Neste vídeo, Thomas Rogers, professor do departamento de História da Emory College – situado no estado da Georgia, EUA – apresenta a obra O vapor do diabo, de José Sérgio Leite Lopes. Lançada em 1976, a obra é parte de um importante corpo de estudos desenvolvido por antropólogos do Museu Nacional (UFRJ) no nordeste canavieiro, no período, abordando o trabalho industrial nas usinas.
Livros de Classe
Os estudantes de graduação são desafiados constantemente a elaborar uma percepção analítica sobre os diversos campos da história. Nossa série Livros de Classe procura refletir justamente sobre esse processo de formação, trazendo obras que são emblemáticas para professores/as, pesquisadores/as e atores sociais ligados à história do trabalho. Em cada episódio, um/a especialista apresenta um livro de impacto em sua trajetória, assim como a importância da obra para a história social do trabalho. Em um formato dinâmico, com vídeos de curtíssima duração, procuramos conectar estudantes a pessoas que hoje são referências nos mais diversos temas, períodos e locais nos mundos do trabalho, construindo, junto com os convidados, um mosaico de clássicos do campo.
Paulo Fontes Professor do Instituto de História da UFRJ e coordenador do LEHMT/UFRJ
Sorridente, Getulio Vargas recebeu o buquê de flores das mãos de Yole Souza e ouviu atento as palavras de gratidão da jovem operária que, em seu nome e de suas colegas, agradecia a visita do presidente à fábrica onde trabalhavam. Era a tarde de 26 de abril de 1940 e Vargas participava da cerimônia de inauguração oficial da Companhia Nitro Química Brasileira no bairro de São Miguel Paulista, periferia leste da cidade de São Paulo. Após visitar as instalações da fábrica, ouviu o discurso de um dos dirigentes da empresa. José Ermírio de Moraes não apenas a agradeceu a visita, mas também enfatizou que a Nitro Química estaria “ao serviço devotado e constantes dos mais altos interesses econômicos e militares do Brasil”.
O apoio do governo havia sido fundamental para o empreendimento. Horácio Lafer e José Ermírio de Moraes, dois autointitulados “capitães da indústria” paulista, viram no fechamento de uma fábrica de raiom nos Estados Unidos, a oportunidade de construir um complexo industrial químico no país. Com o decisivo suporte de Vargas, que autorizou a isenção de taxas alfandegárias, dezoito mil toneladas de máquinas, equipamentos e estruturas foram transferidas da Virgínia para São Paulo. O bairro de São Miguel foi escolhido pela proximidade da ferrovia, do rio Tietê e pelo baixo custo dos terrenos para a instalação da planta fabril. Após dois anos de épica construção, a indústria começou a produzir.
A complexa produção do raiom, um fio sintético conhecido como “seda artificial”, então com largo uso comercial, permitia a fabricação de uma série de produtos químicos. Alguns deles de uso militar, o que certamente estimulou o apoio governamental. A Nitro, abreviação que logo se popularizou, era vista como um versátil complexo industrial que teria papel decisivo no progresso do país. O desenvolvimento industrial durante a II Guerra Mundial consolidou a Nitro Química como uma das maiores e mais lucrativas empresas brasileiras. Em 1946 já possuía quase 5 mil trabalhadores e esse número praticamente dobraria nos anos seguintes, quando os dirigentes da empresa elaboraram um ambicioso plano de expansão que visava tornar a companhia a “CSN do setor químico”.
Foi durante a guerra também que a Nitro edificou seu setor de “Serviço Social”, um grande aparato assistencial voltado para seus trabalhadores e suas famílias. Hospital, creche, clube esportivo, vilas operárias faziam parte de um sistema de benefícios propagandeado como missão de uma “indústria esclarecida e democrática com um capitalismo humano e progressista” a serviço dos interesses nacionais. O discurso empresarial usava largamente a noção paternalista de “família” em busca da “harmonia e paz social”.
Essa retórica, no entanto, era contrastada com um cotidiano de superexploração, baixos salários, alta rotatividade e despotismo das chefias. As condições de trabalho, em particular, eram motivo de reclamações e protestos por parte dos operários. A fábrica era famosa por sua periculosidade e insalubridade. Histórias sobre o uso de batatas nos olhos para “sugar os gases” expelidos nas seções fabris, o temor de explosões (como a de 1947 que oficialmente teria matado 9 operários) ou sobre os efeitos da poluição do ar e das águas (a Nitro foi uma das maiores poluidoras do Tietê) marcaram gerações de moradores de São Miguel.
A maioria dos trabalhadores da Nitro eram homens migrantes rurais, em particular de Minas Gerais e do Nordeste. Grande parte, negros e descendentes dos povos originários do sertão brasileiro. Havia setores da empresa, no entanto, de predominância feminina. Essa presença migrante, especialmente nordestina, caracterizou a empresa e todo o bairro. A São Miguel “dos baianos” foi a região de maior crescimento da cidade entre as décadas de 1950 e 70. Inicialmente eram atraídos pela Nitro, mas logo pelos loteamentos baratos onde suas casas eram autoconstruídas. O bairro simbolizou como poucos a expansão periférica de São Paulo.
Uma forte cultura comunitária, ancorada nas experiências migratórias e de classe, forjou uma tradição de organização sindical e política entre os trabalhadores da Nitro Química
Já em 1945, uma passeata de celebração pela vitória aliada na guerra desdobrou-se num quebra-quebra em que os operários destruíram carros de chefes identificados como integralistas. No ano seguinte, uma greve de grandes proporções paralisaria vários setores da fábrica pela primeira vez. Neste período, o Partido Comunista do Brasil (PCB) teve forte influência no Sindicato dos Trabalhadores Químicos de São Paulo. A Nitro era a principal célula fabril do partido na cidade, sendo visitada por lideranças como Luís Carlos Prestes, Carlos Marighella e Jorge Amado.
A cassação do PCB e a intervenção no sindicato em 1947, bem como a repressão no interior da empresa, refreou, mas não eliminou a mobilização operária na Nitro. Em 1956, agora sob a liderança de Adelço de Almeida, baiano, negro e comunista, o Sindicato dos Químicos passou a ter uma presença ativa na vida da fábrica e do bairro. Em 1957, na esteira da “Greve dos 400 mil”, os operários da Nitro paralisaram totalmente a empresa, naquilo que ficou conhecido como a “Batalha de São Miguel”. A partir de então, teriam participação decisiva nas mobilizações da efervescente conjuntura do início dos anos 60.
Com o golpe de 1964, os militantes sindicais foram cassados e perseguidos. Além disso, a Nitro, com o fracasso de seu plano de expansão, entrou em crise e demitiu quase 1/3 de seus empregados em 1966. Apesar disso, a companhia, parte do poderoso grupo Votorantim, sobreviveu e permaneceu como um importante empresa na cidade. Durante a redemocratização, a militância operária também se reergueu e a fábrica foi uma das principais bases da oposição que conquistou o Sindicato em 1983. Três anos depois, as denúncias sobre as péssimas condições de trabalho na Nitro tiveram um peso considerável na derrota de Antônio Ermírio de Moraes, proprietário da fábrica, nas eleições para governador de São Paulo.
A partir dos anos 1990, a empresa perdeu prestígio e poder econômico. Em 2011, após uma campanha que mobilizou moradores e organizações de São Miguel, o órgão municipal de preservação do patrimônio tombou algumas estruturas da fábrica. Nesse mesmo ano, o grupo Votorantim vendeu a empresa para um fundo de investimentos. Era o fim de uma era, apesar da fábrica continuar em funcionamento. A Nitro Química foi uma das principais fábricas da industrialização nacional-desenvolvimentista no país. Foi também um símbolo da força e da luta dos trabalhadores brasileiros no século XX.
Vista área da Companhia Nitro Química Brasileira, 1940. Acervo do Centro de Memória Votorantim
Pavilhão de células de eletrólise da Nitro Química. Acervo do Centro de Memória Votorantim
Para saber mais
FONTES, Paulo. Trabalhadores e cidadãos. Nitro Química: a fábrica e as lutas operárias nos anos 1950. São Paulo: Sindicato dos Trabalhadores Químicos de São Paulo/AnnaBlume, 1997.
FONTES, Paulo. Um Nordeste em São Paulo. Trabalhadores migrantes em São Miguel Paulista (1945-1966). Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2008.
PAIVA, Odair da Cruz. Caminhos cruzados. Migração e construção do Brasil moderno (1930-1950). Bauru: Edusc, 2004.
ROCHA, Antônia Sarah Aziz. O bairro à sombra da chaminé. Um estudo sobre a formação da classe trabalhadora da Companhia Nitro Química Brasileira de São Miguel Paulista (1935-1960). Dissertação de Mestrado, PUC-SP, 1992.
TONAKI, Luciana Lepe. A Companhia Nitro Química Brasileira: indústria e vila operária em São Miguel Paulista. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Instituto de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Carlos, 2013.
Crédito da imagem de capa: Trabalhadores da Nitro Química em um piquete durante a greve de 1957. Ao fundo, discursando, Adelço de Almeida. Acervo do Sindicato do Trabalhadores Químicos de São Paulo.
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Lugares de Memória dos Trabalhadores
As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.
A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.
Pedro Campos Professor do Departamento de História da UFRRJ
A ponte Rio-Niterói, que liga as cidades do Rio de Janeiro e de Niterói, foi uma das principais obras realizadas durante a ditadura brasileira. Construída entre os anos de 1969 e 1974, em pleno “milagre econômico”, a ponte tem o nome oficial do ditador Artur da Costa e Silva. Foi um dos principais símbolos do “Brasil Grande”, projeto nacionalista do regime. O empreendimento guarda várias marcas da ditadura, como a participação de militares na direção dos trabalhos, o beneficiamento de empresários afinados ao regime, o reforço do modelo rodoviário de transportes e a superexploração do trabalho, com particular negligência em relação à saúde e segurança dos trabalhadores.
A ditadura brasileira foi responsável por algumas obras de grande porte, usadas largamente como peças de propaganda. A publicidade do governo explorava de forma ufanista a realização de projetos como a rodovia Transamazônica, a usina termonuclear de Angra dos Reis, a hidrelétrica de Itaipu e a ponte Rio-Niterói. A ponte, construída na antiga capital e em um dos mais famosos cenários do país, tinha uma particular visibilidade e sensibilidade política para a ditadura. Além disso, eram privilegiados os investimentos rodoviários, associados às empresas multinacionais automotivas e às empreiteiras de obras públicas, responsáveis pelas obras das estradas de rodagem, dentre outros serviços de engenharia.
A proposta de uma união física entre as cidades do Rio e de Niterói era antiga, sendo que os primeiros projetos de túneis e pontes unindo os dois lados da baía de Guanabara remontam ao século XIX. Em 1968, o Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER) desenvolveu um projeto de uma ponte unindo as duas cidades, em uma via que contabilizava um total de 13,9 quilômetros, sendo 8,9 km sobre as águas da baía. A obra teve financiamento britânico, com fornecimento de aço especial para a construção do vão central. O projeto foi à concorrência pública e a obra teve início em 1969.
O primeiro consórcio, formado por construtoras brasileiras, começou a realizar a obra, mas encontrou dificuldades diversas, dentre as quais algumas derivadas da falta de estudos mais detalhados sobre as condições de construção e, principalmente, de escavação do fundo da baía de Guanabara para a instalação das fundações como os tubulões. Os recorrentes atrasos no cronograma da obra provocavam irritação no governo e preocupação com potenciais desgastes políticos. Com as dificuldades acumuladas pelo consórcio, ele foi dispensado e o conjunto de empresas que ficou em segundo lugar na licitação foi chamado para gerir a obra, que passaria a ser dirigida por uma empresa pública, a Empresa de Construção e Exploração da Ponte Presidente Costa e Silva, conduzida por um militar, em regime de administração.
Cerca de 10 mil operários trabalharam na construção, além de 200 engenheiros. Era o auge da ditadura e as condições de trabalho eram precárias e sem o atendimento dos itens básicos de segurança. Os acidentes eram frequentes e, só em um deles morreram mais de dez trabalhadores. De acordo com o jornalista Romildo Guerrante, “morreram vários operários. Em um dos acidentes, eu me lembro bem, morreram 12 pessoas, inclusive um engenheiro. O acidente foi no dia 25 de março de 1970, ou seja, um ano após o início das obras.” Oficialmente faleceram 33 funcionários ao longo da construção, mas existem relatos de até 400 mortes, em especial na edificação dos pilares da ponte.
Em plena Baía de Guanabara, a construção da Ponte Rio-Niterói escancarava o outro lado do “milagre” e da propaganda governamental num momento em que o país batia recordes mundiais de acidentes de trabalho.
A maior parte dos trabalhadores era composta por homens jovens, negros e mulatos, muitos dos quais migrantes nordestinos. Os salários variavam conforme o grau de especialização do operário, girando em torno de um a dois salários mínimos entre os operários com menos instrução. Muitos deles trabalhavam em determinados projetos e eram demitidos após a entrega do empreendimento, havendo outros que atuavam em partes específicas da obra. Obra estratégica, teve especial atenção da ditadura, com um sistema de disciplina, vigilância e controle particularmente intenso sobre as ações e trabalho dos operários. Eventuais conflitos, brigas e desavenças eram rapidamente reprimidos pela direção militar do empreendimento.
A ponte Rio-Niterói foi inaugurada em março de 1974. Na cerimônia de lançamento da obra, o ministro dos Transportes do governo Médici, coronel Mário Andreazza, teceu loas à ponte como um “monumento à Revolução de 1964” e em um reconhecimento implícito das péssimas condições e dos frequentes acidentes de trabalho, exaltou a “dedicação e competência do operário brasileiro, cujo ânimo, até nas horas mais dramáticas, jamais arrefeceu, tendo ao contrário, saído fortalecido dos reveses próprios de obra de tamanha envergadura”.
A Rio-Niterói é hoje um importante meio de acesso entre as cidades da região metropolitana do Rio de Janeiro, tendo diariamente o tráfego de milhares de veículos. Apesar da facilidade que a via gera para o transporte entre as cidades da região, a sua construção lembra um dos períodos mais violentos e autoritários da história brasileira, sendo seu nome uma homenagem ao ditador que determinou a edição do AI-5. Assim, o empreendimento parece colocar a questão da política de memória e, em particular, a querela da revisão dos nomes de logradouros e monumentos existentes em locais públicos, dado que em muitos casos, como diz a letra do samba, “tem sangue retinto pisado atrás do herói emoldurado”.
Operários durante construção da Ponte. Foto de Sebastião Marinho. Agência Globo
CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira. Estranhas Catedrais: as empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar brasileira, 1964-1988. Niterói: Eduff, 2014.
COUTINHO, Ronaldo do Livramento. Operário da Construção Civil: urbanização, migração e classe operária no Brasil. Rio de Janeiro: Achiamé, 1980.
RAUTENBERG, Edina. “Veja e a ponte Rio-Niterói: a cobertura da revista sobre a construção da ponte”. In: Anais do IV Simpósio Lutas Sociais na América Latina: imperialismo, nacionalismo e militarismo no século XXI. Londrina: UEL, 2010.
SILVA, Ana Beatriz Barros. Corpos para o Capital:acidentes de trabalho, prevencionismo e reabilitação profissional durante a ditadura militar brasileira (1964-1985). Jundiaí: Paco, 2019
Crédito da imagem de capa: Operários comemoram a colocação do último vão da Ponte Rio-Niterói em 1973. Foto: Rodolpho Machado. Agência O Globo
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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.
A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.
Marcelo Almeida de Carvalho Silva Professor da Faculdade de Administração e Ciências Contábeis da UFRJ
A rodovia Anchieta é conhecida pelos enormes congestionamentos de carros em feriados prolongados, uma vez que é a estrada que faz a ligação entre a capital paulista e a região praiana de Santos. Mais do que uma via de acesso ao litoral, a estrada abriga diversas indústrias, em particular no município de São Bernardo do Campo. Entre elas, aquela que foi a maior planta industrial da história brasileira, a fábrica da Volkswagen do Brasil (VWB), localizada no quilometro 23,5 da rodovia.
Desde sua entrada no Brasil em 1953, a Volkswagen funcionava em um galpão alugado na rua do Manifesto, no bairro do Ipiranga em São Paulo onde montava os veículos com peças trazidas da Alemanha. Inicialmente fora dos planos da matriz alemã, a construção da fábrica em solo brasileiro só foi confirmada após mudanças na política de incentivos governamentais e do empenho do então Presidente Juscelino Kubitschek. A implantação da indústria automobilística na região do ABC paulista foi uma das peças centrais do chamado Plano de Metas do seu governo e propagandeada como uma representação do progresso e modernidade do país.
Assim, em 1956 teve início da construção da grandiosa planta de fabricação de carros em um terreno de mais de 1 milhão de m2 às margens da rodovia Anchieta, estrategicamente escolhida por facilitar o escoamento da produção e transporte de matéria prima. Menos de um ano depois, em 1957, a fábrica começou a produzir kombis e em 1959, no mesmo ano em que passou a produzir carros de passeio, foi oficialmente inaugurada.
Desde então, o que se viu foi um crescimento da produção de veículos que transformou a Volkswagen na maior empresa do setor automobilístico brasileiro. A relevância da fábrica aumentou após o golpe de 1964, já que a empresa se engajou no projeto de crescimento econômico promovido pelo governo federal estabelecendo metas de aumento da produção no final dos anos 1960 e início dos anos 1970. Se, em 1964 o total de trabalhadores da empresa não passava de 10 mil, em 1971 já eram 27 mil. Ao longo daquela década a fábrica da Volkswagen em São Bernardo do Campo chegou a empregar mais de 40 mil trabalhadores, em sua esmagadora maioria homens, em grande parte migrantes nordestinos e de outras regiões do país. O principal produto da fábrica, o popular Fusca, tornou-se um dos principais símbolos do “milagre econômico” da ditatura brasileira.
No chão da fábrica, a grandiosidade da Volkswagen tinha uma outra face. Seus operários eram submetidos a um cotidiano de superexploração, acidentes de trabalho e vigilância permanente.
Não por acaso, muitos associavam o despotismo fabril da empresa ao passado de colaboração da Volkswagen com o nazismo. De fato, Franz Stangl, responsável pelo setor de monitoramento e vigilância da fábrica nos anos 60, foi comandante do campo de concentração de Treblinka. Denunciado em 1967 por Simon Wiesenthal, conhecido como o “caçador de nazistas”, foi preso e extraditado para a Alemanha. Outros dirigentes alemães da empresa também haviam tido ligações com o Partido Nazista.
As ações de militantes políticos e ativistas sindicais eram amplamente vigiadas e reprimidas pela empresa. O departamento de segurança industrial da Volkswagen era uma extensão dos órgãos de repressão, compartilhando informações, relatórios de vigilância e até mesmo fichas funcionais de seus trabalhadores com o DOPS, a polícia política. Em 1972, por exemplo, os membros de uma célula do Partido Comunista Brasileiro (PCB) na empresa foram presos graças à estreita colaboração do departamento de segurança industrial da VWB com os órgãos de repressão do governo. Lucio Bellantani, um dos líderes da célula foi detido, agredido e torturado no pátio da fábrica.
A violência e repressão, no entanto, não impediram que os trabalhadores da Volkswagen se constituíssem em um dos principais núcleos do chamado “novo sindicalismo”. Tiveram participação central nas greves metalúrgicas do final dos anos 1970 e início dos 1980, fundamentais no processo de redemocratização do país. Em 1982, foi criada a Comissão de Fábrica dos Trabalhadores da VWB. Além disso, lideranças operárias da Volkswagen, como Devanir Ribeiro, Mario Barbosa, Luís Marinho, Wagner Santana, entre outros, têm tido um papel destacado no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, na CUT e na vida política do país em geral.
A ação sindical, mas também as profundas transformações tecnológicas da própria empresa e do mercado automobilístico do país alteraram bastante a planta Anchieta, como a fábrica de São Bernardo do Campo é conhecida. Depois do ápice dos anos 1970, o número de empregados diminuiu até chegar nos atuais 8 mil e duzentos trabalhadores (cerca de 10% deste total são mulheres). A robotização e novas formas de gestão também alteraram o perfil do trabalho e dos operários. A produção foi diversificada nas quatro fábricas que hoje a Volkswagen possui no Brasil, mas, apesar das ameaças de desindustrialização da região do ABC paulista, a planta Anchieta mantém-se como a maior da empresa.
O passado, no entanto, ainda pesa sobre a grande fábrica de São Bernardo do Campo. Em 2015 foi aberta uma representação pública contra a VWB por violação dos direitos humanos de seus trabalhadores durante a ditadura. Cinco anos depois a empresa assinou um acordo com o Ministério Público, pelo qual reconheceu as violações, pagou indenizações e estabeleceu políticas de reparação. O processo contra a Volkswagen do Brasil tornou-se histórico e foi um importante passo na luta pelo direito à verdade, justiça e memória no Brasil.
Trabalhadores da Volkswagen em assembléia em São Bernardo do Campo durante a greve dos metalúrgicos de 1979. Foto Juca Martins.
SALES, Telma Bessa. Trabalho e reestruturação produtiva: o caso da Volkswagen em São Bernardo do Campo. São Paulo: Annablume, 2002.
HUMPHREY, John. Fazendo o “milagre”: controle capitalista e luta operária na indústria automobilística brasileira. Petrópolis: Vozes, 1982.
NEGRO, Antonio Luigi. Linhas de montagem: o industrialismo automotivo e a sindicalização dos trabalhadores (1945-1978). São Paulo: Boitempo, 2001.
SILVA, Marcelo A.C. “A expansão da Volkswagen do Brasil baseada em políticas econômicas e alinhamento ideológico”. In: Campos, P.H.P; Brandão, R.V.M e Lemos, R.L.C.N Empresariado e ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Consequência 2020.
Filme Documentário: Cúmplices? – A Volkswagen e a Ditadura Militar no Brasil (Komplizen? – VW und die brasilianische Militärdiktatur). Direção Stefanie Dodt e Thomas Aders. (2017). Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=1iWmAmvNMNg
Crédito da imagem de capa: Troca de turno dos trabalhadores da Volkswagen na década de 1970. Acervo da Volkswagen do Brasil (reprodução)
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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.
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Neste vídeo da série Livros de Classe, Renata Moraes, professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e pesquisadora do LEHMT/UFRJ, apresenta Homens livres na ordem escravocrata, de Maria Sylvia de Carvalho Franco, publicado em 1969.
Livros de Classe
Os estudantes de graduação são desafiados constantemente a elaborar uma percepção analítica sobre os diversos campos da história. Nossa série Livros de Classe procura refletir justamente sobre esse processo de formação, trazendo obras que são emblemáticas para professores/as, pesquisadores/as e atores sociais ligados à história do trabalho. Em cada episódio, um/a especialista apresenta um livro de impacto em sua trajetória, assim como a importância da obra para a história social do trabalho. Em um formato dinâmico, com vídeos de curtíssima duração, procuramos conectar estudantes a pessoas que hoje são referências nos mais diversos temas, períodos e locais nos mundos do trabalho, construindo, junto com os convidados, um mosaico de clássicos do campo.
Acaba de ser publicado pela Editora da UERJ o livroFutebol e Mundos do Trabalho no Brasil. A obra é organizada por Bernardo Buarque de Holanda, professor do CPDOC/FGV e Paulo Fontes, professor do IH/UFRJ e coordenador do LEHM/UFRJ. Com prefácio de Richard Giulianotti, professor da Loughborough University no Reino Unido, e orelha do jornalista Juca Kfouri, o livro reúne 9 capítulos que tratam de temas diversos, como a prática do esporte em locais de trabalho, como fábricas e minas, o futebol amador,o futebol feminino, as trajetórias profissionais de jogadores, o uso que a ditadura militar fez do esporte e a visão das torcidas organizadas de clubes sobre o futebol contemporâneo. Fátima Antunes, Brenda Elsey, Joshua Nedel, Marca Cioccari, Clément Astruc, José Sérgio Leite Lopes, José Paulo Florenzano e Jimmy Medeiros, além os organizadores da obra, são os/as autores/as das contribuições, que têm um escopo temporal que vai do final do século XIX à segunda década do século XXI, e abarcam diversos territórios e espaços do país. Felipe Ribeiro, professor da UESPI e pesquisador do LEHMT/UFRJ também é autor de um dos artigos do livro, intitulado “ ‘A vitória do trabalhador brasileiro na memorável conquista de bravos jogadores’: futebol, times de fábrica e o jogo da política”. Paulo Fontes, além da apresentação, escrita em conjunto com Bernardo Buarque de Holanda, é o autor do artigo “Futebol de várzea e trabalhadores: os clubes amadores em São Paulo nas décadas de 1940 e 1950”.
Haverá um lançamento por via remota com a presença dos organizadores, alguns autores e do jornalista Juca Kfouri no dia 4 de novembro às 14h. O link do evento será divulgado em breve.
Caroline Matoso Doutoranda em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
A primeira empresa têxtil do Rio Grande do Sul se estabeleceu no município de Rio Grande em 1873, sendo conhecida popularmente como Fábrica Rheingantz. A indústria atraiu migrantes de regiões rurais e de imigrantes europeus que viam nela uma oportunidade de emprego. Assim como outras tecelagens do período, em 1884 a Rheingantz criou uma vila operária no entorno de sua fábrica visando garantir uma mão de obra estável. Além de casas de moradia, a vila contava com creche e escola primária, salão de festas, biblioteca, corpo de bombeiros, clube cultural, restaurante, mercearia, assistência médica e pecuniária.
Em 1879, a empresa do imigrante alemão Carlos Guilherme Rheingantz já contava com 900 operárias(os) e 100 costureiras que trabalhavam em suas residências. Em 1907, estava entre as 100 maiores indústrias do Brasil com 1.008 trabalhadoras(es).
De um lado, a vila operária facilitava o controle social. Os moradores eram constantemente vigiados e situações de seu cotidiano familiar eram frequentemente reportadas aos mestres da empresa, sendo passíveis de punições. Por outro, a vila era também um espaço fundamental de sociabilidade e formação de identidades, redes de solidariedade e ajuda mútua entre os trabalhadores.
A fábrica e sua vila também ocupavam um espaço importante na geografia social de Rio Grande. Suas sirenes para as trocas de turno ecoavam por toda a cidade e são até hoje lembradas. Nas memórias das(os) operárias(os) da empresa, um dos pré-requisitos para adquirir moradia na vila operária era ser “chefe de família”, o que, na prática, excluía as mulheres trabalhadoras.
As mulheres formaram a maioria da mão de obra da Fábrica Rheingantz durante todo o seu período de funcionamento. As operárias se encontravam sobretudo na seção da tecelagem. No entanto, cargos como contramestre e mestres de sessão eram ocupados exclusivamente por trabalhadores do sexo masculino, em geral alemães e seus descendentes.
A operária Soeli Botelho, por exemplo, comenta que começou a trabalhar na Fábrica Rheingantz aos 14 anos de idade, em 1947. A tapeçaria, seção no qual trabalhou até os 18 anos, era destinada apenas ao trabalho de crianças. A produção de tapetes era um setor importante da fábrica e os menores de idade recebiam a metade do salário destinado a um trabalhador adulto.
A feminização do trabalho industrial têxtil foi um fenômeno internacional comum entre os séculos XIX e XX. Em entrevistas realizadas com trabalhadoras(es) da empresa, estas associavam o fato de haver mais mulheres na sessão de tecelagem pela característica do trabalho exigir paciência, sendo uma tarefa monótona. Estas trabalhadoras eram em sua maioria brasileiras de regiões próximas a fábrica e, em 1932, quando o trabalho feminino noturno foi proibido por lei, a empresa realizou campanhas de recrutamento de tecelões em Pernambuco.
O controle e disciplinamento dos(as) trabalhadores (as) também eram estritos no interior do espaço fabril. Comportamentos considerados inadequados, como risadas e conversas eram punidos com descontos salariais e até demissões. Mas também eram comuns diferentes formas de resistências dos(as) operárias no processo produtivo. Muitas vezes as máquinas eram propositadamente quebradas ou desligadas antes da sirene tocar, fios eram estragados e eram recorrentes as brigas e discussões com os mestres e feitores
A cidade de Rio Grande foi palco de intensas lutas sociais. Durante muito tempo foi conhecida como a “cidade vermelha”. A primeira notícia de movimentações grevistas no município data de 1890, quando as tecelãs da Fábrica Rheingantz paralisaram o trabalho, reivindicando a demissão de um inspetor da empresa pelos maus tratos dispensado às(os) operárias(os). Desde então, o movimento operário e a participação das mulheres foi se fortalecendo. Uma das figuras importantes na história do movimento operário de Rio Grande é a tecelã da Fábrica Rheingantz, Angelina Gonçalves, que foi brutalmente assassinada pela polícia durante uma manifestação no 1º de maio de 1950. Angelina Gonçalves era militante do Partido Comunista do Brasil (PCB), e desde fins da década de 1940, uma das lideranças da União das Mulheres-Riograndinas.
No anos 60, a Fábrica Rheingantz passou por um período de crise financeira e administrativa, com constantes atrasos do pagamento dos salários das(os) trabalhadoras(es). Não conseguindo se reerguer e mergulhada em dívidas de indenizações trabalhistas, a empresa decretou sua falência em 1968. Dois anos depois, a empresa reabriu com novos donos, intitulando-se Inca Têxtil, permanecendo funcionando parcialmente até 1990.
Diante das tentativas dos antigos proprietários da empresa de desapropriação das residências na vila operária, em 2009 ocorreram audiências públicas para debater a regularização das casas operárias. Durante as audiências iniciou-se um debate que envolveu diversos setores da sociedade de Rio Grande sobre a patrimonialização da fábrica e da vila operária Rheingantz..
Em 2012, o prédio da Fábrica Rheingantz e a vila operária foram tombados pelo IPHAE – Instituto do Patrimônio Histórico do Estado -, conservando-se sua estrutura física e preservando a memória de um espaço laboral no qual parte dos habitantes de Rio Grande desenvolveram sua infância, adolescência e vida adulta. Recentemente, a Innovar Incorporações, proprietária da fábrica desde 2012, assinou um termo de intenção com a Universidade Federal de Rio Grande (FURG) para a implementação de um museu e de um acervo histórico naquelas antigas instalações fabris.
Operárias trabalhando na sessão de tecelagem da Fábrica Rheingantz. Fonte: Informativo da Indústria Walling, 1957.
Vila operária da Fábrica Rheingantz. Acervo Biblioteca Pública de Rio Grande, início do séc. XX
FERREIRA, M. L. M. Os fios da memória: a Fábrica Rheingantz, entre o passado, presente e patrimônio. Horizontes Antropológicos, ano 19, n. 39, 2013.
FERREIRA, M. L. M. Os três apitos: memória coletiva e memória pública, Fábrica Rheingantz, Rio Grande, RS, 1950-1970. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2002.
MATOSO, Caroline D; LEDERMAN, Luana S. A resistência das operárias da fábrica Rheingantz aos métodos punitivos: Transgressões no ambiente Fabril (Rio Grande 1920-1968). Revista Ars Histórica nº19, 2019.
MATOSO, Caroline Duarte. As Marias que tecem o amanhã : fiando a existência e tramando a resistência na fábrica Rheingantz (Rio Grande, 1920-1968). Dissertação (Mestrado em História). Instituto de Ciências Humanas, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2019.
Crédito da imagem de capa: Fábrica Rheingantz no início do século XX. Acervo Biblioteca Pública de Rio Grande, início do séc. XX
MAPA INTERATIVO
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Lugares de Memória dos Trabalhadores
As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.
A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.
Vale Mais é o podcast do Laboratório de Estudos de História dos Mundos do Trabalho da UFRJ, que tem como objetivo discutir história, trabalho e sociedade, refletindo sobre temas contemporâneos a partir da história social do trabalho.
O episódio #15 do Vale Mais é sobre Biografia e Militância Feminina.
Este é sétimo episódio da segunda temporada do podcast Vale Mais. Nesta temporada realizamos uma série de conversas com jovens doutores/as no campo da História Social do Trabalho. Eles/as explicam seus temas de pesquisa e processos de elaboração de suas teses. Neste episódio, conversamos com Roger Camacho, doutor pelo Programa de Pós-Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (IFCH-UFRGS). Roger defendeu a tese “Entre lágrimas, sorrisos e muita luta: a inserção das mulheres nos espaços políticos do Brasil por meio das trajetórias de três militantes de esquerda – Lélia Abramo (1911 –2004), Luíza Erundina de Sousa (1934 –) e Irma Passoni (1943 -)”, sob orientação de Benito Bisso Schmidt. Em nossa conversa, Roger enfatiza a importância de evitar generalizações ao estudar os sujeitos históricos. Com um amplo escopo de fontes nosso convidado enfrentou os temas da memória e da escrita de si em um desafio que envolve diversos campos de estudos como gênero, trabalho, religiosidade e história política.
Dica da entrevistado: Revolução em Dagenham (filme)
Produção: Felipe Ribeiro, Flávia Veras, João Christovão e Larissa Farias Roteiro: Felipe Ribeiro, Flávia Veras, João Christovão e Larissa Farias Apresentação: Larissa Farias
Vale Mais #30: A cultura de luta antirracista e o movimento negro do século 21, por Thayara Lima –
Vale Mais
Nesta temporada, convidamos pesquisadoras e pesquisadores para discutir projetos, livros e teses recentes que aprofundam debates interdisciplinares sobre os mundos do trabalho. No terceiro episódio, conversamos com Thayara de Lima, doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autora do livro A cultura de luta antirracista e o movimento negro do […]
Professor Márcio Romerito da Silva Arcoverde (CODAI-UFRPE)
Apresentação da atividade
Segmento: 2º e 3º ano do Ensino Médio
Unidade temática: Dinâmica histórico espacial dos trabalhadores migrantes na República.
Objetivos gerais:
– Estimular a discussão sobre memórias, identidades, migrações e patrimônios da classe trabalhadora brasileira; – Discutir acerca dos espaços de memórias e criações de políticas referentes à classe trabalhadora;
Habilidades a serem desenvolvidas (de acordo com a BNCC)
(EM13CHS201) Analisar e caracterizar as dinâmicas das populações, das mercadorias e do capital nos diversos continentes, com destaque para a mobilidade e a fixação de pessoas, grupos humanos e povos, em função de eventos naturais, políticos, econômicos, sociais, religiosos e culturais, de modo a compreender e posicionar-se criticamente em relação a esses processos e às possíveis relações entre eles.(EM13CHS204) Comparar e avaliar os processos de ocupação do espaço e a formação de territórios, territorialidades e fronteiras, identificando o papel de diferentes agentes (como grupos sociais e culturais, impérios, Estados Nacionais e organismos internacionais) e considerando os conflitos populacionais (internos e externos), a diversidade étnico-cultural e as características socioeconômicas, políticas e tecnológicas. (EM13CHS401) Identificar e analisar as relações entre sujeitos, grupos, classes sociais e sociedades com culturas distintas diante das transformações técnicas, tecnológicas e informacionais e das novas formas de trabalho ao longo do tempo, em diferentes espaços (urbanos e rurais) e contextos.
Duração da atividade:5 aulas de 50 min
Aulas
Planejamento
01
Etapa 1
02
Etapa 2
03
Etapa 3
Conhecimentos prévios:
– Industrialização e migrações rural-urbano na Primeira República; – Migrações nacionais na República anos 1940-1970;
Atividade
Recursos: Projetor, impressora, mapas.
Etapa 1: Trabalhadores livres e as fábricas têxteis em Pernambuco na Primeira República
A turma deverá assistir ao documentário “Tecido Memória” de José Sérgio Leite Lopes, Rosilene Alvim e Celso Brandão. (Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3yki-hUp6LE) até o minuto 11:41, fazer a leitura da fonte nº 1e analisar as imagens das localizações das fábricas têxteis (fontenº 2).
Fonte nº1
Esse trecho se refere à uma contextualização dos ambientes de migração internos no estado de Pernambuco no início do século XX. Migrações oriundas dos interiores, principalmente da zona canavieira, para as cidades e, grande parte, para as fábricas têxteis de Recife e cidades circunvizinhas:
Em Nordeste, Gilberto Freyre relata que ele e vários colaboradores tentaram empreender um estudo detalhado das condições dos trabalhadores na Zona da Mata em 1935, mas que seus esforços foram prejudicados pela má vontade dos fazendeiros. Não permitindo acesso a seus domínios, os proprietários desencorajaram a equipe e forçaram-na a abandonar o projeto. Um dos colegas de Freyre, seu tio Ulisses Pernambucano, fez um estudo sobre os trabalhadores urbanos, publicado em 1937. A experiência deles ilustra os desafios que os cientistas sociais enfrentavam então nos ambientes rurais. Até o final da década de 1940, pesquisa, reforma e consultoria, com suas limitações, estavam essencialmente restritas às cidades. Como esclarecem várias referências à migração do campo para a cidade durante os anos 1920, havia importantes conexões entre as duas esferas nesse período, quando metade da classe trabalhadora do Recife era constituída por gente vinda do interior do Estado. Esse movimento precedeu a migração em larga escala de nordestinos para cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, no centro sul, ao longo das décadas seguintes, processo que ajudou a transformar o Brasil no país urbano de hoje. (…) Muitos trabalhadores que foram para o recife eram certamente da zona dos canaviais, considerando-se que ela abrigava metade da população do estado. A taxa de migração urbana, muito alta, chegou a 13% nas primeiras quatro décadas do século e se acelerou ainda mais depois. Uma indústria têxtil de porte e uma população em rápido crescimento se desenvolveram no Recife sob o olhar vigilante das autoridades do estado.”
Rogers, Thomas D.. As feridas mais profundas: uma história do trabalho e do ambiente do açúcar no Nordeste do Brasil. Tradução Gilson César Cardoso de Sousa. – 1 . ed. – São Paulo: Editora Unesp, 2017. p 130-131
Fonte nº 2
Tabela com as fábricas têxteis em Pernambuco no ano de 1928 e suas localizações geográficas.
Santos, Emanuel Moraes Lima dos. A fábrica de tecidos da Macaxeira e a Vila dos Operários : a luta de classes em torno do trabalho e da casa em uma fábrica urbana com vila operária (1930-1960) / Emanuel Moraes Lima dos Santos. – 2017. 471 f. Dissertação de Mestrado p. 440.
Fábricas localizadas na região da Mata e metropolitana
CTP – Companhia de Tecidos Paulista CIP- Companhia Industrial Pernambucana SCBB- Société Cotonnière Belge Brésilienne
Fábricas situadas em Recife
Após leitura dos textos e assistir ao trecho do documentário deve-se responder às seguintes perguntas:
1. Como as fábricas têxteis foram importantes para o processo de urbanização de Pernambuco? 2. Conforme o documentário aborda, analise e construa um perfil dos trabalhadores e trabalhadoras que migravam para as fábricas têxteis por faixa etária, origem, raça/etnia, gênero e forma de ingresso. 3. Grande parte dessas fábricas têxteis construídas nos arredores de Recife deram origem a cidades, como é o caso de Moreno, Paulista, Escada e Camaragibe. Qual a importância de se entender o passado operário dessas cidades para a memória local desses municípios e construção de políticas públicas de valorização do passado operário?
Etapa 2: Trabalhadores e migrações Nordeste-Sudeste.
Ao iniciar a aula o (a) professor (a) deve pedir para que os (as) alunos (as) escrevam em seu caderno porque eles acreditam que existem tantos nordestinos que saíram de seus estados e foram trabalhar em São Paulo e no Rio de Janeiro. Depois que cada aluno fizer o solicitado o (a) professor (a) deverá distribuir a fonte nº 3 entre os (as) alunos (as) e pedir que leiam. Em seguida escutar com a turma a música da fonte nº 4.
Fonte nº3
“Vilarejo de caem, município de Jacobina, interior da Bahia, dezembro de 1947. Ansioso, Artur Pinto de Oliveira despede-se da família e deixa para trás a casa e o sítio onde vivera seus primeiros 17 anos de vida. O rapaz, cheio de esperanças de uma vida melhor e com “aquele sonho de estudar na cabeça”, contaminara-se com a “febre da época”: São Paulo. “Naquele tempo todo nordestina sonhava em vir para São Paulo. São Paulo virou o céu, era o paraíso”, relembra mais de 50 anos depois. Artur seguia os passos do irmão mais velho que mudara alguns meses antes e já estava trabalhando como operário na Cia. Nitro Química Brasileira. (…) juntamente com outras centenas de migrantes, Artur espremia-se na segunda classe do barco localizado no porão. Aquilo “era como um navio negreiro de escravos africanos”, comparou, “você não via nada. Cheio de gente, uma promiscuidade danada, uma escuridão, um mau cheiro…”. A viagem só não foi pior porque Artur, conversador, fez amizade com “um senhor de Goiás, uma pessoa formada, muito educada e comunicativa” e passou aqueles dias discutindo “porque o Nordeste era paupérrimo e as pessoas todas migravam para outras regiões”. Mesmo tão jovem, Artur já tinha as suas “teses de achar o porquê que não se resolviam os casos no Nordeste” e propunha o aproveitamento das águas do São Francisco e do Amazonas para um amplo sistema de irrigação na região. (…) Também em 1948, Augusto Ferreira Lima deixou sua terra natal. Filho de um pequeno proprietário que vivia de suas plantações de laranjas em Alagoinhas, agreste baiano, Augusto Lima, aos 25 anos, decidira que era hora de tentar a sorte no sul. (…) As trajetórias de Artur e Augusto não são incomuns. Na verdade, são relatos paradigmáticos de experiências similares de milhões de brasileiros e brasileiras. A grande migração de trabalhadores das regiões rurais para as cidades foi um dos fatores marcantes da história social brasileira na segunda metade do século XX. A região metropolitana de São Paulo (como principal receptora) e o Nordeste (como origem de grande parte dos migrantes) possuem papel central nesse processo. A figura do trabalhador nordestino escapando da fome, miséria e, periodicamente, das secas chegando à metrópole industrial em busca de emprego e melhores condições de vida tornou-se um símbolo da migração no imaginário social brasileiro. São Paulo transformou-se no local de moradia e emprego para milhões de migrantes nordestinos.”
FONTES, Paulo. Um nordeste em São Paulo: trabalhadores migrantes em São Miguel Paulista (1945-66)- Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008. p 41-43.
Fonte nº 4
Música “Pau de arara”, de Luiz Gonzaga.
https://www.youtube.com/watch?v=0-0x4bFRWqc
Após a leitura e escuta da música os (as) alunos (as) deverão responder:
1. Relacione as histórias de Artur e Augusto, descritas na fonte nº 3, com a música de Luiz Gonzaga (fonte nº 4) buscando semelhanças entre as trajetórias. 2. Você conhece alguma história/pessoa/museu/já leu sobre o processo de trabalhadores que migraram do Nordeste para algum estado do Sudeste? Se sim, descreva. Se não, pesquise sobre a criação da cultura e presença de trabalhadores nordestinos em outras regiões do país. 3. As mãos de trabalhadores e trabalhadoras nordestinas estão na construção de várias cidades do Brasil. Como essas cidades de grandes comunidades nordestinas poderiam construir espaços de memórias desses trabalhadores e trabalhadoras como parte integrante de seu processo formativo?
Etapa 3
O (a) professor (a) deve distribuir as fontes nº 5 e nº 6 entre os (as) alunos (as). Nesse momento, o (a) professor (a) deverá estimular a reflexão sobre essa intensa cadeia migracional oriunda do Nordeste e como os trabalhadores e trabalhadoras nordestinas migraram entre as décadas de 1930-1970 por todo o país, sobretudo, para São Paulo.
Fonte nº5
“A meu ver, a fome que o Nordeste está atravessando, a miséria aguda, que se exterioriza mais gritante, mais negra e mais trágica nesta época de calamidade, é mais fenômeno de ordem social do que natural. Mais do que a seca, o que acarreta esse estado de coisas é o pauperismo generalizado, a proletarização progressiva do sertanejo, sua produtividade mínima, insuficiente, que não lhe permite possuir nenhuma reserva para enfrentar as épocas difíceis, as épocas das vacas magras, porque já não há lá, nunca, épocas de vacas gordas. Mesmo quando chove, sua produtividade é miserável, sua renda é mínima, de maneira que ele está sujeito a viver na miséria relativa ou na miséria absoluta, segundo haja ou não inverno na região do sertão. E que causas determinam esse estado social, esse estado de estagnação econômica e de proletarização progressiva da região do sertão? A meu ver, a causa essencial, central, contra a qual temos de lutar todos, é o regime inadequado da estrutura agrária da região, o regime impróprio com o grande latifundiarismo, ao lado do minifundiarismo, reinantes no Nordeste do Brasil. Sendo esta uma região, por excelência agrícola, desde que 75% das populações do Nordeste vivem de atividades rurais, 50% da renda sendo retirados da agricultura, ele só poderia sobreviver e desenvolver-se, se a agricultura fosse compensadora, fosse produtiva. Infelizmente, não o é. Porque o latifúndio é o irmão siamês do arcaísmo técnico. Nessas áreas latifundiárias, se pratica uma agricultura primária, uma proto-agricultura, sem assistência técnica, sem adubação, sem seleção de sementes, sem a mecanização, e pelos processos mais rudimentares, exaurindo a força do pobre sertanejo para produzir menos do que o suficiente para matar sua fome. O latifúndio nessa região é representado pelo fato estatístico significativo de que, de 1940 a 1950, de acordo com o Recenseamento demográfico e agrícola, longe de diminuir o tamanho médio da propriedade agrícola, no Nordeste, este tamanho aumentou e vem aumentando de tal forma que, hoje, no Nordeste, apenas 20% dos habitantes das regiões rurais possuem terra; 80% trabalham como arrendatários, como parceiros ou como colonos, porque a terra é monopolizada por pequeno grupo. Para mostrar a que extremo chega esse monopólio, basta referir o fato de que 50% da área total do Nordeste são açambarcados por 3% dos proprietários rurais. Por outro lado, encontramos mais de 50% das propriedades contendo mais de 500 hectares. Há centenas de propriedades de mais de 100.000 hectares.”
O desequilíbrio econômico nacional e o problema das secas. In: Documentário do Nordeste. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1965.
Fonte nº 6
“Essa é uma história da plantation açucareira no Nordeste do Brasil. A história de um vasto e sofisticado espaço de liberdade contingente. Um espaço no qual o direito de agir segundo o livre arbítrio de quem em seu interior vivia era limitado por uma geografia que congregava- ao mesmo tempo e de forma indissociável- elementos ecológicos (geomorfoclimáticos, climáticos, edáficos, hidrográficos, biológicos…); estruturais (rede viária, sistema de transporte…) e também históricos/simbólicos/culturais (relações de classe, omissão do Estado, violência, coerção, medo, honra, esperança…). Violência, medo, ausência do poder público, esperança e honra, por exemplo, moldavam esse espaço tanto quanto as montanhas, rios, canaviais, engenhos e estradas. Nele, centenas de milhares de indivíduos viveram e trabalharam, toda sua vida, sob condições de miséria extrema, isolados do mundo exterior e sujeitos à violência patronal organizada. Essa parte do Brasil, formada sobretudo por uma ampla rede de engenhos e usinas de cana-de-açúcar, permaneceu por cinco séculos controlada por milícias privadas fortemente armadas. Até o final do século XX, a maior parte dessa área era interligada por estradas de difícil acesso e desconhecidas por boa parte das autoridades públicas. Esses engenhos constituíram um pedaço do território brasileiro situado “fora da ordem jurídica normal”. A sofisticação desse espaço (de liberdade contingente, repito) não se limitou a sua longa duração (prova de seu eficiente funcionamento), nem à organização da violência física e imposição do medo que mantiveram o trabalho forçado como um de seus elementos indissociáveis e definidores. Sua estrutura labiríntica, longe das forças públicas externas, que facilitava o abuso da autoridade patronal sobre centenas de milhares de indivíduos, tornou-o singular em comparação a outros ambientes do trabalho no Brasil.”
Ferreira Filho, José Marcelo Marques. Arquitetura espacial da plantation açucareira no Nordeste do Brasil (Pernambuco, Século XX). –Recife: Ed. UFPE, 2020. p.17-18
Após a leitura dos textos e os contextos dos anos 1950-1970 sobre a situação econômica-social e representação do Nordeste, os alunos responderão:
1. Quais argumentos que o texto traz podem ser pensados para explicar, de forma mais sistemática, esse processo de “fuga” do Nordeste caracterizado nas migrações para o Sudeste? 2. Muito do imaginário construído sobre a região Nordeste remete à seca como problema exclusivamente natural que causa dor, fome, miséria e expulsa trabalhadores e trabalhadoras dos seus lugares. De acordo com os argumentos usados fonte 5 e 6, os grandes problemas do Nordeste são exclusivamente de ordens naturais? Justifique a sua resposta. 3. Seus argumentos iniciais de o porquê das intensas migrações nordestinas permanecem as mesmas ou foram ressignificadas? E por quê?
Bibliografia e Material de apoio:
ARCOVERDE, Márcio Romerito da Silva. Lutas operárias num espaço semirrural: Trabalho e conflitos sociais em Moreno-PE (1946-1964). 193 f. Dissertação (Mestrado), Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Rural de Pernambuco, Recife, 2014.
FONTES, Paulo. Um nordeste em São Paulo: trabalhadores migrantes em São Miguel Paulista (1945-66)- Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008.
José Marcelo Marques. Arquitetura espacial da plantation açucareira no Nordeste do Brasil (Pernambuco, Século XX). –Recife: Ed. UFPE, 2020.
LOPES, José Sergio Leite. A tecelagem dos conflitos de classe na cidade das chaminés. São Paulo/ Brasília, Marco zero/ editora da UnB, 1988.
Rogers, Thomas D.. As feridas mais profundas: uma história do trabalho e do ambiente do açúcar no Nordeste do Brasil. Tradução Gilson César Cardoso de Saousa. – 1 . ed. – São Paulo: Editora Unesp, 2017
Santos, Emanuel Moraes Lima dos. A fábrica de tecidos da Macaxeira e a Vila dos Operários: a luta de classes em torno do trabalho e da casa em uma fábrica urbana com vila operária (1930-1960) / Emanuel Moraes Lima dos Santos. – 2017. 471 f. Dissertação de Mestrado.
Créditos da imagem de capa: Ficha de cadastro de operários de Société Cotonnière Belge-Brésiliene.
Chão de Escola
Nos últimos anos, novos estudos acadêmicos têm ampliado significativamente o escopo e interesses da História Social do Trabalho. De um lado, temas clássicos desse campo de estudos como sindicatos, greves e a relação dos trabalhadores com a política e o Estado ganharam novos olhares e perspectivas. De outro, os novos estudos alargaram as temáticas, a cronologia e a geografia da história do trabalho, incorporando questões de gênero, raça, trabalho não remunerado, trabalhadores e trabalhadoras de diferentes categorias e até mesmo desempregados no centro da análise e discussão sobre a trajetória dos mundos do trabalho no Brasil. Esses avanços de pesquisa, no entanto, raramente têm sido incorporados aos livros didáticos e à rotina das professoras e professores em sala de aula. A proposta da seção Chão de Escola é justamente aproximar as pesquisas acadêmicas do campo da história social do trabalho com as práticas e discussões do ensino de História. A cada nova edição, publicaremos uma proposta de atividade didática tendo como eixo norteador algum tema relacionado às novas pesquisas da História Social do Trabalho para ser desenvolvida com estudantes da educação básica. Junto a cada atividade, indicaremos textos, vídeos, imagens e links que aprofundem o tema e auxiliem ao docente a programar a sua aula. Além disso, a seção trará divulgação de artigos, entrevistas, teses e outros materiais que dialoguem com o ensino de história e mundos do trabalho.
Walter Fraga Professor da Universidade Federal do Recôncavo Baiano
A cerca de seis quilômetros do centro da cidade de São Félix, no Recôncavo Baiano, na margem direita do rio Capivari, encontra-se um dos mais antigos terreiros de candomblé da Bahia. A casa de oração foi construída às margens do rio e por isso ficou conhecida como Candomblé do Capivari. O cenário impressiona pela beleza, o rio, as árvores que envolvem a casa de culto e as montanhas. A árvore sagrada, uma centenária cajazeira, brota de dentro do próprio terreiro, daí que o lugar é também conhecido como a Casa da Cajá.
Não muito longe do terreiro, a cerca de trezentos metros, podemos ainda avistar as ruínas do aqueduto que movia a moenda do antigo Engenho Natividade. Segundo a tradição oral, um escravo chamado Anacleto Urbano da Natividade foi o fundador da casa de culto a Obaluaiê, o orixá da cura e das doenças.
A conquista do território sagrado teria acontecido durante uma grande epidemia ocorrida na região. Na ocasião, Anacleto Urbano teria curado centenas de pessoas, inclusive membros da família dos seus senhores. Em retribuição, teria sido concedido ao curandeiro a permissão para construir a casa de oração e cura em terras do engenho. A fama de curandeiro correu por toda região e mesmo depois da grande epidemia, pessoas de várias partes da província continuaram a procurá-lo. E realmente até o início do século XX, anualmente, no dia de São Roque, romeiros de várias localidades da Bahia ainda recorriam ao terreiro de Anacleto, mesmo após sua morte. Possivelmente a tradição oral se refira a epidemia de varíola que grassou na Bahia em 1889.
O engenho era propriedade da influente família Tosta, que além da riqueza em terras e escravos era intensamente envolvida com a política no Segundo Império. Em 1856, quando se fez o inventário da proprietária Joana Maria da Natividade Tosta apurou-se que o engenho possuía cerca de 4 mil tarefas de terras, parte delas dedicadas ao plantio de cana-de-açúcar. Foram inventariados 137 escravos, 68 homens e 69 mulheres. Destes, 42 cativos eram africanos, os demais crioulos e mestiços, ou seja, nascidos no Brasil.
A propriedade tinha várias construções, entre as quais uma casa de engenho de fabricar açúcar, casa de purgar e de alambique, casa de bagaço e tanque de mel. O conjunto se completava com seis casas de telha arruinadas, provavelmente servindo de senzalas. Próximo a estas construções, erguia-se a casa-grande, um sobrado com pavimento térreo e andar superior onde residiam os proprietários. Segundo os antigos moradores, dentro do sobrado havia um oratório onde os senhores realizavam cerimônias religiosas católicas, casamentos e batismos dos filhos dos escravos.
Na lista dos escravos anexa ao inventário localizamos o famoso curandeiro, o mesmo que aparece na memória e ainda é venerado pelas famílias de santo das cidades de São Félix e Cachoeira. Na lista ele aparece registrado como Anacleto, crioulo, dezesseis anos, “aprendiz de ferreiro”. Esta evidência contradiz a tradição oral que afirma que Anacleto Urbano era africano. Mas havia entre os escravos listados um africano chamado Urbano, maior de quarenta anos, trabalhador na lavoura e com ofício de fornalheiro, “afetado de cansaço”, ou seja, sofrendo de alguma doença respiratória. Provavelmente Urbano era pai de Anacleto.
Pela tradição oral pode-se perceber que ele atuava como elo de ligação entre a casa grande e a comunidade da senzala. Conta-se que tinha grande capacidade de negociar e influenciar as decisões dos Tosta no sentido de modificar a sorte dos parceiros escravos, especialmente dos que fugiam ou dos que não desejavam que seus filhos e filhas fossem transferidos ou vendidos para outros engenhos.
Após a abolição da escravidão no Brasil, em 1888, muitos ex-escravos permaneceram nas propriedades em que nasceram ou viveram cativos. Mas não ficaram por submissão ou dependência. As motivações para permanecerem nos locais eram outras e seguiam uma lógica que os próprios libertos traçaram para as suas vidas. Muitas vezes a permanência nos locais estava ligada à defesa do direito que haviam adquirido durante o cativeiro de continuarem a ter acesso às roças. Para a família de Anacleto a permanência foi também ditada por obrigações religiosas com o lugar.
No Engenho Natividade, muitos continuaram cultivando pequenos lotes de terras mediante o pagamento de arrendamento. Trabalhadores libertos trabalhavam alguns dias da semana para a família Tosta e em compensação recebiam pequenos lotes para cultivar mandioca e outros gêneros que eram comercializados nas feiras de São Félix e Cachoeira. Muitas famílias de ex-escravos continuaram vivendo da renda de pequenos lotes de terras e foi assim que emergiram do cativeiro.
No início do século XX, a comunidade em volta do terreiro formada por remanescentes das famílias de antigos trabalhadores escravizados foi se diversificando e agregando pequenos lavradores, pescadores e ferroviários. Uma escola primária acolhia crianças de toda a redondeza. Ao longo do século, o terreiro da Casa da Cajá foi o território de uma comunidade que resistiu às investidas dos antigos senhores de reaverem aquela parcela da fazenda e também às diversas investidas da polícia contra o terreiro de candomblé. Ainda hoje, é celebrada a festa católica de São Roque, que acontece paralelamente ao culto de obaluayê, o orixá da cura.
O terreiro da Casa da Cajá simboliza tanto a luta pela terra como pela liberdade religiosa e é um fundamental lugar de memória da cultura negra e dos/as trabalhadores/as da Bahia.
Casa grande do Engenho Natividade, onde residiam os proprietários (cerca de 1950). Acervo de Walter Fraga.
Para saber mais:
Edilece Souza Couto, Marco Antônio Nunes da Silva e Grayce Mayre Bonfim Souza (org.). Práticas e vivências religiosas. Temas de história colonial à contemporaneidade luso-brasileira. Salvador: Edufba/Vitória da Conquista: Edições Uesb, 2016.
Edmar Ferreira Santos. O poder dos candomblés: perseguição e resistência no Recôncavo da Bahia. Salvador: Edufba, 2009.
Luís Nicolau Parès. A formação do candomblé: história e ritual de nação jeje na Bahia. São Paulo: Editora da Unicamp, 2006.
Onildo Reis David. O inimigo invisível. A epidemia na Bahia no século XIX. Salvador: Edufba, 1996.
Walter Fraga. Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910). Campinas: Editora da Unicamp, 2006.
Crédito da imagem de capa: Fotografia da Casa da Cajá. A árvore brota de dentro do terreiro. Fotografia de Walter Fraga, 2008.
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Lugares de Memória dos Trabalhadores
As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.
A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.
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