: Adauto Santos da Rocha, 2020 a.

Os Xukuru-Kariri realizavam trabalhos sanzonais na Zona da Mata de Alagoas. Leia as entrevistas, analise o mapa e responda as questões:

  1. Identifique o município de origem dos Xukuru-Kariri e o município de destino para o trabalho sanzonal agrícola.
  2. Por que os Xukuru-Kariri migravam para a Zona da Mata de Alagoas?
  3. Descreva as estratégias que os usineiros usavam para explorar a mão de obra Xukuru-Kariri.
  4. Estabeleça uma relação entre o trabalho dos povos Xukuru-Kariri e Wassú-Cocal na lavoura canavieira.

Etapa 5: Como conclusão da atividade apresente o documentário “À sombra de um delírio verde”, produzido por An Baccaert, Cristiano Navarro e Nicolas Muñoz, que mostra a situação do povo Guaraní Kaiwá no Mato Grosso do Sul, diante do avanço do cultivo da cana-de-açúcar.

Faça um debate sobre o documentário após verem o vídeo, discutindo em que medida o problema enfrentando pelos povos Wassú-Cocal e Xukuru-Kariri é uma questão nacional. 
Como atividade síntese da sequência didática, peça que os estudantes escrevam uma reportagem que seria publicada em um jornal, a partir do comando abaixo.
Escreva uma reportagem relacionando as condições de trabalho no universo canavieiro alagoano com o debate acerca da questão indígena no país.


Bibliografia e Material de apoio:

ALBUQUERQUE, Cícero Ferreira de. Cana, casa e poder. Maceió: EdUFAL, 2009.
COSTA, Tiago Sandes. Conflitos e lutas de classe na organização do espaço agrário alagoano. In: XXI Encontro Nacional de Geografia Agrária: “Territórios em disputa: os desafios da geografia agrária nas contradições do desenvolvimento brasileiro”, 2012, Uberlândia, p. 1-10.
COVER, Maciel. O tranco da roça e a vida no barraco: um estudo sobre os trabalhadores migrantes no setor do agronegócio canavieiro. João Pessoa: EdUFPB, 2011.
D’INCAO, Maria Conceição. O “bóia-fria”: acumulação e miséria. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1983.
FERREIRA FILHO, Marcelo Marques. Arquitetura espacial da plantation açucareira no Nordeste do Brasil (Pernambuco, século XX). Recife: UFPE, 2016 (Tese Doutorado em História).
FUNAI. Gestão Ambiental e Sustentabilidade nas Terras Indígenas da Caatinga. Boletin Informativo CGGAM, Brasília, n.4, 2019. Disponível em: https://www.gov.br/funai/pt-br/arquivos/conteudo/cggam/pdf/2019/ti-wassu-cocal-versao-final.pdf. Acesso em 21/05/2021.
GRISOLIA, Lucas Guimarães. Mapa Terra Indígena Wassú Cocal. apud FUNAI. Brasília: Boletin Informativo CGGAM, n. 4, 2019.
MENEZES, Marilda Aparecida de. Redes e enredos nas trilhas dos migrantes: um estudo de famílias de camponeses-migrantes. João Pessoa: EdUFPB, 2002.
PEREIRA, Jéssika Danielle dos Santos. A educação escolar indígena entre os Wassu-Cocal: algumas pistas sobre a concepção da educação escolar a partir de seus professores. Maceió: UFAL, 2014 (Dissertação Mestrado em Educação).
ROCHA, Adauto Santos da. “Pro giro do ‘Sul’”: indígenas Xukuru-Kariri trabalhando na lavoura canavieira em Alagoas (1952-1990). In: Revista História Oral. N° 2, vol. 23, jul./dez. 2020a, p. 91-111.
ROCHA, Adauto Santos da. Xukuru-Kariri: migrações, cotidiano e dimensões do trabalho indígena em Alagoas e no Sudeste do país (1952-1990). Maceió: Editora Olyver, 2020b. 
SILVA, Edson. Xukuru: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá (Pesqueira/PE), 1950 – 1988. Recife: EdUFPE, 2017.


Crédito da imagem de capa:  Montagem com a fotografia do indígena Xukuru-Kariri Sebastião Cosme de Oliveira com o fundo canavieiro, realizada por Vínicius Alves de Mendonça.


Chão de Escola

Nos últimos anos, novos estudos acadêmicos têm ampliado significativamente o escopo e interesses da História Social do Trabalho. De um lado, temas clássicos desse campo de estudos como sindicatos, greves e a relação dos trabalhadores com a política e o Estado ganharam novos olhares e perspectivas. De outro, os novos estudos alargaram as temáticas, a cronologia e a geografia da história do trabalho, incorporando questões de gênero, raça, trabalho não remunerado, trabalhadores e trabalhadoras de diferentes categorias e até mesmo desempregados no centro da análise e discussão sobre a trajetória dos mundos do trabalho no Brasil.
Esses avanços de pesquisa, no entanto, raramente têm sido incorporados aos livros didáticos e à rotina das professoras e professores em sala de aula. A proposta da seção Chão de Escola é justamente aproximar as pesquisas acadêmicas do campo da história social do trabalho com as práticas e discussões do ensino de História. A cada nova edição, publicaremos uma proposta de atividade didática tendo como eixo norteador algum tema relacionado às novas pesquisas da História Social do Trabalho para ser desenvolvida com estudantes da educação básica. Junto a cada atividade, indicaremos textos, vídeos, imagens e links que aprofundem o tema e auxiliem ao docente a programar a sua aula. Além disso, a seção trará divulgação de artigos, entrevistas, teses e outros materiais que dialoguem com o ensino de história e mundos do trabalho.

A seção Chão de Escola é coordenada por Claudiane Torres, Luciana Pucu Wollmann do Amaral e Samuel Oliveira

LMT#79: Armação da Piedade, Governador Celso Ramos (SC)- Beatriz Mamigonian



Beatriz Mamigonian
Professora do Departamento de História da UFSC



A capela dedicada a Nossa Senhora da Piedade é a única construção remanescente do que foi o primeiro e mais importante complexo fabril voltado para o processamento do óleo e de outros derivados de baleia no litoral de Santa Catarina, no período colonial. Localizado no atual município de Governador Celso Ramos, hoje o espaço da antiga Armação da Piedade é ocupado por famílias de trabalhadores do mar e casas de veraneio, além de uma marina para embarcações de luxo. Não há qualquer placa ou indicação de que lá trabalharam e viveram centenas de africanos e africanas escravizados, assim como dezenas de pessoas livres, administrados pelos detentores do monopólio da pesca de baleias. 

A Armação da Piedade foi instalada em 1746, no contexto do projeto da coroa portuguesa de ocupação do litoral de Santa Catarina. Ele envolveu a elevação desse território a capitania, a construção de fortificações que protegessem a Ilha de Santa Catarina de invasões estrangeiras, o incentivo à fixação de colonos, com a promoção do transporte de casais vindos das ilhas dos Açores e da Madeira e a concessão de um contrato para exploração da atividade baleeira. Das baleias eram extraídos sobretudo o óleo e o espermacete, que tinham valor comercial. O primeiro, como combustível para iluminação, fundamental até a difusão do querosene; e o segundo, um líquido ceroso com muitas aplicações como lubrificante e fármaco. Nas localidades, aproveitava-se também a carne, como fonte de proteína.

A Armação da Piedade foi a pioneira das unidades baleeiras do litoral sul. Até então, a pesca e o beneficiamento das baleias ocorriam na Bahia, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Estabelecida e administrada por meio de sucessivos contratos de concessão de monopólio sobre a pesca das baleias, a Piedade serviu de “matriz” para a fundação de outras: a Armação da Lagoinha (situada na Ilha de Santa Catarina), em 1772; a Armação de Itapocorói  (1778); a Armação de Garopaba (1794),  de Imbituba (1795) e a Armação da Ilha da Graça, próxima a São Francisco do Sul, em 1807. Elas funcionaram sob a administração dos contratantes particulares até o fim do monopólio sobre a pesca das baleias em 1801; depois passaram à Fazenda Real e foram desativadas após a independência, incorporadas aos “próprios nacionais” e vendidas. Apenas o terreno da Armação da Piedade manteve-se como propriedade do Estado, e serviu como colônia de imigrantes alemães na década de 1840. Tudo indica que as pessoas escravizadas acompanharam os bens das armações quando foram vendidos; mais pesquisa, no entanto, poderá responder se algumas foram alforriadas, se permaneceram na mesma região ou se tiveram a chance de tornar-se pequenos produtores agrícolas, ou pescadores autônomos.

O complexo da Armação da Piedade englobava as atividades fabris e as de reprodução da vida cotidiana, como a produção de alimentos. O espaço era situado em uma ponta de difícil acesso por terra e relativamente protegido pela Fortaleza de Santa Cruz de Anhatomirim para quem chegasse pelo mar. Contava com uma casa grande para o administrador, uma “casa da fábrica” onde era derretido o óleo das baleias, três casas de tanques, uma casa para o capelão, uma ferraria, uma “casa do hospital e botica”, residência para os feitores e pescadores livres e duas senzalas em quadra para os escravos solteiros, além de outra com divisórias de tijolos destinada aos escravos casados e suas famílias. Havia também um sítio com roças, pomar e engenho, onde era produzida parte da farinha de mandioca que alimentava os trabalhadores. Na capela dedicada à Nossa Senhora da Piedade foram batizados africanos trazidos jovens e adultos, e depois seus filhos e netos. No cemitério adjacente, foram enterrados os trabalhadores e trabalhadoras falecidos, acometidos por doenças traumáticas, fisiológicas ou infecciosas.


Os trabalhadores livres e escravizados partilhavam tarefas no mar e em terra, caçando as baleias, encalhando-as na praia para cortá-las e fritando os nacos de carne para extrair o óleo. Uma parte deles – possivelmente as mulheres, os idosos e as crianças escravizados – ocupavam-se da produção e preparação de alimentos.


Um inventário da Armação da Piedade de 1816 registra que nela trabalhavam 137 homens, 14 mulheres e 16 menores escravizados, dentre os quais 92 homens e 3 mulheres eram africanos. Entre eles estavam Vicente Angola, de 62 anos e aleijado de uma perna, Miguel Benguela, que havia sido gancheiro mas estava “decrépito” aos 58 anos e Domingos Benguela, pescador, de 79 anos, também inativo. Haviam sido trazidos à Piedade ainda na segunda metade do século XVIII. Entre os ativos havia Domingos Mina, de 57 anos, cortador de praia, e Domingos Magumbe, de 63 anos, que exercia talvez a mais importante das profissões da armação: era mestre de azeite. A hierarquia das ocupações e a distribuição de sexo e idade leva a comparar a comunidade de trabalhadores da Armação da Piedade com a das plantations de açúcar ou café de outras regiões escravistas, que tinham trabalhadores escravizados especializados e reuniam gerações na senzala.

A Armação da Piedade é mais um importante exemplo da presença de africanos e africanas na história de Santa Catarina. Esse lugar de memória desafia a narrativa racista que exalta a exclusividade da origem europeia da população do estado. Ele nos faz refletir sobre a fundamental importância dos negros e da diversidade étnica nos processos de formação da classe trabalhadora em Santa Catarina e no Brasil.

Não foram localizados registros de imagens da Armação de Piedade nos séculos XVIII e XIX, mas essa aquarela da Armação de Garopaba também no litoral de Santa Catarina, pintada por J.B. Debret em 1828, nos dá uma noção da paisagem das armações baleeiras.
Reprodução da aquarela de Debret fotografadas por Horst Merkel a partir do original localizado no Museu Raymundo Ottoni de Castro Maya no Rio de Janeiro.


Para saber mais:

  • Arquivo Nacional (RJ). Junta do Comércio, Real Administração da Pesca das Baleias. Caixa 360. Inventário da Armação da Piedade, 1816-1820.
  • Arquivo Histórico Eclesiástico de Santa Catarina, Livro de Batizados de São Miguel (Armação da Piedade) – 1815-1826; Livro de Óbitos, São Miguel – 1815-1826;
  • ELLIS, Myriam. A baleia no Brasil colonial. São Paulo: Melhoramentos/Edusp, 1969.
  • ZIMMERMANN, Fernanda. De armação baleeira a engenhos de farinha: fortuna e escravidão em São Miguel da Terra Firme, SC (1800-1860), Dissertação de Mestrado em História, Universidade Federal de Santa Catarina, 2011.

Crédito da imagem de capa: Igreja da Nossa Senhora da Piedade em Governador Celso Ramos. Acervo repositório institucional da UFSC. Fotografia de Eduardo Marques (2006)


MAPA INTERATIVO

Navegue pela geolocalização dos Lugares de Memória dos Trabalhadores e leia os outros artigos:


Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

3º Encontro Internacional – REDE DE PROCESSOS REPRESSIVOS, EMPRESAS, TRABALHADORAS/ES E SINDICATOS NA AMÉRICA LATINA

3º Encontro Internacional – REDE DE PROCESSOS REPRESSIVOS, EMPRESAS, TRABALHADORAS/ES E SINDICATOS NA AMÉRICA LATINA, da PUC-Rio, irá se realizar entre os dias 27 e 28 de maio de 2021. O coordenador do LEHMT-UFRJ, Paulo Fontes, integra o comitê científico do evento.

Segue programação do Encontro:

27 DE MAIO – 10:00 – 12:30 HS

GRANDES CORPORAÇÕES E AS DITADURAS NA AMÉRICA LATINA: APRESENTAÇÃO E DEBATE DO LIVRO BIG BUSINESS AND DICTATORSHIPS IN LATIN AMERICA: A TRANSNATIONAL HISTORY OF PROFITS AND REPRESSION.
PALGRAVE MACMILLAN, 2021.

Marcelo Bucheli, Gies College of Business (University of Illinois, Urbana- Champaign), Estados Unidos.

Hartmutt Berghoff, Instituto de Economia e História Social/ Georg-August- Universität Göttingen, Alemanha.

Victoria Basualdo, CONICET- Área de Economía y Tecnología de FLACSO- Secretaría de Derechos Humanos, Argentina.

Link para live no youtube: https://youtu.be/CnrhepQWbaM

14:00 – 16:30 HS

EMPRESARIADO, REPRESSÃO E DITADURAS NO CONE SUL

Alejandra Esponda (FLACSO/ Universidad Nacional Arturo Jauretche) – “Empresariado y represión en la última dictadura argentina. Elementos para pensar sus vínculos a partir de algunos casos paradigmáticos”

Carlos Demasi (Centro de Estudios Interdisciplinarios Uruguayos (CEIU), Facultad de Humanidades, UdelaR)- “El empresariado uruguayo en la dictadura: comiendo de todos los platos”

Rodrigo Araya Gómez (Escuela de Historia Universidad Academia de Humanismo Cristiano) – Violencia antisindical y complicidad empresarial. “El lado oscuro de la vía chilena al neoliberalismo”, 1973-1990.

Ignacio González Bozzolasco (PRONII-CONACYT, Paraguay) – “De la revolución a la institucionalización: el movimiento obrero paraguayo 1931-1961”.

16:45 – 18:00 HS – LANÇAMENTO DE LIVROS

Apresentação do livro Lenguita, Paula Andrea (org.). “La resistência de las mujeres em gobiernos autoritários: Argentina y Brasil (1955-1968)”. CEIL Conicet Libros, 2020.

Apresentação do livro Ghigliani, Pablo Esteban (org.). Procesos repressivos, Empresas, Trabajadores/as y Sindicatos em América Latina. Actas del II Encuentro de la RIProR. La Plata: Universidad Nacional de La Plata, Faculdad de Humanidades y Ciencias de la Educación, 2021.

Link para live no youtube ( 14:00h até 17:45) : https://youtu.be/z_-Neq4umuQ

28 DE MAIO – 10:00 – 12:30 HS

TRABALHADORES, EMPRESAS E PROCESSOS REPRESSIVOS

Richard Martins (Unicamp) – “Notas sobre a repressão aos trabalhadores durante a ‘transição política’: São José dos Campos, 1974-1994”.

Ana Beatriz Ribeiro (UFPB) – “Acidentes e doenças do trabalho como manifestação da superexploração da força de trabalho no Brasil da ditadura empresarial-militar”;

Sabrina Alvarez (Departamento de Historia Americana. Instituto de Ciencias históricas. FHCE-UdelaR) – “Los trabajadores ante la re-estructuración vía autoritaria (Uruguay, 1968-1985). Apuntes para su estúdio”.

Pablo Ghigliani (Departamento de Historia. Universidad Nacional de La Plata, Argentina) – Control, inteligencia y represión del movimiento obrero en el Gran La Plata (1955-1976)

Link para live no youtube: https://youtu.be/LSUnleo6Enw

14:00 – 16:30 HS – PROCESSOS DE MEMÓRIA, JUSTIÇA E REPRESSÃO

Edson Teles (Unifesp) – “Reparação e justiça: a gestão de pesquisa sobre a cumplicidade de empresas com a Ditadura”.

Silvia Nassif (CIC CONICET-CETyHAP-FLACSO, Fac. de Ciencias Económicas UBA) – “Trabajadores/as azucareros/as en Argentina. Procesos de lucha, represión, justicia y memoria”.

Gilney Viana (Comissão Camponesa da Verdade) – “Repressão e reparação aos trabalhadores no campo durante a ditadura militar brasileira” (título provisório)

Federico Vocos (Observatorio de Condiciones de Trabaj, CITRA-UMET/ CONICET) – “El aporte de los estudios del trabajo en la investigación de delitos de lesa humanidad. El caso de la empresa Ford durante la última dictadura cívico – militar argentina”.

16:45 – 18:00 HS

REUNIÃO ENTRE OS MEMBROS DA REDE DE PROCESSOS REPRESSIVOS, EMPRESAS, TRABALHADORES, TRABALHADORAS E SINDICATOS DA AMÉRICA LATINA

Link para live no youtube ( 14:00h até 18:00): https://youtu.be/JliNkQ8TJLU
* O evento será realizado no modo virtual.
* As apresentações serão realizadas em português e espanhol.
* É gratuito para ouvintes. Os ouvintes poderão obter certificados de presença caso queiram solicitar.
* Os estudantes de graduação da PUC-Rio poderão obter certificado de horas complementares.

LMT#78: Companhia Hidrelétrica do São Francisco, Paulo Afonso (BA) – Jamile Silveira



Jamile Silveira
Doutoranda em História Contemporânea pela Universidade de Coimbra



“Morreu muita gente. Tudo bruto, caía no rio quem era que achava. Tinha uns cabos de aço balançando, o cabra escapolia, e sem entender de nada ia embora.” Relata João Felinto, operário por 20 anos da primeira grande empresa pública brasileira de geração e distribuição de energia elétrica: a Companhia Hidrelétrica do São Francisco (CHESF). A memória da formação de Paulo Afonso, na Bahia, se confunde com a história da Companhia.

Getúlio Vargas aprovou o projeto CHESF em 1945. Três anos depois, o cenário da comunidade de Forquilha, às margens da cachoeira de Paulo Afonso, local se modificaria para sempre com a chegada de toneladas de materiais importados, para a construção da Usina Paulo Afonso I. O início das obras foi marcado pelo discurso de progresso e modernização, possíveis frutos da inovadora produção de energia que proporcionaria o desenvolvimento do Nordeste.

A Companhia era a consolidação de um projeto elaborado aos moldes da Tennessee Valley Authority (TVA), uma das iniciativas mais simbólicas das políticas do New Deal promovidas pelo presidente Roosevelt nos Estados Unidos nos anos de 1930. O Ministro da Agricultura do governo Vargas, Apolônio Sales, visitou algumas vezes a TVA, e as missões estadunidenses no Brasil, em especial a Missão Cooke, indicavam a possibilidade da intervenção federal direta na região do São Francisco.

Simultaneamente à instalação da Companhia foi criada uma company town em Paulo Afonso. Os trabalhadores mais graduados, como os engenheiros, residiam no equipado bairro General Dutra, na Vila Residencial. Na Vila Operária, a distribuição urbana das moradias era definida de acordo com a função exercida por cada trabalhador na empresa. Assim como em outras company towns o controle disciplinar sobre os trabalhadores e suas famílias era rígido e interferia sobre vários aspectos da vida cotidiana dos moradores. A empresa difundia um discurso paternalista que enfatizava o caráter nacionalista da obra e os supostos benefícios de fazer parte da “família chesfiana”.


A grande maioria dos milhares de operários da obra da Usina foi arregimentada entre trabalhadores rurais, comerciantes e artesãos, do sertão, do agreste e de algumas capitais do Nordeste. Em geral, os homens se instalavam, começavam a trabalhar e posteriormente buscavam suas mulheres e famílias.


Entre eles, estavam os cassacos, que faziam parte da linha de frente da obra, abrindo caminho quebrando pedras e barrando a força das águas do Rio São Francisco, em condições de trabalho bastante precárias e perigosas. Apenas décadas depois, em 1978, seria criada uma Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (CIPA) que implantaria as primeiras normas de segurança para os trabalhadores.

Com a concentração de pessoas cada vez maior na região, o acesso a company town, conhecida como “Acampamento CHESF”, ficou cada vez mais restrito. Muitos que chegaram na esperança de trabalhar na CHESF, contratados ou não, começaram a morar fora do acampamento. Sem recursos para a construção de casas, utilizavam o que encontravam, inclusive os sacos de papel do cimento Poty, descartados durante as construções das barragens. Esse novo bairro, ficou conhecido como Vila Poty.

Em 1958, 3.000 trabalhadores residiam no “Acampamento CHESF”, enquanto na Vila Poty amontoavam-se 13.000 pessoas em condições extremamente precárias. Mas, ali os trabalhadores criaram formas alternativas de sociabilidades, como cabarés, bares e terreiros de Candomblé também frequentados por muitos operários moradores do acampamento.

Em 1958, o município de Paulo Afonso foi emancipado. A maioria dos cassacos, moradores da Vila Poty, não permaneceram na empresa após a conclusão das obras. O domínio empresarial da CHESF e os conflitos urbanos desta cidade dividida, marcariam o cenário de Paulo Afonso nos anos seguintes. Em 1968, no contexto da ditadura militar, o município foi declarado Área de Segurança Nacional. O Complexo Hidrelétrico de Paulo Afonso se expandiu na década de 1970, com obras em vários Estados do Nordeste. Em 1982, a CHESF era responsável por 15% da produção nacional de energia elétrica, com 3.300 operários localizados em Paulo Afonso. Nesse período, o muro que isolava a company town foi derrubado e as guaritas desativadas, apesar da CHESF continuar administrando toda a área até 2002, quando a prefeitura assumiu a responsabilidade pelo antigo acampamento.

Durante a redemocratização do país, conflitos trabalhistas e um forte movimento sindical emergiram em Paulo Afonso. Liderados pelo Sindicato dos Eletricitários (SINERGIA), os trabalhadores da CHESF realizaram duas grandes greves, em 1979 e 1982, com enorme impacto político e simbólico na região. Os setores progressistas da Igreja Católica tiveram papel destacado naquelas mobilizações e na formação de entidades que se opuseram aos projetos de desenvolvimento regional da CHESF.

A história oficial da Companhia em Paulo Afonso, presente no Memorial da empresa, omite conflitos, discursos e protagonistas anônimos, que participaram ativamente deste processo. Atualmente, outras iniciativas, em particular nas universidades da região, procuram problematizar essas lacunas. A CHESF impactou a vida de milhares de famílias, inclusive de povos e comunidades tradicionais do Vale do São Francisco. Apesar de todo investimento, as promessas de modernidade, progresso e melhorias sociais não se concretizaram, gerando resistências e conflitos que marcaram a vida social local e tornaram Paulo Afonso um importante lugar de memória dos trabalhadores em nosso país.

Operários da CHESF (1950).
Acervo do Memorial CHESF

Para saber mais:

  • AZEVEDO, Sérgio Luís Malta de; MUCCINI, Sandra. “Período Pioneiro da Hidrelétrica de Paulo Afonso-Ba: Uma contribuição a historiografia de base local e regional.” Revista Rios, Revista Científica da FASETE, ano 1, n. 1, agosto 2007..
  • JUCÁ, Joselice. CHESF: 35 Anos de História. Recife: Comunicarte, 1982.
  • LIMA, João de Sousa. Paulo Afonso e a Vila Poty: A história não contada. Paulo Afonso: Fonte Viva, 2017.
  • OLIVEIRA, Antônio Marcos Lima de. A Cidade de Paulo Afonso, 1948-1985: As espacializações do trabalho, do controle e das lutas. Salvador: Dissertação de Mestrado em Arquitetura e Urbanismo da UFBA, 2016.
  • SILVEIRA, Jamile Silva. “Trabalhadores, conflitos e sociabilidades: a Companhia Hidroelétrica do São Francisco, em Paulo Afonso (Bahia, Brasil, 1945-1983)”. In: VARELA, Raquel; CABREIRA, Pamela Peres. História do Movimento Operário e Conflitos Sociais em Portugal. Lisboa: Instituto de História Contemporânea, 2020. Disponível em: https://ihc.fcsh.unl.pt/historia-movimento-operario-2020/

Crédito da imagem de capa:  Acesso à área da CHESF em 1952. Acervo do Memorial da CHESF.


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Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

LMT #77: Rua do Ouvidor – Renata Figueiredo Moraes



Renata Figueiredo Moraes
Professora do Departamento de História da UERJ e pesquisadora do LEHMT/UFRJ


A rua que leva o nome de um ofício, “do ouvidor”, surgiu pequena e cresceu a medida em que a cidade colonial se expandia. Passou assim a ser chamada por volta de 1780 com a chegada do Ouvidor português que ali se instalou. No Império, a longa via ficou próxima ao centro político dos arredores do Largo do Paço, ligando também os alunos da Escola Politécnica (atual UFRJ-IFCS, onde termina a rua) aos mais variados tipos de pessoas que nela circulava: os que vendiam e compravam peixe na Rua do Mercado (início da rua), os frequentadores do comércio, os que iam às portas das redações para ver os jornais e os trabalhadores das tipografias, muitas com sede na Ouvidor. Com prédios que dispunham de uma sacada, tipicamente colonial, cronistas e jornalistas observavam sua movimentação e de seus trabalhadores. Entre eles estavam também inúmeros escravizados que ocupavam as calçadas para vender mercadorias ou esperar para carregar algum objeto, atividades típicas dos escravos ganhadores, e muitas mulheres que vendiam seus produtos em tabuleiros, alguns levados à cabeça. A rua do Ouvidor, no centro do Rio de Janeiro, é carregada de memórias dos mundos do trabalho.

A Ouvidor foi tema de diversos cronistas da cidade. Joaquim Manoel de Macedo, Machado de Assis, Coelho Neto, Artur Azevedo, entre outros, a usaram como cenário privilegiado para retratar o cotidiano do Rio de Janeiro do século XIX e do início do XX. Para muitos deles, a Ouvidor era um espaço muito familiar já que a atravessavam frequentemente para exercerem suas atividades como trabalhadores nos diversos jornais cujas sedes ficavam nessa rua.

Durante boa parte do Império, a rua do Ouvidor foi o lugar de concentração de variados jornais existentes na Corte, reunindo grande número de editores, noticiaristas e tipógrafos, que, muitas vezes, também produziam seus próprios jornais. A Gazeta dos Operários, (1875), por exemplo, era publicada pela Tipografia Fluminense, com sede na Ouvidor. Essa rua também era o endereço do aristocrático Jornal do Comércio, próximo ao jornal de José do Patrocínio, Cidade do Rio, além de outros periódicos importantes do período, como a Gazeta de notícias, O Paiz, Diário de Notícias, dentre outros. Não por acaso, a rua também foi um espaço de mobilização dos tipógrafos, como no caso da famosa greve por eles realizada em 1858.  Mas, para além dos tipógrafos e cronistas que atuavam nos jornais, a Ouvidor era um importante lugar de trabalho para aqueles que atuavam no comércio, como os caixeiros e guarda-livros.

A Ouvidor era do trabalho e das festas. Os desfiles de carnaval no Império eram realizados na estreita rua e que tinha nos seus sobrados os camarotes para aqueles que não quisessem se misturar a alegria do povo. No início de maio de 1888, com a crescente expectativa pela aprovação da lei da abolição, a Ouvidor foi o epicentro das celebrações, que eram organizadas pela imprensa. Muitos dos que buscavam notícias nas redações dos jornais se juntaram aos festejos. No 13 de maio de 1888, muitos populares se reuniram nessa área a fim de esperar a chegada da Princesa ao Paço, a poucos metros daquela região, onde ocorreria a assinatura da lei que acabaria com a escravidão.


Naquele dia, a rua foi ocupada por uma multidão, que incluía os funcionários da Câmara Municipal que saudaram os jornais, assim como o fizeram os empregados da Estrada de Ferro, dos Correios e os da classe artística.


Da sede da Associação dos Empregados do Comércio, na Ouvidor, saiu um grupo que participou dos desfiles que ocorreram pelas ruas do centro da cidade no dia 20 de maio de 1888. Naqueles dias de maio, a região era o ponto de encontro para celebrar a abolição e pegar as poesias jogadas por literatos para os festeiros, sem pensar muito nos dias seguintes e o futuro do trabalho. 

Nessa rua ocorreram também os festejos não oficiais, celebrações feitas por homens e mulheres, muitos negros, que festejaram o fim da escravidão de forma própria. As notícias sobre essa festa são dadas pela Gazeta de Notícias, que criticou aquela movimentação por lhe parecer estranha, apesar de serem apenas homens e mulheres dançando um batuque em roda. Possivelmente os que celebravam daquele jeito eram trabalhadores que só tinham a noite para comemorar a abolição por não terem tido folga durante o dia, como os do comércio e tantos outros. Outros talvez não se identificassem com as bandas que tocavam nos bailes públicos nas ruas e pretendiam ter a liberdade de promoverem seus próprios festejos no mesmo local onde já se celebrava o carnaval.

Nos anos seguintes, a rua do Ouvidor continuaria a ser um importante local de passagem e de manifestações populares, como a que ocorreu por ocasião da proclamação da República. Desde então, a rua ganhou mais requintes aristocráticos, novas lojas, muitas internacionais, perdeu o carnaval e as redações dos jornais que migraram para a Avenida Central, inaugurada em 1904. Considerada um símbolo de refinamento e elegância da belle époque carioca, a Ouvidor foi perdendo seu glamour aristocrático ao longo do século XX. Mas nunca deixou de ser um espaço fundamental de trabalho no centro do Rio. Nos últimos anos, a rua havia voltado a ser um local das festas, com sambas frequentes e bailes que reuniam trabalhadores em happy hour. A pandemia do Coronavírus trouxe um esvaziamento à região. Mas, a Ouvidor continuará sendo a rua das festas e dos trabalhadores, que voltarão a ocupá-la, para uma manifestação política, um samba, ou uma cerveja após a cansativa jornada. 

Redação do jornal O Paiz (Rua do Ouvidor – 1888)
Créditos:  “Abolição no Brasil”, Antonio Luiz Ferreira, Lago, Pedro e Lago, Bia Corrêa. Coleção Princesa Isabel. Fotografia do século XIX. Rio de Janeiro: Capivara Editora Ltda; 2008, p. 303

Para saber mais:

  • BRASIL, Eric. A corte em festa. Experiências negras em carnavais do Rio de Janeiro (1879-1888). Curitiba: Editora Prisma, 2016
  • MORAES, Renata Figueiredo. “Festas e resistência negra no Rio de Janeiro: batuques escravos e as comemorações pela abolição em maio de 1888”. Revista do Arquivo Geral da cidade do Rio de Janeiro, n. 15, 2018,.
  • PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. O Carnaval das letras. Literatura e folia no Rio de Janeiro do século XIX. 2ª ed. rev. Campinas: Editora da Unicamp, 2004.

Crédito da imagem de capa:  “Abolição no Brasil”, Antonio Luiz Ferreira, Lago, Pedro e Lago, Bia Corrêa. Coleção Princesa Isabel. Fotografia do século XIX. Rio de Janeiro: Capivara Editora Ltda; 2008, p. 301




Vale Mais #10 – Mundos do Trabalho e Relações Raciais

Vale Mais é o podcast do Laboratório de Estudos de História dos Mundos do Trabalho da UFRJ, que tem como objetivo discutir história, trabalho e sociedade, refletindo sobre temas contemporâneos a partir da história social do trabalho.

O episódio #10 do Vale Mais é sobre Mundos do trabalho e Relações Raciais. 

 

Este é segundo episódio da segunda temporada do podcast Vale Mais. Nesta temporada realizamos uma série de conversas com jovens doutores/as no campo da História Social do Trabalho. Eles/as explicam seus temas de pesquisa e processos de elaboração de suas teses. Neste episódio, conversamos com Leonardo Ângelo, doutor em História Social pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e pesquisador do LEHMT-UFRJ. Leonardo defendeu a tese “Volta Redonda em Preto e Branco: Trabalho, Desenvolvimentismo e Relações Raciais (1946-1988)”, sob orientação de Alexandre Fortes. A pesquisa analisou as complexas relações entre raça e classe entre os trabalhadores da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), entre as décadas de 1940 e 1980, com especial atenção para as conexões entre o discurso político da “democracia racial” e os projetos desenvolvimentistas daquele período. Em nossa conversa, Leonardo enfatiza a importância de perspectivas interdisciplinares para a análise das relações raciais nos mundos do trabalho, bem como as interessantes possibilidades de pesquisa abertas quando os movimentos negros são incorporados nos debates da história social do trabalho.

Produção: Heliene Nagasava e Larissa Farias 
Roteiro: Heliene Nagasava e Larissa Farias 
Apresentação: Larissa Farias 

Dicas do entrevistado

Geledés – Instituto da Mulher Negra (https://www.geledes.org.br/)
Cultne – Acervo Digital De Cultura Negra (https://www.cultne.com.br/)
M8 (Filme) 
Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: Identidade nacional versus identidade negra, de Kabengele Munanga (Livro) 
Pedagogingar (https://open.spotify.com/show/5H2j9lhdxkpGDekRr8jjMZ?si=55q-RCa5Q6SlMZSD_wPvlg)

Vale Mais #30: A cultura de luta antirracista e o movimento negro do século 21, por Thayara Lima Vale Mais

Nesta temporada, convidamos pesquisadoras e pesquisadores para discutir projetos, livros e teses recentes que aprofundam debates interdisciplinares sobre os mundos do trabalho. No terceiro episódio, conversamos com Thayara de Lima, doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autora do livro A cultura de luta antirracista e o movimento negro do […]
  1. Vale Mais #30: A cultura de luta antirracista e o movimento negro do século 21, por Thayara Lima
  2. Vale Mais #29: The Second World War and the Rise of Mass Nationalism in Brazil, por Alexandre Fortes
  3. Vale Mais #28: O poder e a escravidão, por Bruna Portella e Felipe Azevedo
  4. Vale a Dica #14: Orgulho e Esperança, de Matthew Warchus
  5. Vale a Dica #13: 2 de Julho: a Retomada, de Spency Pimentel e Joana Moncau