LMT#91: John Grant & Company, Maraú (BA) – Rute Andrade Castro



Rute Andrade Castro
Professora de História da UNEB – Campus XIV



Maraú hoje faz parte de uma das mais apreciadas zonas turísticas do litoral da Bahia. Em 1884, porém, o que atraiu pessoas para a região foi a fábrica que os britânicos John Cameron Grant e Lord Walsinghan montaram na fazenda João Branco, para beneficiamento dos minérios extraídos das margens do rio que banha a península. O alvoroço foi grande, pois empregou um expressivo contingente – que ficou conhecido como “os trabalhadores da turfa”, principal matéria prima da fábrica –, abalou a economia e se eternizou na memória local por ter sido palco de um famoso crime.

A região já despertava interesse por conta das descobertas iniciais de xisto betuminoso, carvão de pedra e petróleo, e houve uma pioneira iniciativa nacional para promover sua extração, porém nada que se comparasse à dimensão do que foi visto a partir de 1884. A destilação da turfa – substância similar ao petróleo – era feita através de 12 alambiques de 14 mil litros cada um, e 52 retortas Henderson, maquinário importado da Inglaterra e da Escócia. Em 1885 já estava a todo vapor, produzindo sobretudo querosene para iluminação e empregando 116 trabalhadores. Nos anos seguintes, a fábrica seguiu ampliando sua capacidade, importando novos equipamentos e aumentando o contingente de mão de obra. Em 1889, já eram mais de 300, todos homens, em sua maioria negros, mas  não há registro de utilização de escravizados.

O carro chefe da fábrica, que produzia óleos lubrificantes, velas de parafina, sabão e ácido sulfúrico, era o “petróleo nacional inexplosivo”, chamado Brazoline – que na verdade era um tipo de querosene usado para iluminação – registrado pela John Grant & Cia industriais na Junta Comercial da Bahia em 1888.

Naquela década de 1880, o que a vila de São Sebastião de Maraú tinha de mais próximo a uma indústria era a produção de farinha de mandioca, bastante significativa na época, ligada a pequenas propriedades e de fabricação predominantemente familiar. Com a instalação da fábrica, a farinha começou a escassear até para consumo local, e seu preço subiu porque as lavouras estavam sendo abandonadas, já que os lavradores, como disse o delegado na época, “correram” para o “trabalho na turfa no João Branco”. A mão de obra local não foi suficiente, e trabalhadores de outras regiões foram atraídos para o empreendimento justamente na década em que se acirravam os conflitos em torno da abolição da escravidão.


A fábrica  certamente foi vista por livres e libertos como uma oportunidade de nova vida. Um deles foi Bernardino Moreira de Sousa.


Na manhã do dia 7 de dezembro de 1889 , junto com outros companheiros,  Bernardino descarregava um dos vagões que transportavam mercadorias no interior da fábrica, quando se desentendeu e agrediu o maquinista Gaudêncio da Costa Silva. Depois de promover verdadeiro tumulto na fábrica,  Bernardino disse que não queria mais trabalhar lá e foi “pedir suas contas”.

Desconfiado de ter sido ludibriado no valor recebido, Bernardino voltou ao escritório da empresa, profundamente irritado e armado com uma garrucha. Após agredir alguns funcionários apontou sua arma para um dos patrões britânicos, Even Cattanach. A garrucha, no entanto, falhou, permitindo a fuga de Cattanach. Bernardino tentou então atingir outro britânico, Jorge Anderson, que, no entanto estava armado e atirou quase ao mesmo tempo em que John Cameron Grant, gerente da fábrica, desferia um segundo tiro contra Bernardino, que caiu morto.

O processo que se originou desse crime conta muito sobre a fábrica.  Além de revelar aspectos sobre as relações de trabalho e do cotidiano da empresa,  ele nos diz como os conflitos de classe também adquiriam colorações de rivalidades étnicas. Quando, por exemplo, um dos engenheiros britânicos da empresa, MacDonald, tentou conter Bernardino, os trabalhadores teriam reagido, afirmando que seria um desaforo prenderem “um brasileiro patrício” diante deles. Além disso, muitos teriam dito que Bernardino “queria matar um inglês”, indistintamente. Essa generalização permanece inclusive na argumentação do promotor, para quem Anderson poderia ter fugido, mas preferiu ficar onde estava, matando Bernardino “com a fleuma e sangue frio próprios de sua nação”.

Muito provavelmente este foi o assunto principal da localidade por meses ou até anos.  Anderson e Grant foram absolvidos por terem agido em legítima defesa. No entanto, permaneceu na memória local a ideia de que um trabalhador brasileiro descontente foi assassinado por patrões estrangeiros, e que isso teria tornado insustentável a presença dos britânicos na região

De toda forma, dois anos depois do incidente, a fábrica foi vendida para a Companhia Internacional de Maraú, de propriedade de um outro britânico, Frank George Williamson. Nos anos seguintes, a empresa entrou em decadência e acabou penhorada em 1898, quando já estava em ruínas. O local foi tomado pelo mato, restando atualmente apenas poucos indícios da existência da fábrica, como um poço – de onde se diz que era retirada a turfa – , uma estrutura que parece ter sido de um aqueduto, tijolos antigos e objetos diversos espalhados. Mais de um século depois do seu fechamento, no entanto,  as lembranças da “fábrica dos ingleses” ainda permanece viva na memória local.

 
Trabalhadores empurrando carro sobre trilho e provável alojamento dos britânicos
Fonte: Ubaldo Senna, acervo particular


Para saber mais:

  • CASTRO, R. A. Vestígios de uma fábrica britânica em fotografias de seus trabalhadores. Transversos: Revista de História, 10, 2017.
  • CASTRO, R. A. Conflitos étnico-raciais nos mundos do trabalho baiano: “valentes, viciados e perigosos”. ODEERE: Revista do Programa de Pós-Graduação em Relações Étnicas e Contemporaneidade – UESB. Volume 4, número 7, 2019.
  • SANTOS, Cristiane Batista da Silva. Histórias de africanos e seus descendentes no sul da Bahia. Ilhéus: Editus, 2019.
  • TEIXEIRA, CID. História do Petróleo na Bahia. Salvador: Editora Fernando José Caldas Oberlaender, 2010.

Crédito da imagem de capa: John Grant ao centro cercado por equipamentos e trabalhadores britânicos e brasileiros Fonte: Ubaldo Senna, acervo particular


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Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

LMT#90: Santo Antônio do Rio Madeira, Porto Velho (RO) – Tyrone Cândido




Tyrone Cândido
Professor de História da Universidade Estadual do Ceará, campus de Quixadá



Quem anda pelas ruas de Santo Antônio, hoje um bairro da cidade de Porto Velho às margens do Rio Madeira, tem poucas evidências de um passado protagonizado por trabalhadores e trabalhadoras que ali viveram nos tempos de construção da lendária Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (EFMM). Eram pessoas provenientes dos mais diversos lugares, uns atraídos pelos empregos da ferrovia, outros para lá enviados à força.

Santo Antônio foi sede das primeiras expedições de construção da EFMM na década de 1870. À época, não passava de um precário posto militar, somente acessado pelas águas do Madeira. Era também um marco de uma mal definida fronteira entre o Brasil e a Bolívia. A emergente exploração da borracha na região era a principal motivação para a construção da ferrovia.

A primeira tentativa de construção da EFMM deu-se em 1872, quando, técnicos, engenheiros e operários para lá foram enviados por George Earl Church, agente norte-americano autorizado pelos governos brasileiro e boliviano a explorar a via-férrea. Foi um grande fracasso. As dificuldades de ali se estabelecer, os desafios da mata fechada, os ataques de indígenas, terríveis e mortais doenças, tudo fez com que logo se percebesse que aquele era um empreendimento extremamente perigoso.

Em 1878 a Comissão Collins, com sede na Filadélfia, Estados Unidos, conseguiu iniciar a construção da linha, porém teve de manter o recrutamento de milhares de operários que substituíam os que morriam ou abandonavam as obras em fugas temerárias. De início, as turmas eram compostas por imigrantes alemães, irlandeses, italianos, que viviam nos EUA. Depois vieram retirantes do Ceará, refugiados da grande seca de 1877. Indígenas eram também agenciados junto a seringalistas locais. Somavam quase 1.500 trabalhadores.


Apesar de suas diferenças culturais, aquela composição multinacional de operários promoveu em março de 1878 uma greve contra o atraso de salários e as indignas condições de trabalho e estadia. Agentes da Comissão Collins reprimiam os operários com dureza, compondo um cotidiano de forte tensão.


Anos depois, foram arregimentados para a ferrovia membros de famílias norte-americanas que viviam no Brasil, descendentes de antigos confederados da Guerra Civil. Construtores desligados do Canal do Panamá foram também para ali enviados (eram, nesse caso, antilhanos, espanhóis, norte-americanos). De Cuba chegaram trabalhadores galegos que construíam ferrovias naquela ilha. Estima-se que quase 30 mil pessoas de mais de 40 nacionalidades diferentes trabalharam na construção, entre 1907 e 1912. Habitantes da bacia amazônica formavam uma menor parcela dos contratados, mas não podemos deixar de lado a participação dos indígenas que prestavam serviços no transporte pelas corredeiras ou na obtenção de recursos da floresta.

Uma das cláusulas do Tratado de Petrópolis, assinado em 1903 após os conflitos de fronteira no Acre, previa a efetiva conclusão da EFMM até Guajará-Mirim. Foi então que o empresário Percifal Farquhar assumiu a concessão, em pleno auge dos negócios da borracha. Momento decisivo para o futuro de Santo Antônio, pois então a sede da construção foi transferida para Porto Velho, hoje a capital do estado de Rondônia, dali distante uns sete quilômetros rio abaixo. Neste último ponto seria construída a estação central, depósitos, almoxarifado e o porto. Também ali seriam erguidos escritórios e residências dos administradores, engenheiros e empreiteiros. As casas de Porto Velho eram amplas, feitas de madeira pintada, com telhados de zinco tratado, soalhos de madeira calafetada e varandas com telas que protegiam dos mosquitos. Mas isso era privilégio para uma minoria.

A maior parte dos que trabalhavam continuavam a viver em Santo Antônio. Oswaldo Cruz, quando ali esteve para orientar medidas sanitárias, registrou um quadro em tudo contrastante ao que se via em Porto Velho. Na cidadela de cerca de dois mil trabalhadores não havia esgoto, água canalizada ou iluminação. O lixo era atirado na rua. Terrenos no centro do povoado formavam pântanos. As poucas crianças logo morriam.

Administradores da EFMM adotavam uma política de proibição da presença feminina, mas elas estavam lá. Além de lavadeiras e enfermeiras que serviam no Hospital da Candelária, mulheres faziam os serviços domésticos nas casas de Porto Velho e residiam com suas famílias em Santo Antônio. Marcante foi a chegada de quarenta mulheres trazidas como prisioneiras no vapor Satélite, que trazia ainda centenas de homens da Casa de Detenção do Rio de Janeiro, afora marinheiros punidos por terem participado da Revolta da Chibata, em 1910. As mulheres estavam em estado de abatimento extremo, desnudas da cintura para cima e foram oferecidas como criadas para as famílias ricas. A maioria foi levada à prostituição.

A Madeira-Mamoré foi concluída em 1912, exatamente quando a exportação da borracha amazônica entrava em crise ante a concorrência dos novos produtores asiáticos. Os trens circularam desde então até 2000, contando com interrupções e retomadas, quando foram definitivamente desativados. Uma parte dos trabalhadores ali ficou, constituindo a população mais pobre na nova cidade. A maioria partiu para sempre. A construção da EFMM deixou o saldo de 8 a 10 mil mortos, o que originou a lendária máxima de ter havido uma morte para cada dormente assentado. Hoje as pedras do Rio Madeira de frente a Santo Antônio sustentam as comportas de uma usina elétrica que podemos entender como uma versão atualizada do antigo empreendimento. Em Santo Antônio, nem tudo mudou.

Viagem de inspeção durante a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré.
Fonte: https://www.brasil-turismo.com/rondonia/madeira-mamore.htm
Trabalhadores orientais em Santo Antônio do Rio Madeira (1910). Fotografia de Dana B. Merril,
Acervo do Museu Paulista da USP.


Para saber mais:

  • CANDIDO, Tyrone Apollo P. Nas fronteiras do trabalho: trânsitos e resistências numa expedição de construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. Revista Territórios e Fronteiras, Cuiabá, vol.12, n. 2, 2019.
  • CRUZ, Oswaldo Gonçalves. Madeira Mamoré Railway Company: considerações gerais sobre as condições sanitárias do Rio Madeira. Rio de Janeiro: Papelaria Americana, 1910.
  • FOOT HARDMAN, Francisco. Trem fantasma: a modernidade na selva. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1991.
  • PAIVA, Ana Carolina Monteiro. Trabalho e cotidiano na Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (1907-1919). Dissertação de Mestrado em História. João Pessoa: PPGH-UFPB, 2020.
  • SOUZA, Marcio. Mad Maria. 5ª edição. Rio de Janeiro: Record, 2002.

Crédito da imagem de capa: Rua de Santo Antônio do Rio Madeira(1910). Fotografia de Dana B. Merril, Acervo do Museu Paulista da USP.


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Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

Livros de Classe #03: Costumes em comum, de E. P. Thompson, por Sidney Chalhoub

No terceiro vídeo da série, Sidney Chalhoub, professor titular colaborador da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professor do Departamento de História de Harvard, apresenta Costumes em comum, de E. P. Thompson. A celebrada coletânea de artigos do historiador inglês contribuiu para uma reflexão sobre a atuação política dos trabalhadores para além do movimento operário organizado.

Livros de Classe

Os estudantes de graduação são desafiados constantemente a elaborar uma percepção analítica sobre os diversos campos da história. Nossa série Livros de Classe procura refletir justamente sobre esse processo de formação, trazendo obras que são emblemáticas para professores/as, pesquisadores/as e atores sociais ligados à história do trabalho. Em cada episódio, um/a especialista apresenta um livro de impacto em sua trajetória, assim como a importância da obra para a história social do trabalho. Em um formato dinâmico, com vídeos de curtíssima duração, procuramos conectar estudantes a pessoas que hoje são referências nos mais diversos temas, períodos e locais nos mundos do trabalho, construindo, junto com os convidados, um mosaico de clássicos do campo.

A seção Livros de Classe é coordenada por Ana Clara Tavares.

LMT#89: Arsenal de Marinha, Rio de Janeiro (RJ) – David Lacerda



David Lacerda
Doutor em História Social pela Unicamp



Quem circula pela região entre a Praça Mauá e a Igreja da Candelária, ou caminha até a Praça Quinze para tomar a barca e atravessar a baía de Guanabara, já deve ter avistado a Ilha das Cobras e sua paisagem rodeada por guindastes, navios armados, submarinos, porta-aviões, edifícios e galpões. Ali funciona um grande complexo industrial denominado Arsenal de Marinha, cuja história remonta à fundação do Arsenal Real de Marinha em 1763, ano em que a sede da governança colonial foi transferida de Salvador para o Rio de Janeiro.

Erguido nos arredores do mosteiro de São Bento, o Arsenal serviria para a fabricação e o reparo das embarcações da esquadra lusitana, reforçando o poder militar e econômico que o porto do Rio vinha adquirindo desde o século XVII, quando passou a integrar as rotas atlânticas do tráfico negreiro e do contrabando de metais preciosos envolvendo Lisboa, Luanda e o Rio da Prata.

No início do século XIX, a capacidade produtiva do estabelecimento foi beneficiada pela oferta de madeiras e fibras vegetais nos arredores da cidade. A pesca de baleia, a navegação de cabotagem, as guerras de Independência (1821-1824), a Guerra Cisplatina (1825-1828) e a continuidade do tráfico (ilegal de 1831 a 1850) também estimularam o desenvolvimento de suas atividades, bem como a abertura de oficinas, armazéns e repartições administrativas.

Nas décadas seguintes, o Arsenal tornou-se o principal centro de construção e reparo naval da Armada brasileira e um dos principais complexos militares localizados à margem sul-americana do Atlântico. Sua área foi se expandindo pela zona portuária em direção à Prainha (atual Praça Mauá, região de fronteira com os bairros da Saúde e da Gamboa) e ao Cais dos Mineiros e à Ilha das Cobras, para onde suas instalações foram transferidas no final dos anos 1940.

O Arsenal engloba os mais diversos serviços e afazeres relacionados ao mundo do trabalho marítimo. De 1810 a 1820 funcionavam cerca de doze oficinas, como as de ferreiros, calafates, cordoaria, carpinteiros de machado, pedreiros e canteiros. A partir de meados do século, a difusão mundial de tecnologias navais impactou a organização do espaço e das relações de trabalho. Em 1875 havia ali 2.367 trabalhadores distribuídos por vinte e duas oficinas. Ofícios tradicionais como calafates e carpinteiros navais, antes majoritários, passaram a dividir mais espaço com ocupações especializadas em fundição, tornearia, caldearia, forja de metais, manejo e conservação de armamentos e máquinas a vapor.


As oficinas reuniam expressivo contingente de trabalhadores e eram atravessadas por diferenças e desigualdades de classe e étnico-raciais, assim como outros espaços do Arsenal. Neles circulavam marinheiros, indígenas, colonos chineses, trabalhadores sentenciados, artífices militares, operários nacionais e estrangeiros, escravizados e livres, adultos e crianças – uma multidão diversa que compartilhava vivências e situações de exploração distintas.


Não à toa a rotina de trabalho no Arsenal era marcada por conflitos e tensões sociais. Contra a ameaça dos castigos físicos, do recrutamento forçado, das péssimas condições de trabalho e da violência dos costumes senhoriais e militares ergueram-se tentativas de fuga, deserção, levante e rebelião – cuja expressão mais eloquente no contexto mais amplo da Marinha de Guerra foi a revolta dos marinheiros negros de 1910 e que teve o Arsenal como um de seus principais palcos. Incontáveis queixas, clamores e petições também foram dirigidas às autoridades navais, contestando a ordem estabelecida. Algumas chegaram às páginas dos jornais da cidade. Em 1862, o Jornal dos Artistas veiculou pedido da “classe artística” do Arsenal por aumento e pagamento de seus vencimentos, enquanto a Gazeta dos Operários denunciou em 1875 o atraso do pagamento dos trabalhadores.

Além disso, quando adoeciam ou sofriam acidentes no trabalho, muitos empregados e operários de oficina reclamavam auxílios pecuniários para si e suas famílias. Outros tantos organizaram mutuais, caixas econômicas e montepios. Algumas associações fundadas no período da escravidão prosseguiram após a abolição. A Sociedade Beneficente dos Artistas do Arsenal de Marinha funcionou de 1856 a 1909 e a Associação Beneficente dos Fundidores do Arsenal de Marinha permaneceu ativa entre 1884 e 1908. Os trabalhadores do Arsenal também participaram junto a portuários, marítimos e operários de estaleiros privados da Federação Marítima Brasileira, criada em 1912, do Círculo dos Operários da União e do movimento grevista deflagrado pelos marítimos em 1920.

Durante o século XX, o Arsenal alternou momentos de expansão e declínio na construção naval militar. De toda forma, seus trabalhadores mantiveram uma longa tradição de organização e lutas por direitos. Nos anos 1930 e 1940, o Partido Comunista do Brasil (PCB) chegou a ter uma célula no Arsenal e a organizar, apesar da proibição oficial da Marinha, uma Sociedade de Defesa dos Trabalhadores daquele local de trabalho. Em 1945, o presidente dessa Sociedade, Joaquim Batista Neto, seria eleito deputado federal constituinte. No mais recente contexto da redemocratização, os trabalhadores ousaram desafiar a Marinha novamente em uma importante greve realizada em 1985 que, além de melhores salários, exigia o reconhecimento da categoria como metalúrgicos e o direito de organizarem um sindicato próprio.

A história do trabalho no Arsenal de Marinha confunde-se com a própria trajetória de lutas dos trabalhadores do Rio de Janeiro. Ele é um lugar de memória fundamental da história da cidade e do país.

Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro visto a bordo de uma embarcação
(11/04/2013, acervo pessoal).


Para saber mais:

  • BRAGA, Sérgio Soares; COSTA, Henri Randel. Dos movimentos de base à Assembleia Constituinte de 1946: entrevista com Joaquim Batista Neto. Revista de Sociologia e Política, nº 6/7, 1996. https://revistas.ufpr.br/rsp/article/view/39343/24159.
  • LACERDA, David P. Trabalho, política e solidariedade operária: uma história social do Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro (c.1860-c.1890). Tese (Doutorado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas/SP, 2016.
  • NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. Cidadania, cor e disciplina na revolta dos marinheiros de 1910. Rio de Janeiro: Mauad X; FAPERJ, 2008.
  • RIBEIRO, Silene Orlando. “Exímios remadores do Arsenal da Marinha”: recrutamento e trabalho indígena no Rio de Janeiro (1763-1820). Tese (Doutorado em História) – Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica/RJ, 2019.
  • Greve no Arsenal de Marinha (1985): https://www.youtube.com/watch?v=COClA_5TXHY

Crédito da imagem de capa: Diploma de sócio da Sociedade Beneficente dos Artistas do Arsenal de Marinha da Corte. Fonte: Biblioteca Nacional, Divisão de Iconografia, Diplomas de sociedades, acervo não catalogado.


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As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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Vale Mais #13 – Trabalhadores, repressão e transição democrática



Vale Mais é o podcast do Laboratório de Estudos de História dos Mundos do Trabalho da UFRJ, que tem como objetivo discutir história, trabalho e sociedade, refletindo sobre temas contemporâneos a partir da história social do trabalho.

O episódio #13 do Vale Mais é sobre Trabalhadores, repressão e transição democrática.

Este é o quinto episódio da segunda temporada de Vale Mais, o podcast do site do LEHMT-UFRJ. Nesta temporada, conversamos com recém doutores/as no campo da História Social do Trabalho sobre seus temas de pesquisa e processos de elaboração de suas teses. Neste episódio, entrevistamos Richard de Oliveira Martins, doutor em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Em dezembro de 2020, Richard defendeu a tese “Lutas vigiadas: militância operária, retaliação patronal e repressão no Vale do Paraíba (1979-1994)”, sob orientação do professor Claudio Batalha. A pesquisa analisou os trabalhadores da região do Vale do Rio Paraíba do Sul (Paulista e Fluminense), com ênfase sobre o operariado metalúrgico dos municípios de São José dos Campos/SP e Volta Redonda/RJ, abordando suas experiências de trabalho, organização sindical e luta política. Richard enfatiza as formas e as consequências da repressão com que se depararam estes trabalhadores, refletindo sobre o envolvimento de organizações sindicais nas recentes batalhas em torno da memória social da ditadura.

Dica da entrevistadaMichel Foucault

Produção: Heliene Nagasava e Larissa Farias 
Roteiro: Heliene Nagasava e Larissa Farias 
Apresentação: Larissa Farias 

Vale Mais #30: A cultura de luta antirracista e o movimento negro do século 21, por Thayara Lima Vale Mais

Nesta temporada, convidamos pesquisadoras e pesquisadores para discutir projetos, livros e teses recentes que aprofundam debates interdisciplinares sobre os mundos do trabalho. No terceiro episódio, conversamos com Thayara de Lima, doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autora do livro A cultura de luta antirracista e o movimento negro do […]
  1. Vale Mais #30: A cultura de luta antirracista e o movimento negro do século 21, por Thayara Lima
  2. Vale Mais #29: The Second World War and the Rise of Mass Nationalism in Brazil, por Alexandre Fortes
  3. Vale Mais #28: O poder e a escravidão, por Bruna Portella e Felipe Azevedo
  4. Vale a Dica #14: Orgulho e Esperança, de Matthew Warchus
  5. Vale a Dica #13: 2 de Julho: a Retomada, de Spency Pimentel e Joana Moncau

Chão de Escola #15: Futebol Operário – lazer, profissão e cultura dos trabalhadores, por Raphael Rajão Ribeiro.



Raphael Rajão Ribeiro (CPDOC-FGV e Museu Histórico Abílio Barreto)


Apresentação da atividade

Segmento: 2º e 3º anos do Ensino Médio

Unidade temática: Brasil Republicano e cultura operária

Objetivos gerais:

Identificar, a partir do caso do futebol, a relação entre construção da cultura operária e as práticas de lazer;
– Reconhecer o estabelecimento de redes de sociabilidade a partir dos locais de trabalho;
– Examinar o papel desempenhado pelas fábricas e por seus operários na popularização do futebol no Brasil;
– Observar medidas de controle sobre o lazer operário a partir das direções das fábricas;
– Identificar as diferentes percepções do movimento operário organizado sobre o lazer dos trabalhadores;
– Perceber as interações entre mundo do trabalho e lazer, bem como os limites entre profissão e atividades do tempo livre;

Habilidades a serem desenvolvidas (de acordo com a BNCC)

(EM13CHS401) Identificar e analisar as relações entre sujeitos, grupos e classes sociais diante das transformações técnicas, tecnológicas e informacionais e das novas formas de trabalho ao longo do tempo, em diferentes espaços e contextos.(EM13CHS502) Analisar situações da vida cotidiana (estilos de vida, valores, condutas etc.), desnaturalizando e problematizando formas de desigualdade e preconceito, e propor ações que promovam os Direitos Humanos, a solidariedade e o respeito às diferenças e às escolhas individuais.

Duração da atividade:  5 aulas de 50 min

Aulas Planejamento
01Etapa 1
02Etapa 2 e 3
03Etapa 4
04Etapa 5 e 6
05Etapa 7 e 8

Conhecimentos prévios:

– Primeira República no Brasil
– Industrialização e movimentos operários no Brasil
– Regulamentação das leis trabalhistas no Estado Novo


Atividade

Recursos: Projetor multimídia; impressora

Etapa 1: Futebol nas fábricas e a popularização do esporte

Leitura anterior à aula e levantamento de informações prévias sobre o texto abaixo.

Leia o Documento 1, o extrato do capítulo de abertura da 2ª edição da obra “O Negro no Futebol Brasileiro”, do jornalista Mário Filho, de 1964.

O trecho transcrito compõe a obra “O Negro no Futebol Brasileiro”, publicada originalmente em 1947 e reeditada com acréscimos em 1964. Seu autor foi o jornalista Mário Filho, que atuou na crônica esportiva por cerca de quatro décadas. O livro dialoga com diversos estudos ensaísticos, realizados entre os anos 1930 e 1940, que propunham debater a formação da identidade nacional, com destaque para a produção do sociólogo Gilberto Freyre. Seu objeto principal é narrar a ascensão do negro no futebol brasileiro, da condição de excluído ao protagonismo da modalidade esportiva mais popular do país.

A partir da leitura, desenvolva as seguintes questões:

  1. Faça uma pesquisa e trace uma breve biografia de Mario Filho. Informe suas origens, sua atuação profissional, sua produção literária e sua inserção na meio cultural brasileiro, com as principais iniciativas de que participou.
  2. O autor cita diversos termos em inglês, referentes à prática do futebol naquele período. Identifique os termos e produza um glossário com os seus significados.
  3. Como indicado, a obra escrita nos anos 1940, tinha como foco as relações raciais em torno do futebol. Observe as expressões utilizadas pelo autor para descrever os personagens e escreva um texto dissertativo respondendo as seguintes questões: 
  • Como os termos usados por ele soam atualmente? 
  • Em que medida eles podem ser classificados como preconceituosos?
  • Como o autor identifica as distinções entre nacionalidades? Havia uma hierarquia entre elas?
  1. Explique a relação entre trabalho e lazer, observando de que maneira as condições da Companhia Progresso Industrial do Brasil influenciaram a formação da equipe do Bangu.


Etapa 2: Futebol na fábrica do Bangu

Na segunda aula, faça uma correção da atividade de leitura do texto de Mário Filho.

Debata o texto do Documento 1, a partir de questões iniciais e de problemas indicados pelos estudantes. Nesse momento, de acordo com os pontos levantados pelos alunos, podem ser desenvolvidas questões sobre a sociabilidade em zonas fabris, a introdução do futebol no Brasil e sua relação com a presença estrangeira, as tensões nacionais e raciais no meio operário etc.


Etapa 3: Futebol na fábrica do Bangu

Façauma leitura coletiva do Documento 2, um texto histórico informativo intitulado “Bangu e fábrica: um casamento (in)feliz?”, de Nei Jorge Santos Júnior:

A partir da leitura, debata a importância da fábrica para o desenvolvimento do futebol na região de Bangu e para a manutenção do time, comparando com o texto de Mário Filho.

Solicite a resolução da questão abaixo:

1 – Em seu texto, Mário Filho faz uma extensa descrição da fotografia do primeiro time organizado pelo Bangu, em 1905. Observe a foto a que ele faz referência (projete a imagem):

Bangu, 1905. Imagem reprodução.

Com a imagem projetada, retome a leitura coletiva da descrição da fotografia presente no texto de Mario Filho, buscando identificar os elementos apontados por ele. 

Responda as seguintes questões:

  • De que forma o autor pontua a cultura masculina do período em sua descrição? Quais códigos essa cultura mobiliza e o que eles são capazes de comunicar aos demais? É possível identificar códigos semelhantes nos dias de hoje? É possível observar códigos no cotidiano escolar e na vida dos estudantes?
  • Mario Filho aponta uma relação entre as formas de se vestir e a busca de uma distinção social e de uma aceitação pelo grupo. De que forma esses esforços apontam para uma diferenciação racial e social entre os integrantes da equipe?
  • Um dos objetivos das regras nos esportes é a garantia de uma situação de igualdade entre todos os participantes de uma competição. Segundo a avaliação do autor, esse pressuposto que vigorava no momento de duração da partida se estendia para o convívio cotidiano entre os integrantes do time do Bangu? Quais tipos de diferenças existiam entre eles? Enumerem as diferenças.

Etapa 4: Futebol de fábrica, controle e organização operária

Na terceira aula, é indicada a leitura do artigo “Anarquistas e comunistas no Futebol em São Paulo”, de Fátima Martin Antunes:

Deve-se estabelecer um tempo para os estudantes lerem o texto em sala. Os alunos devem identificar os termos e referências espaciais desconhecidas e o professor deve esclarecer as dúvidas, de modo a garantir a melhor compreensão do texto.

A partir da leitura, propõe-se uma aula expositiva dialogada, com a montagem de um quadro, em duas colunas, com argumentos utilizados pelos integrantes do movimento operário contra e a favor da prática do futebol entre os trabalhadores. 

Observem argumentos relativos à utilização do tempo livre pelo trabalhador, o sentido atribuído ao lazer (esportes, bailes, encontros sociais), o significado da prática esportiva, as possibilidades de convivência entre formação intelectual e desenvolvimento físico, as possibilidades de mobilização pelo esporte etc.

Considerando os pontos de vista adotados naquele período, solicite aos estudantes a preparação de argumentos para um debate em defesa e em contraposição à prática do futebol a ser realizar na próxima aula.


Etapa 5: Debate sobre fábrica, controle e organização operária

Na aula 4, debata sobre controle e autonomia no futebol dos trabalhadores.

Prepare uma breve exposição retomando questões dos movimentos operários na Primeira República, em suas tendências anarquistas e comunistas, e debata sobre o controle exercido por empresários em contextos fabris e iniciativas de resistência pelos trabalhadores.

Em vista da preparação para o debate feito na aula anterior, escolha estudantes (de acordo com a organização e possibilidade que o(a) professor(a) encontrar na  sala), para realizar o debate a favor e contra a prática de esportes, em vista dos argumentos comunistas e anarquistas. Os estudantes devem ser orientados a assumir um lado na discussão.


Etapa 6: Debate sobre fábrica, controle e organização operária

Após o debate, leia coletivamente em sala o texto sobre a prática esportiva em Porto Alegre, e discuta as questões que segue.

Considerem que vocês sejam associados do Grêmio Esportivo Renner. Com base no debate realizado a partir dos argumentos do movimento operário a favor e contrário à condução de clubes de futebol pelas fábricas, avaliem o mascote proposto pelo Departamento de Propaganda da empresa:

  1. Quais as opiniões da turma sobre a mascote proposta? Ela é representativa do que os operários esperam de um time de futebol? Esse é o tipo de imagem que gostariam de utilizar para simbolizar a equipe? Argumentem a favor e contra o modelo proposto. 
  2. Ao final do debate, considerando sua condição de associado, a turma deve votar pela adoção ou não da mascote.

Etapa 7: As relações empregatícias no futebol profissional e na várzea

Na aula 5, a turma deve ser dividida em grupos para analisar as relações de trabalho no futebol operário, considerando a profissionalização e a prática na várzea.

Organize a classe em cinco grupos (ou em grupos múltiplos de cinco) para analisar os seguintes excertos sobre as relações de trabalho no futebol:

Selecionado e distribuídos os excertos pelos grupos, eles devem proceder a leitura do trecho indicado. E responder as questões abaixo:

  1. Que tipo de texto foi analisado pelo grupo? Quando foi escrito?
  2. Grifar os termos desconhecidos e buscar seu significado, com vistas à melhor compreensão do texto.
  3. Identificar o clube tratado e qual a sua inserção no circuito competitivo do futebol. De que campeonatos participava? Era classificado como amador ou profissional?
  4. Delimitar qual era o regime de contratação dos jogadores citados. Como eles se vinculavam ao clube e de que forma eram mantidos? De onde originavam os seus rendimentos?
  5. Os casos tratados nos trechos referem-se aos anos 1940, 1950 e 1960, momento em que já havia uma distinção no futebol entre clubes profissionais e amadores. Com base na relação empregatícia dos jogadores tratados, é possível afirmar se o clube ao qual eles pertenciam era completamente profissional ou amador?
  6. E do ponto de vista das relações de trabalho estabelecidas pelos jogadores com seus clubes, ela se configura em um vínculo empregatício?

Após analisarem os trechos e responderem às questões, os grupos devem apresentar os resultados à classe. 

Feitas as apresentações é possível ao professor estabelecer uma roda de conversa sobre as fronteiras entre relações formais e informais de emprego, pensando na multiplicidade de vínculos existentes não apenas no universo esportivo, mas nas relações cotidianas das comunidades onde os alunos estão inseridos.


Etapa 8: As relações empregatícias no futebol profissional e na várzea

Para finalizar a última aula, o professor deve realizar uma breve recapitulação de pontos chave sobre a regulamentação das relações trabalhistas e da edição da CLT no Estado Novo e abordar, de maneira panorâmica, o processo de institucionalização do profissionalismo no futebol brasileiro, considerando a prática não regulada do “amadorismo marrom” nas décadas iniciais do século XX e o processo de profissionalização entre 1933 e 1938.


Bibliografia e Material de apoio:

ANTUNES, Fátima Martin Rodrigues Ferreira. Futebol de fábrica em São Paulo. 1992. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1992.

Cadernos AEL. Dossiê esportes e trabalhadores. Campinas/SP, v. 16, n. 28, primeiro semestre de 2010.

CIOCCARI, Marta Regina. Do gosto da mina, do jogo e da revolta: Um estudo antropológico sobre a construção da honra em uma comunidade de mineiros de carvão. 2010. Tese (Doutorado em Antropologia) – Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.

FONTES, Paulo; HOLLANDA, Bernardo Buarque de (Org.). The Country of Football: Politics, Popular Culture, and the Beautiful Game in Brazil. Londres: Hurst Publishers, 2014.

LOPES, José Sérgio Leite. Da usina de açúcar ao topo do mundo do futebol nacional: trajetória de um jogador de origem operária. Cadernos AEL, Campinas, v. 16, n. 28, p. 13-40, 2010.

PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. Footballmania: Uma história social do futebol no Rio de Janeiro, 1902-1938. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

RODRIGUES FILHO, Mario. O negro no futebol brasileiro. Rio de Janeiro: Mauad, 2003.

SANTOS JUNIOR, Nei Jorge dos. A construção do sentimento local: o futebol nos arrabaldes de Bangu e Andaraí. Rio de Janeiro, Multifoco, 2014.

SILVA, Daniela Alves da. Cultura operária: um estudo de caso do Villa Nova Atlético Clube. 2007. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2007.

STÉDILE, Miguel Enrique. Da fábrica à várzea: clubes de futebol operário em Porto Alegre. 2011. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011.


Créditos da imagem de capa: Alured Bell, The Beautiful Rio de Janeiro, Londres: W. Heinemann, 1914, p. 182


Chão de Escola

Nos últimos anos, novos estudos acadêmicos têm ampliado significativamente o escopo e interesses da História Social do Trabalho. De um lado, temas clássicos desse campo de estudos como sindicatos, greves e a relação dos trabalhadores com a política e o Estado ganharam novos olhares e perspectivas. De outro, os novos estudos alargaram as temáticas, a cronologia e a geografia da história do trabalho, incorporando questões de gênero, raça, trabalho não remunerado, trabalhadores e trabalhadoras de diferentes categorias e até mesmo desempregados no centro da análise e discussão sobre a trajetória dos mundos do trabalho no Brasil.
Esses avanços de pesquisa, no entanto, raramente têm sido incorporados aos livros didáticos e à rotina das professoras e professores em sala de aula. A proposta da seção Chão de Escola é justamente aproximar as pesquisas acadêmicas do campo da história social do trabalho com as práticas e discussões do ensino de História. A cada nova edição, publicaremos uma proposta de atividade didática tendo como eixo norteador algum tema relacionado às novas pesquisas da História Social do Trabalho para ser desenvolvida com estudantes da educação básica. Junto a cada atividade, indicaremos textos, vídeos, imagens e links que aprofundem o tema e auxiliem ao docente a programar a sua aula. Além disso, a seção trará divulgação de artigos, entrevistas, teses e outros materiais que dialoguem com o ensino de história e mundos do trabalho.

A seção Chão de Escola é coordenada por Claudiane Torres, Luciana Pucu Wollmann do Amaral e Samuel Oliveira

LMT# 88: Praça Luiza Mahin, Brasilândia, São Paulo (SP) – Andrew G. Britt



Andrew G. Britt
Professor do Departamento de História da University of North Carolina School of the Arts




Luiza Mahin está na praça
pela dignidade da raça.
Qual o segredo
da linguagem dos espaços
e estátuas?
Entre o ser que passa
desligado
e a pedra imóvel ou placa
a mensagem assobia
contra o silêncio da farsa.

O que tem o passado
de tão secreto
para serem selecionados nomes de ruas e praça
s?


Em 1985 o escritor e poeta Cuti compôs as linhas acima para comemorar a inauguração da Praça Luíza Mahin no distrito da Brasilândia, na zona norte da cidade de São Paulo. Em um contexto de redemocratização do país e de participação de lideranças do movimento negro nos governos de oposição recém eleitos, como era o caso do estado e da cidade de São Paulo, a ONG  Coletivo de Mulheres Negras liderou a iniciativa de dar o nome de Luíza Mahin àquele espaço público. Um dos mais importantes ícones de feminismo negro contemporâneo, Mahin é comumente lembrada por seu envolvimento em revoltas de africanos e afrodescendentes libertos e escravizados na Bahia nos anos 1830. Ela foi a mãe de Luiz Gama, um dos mais famosos abolicionistas brasileiros. Apesar de, até hoje, constar na praça apenas uma placa simples com o nome de Mahin, sem maiores informações históricas, o ato de nomeação daquele espaço refletia e também colaborava com o processo de produção da Brasilândia como um centro de resistência e autodeterminação negra na cidade de São Paulo.

Atualmente um dos mais populosos distritos da capital paulista, a Brasilândia formou-se a partir do loteamento Vila Brasilândia em 1947. O crescimento rápido do bairro tem relação direta com as grandes intervenções urbanísticas do prefeito Prestes Maia, que começaram nos anos 1930 e continuaram até a década de 1960. O seu ambicioso projeto, o “Plano de Avenidas”, demoliu cortiços e outras moradias populares no centro da cidade. O projeto teve grande impacto em distritos como Bela Vista e Liberdade, locais de grande concentração de afrodescendentes até os anos 1940. Nas décadas seguintes, uma nova memória sobre essas regiões seria construída, invisibilizando o papel dos negros na formação desses bairros, que se se tornariam conhecidos como territórios de imigrantes: a Bela Vista “italiana” e a Liberdade “japonesa.” Muitos dos ex-moradores dessas áreas, inclusive uma população significativa de afrodescendentes, foram viver no novo loteamento de Vila Brasilândia.

Como a vasta maioria de bairros de trabalhadores pobres criados na periferia paulistana em meados do século XX, os próprios residentes autoconstruíram suas moradias e o espaço físico em geral da Vila Brasilândia. A população expandiu-se rapidamente após a abertura do loteamento em 1947, atingindo 30.000 mil residentes em menos de uma década. Esse crescimento continuaria nos anos seguintes e novos loteamentos atrairiam tanto outros residentes deslocados do centro urbano quanto a imensa leva de migrantes do Minas Gerais e do Nordeste que chegava a São Paulo naquele período. Alguns dos moradores do bairro trabalhavam nas duas pedreiras da região, enquanto outros cruzavam o rio Tietê diariamente para trabalhar na São Paulo industrial, ocupando postos em diversos setores, como no emprego doméstico, na construção civil e nos transportes.

A falta de investimento público, práticas oportunistas das imobiliárias, e a demanda incessante por moradia contribuíram para tornar a Vila Brasilândia um dos bairros mais urbanisticamente irregulares da capital paulista. A partir dos anos 1970, por exemplo, a região passou a ter a maior concentração de favelas na cidade.  


Entretanto, a Brasilândia forjou-se como um espaço de afirmação de identidades e de luta contra as desigualdades étnico-raciais e sociais em São Paulo. No contexto de uma cidade definida por um projeto de branqueamento e pelo mito da branquitude, onde os corpos negros têm sidos sistematicamente deslocados, silenciados e/ou invisibilizados, os residentes autoconstruíram a Brasilândia como um lugar de sobrevivência, resistência e autodeterminação negra.


Fizeram isso através de vários projetos e práticas, inclusive a construção de territórios de religiões de matriz africana e a criação da escola de samba Rosas de Ouro. Embora sempre habitada por uma população multirracial, a Brasilândia tornou-se uma das regiões de maior porcentagem de trabalhadores afrodescendentes na cidade e passaria a ser chamada a “Pequena África” paulista.

Nomear lugares foi uma prática marcante na construção da Brasilândia como uma “Pequena África.” Entre meados do século XIX até 1960, por exemplo, a via principal da região era chamada de Estrada do Congo, em uma referência direta à alta presença de africanos e afrodescendentes escravizados e libertos no norte da região da Freguesia do Ó (atual Brasilândia). É provável que esse nome tenha sido popularizado pelos residentes negros indicando a região como um lugar de refúgio a pessoas escravizadas e fugidas. Novos capítulos dessa história estão sendo escritos atualmente. A apenas 3km ao norte da Praça Luíza Mahin, uma nova praça foi recentemente batizada como Marielle Franco.

Esses nomes na paisagem do bairro demonstram a luta de sucessivas gerações de trabalhadores(as) negros(as) que construíram a Brasilândia como um local de resistência em meio a uma sociedade marcada por graves desigualdades e violência raciais. Lugares como a Praça Luiza Mahin reafirmam a autodeterminação negra da Brasilândia e são fundamentais nas batalhas pela memória social. Como disse o poeta Cuti há três décadas, esses são espaços “contra o silêncio da farsa” promulgado pelo projeto de branqueamento do país.

Estrada do Congo em um mapa de 1954.
 Fonte: “Mapeamento 1954 – Vasp Cruzeiro,” GeoSampa, www.geosampa.prefeitura.sp.gov.br.


Para saber mais :

  • BONDUKI, Nabil. Origens da Habitação Social no Brasil: Arquitetura Moderna, Lei do Inquilinato e  Difusão da Casa Própria, 7ª edição. São Paulo: Estação Liberdade, 2013.
  • BRITT, Andrew Graham. “‘I’ll Samba Someplace Else’: Constructing Neighborhood and Identity in São Paulo, 1930s-1980s.” PhD diss., Emory University, 2018.
  • DOMINGUES, Petrônio. Uma história não contada: negro, racismo, e branqueamento em São Paulo no pós-abolição São Paulo: Editora SENAC, 2004.
  • OLIVEIRA, Reinaldo José de. “Segregação Urbana e Racial na Cidade de São Paulo: as periferias de Brasilândia, Cidade Tiradentes e Jardim Ângela.” Tese de Doutorado, PUC-SP, 2000.
  • ROLNIK, Raquel. A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo. São Paulo: FAPESP/Studio Nobel, 1997.

Crédito da imagem de capa: Cartaz da inauguração da Praça Luíza Mahin.  Fonte: Schuma Schumaher, ed. Mulheres Negras no Brasil (São Paulo: Senac, 2014).


MAPA INTERATIVO

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Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.

Livros de Classe #02: Em defesa da honra, de Sueann Caulfield, por Cristiana Schettini

No segundo vídeo da série Livros de Classe, Cristiana Schettini, professora da Universidad Nacional de San Martin (UNSAM), apresenta a obra Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940), de Sueann Caulfield. Combinando uma prática de história social e uma perspectiva de gênero, o livro é resultado de uma rigorosa investigação sobre a moral sexual nos anos 1920 e 1930, no Rio de Janeiro.

Livros de Classe

Os estudantes de graduação são desafiados constantemente a elaborar uma percepção analítica sobre os diversos campos da história. Nossa série Livros de Classe procura refletir justamente sobre esse processo de formação, trazendo obras que são emblemáticas para professores/as, pesquisadores/as e atores sociais ligados à história do trabalho. Em cada episódio, um/a especialista apresenta um livro de impacto em sua trajetória, assim como a importância da obra para a história social do trabalho. Em um formato dinâmico, com vídeos de curtíssima duração, procuramos conectar estudantes a pessoas que hoje são referências nos mais diversos temas, períodos e locais nos mundos do trabalho, construindo, junto com os convidados, um mosaico de clássicos do campo.

A seção Livros de Classe é coordenada por Ana Clara Tavares.

Artigo “Zózimo Bulbul: prática de história oral no Centenário da Abolição (1988) e a história de vida de um artista negro” – Samuel Oliveira



Samuel Oliveira, pesquisador do LEHMT-UFRJ e professor do Programa de Pós-graduação em Relações Étnico-Raciais, publicou o artigo “Zózimo Bulbul: prática de história oral no Centenário da Abolição (1988) e a história de vida de um artista negro” na revista História Oral.

O artigo analisa o projeto de história oral liderado por Maria Beatriz Nascimento no Centenário da Abolição e a trajetória de vida de Zózimo Bulbul entre os anos 1930 e 1940, apresentando sua formação social e as experiências de classe e raça vivenciados no espaço urbano do Rio de Janeiro.

Link: https://revista.historiaoral.org.br/index.php/rho/article/view/1102/106106106274


Crédito da imagem de capa: Zózimo Bulbul. Disponível em: http://jornalismojunior.com.br/zozimo-bulbul-o-pioneiro-do-cinema-negro-brasileiro/

LMT#87: Empresa Industrial Garcia e Amazonas Esporte Clube, Blumenau (SC) – Cristina Ferreira



Cristina Ferreira
Professora do Departamento de História da Universidade Regional de Blumenau



Blumenau tornou-se nacionalmente conhecida como o principal polo têxtil em Santa Catarina. Seu processo de industrialização, um dos mais antigos do país, possui vínculos estreitos com o fluxo imigratório no Vale do Itajaí, iniciado na década de 1840. As primeiras fábricas têxteis da cidade foram iniciativas de artesãos estrangeiros ligados às atividades de fiação e tecelagem.

A Johann Heinrich Grevsmuhl & Cia, por exemplo, era uma pequenina manufatura têxtil, de propriedade de imigrantes alemães, incrustada no vale cortado pelo Ribeirão Garcia, tendo iniciado suas atividades por volta de 1868. Em 1918, passou a ser denominada Empresa Industrial Garcia, contando com acionistas de Curitiba. A maioria de seus trabalhadores tinha ascendência germânica. Na década de 1930, tornou-se uma das principais fábricas têxteis de Santa Catarina, com sua produção em roupas de cama e toalhas de mesa, atraindo trabalhadores de várias regiões, em particular do litoral do estado. Em 1974 foi incorporada pela Fábrica de Artefatos Têxteis Artex S/A,  e o patrimônio de ambas formou um amplo complexo industrial que, ainda hoje, atua como alicerce da economia na cidade.

A presença de fábricas têxteis marcou profundamente a geografia social de  Blumenau. Por volta dos anos de 1960, dois bairros concentravam a maioria dos trabalhadores da cidade. Um deles era o Garcia, na região sul, onde se localizava a Empresa Industrial Garcia com cerca de 2.700 trabalhadores à época. O outro era o Bom Retiro, situado na região oeste, nas proximidades do centro, bairro da  Hering com seus 1.800 operários. Nesses bairros predominaram vilas operárias, formadas por pequenas casas de madeira construídas pelos estabelecimentos fabris e alugadas por preços um pouco mais acessíveis aos operários. A proximidade dos locais de trabalho favorecia tanto a pontualidade e a assiduidade, quanto o controle social do cotidiano dos trabalhadores e suas famílias.


Mas, essa proximidade entre o local de trabalho e a moradia também fortificou os laços de sociabilidade entre os trabalhadores. Associações de moradores e clubes desportivos de bairros foram organizações importantes que expressaram uma forte dinâmica comunitária em Blumenau.


O Amazonas Esporte Clube foi um dos mais expressivos exemplos dessa cultura associativa. Iniciou suas atividades por volta de 1919 e conquistou a posição de um dos clubes de futebol mais queridos entre os trabalhadores têxteis de Blumenau, atraindo muitos torcedores em seus torneios dominicais. Seu estádio era considerado um dos melhores de Santa Catarina e foi construído nas imediações da fábrica, tornando-se o único clube de futebol amador a integrar a liga profissional da cidade. Todos os seus jogadores trabalhavam na Empresa Industrial Garcia ou na Cooperativa de Consumo dos Empregados. Durante a maior parte de sua história, a maioria dos jogadores era de origem étnica alemã, mas nas décadas de 1950 e 60, predominaram os descendentes de portugueses oriundos do litoral catarinense. Apesar de uma prática esportiva eminentemente masculina, os jogos congregavam, num ambiente geralmente festivo, as famílias operárias, com forte presença de mulheres e crianças. O clube demarcava um ideal de que ser trabalhador na Garcia significava, literalmente, vestir a camisa da empresa em todas as ocasiões.

Segundo Norberto Gonçalves, antigo tecelão da Garcia, a participação no time de futebol do Amazonas não estava ligada ao complemento da renda e sim a um sentimento de prazer e identificação social. Afinal, “não recebia nada, a gente treinava porque gostava do esporte. Eles davam o material, davam chuteira, davam tudo, uniforme. Então, a gente ia lá e treinava”. Em 1957 o Amazonas Esporte Clube venceu de forma invicta a segunda divisão da Liga Blumenauense de Futebol e passou a disputar, no ano seguinte, a divisão profissional da cidade, permanecendo nesta condição até 1965. De maneira geral, nas memórias dos trabalhadores, o time do Amazonas Esporte Clube é lembrado de forma saudosa, como um importante espaço de autonomia e identidade operária.. Dário Cunha, também trabalhador do setor de tecelagem afirmava com orgulho que aquele era um time “só de operários e que contava com a presença de mecânicos, contramestres, tecelões e trabalhadores de todas as especialidades técnicas do setor têxtil.”

O Amazonas Esporte Clube foi campeão em diversos torneios municipais e estaduais e seu estádio estava sempre repleto de fiéis torcedores. Seu último título aconteceu em 1974, quando conquistou a Taça Governador Colombo Machado Salles. Após a incorporação da Empresa Industrial Garcia pela Artex, o Amazonas Esporte Clube foi desativado, por ordem dos novos dirigentes da companhia, o que causou imensa revolta e indignação entre os torcedores e pessoas ligadas ao clube. A sede do Amazonas chegou a ser saqueada, com a perda de documentos, imagens, medalhas e troféus.

Ao longo de sua existência, o Amazonas Esporte Clube foi um importante espaço de lazer e agência dos trabalhadores. Suas conexões com outros pequenos clubes de futebol, como o Canto do Rio, com outras associações comunitárias e também com o Sindicato dos Trabalhadores da Indústria de Fiação e Tecelagem de Blumenau fizeram do clube um polo fundamental da vida organizativa na cidade. Sua história está articulada aos melhores sentidos de uma cultura associativa operária: diversão, vínculos identitários e laços de solidariedade capazes de congregar os interesses de classe, tornando-se um símbolo de pertencimento dos trabalhadores em Blumenau.

Time do Amazonas Esporte Clube, campeão da segunda divisão do futebol catarinense em 1957
Vila Operária nas proximidades da Empresa Industrial Garcia, composta por aproximadamente 200 moradias. 
Acervo do Arquivo Histórico José Ferreira da Silva (AHJFS), Blumenau – SC.


Para saber mais:

  • ANNUSECK, Ellen. Nos bastidores da festa: outras histórias, memórias e sociabilidades em um bairro operário de Blumenau (1940-1950). 2005. 163 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2005.
  • FERREIRA, Cristina. Contrastes e prazeres da sociabilidade dos trabalhadores têxteis de Blumenau (1958-1968). Blumenau: Edifurb, 2018.
  • SINGER, Paul. Desenvolvimento econômico e evolução urbana: análise da evolução econômica de São Paulo, Blumenau, Porto Alegre, Belo Horizonte e Recife. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968.
  • Site http://adalbertoday.blogspot.com/2009/09/amazonas-esporte-clube-90-anos-de.html

Crédito da imagem de capa: Complexo da Empresa Industrial Garcia com o campo do Amazonas Esporte Clube (1971). Acervo do Arquivo Histórico José Ferreira da Silva (AHJFS), Blumenau – SC.


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Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas. Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma “biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão, de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho, agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil, em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

A seção Lugares de Memória dos Trabalhadores é coordenada por Paulo Fontes.